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terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24921: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (20): 10 de Junho (Só para Patriotas)


1. Em mensagem do dia 30 de Novembro de 2023, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), reapareceu volvidos três anos, enviando-nos esta Boa memória da sua paz, intitulada "10 de Junho (Só para Patriotas)".


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 18

10 de Junho
(Só para Patriotas)


Há um grupo de ex-combatentes da Guerra do Ultramar que se vem reunindo mensalmente em alegres convívios, usufruindo de excelentes “provas” de gastronomia, enriquecidos com admiráveis programas de lazer e de cultura. Neles se cimentaram grandes laços de amizade, solidariedade e camaradagem.

Chama-se “O Bando do Café Progresso” e deve a sua formação a um pequeno grupo de jovens que frequentava assiduamente o “Café Progresso” (o mais antigo do Porto), especialmente no período anterior ao seu ingresso no serviço militar e sua consequente mobilização para a Guerra do Ultramar. Por coincidência passaram maioritariamente pelo mesmo percurso (Caldas, Mafra, Vendas Novas, Tavira, Santarém, Espinho e… Guiné).

Muito mais tarde, o Facebook promoveu a reaproximação de uns e a adesão de outros. Quem fomentou mais a afirmação do grupo foi o saudoso Jorge Portojo. Os membros do “Bando” tratam-se por tu, convivem como irmãos, sem distinção militar, social, clubística, profissional e académica. Cada um vai-se integrando ou afastando livremente, conforme a sua disposição para adaptação à camaradagem, amizade, solidariedade e tolerância. Graças a isso, e a mais de uma dúzia de anos de vivências regulares, temos um bom núcleo de base de grande confiança e amizade. Aqui, ninguém impõe nada, nem é obrigado a nada. Apenas tem de se sentir bem sem chatear ninguém.

Portugal não respeita o dia da sua Independência. Deve ser o único país do Mundo que não festeja o dia da sua independência!

Há quem diga que na “corte” da nossa Capital nunca foi nem será aceite que a fundação de Portugal tenha sido antes da conquista de Lisboa aos mouros.

Graças à grandeza do Camões (muito anterior ao Eusébio, Ronaldo, José Sócrates e Pinto da Costa), os portugueses vêm assinalando a data da sua morte como ponto alto da nossa portugalidade.

E chegou mais um 10 de Junho. Nada de novo: uma descentralizaçãozita das cerimónias para o interior do País e para junto das comunidades lusas de emigrantes no estrangeiro, garantindo assim a participação popular, mais pura e mais patriótica. Oportunidade única para se mostrar alguns adereços locais, mais políticos, mais medalhas discutíveis, mais fardas de vários tipos, incluindo algumas orientadas pela anquilosada/estatizada/Salazarenta Liga dos Combatentes. Mesmo assim, temos vindo a assistir a desfiles de figuras do poder, suas selfies e seus discursos vergonhosamente desenquadrados da importância solene que este Dia de Portugal exige.

Nós, “Bandalhos” do “Bando”, que sempre nos honramos da Pátria que defendemos, que além da Guerra, nos preocupámos e lutámos pela dignidade, honra e solidariedade dos nossos Camaradas, infelizmente pouco conseguimos e muito nos desacreditámos.

Prevalece, isso sim, o espírito “Bandalho”, que nos proporciona a boa ambiência, a amizade e a óptima camaradagem. E sempre manteremos o sentido patriótico com orgulho e muito respeito.


10 de Junho de 2023

Sem políticos, sem fardas, sem desfiles e sem medalhas, o “Bando” poisou, mais uma vez (a 10.ª), na lindíssima povoação de Crestuma,

Concentrados no Miradouro deslumbrante do Largo da Igreja, pelas 12h00 fizemos a Romagem ao Cemitério onde foi depositado um lindo ramo de flores. O Romualdo Silva complementou a Homenagem aos ex-Combatentes locais, enaltecendo a sua prestação militar, espirito de sacrifício e dever patriótico, na defesa do seu País e da sua comunidade.

Seguimos para as instalações do Clube Náutico de Crestuma, onde tivemos a oportunidade de conhecer um dos principais clubes da Canoagem Portuguesa.
Na montra de Troféus do C. N. Crestuma, deparamos com o Troféu Olímpico, que é atribuido ao clube desportivo de maior destaque no período dos 4 anos de Ciclo Olímpico
Como Fundador e Primeiro Presidente (e Honorário) desta Colectividade, “deixaram-me” fazer o papel de Guia. O Clube (propriamente dito) estava ausente, a participar em Provas de Canoagem na Catalunha.

Subimos para a Esplanada, onde prosseguiu o nosso 10 de Junho “à nossa maneira”.
Ali, quase debruçados sobre as águas do Rio Douro, envolvidos numa belíssima paisagem e acarinhados pelo aconchego das nossas queridas, resolvemos homenagear (finalmente!) as nossas Madrinhas de Guerra
Ainda entretidos a “decidir opções” perante a excelente mostra das entradas, o Ricardo Figueiredo já aproveitava para citar Camões, a referência ao dia e o expoente máximo da nossa cultura.
“Eternos moradores do Luzente
Estelífero polo e claro acento,
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento”


E referiu:
“…Ao longo da nossa história, muitos foram os exemplos de dedicação, altruísmo e coragem de militares que, em cumprimento do dever, sublimaram as suas capacidades ao serviço de Portugal. Foram heróis que connosco partilharam o quotidiano das suas vidas. Afinal, homens simples, capazes de feitos extraordinários.
Ao percorrermos a nossa memória, lembramo-nos dos cerca de 10.000 portugueses mortos e de mais de 54.000 feridos em combate e aí revemos os nomes de familiares e amigos.
E recordamos também aqueles que, ao longo de 9 séculos, deram a vida por Portugal.
Fomos Combatentes!
Somos ex-Combatentes!
Fomos soldados de excepção. Fizemos da distância e da saudade um desafio a vencer, aceitámos a falta de recursos como razão para a iniciativa e para a adaptabilidade fizemos da juventude o tempero da camaradagem.
E é desta lembrança de uma camaradagem fortalecida em tempos difíceis de guerra que resultam os nossos sentimentos de saudade.
Lembramos os nossos camaradas que sobreviveram e os que recentemente da lei da morte se passaram para outra dimensão.


Lembramos:
Jorge Portojo,
Carlos Peixoto,
Armando Santos,
Barreto Pires,
José Valente,
António Piteira,
Francisco Alen
Henrique Azevedo
Carneiro de Miranda
Manuel Maia
…”

Após o minuto de silêncio, procedeu-se à distribuição dos Diplomas de Homenagem às Madrinhas de Guerra, entregues pelos seus próprios afilhados. A nossa geração não esquece.

E a pedido, o Ricardo também leu:

Ex.mas Madrinhas de Guerra
Camaradas Combatentes
Desde miúdos, que nos habituámos a respeitar o 10 de Junho, como Dia de Camões, Dia da Raça. Dia de Portugal.
Era neste dia que se enalteciam os maiores feitos dos Portugueses!
Dia consagrado aos nossos heróis!
Vimos jovens, robustos, firmes, inteiros ou estropiados, garbosamente fardados.
Vimos pais, mães e filhos, vestidos de negro.
Vivos ou mortos, os nossos valorosos Combatentes estavam ali, orgulhosamente, para Honra e Glória da nossa Pátria.
Eram respeitados como a expressão máxima do nosso heroísmo.
Os tempos foram mudando, os combatentes foram esquecidos e as Cruzes de Guerra foram substituídas por grandes e abundantes Comendas.
Agora, os heróis são outros. São experts da política, da economia, da vigarice, do marketing e do chico-espertismo.
Curiosa e vergonhosa a situação reinante.
É que muitos deles (nós também), aguardam da verdadeira Justiça, a desejada e demorada condenação!
Volvido meio século da nossa história, nós, a geração que tudo sofreu,
A geração que em tudo acreditou,
A geração que sempre trabalhou,
Sente-se agora algo envergonhada pela situação a que chegamos.
Sem força, física e anímica, resta-nos a razão moral que nos alimenta vida fora.
Muito fizemos!
Mas muito deixamos por fazer!

É por isso, que, volvido tanto tempo, ainda vivemos preocupados com desejados acertos da nossa História.
Hoje, mais uma vez, lembramos o 10 de Junho, através de uma singela Homenagem.
A Homenagem às nossas Madrinhas de Guerra.
Sem elas, a guerra teria sido outra.
Sem elas, não teríamos vivido a Paz e o Amor.
Sem elas, não valeria a pena viver!
Obrigado Madrinhas de Guerra!
Obrigado Madrinhas no Amor!
Vós sois a razão da nossa existência.
VIVAM ÀS NOSSAS MADRINHAS !!!
VIVA PORTUGAL !!!


Uma inédita e muito singela Homenagem que provocou momentos de grande emoção e ainda de …muito amor.

Foram Homenageadas as seguintes Madrinhas de “Bandalhos”:

Gilda Ferreira - de - José Ferreira
Virgínia Teixeira - de - Jorge Teixeira
Carminda Cancela - de - Jose Manuel Cancela
Margarida Peixoto - de - Joaquim Peixoto
Cândida Rainha - de - Ricardo Figueiredo
Almerinda Freire - de - José Freire
Constantina Silva - de - Fernando Silva
Rosário Guimarães - de - Manuel Cibrão Guimarães
Amélia Fonseca - de - Luis Bateira
Maria Inês Sá - de - Manuel David Sá
Isabel Encarnação - de - João Encarnação
Emília Silva - de - Romualdo Silva
Maria Anjos Ramalho - de - Alberto Moura
Júlia Gomes - de - Isolino Gomes
Eulália Oliveira - de - António Pimentel
Maria de Fátima Carvalho - de - Antonio Carvalho
Umbelina Carneiro - de - Joaquim Carneiro
Constança Lopes - de - António Moreira
Fátima Sousa - de - José António Sousa
Maria José Costa - de - José Sousa
Conceição Claro - de - Damião Carneiro
Fátima Anjos - de - Francisco Baptista
Ana Maria Marques - de - António Duque Marques
Quina Carmelita - de - Manuel Carmelita
Assunção Paupério - de - Rogério Paupério
Constança Maria - de - António Gonçalves
Manuela Campos - de - Eduardo Campos
Fernanda Soares - de - Alberto Godinho
Luísa Lopes - de - José Manuel Lopes

Dia de emoções fortes
No 10 de Junho destes “guerreiros”, o Amor sempre prevalece.
Alimentados os corações, há que abastecer o estômago com a “Paella do Marques”, complementada com mais umas lambarices.
Tudo bem regado com bebidas escuras, brancas e outras e bem-humorado, com destaque para a animação da dupla “Ricardo e Carneiro” e para o grupinho das “Tecedeiras de Crestuma”
Os animadores Ricardo e Carneiro
Grupo das “Tecedeiras de Crestuma”
Já o dia ia longe e ainda “restavam” vários Bandalhos, pacificamente “colados” à terra, quietinhos, quentinhos e em sonolenta recuperação.

“Estes guerreiros são bons
C´o copito no punho
Clamam em vários tons
Pureza no 10 de Junho”


Silva Da Cart 1689
José Ferreira da Silva

____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21260: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (19): O Sousa da Ponte… de Pedra

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23527: O nosso querido mês de agosto, pós-pandémico: o que é ser português, hoje? (4): O melhor e o pior já estava dito em "Os Lusíadas", de Luís de Camões (1572) (Alberto Branquinho / António Graça de Abreu)



Capa de "Os Lusíadas", de Luís de Camões, 1ª edição, Lisboa, 1572.


CAMOES, Luís de, 1524-1580
Os Lusiadas / de Luis de Camões. - Lisboa : em casa de 
Antonio Gõçaluez, 1572. - [2], 186 f. ; 4º (20 cm)


1. Mais comentários ao poste P23518 (*):


(i) Alberto Branquinho  

Este, ainda não publicado, foi arrancado ao autor muito contra sua vontade. Não aceitava a sua divulgação.

PORTUGALADO

malfadado
malcriado
malparido
maldizente
maljogado
malandro
malvado
malvestido
malpago
malabarista
mal-agradecido
malquisto

MAL-AMADO !

12 de agosto de 2022 às 21:49 

(ii) Antonio Graça de Abreu 

Ser português é ser diferente de todos os outros povos do mundo. Mas qual é a diferença? É que somos diferentes e iguais a todos os outros povos do mundo. Tenho dois filhos de mãe chinesa, de Xangai, e eu, pai português. O João, o mais velho, hoje com 34 anos, era um miúdo quando, há vinte e tal anos atrás. viajámos largamente pela Europa. A meio da viagem o rapazinho saíu-se com esta: "Pai, afinal eu não sou português, nem chinês, sou europeu." 

Somos uns meio transviados cidadãos do mundo, com um grande defeito, a palavra e conteúdo INVEJA, com que Camões conclui Os Lusíadas. Mas a inveja não é privilégio português, grassa em catadupas por mil terras. (**)


Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 DE agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23518: O nosso querido mês de agosto, pós-pandémico: o que é ser português, hoje ? (1) : É estar no mundo como em casa (Telma Pinguelo, Toronto, Canadá, citando o etnólogo Jorge Dias)

(**) Último poste da série > 13 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23522: O nosso querido mês de agosto, pós-pandémico: o que é ser português, hoje? (3): Nos Camarões não há... camarões (Alberto Branquinho) / E já cá chegaram os meus netos, filho e nora para passar férias vindos dos Países Baixos (Valdemar Queiroz)

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20334: (Ex)citações (362): Excertos do meu Diário de Pequim, ainda inédito, a propósito de Camões, Engels, de todos nós, do racismo e do colonialismo (António Graça de Abreu)

Camões
Engels
 1. Mensagem enviada pelo António Graça de Abreu, com data de 6 do corrente:


Data - Quarta, 6/11/2019 à(s) 13:15

Assunto - Do meu Diário de Pequim, ainda inédito, a propósito de Camões [, foto à esquerda], Engels (, foto à direita,],  de todos nós, do racismo e do colonialismo (*)



Excertos do meu "Diário de Pequim":

Pequim, 12 de Setembro de 1980 (**)

 (...) Entender Camões é, quatrocentos anos depois da sua morte, conhecermo-nos melhor, como cidadãos à deriva, ou de pés bem assentes na terra, no embate, no extravagante diluir pelo mundo. Vamos ver porquê.

Luís de Camões, fidalgo pobre, valdevinos, desregrado e brigão, apanhado pela engrenagem complexa da sociedade do seu tempo, participou activamente, até à exaustão, na grande aventura dos Descobrimentos Portugueses. Antes de quaisquer outros povos, os homens do Douro e do Tejo chegariam por mar, às costas de África, América, Índia e também China.

António Graça de Abreu
Aqui em Pequim encontrei alguns amigos que eram de opinião que Camões teria sido um precursor do colonialismo português. É verdade que durante o longo governo dos reaccionários Salazar e Caetano, derrubado em 1974, o poeta foi transformado numa espécie de arauto do expansionismo português. 

De facto, em Os Lusíadas, o grande poema épico da nossa língua, Camões cantou o ilustre peito lusitano e os que entre gente remota edificaram/Novo Reino que tanto sublimaram." Mas Camões também reconhece, nas últimas estrofes dos mesmos Lusíadas, que o Portugal que cantava estava metido "no gosto da cobiça e da rudeza/ duma austera, apagada e vil tristeza. Camões, profundamente humano, nunca rejeitou, antes assumiu plenamente, a contradição das palavras e da vida.

Camões é o português de corpo inteiro, aventureiro, apaixonado e triste, cavaleiro andante errando pelas mais estranhas paragens do mundo, contraditório, lapidarmente humano. É o poeta que traduz, em versos maravilha, o que de bom e de mau se conjugam no génio português. Homem do Renascimento, Camões buscou uma sociedade mais justa. Um campeão dos humildes, "um socialista antes do tempo", como lhe chamou, talvez com um certo exagero, o camonista brasileiro Afrânio Peixoto. Teve perfeito conhecimento dos males do mundo, porque os viveu, estudou e sofreu e diz:

Não me falta na vida honesto estudo
Com longa experiência misturado…


Como afirmou o prof. Rodrigues Lapa, "Camões inseriu corajosamente em Os Lusíadas alguns versos que nos asseguram uma posição político-social de cidadão vigilante:

Vejamos no canto VII de Os Lusíadas:

Também não cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei no ofício novo
A despir e roubar o próprio povo!
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do rei, severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente.


Camões, um colonialista? Se participou na grande expansão portuguesa pelo mundo, que de resto abriu caminhos ao desenvolvimento da Humanidade, isso deveu-se à dinâmica do período histórico em que viveu. Se é verdade que os Portugueses oprimiram outros povos na sequência dos Descobrimentos, Camões assumiu uma atitude crítica e não foi um elemento passivo capaz de assistir, impávido e sereno, às muitas injustiças cometidas. Se tal não tivesse acontecido, o poeta não teria morrido pobre e miserável, vivendo, praticamente, nos últimos anos da sua atribulada existência, de esmolas, de caridade, de amigos.

Como homem do Renascimento, Camões foi o poeta de um mundo novo e diferente, mais amplo, mais vasto, que então começava e se abria a todos os homens.

Na sua obra lírica, foi também o grande poeta do Amor, e da negação do Amor. Ninguém como ele, na língua portuguesa, cantou o Amor, a complexidade de quem ama e é amado, as desilusões, o sofrimento, as "memórias da alegria", essa pura paixão tão portuguesa de amar e não amar.

O jovem Friedrich Engels, companheiro de Marx, numa carta escrita a 30 de Abril de 1839 ao seu amigo Wilhelm Graeber, diz que está a estudar a língua portuguesa que "é como ondas do mar sobre flores e prados" e depois confessa-lhe que, de manhã cedo, gosta de "se sentar num jardim com  o sol batendo-lhe nas costas lendo Os Lusíadas." O que levaria Engels a gostar de Camões e de Os Lusíadas?

Um grande historiador português deste século, Jaime Cortesão, dá uma das muitas respostas possíveis:

"O português de Camões foi moldado  pelas águas e pelos ventos, foi enriquecido pelas verdades de outras gentes e alumiado pelas estrelas de todos os céus. É o português-tritão que se misturou a todas as ondas e ao amargo sargaço dos oceanos; é o português suave que se diria respirar como as velas, ao sopro perene dos alisados; é o português amoroso que lançou os fundamentos do Império no sangue de outras raças; é o português para quem o perigo é o sal da vida e todos os homens são camaradas; e a Pátria, na própria frase do poeta, é toda a Terra.".

Em Pequim, Junho de 1980, quatrocentos anos depois da morte de Luís de Camões, portugueses e chineses recordaram o grande poeta que soube moldar o génio de todo um povo nessa língua que, como escreveu Engels, "é como as ondas do mar sobre flores e prados." (...)

[Seleção e realce a amarelo e a negrito, da responsabilidade do editor LG] (***)

____________

Notas do editor:

(*) Vd.poste de 6 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1) 
(**) vd. poste de 19 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19698: Os nossos seres, saberes e lazeres (317): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte II: 12 de setembro de 1980: o 4º centenário da morte de Luís de Camões

(***) Último poste da série > 29 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20285: (Ex)citações (361): Do meu amigo Zé Saúde, com quem estive estes anos todos sem falar da guerra, até ao segredo dos 'Asas Brancas' de Contuboel (Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil, CCAÇ 3547, 1972-74)

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19698: Os nossos seres, saberes e lazeres (317): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte II: 12 de setembro de 1980: o 4º centenário da morte de Luís de Camões

República Popular da China > Pequim > s/d > O António Graça de Abreu na praça Tianamen [ou Praça da Paz Celestial]


Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2008). Todos os direitos reservados. 

[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de António Graça de Abreu, com data de ontem, às 18h20:

Obrigado, Luís, pela publicação dos textozinhos do meu Diário de Pequim. Este, novo, sobre o Camões 1980, parece-me sempre actual e tem a ver com todos nós.(*)

Abraço, António Graça de Abreu

2. Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito", escrito na China, entre 1977 e 1983 (*)

por António Graça de Abreu


[ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 230 referências.]




Pequim, 12 de Setembro de 1980

No número de Setembro de 1980, a revista China em Construção, edição em português, a propaganda de divulgação oficial de tudo o que é China, elaborada aqui nas Edições de Pequim -- onde, com a Adélia Goulart, trabalho há mais de um ano --, saiu um extenso texto meu.

Antes da publicação, o que escrevi e passo a transcrever, foi traduzido para chinês e levado à consideração, ou censura, dos nossos chefes. Não me cortaram uma só palavra, não limparam uma vírgula, passou tudo pelos dentes e entendimento do pente feio da censura chinesa. Aí vai o que escrevi:

4º. Centenário de Luís de Camões comemorado na China

Nos últimos dias de Junho passado tive a honra de participar numa pequena reunião e convívio luso-chinês realizado na Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim que teve como motivo da comemoração o 4º. Centenário da morte do maior poeta português, Luís de Camões (1524-1580).

Foi um encontro muito simples, mas cujo significado e importância merecem destaque no contexo das relações culturais entre Portugal e a China. Quatro alunos dos cursos de Língua e Cultura Portuguesas da Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim disseram um soneto e uma redondilha de Camões, Alma minha gentil que te partiste e Descalça vai para a fonte, em português e numa bonita tradução para chinês.

Vieram a esta Faculdade, o embaixador de Portugal na China, Dr. António Ressano Garcia, o conselheiro da Embaixada, Dr. João de Deus Ramos, a profª. Conceição Afonso, eu próprio, o vice-director da Faculdade e decano dos cursos de Estudos Ibero-Americanos, prof. Liu Zhengquan e, fundamental, as quase quatro dezenas de chineses que na capital da China estudam a língua portuguesa. Sob a égide de Camões, as pessoas encontraram-se, conversaram, deram conteúdo a uma das mais bonitas palavras da língua chinesa, youyi 友 谊,que significa "amizade."

O Embaixador de Portugal na China referiu a satisfação que sentia, por, a propósito de Luís de Camões, se poder encontrar com tantos jovens chineses que estudam português e que no futuro desempenharão um papel importante nas relações não só entre Portugal e a China, mas entre a China e o vasto mundo da língua portuguesa.

Que interesse poderá ter hoje recordar, na República Popular da China, o grande poeta português quando este país se procura projectar no futuro através das "quatro modernizações" ?

Os maiores poetas -- na China um Qu Yuan, um Li Bai, um Du Fu, em Portugal um Camões ou um Fernando Pessoa – estes, os maiores poetas não morrem, são passado, presente e futuro e continuam, século após século, a ser a voz de todo um povo.

Entender Camões é, quatrocentos anos depois da sua morte, conhecermo-nos melhor, como cidadãos à deriva, ou de pés bem assentes na terra, no embate, no diluir pelo mundo. Vamos ver porquê.

Luís de Camões, fidalgo pobre, valdevinos, desregrado e brigão, apanhado pela engrenagem complexa da sociedade do seu tempo, participou activamente, até à exaustão, na grande aventura dos Descobrimentos Portugueses. Antes de quaisquer outros povos, os homens do Douro e do Tejo chegariam por mar, às costas de África, América, Índia e também China.

Aqui em Pequim encontrei alguns amigos que eram de opinião que Camões teria sido um precursor do colonialismo português. É verdade que durante o longo governo dos reaccionários Salazar e Caetano, derrubado em 1974, o poeta foi transformado numa espécie de arauto do expansionismo português. De facto, em Os Lusíadas, o grande poema épico da nossa língua, Camões cantou "o ilustre peito lusitano"  e os que "entre gente remota edificaram / Novo Reino que tanto sublimaram." Mas Camões também reconhece, nas últimas estrofes dos mesmos Lusíadas, que o Portugal que cantava estava metido "no gosto da cobiça e da rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza". Camões, profundamente humano, nunca rejeitou, antes assumiu plenamente, a contradição das palavras e da vida.

Camões é o português de corpo inteiro, aventureiro, apaixonado e triste, cavaleiro andante errando pelas mais estranhas paragens do mundo, contraditório, lapidarmente humano. É o poeta que traduz, em versos maravilha, o que de bom e de mau se conjugam no génio português. Homem do Renascimento, Camões buscou uma sociedade mais justa. Um campeão dos humildes, "um socialista antes do tempo", como lhe chamou, talvez com um certo exagero, o camonista brasileiro Afrânio Peixoto. Teve perfeito conhecimento dos males do mundo, porque os viveu, estudou e sofreu e diz:

Não me falta na vida honesto estudo
Com longa experiência misturado…


Como afirmou o prof. Rodrigues Lapa, "Camões inseriu corajosamente em Os Lusíadas alguns versos que nos asseguram uma posição político-social de cidadão vigilante:

Vejamos no canto VII de Os Lusíadas:


Também não cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei no ofício novo
A despir e roubar o próprio povo!
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do rei, severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente.


Camões, um colonialista? Se participou na grande expansão portuguesa pelo mundo, que de resto abriu caminhos ao desenvolvimento da Humanidade, isso deveu-se à dinâmica do período histórico em que viveu. Se é verdade que os Portugueses oprimiram outros povos na sequência dos Descobrimentos, Camões assumiu uma atitude crítica e não foi um elemento passivo capaz de assistir, impávido e sereno, às muitas injustiças cometidas. Se tal não tivesse acontecido, o poeta não teria morrido pobre e miserável, vivendo praticamente de esmolas, de caridade, de amigos.

Como homem do Renascimento, Camões foi o poeta de um mundo novo e diferente, mais amplo, mais vasto, que então começava, se abria todos os homens.

Na sua obra lírica, foi também o grande poeta do Amor, e da negação do Amor. Ninguém como ele, na língua portuguesa, cantou o Amor, a complexidade de quem ama e é amado, as desilusões, o sofrimento, as "memórias da alegria", essa pura paixão tão portuguesa de amar e não amar.

O jovem Friedrich Engels, companheiro de Marx, numa carta escrita a 30 de Abril de 1839 ao seu amigo Wilhelm Graeber, diz que está a estudar a língua portuguesa que "é como ondas do mar sobre flores e prados" e depois confessa-lhe que gosta de "se sentar num jardim com o o sol batendo-lhe nas costas lendo os Lusíadas." O que levaria Engels a gostar de Camões e de Os Lusíadas ?

Um grande historiador português deste século, Jaime Cortesão, dá uma das muitas respostas possíveis:

"O português de Camões foi moldadado pelas águas e pelos ventos, foi enriquecido pelas verdades de outras gentes e alumiado pelas estrelas de todos os céus. É o português-tritão que se misturou a todas as ondas e a amargo sargaço dos oceanos; é o português suave que se diria respirar como as velas, ao sopro perene dos alisados; é o português amoroso que lançou os fundamentos do Império no sangue de outras raças; é o português para quem o perigo é o sal da vida e todos s homens são camaradas; e a Pátria, na própria frase do poeta, é toda a Terra."

Em Pequim, Junho de 1980, quatrocentos anos depois da morte de Luís de Camões, portugueses e chineses recordaram o grande poeta que soube moldar o génio de todo um povo nessa língua que, como escreveu Engels, "é como as ondas do mar sobre flores e prados."
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domingo, 8 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18502: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte XXXIII: Colombo, capital do Sri Lanka ou Ceilão ou "Taprobana", 15-16 de novembro de 2016


Foto nº 1 > Colombo >  O emblemático edifício da Cargills  Ceylon Limited, fundada em 1844.



Foto nº 2 > Colombo, mesquita muçulmana


Foto nº 3 > O CR7, Cristiano Ronaldo

Foto nº 4 > Na. Sra. Fátima e os Três Pastorinhos



Sri Lanka ou Ceilão > Colombo > 15 e 16 de novembro de 2016


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das crónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias", do nosso camarada António Graça de Abreu, 
Escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 200 referências, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais.

2. Sinopse da série "Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias"

(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016; [não sabemos quanto despenderam, mas o "barco do amor" deve-lhes cobrado uma nota preta: c. 40 mil euros, estimanos nós];

(ii) três semanas depois de o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);

(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017); no dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano; navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;

(iv) um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) seguem-se depois as ilhas Tonga; 
(vi) visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016;
(vii) volta pela Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016);

(viii) o navio "Costa Luminosa" chega, pela manhã de 29710/2016, à cidade de Melbourne, Austrália;
(ix) visita à Austrália Ocidental, enquanto o navio segue depois para Singapura; o Graça de Abreu e esposa alugam um carro e percorrem grande parte da costa seguindo depois em 8 de novembro, de avião para Singapura, e voltando a "apanhar" o seu barco do amor...

(x) de 8 a 10 de novembro. o casal está de visita a Singapura, seguindo depois o cruzeiro para Kuala Lumpur, Malásia (11 de novembro); 
(xi) Phuket, Tailândia (12-13 de novembro);

(xii) Colombo, capitão do Sri Lanka ou Ceilão ou Trapobana (segundo os "Lusíadas", de Luís de Camões. I, 1), em 15-16 de novembro. de 2016;

As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;



3. Viagem de volta ao mundo em 100 dias > Sri Lanka ou Ceilão, Colombo,  15-16  de novembro de 2016 (pp. 53-53-56, da Parte II)


Junk ceylon sete vezes referida na Peregrinação [, de Fernão Mendes Pinto]


Colombo, Sri Lanka ou Ceilão

Uma abordagem acelerada a Colombo, capital do Sri Lanka, não dá para tirar quaisquer tipo de conclusões sobre este país que, oficialmente, tem um nome curioso, República Democrática Socialista do Sri Lanka. Para o nosso Camões, há cinco séculos atrás, logo no Canto I, na estrofe inicial de “Os Lusíadas”, esta terra era a ilha da Taprobana.

Hoje, República Democrática, não sei, e será Socialista em quê?

Caminhei pelos mercados de rua na zona de Pettah [, Foto nº 1,]  com imensa gente pobre e milhares e milhares de lojas por tudo quanto é sítio, vendedores de toda a espécie de quinquilharia, comida, roupa, tapetes, electrodomésticos, entrei em dois hotéis de cinco estrelas, o Kingsbury e o Hilton. Neste último, à noite, havia um espectáculo com o Engelbert Humperdinck, um cantor canastrão e fora de moda, exactamente como eu que não canto, mas escrevo. Os hotéis correspondem ao mundo dos poucos muito ricos.

Atravessei avenidas com grandes bancos nacionais e internacionais, deambulei entre comandos militares alojados em edifícios com vedações altas de arame farpado e soldados de Kalashnikov à porta, tive a sensação plena de estar num país do terceiro mundo cheio de problemas, onde ainda haverá tanto por fazer.

Colombo mexe, serão 600 mil habitantes industriosos e activos, há arranha-céus a crescer, a linha junto ao mar está sendo reconstruída, mas a desorganização na cidade é imensa. Um trânsito poluindo, conspurcando, atravancando tudo, mas que lentamente funciona, com autocarros meio decrépitos, táxis, motoretas adaptadas a tuk-tuks espalhando-se por tudo quanto é beco, travessa, praça, rua ou avenida.

Faço quilómetros e quilómetros a pé por dentro de Colombo. Na rua principal do bairro de Pettah, encaixada entre os edifícios do pequeno comércio, levanta-se uma original mesquita muçulmana revestida a tijolos e ladrilhos pintados de vermelhão e branco, em curiosa geometria colorida.[Foto nº 2].

Mais adiante, numa rua transversal, aparece um templo hindu com as figuras do costume, bonecos encavalitados uns sobre os outros, guerreiros de enormes bigodaças, damas de seios capitosos, uma misturada de gentes e animais subindo barrocamente pelas paredes externas do templo. À entrada, três cidadãos, de pernas cruzadas sentados no chão diante de uns cestos, pedem-me um dólar. São encantadores de serpentes. Recebida a nota norte-americana, destapam os cestos, tocam uns pífaros e umas bem mandadas cobras-capelo erguem-se no ar.

No enfiamento da rua, chama-me a atenção um painel da Khazana Sports (que empresa é esta?) com uma grande fotografia de um jogador de futebol com a bola nos pés, equipado de branco. Pois, tinha de ser, Cristiano Ronaldo, vestidinho à Real Madrid [Foto nº 3].  É o quarto português que encontro na passeata breve aqui por Colombo, capital do Sri Lanka. Os outros foram Jacinta, Lúcia e Francisco, os três pastorinhos de Fátima rezando diante de Nossa Senhora, com estátuas em tamanho natural, voltados para a rua na entrada da igreja católica de St.Mary’s, não longe do centro da cidade. [Foto nº 4].

No caminhar por Colombo, descubro também umas tantas tabuletas em lojas ou empresas propriedade de pessoas de apelido, Borges, Pereyra, Soyza, nossos primos afastados descendentes de lusitanos que há quinhentos anos aqui se fixaram e mesclaram as vidas com as gentes destas paragens do Ceilão, criando famílias e infindáveis histórias, muitas delas ainda por contar.

Sei que espalhados pelo Sri Lanka, esta “lágrima da Índia”, existem centenas e centenas de prodigiosos templos, sobretudo budistas, a visitar em demorada estadia. Convertido à excelente doutrina de Buda, regressarei um dia, de bigodes ao vento, montado num cavalo branco.

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Nota do editor:

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17715: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXV Parte: Cap XIV - Sangue, suor e lágrimas até ao fim... Op Suspiro, a última realizada pelos "Lassas", a 5 de novembro de 1966.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, os "Lassas" (1965/67) > Cambança do rio Ganjola, no decurso da Op Petardo, em 10 de junho de 1966.


Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 763, os "Lassas" (1965/67) >  Mapa com as zonas de intervenção dos "Lassas". Durante a comissão, estima-se que a CCAÇ 763 tenha percorrido aproximadamente 16 mil quilómetros a pé, 6 mil  de viatura e mil  de LDM. Teve 10 baixas (mortais), sendo 7 em combate e 3 por doença. Sofreu 53 feridos. Dos relatórios constam ter sido feitos 45 prisioneiros e causado 40 feridos e 107 mortos ao então IN.


Infografia: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]








Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XXV Parte > Cap XIV (pp. 87-93)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na
Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965, tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças são depois destruídas com granadas incendiárias.

(xix) Cecília Supico Pinto e outras senhoras do MNF visitam Cufar no início do ano de 1966 e Mamadu é internado no HM 241 (Bissau).

(xx) um mês depois, regresso a Cufar, regresso à guerra. Põe o correio em dia. Lê e relê a carta de Maria de Deus [MiMê], uma paixão escaldante dos tempos de "ranger" em Lamego e por quem estava quase para desertar, antes da data de embarque para a Guiné; a jovem morrerá prematuarmente, em França, aos 24 anos.

(xxi) revolta e dor pela morte do seu camarada e amigo, o fur mil Humberto Gonçalves Vaz (Op Teste, na região de Cabolol];

(xii) o cap Costa Campos deixa a companhia; a comissão está a chegar ao fim: a Op Suspiro é a última operação realizada, a 5/11/1966.




Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXV Parte: Cap XIV:  Regresso à Guerra [3] [pp. 87-93]



Com o meu amigo Humberto já não podemos falar desta merda e do nosso velho Portugal. Agora sim, em parte estou em sintonia com ele, pois apesar de quatrocentos anos de colonização, não fize­mos aqui senão porcaria e os que não o querem ver, continuam sendo piores que os cegos. Este caso já não é de guerra é, de facto, como tu dizias, político.

Não é falta de moral, nem medo. Estou-me cagando para morrer aqui ou noutro lado qualquer! É falta de ética? Sim, é bem possível, só que agora, talvez ainda pudéssemos acompanhar o comboio e fazer algo bonito. Mas, infelizmente, não estou a ver nada. Tenho o pressentimento de que, quando alguém entender e quiser fazer alguma coisa, estaremos todos com as calças na mão e aí vai ser já muito pior para todos.

Só em pleno século vinte, começámos aqui administra­tivamente a fazer qualquer coisa. Que poderemos querer agora? Qual a cultura? Qual a história nossa aqui presente?

Recordo perfeitamente também a controvérsia quanto à utilização do termo “Velho do Restelo”. Humberto discordante, tinha uma perspectiva que roçava o incompreensível? Para quem?

Falava ele sobre o “Velho”, na assembleia que se formava na messe de sargentos. Sargentos? Porque não furriéis milicianos? Questões económicas? Interessante, a interpretação do Velho do Restelo por Humberto, dizia ele:
-Oh gentes! Deixai o “Velho” sossegado, leiam os Lusíadas, e não ponham em Camões intenções as quais ele nunca teve.

Será Camões contraditório? “C´um saber só de experiência feito,” “tais palavras tirou do esperto peito”. Esta voz veneranda é digna de ser ouvida com atenção. As palavras aos que partem, são precedidas da Mãe.
- Qual é a estrofe, Mamadu? Se não estou em erro é a 90 ou por aí, do Canto IV. E das palavras da esposa. Veja-se a visão de conjunto dos frágeis que ficam: Mães, esposas, filhos, velhos e meninos. Portanto por detrás do “Velho”, está o povo anónimo. As suas palavras são puras análises da condição humana. Segundo ele as bases da viagem do Gama são: a glória de mandar, a vã cobiça a vaidade que se apelida de fama. Impulsos que não passam de fraudulento gosto. Que se é próprio da condição humana ser insatisfeito? Dura inquietação da alma e da vida, veja-se os exemplos dados de Prometeu e Ícaro. Tenhamos em atenção que o Canto!?

-Lopêz! Vai ao meu abrigo e traz-me os Lusíadas, não vá eu confundir isto tudo!

Enquanto o impedido da messe se deslocava ao abrigo de Humberto, que se situava a norte do aquartelamento, virado para Cufar Nalu, Bernardino gerente de messe, voltava a trazer mais umas bazucas e whiskys para o pessoal. Mas entretanto o furriel Humberto ia continuando:
-O Canto IV contem 104 estrofes, pelo que a análise deve ser feita até ao final.


E mesmo com a chegada do livro, o furriel continuava a sua análise:

-Temos então que a análise que se possa fazer, sabendo o “Velho” que o homem estranho animal, que não ouve a voz do bom senso e da lógica lucidamente, ele sabe que as suas não serão ouvidas, procura então inverter os campos, veja-se… Lopez, dá cá o livro!

Folheando…
-Precisamente 100 e seguintes. Oh, gente, temos aqui então a opinião política do “Velho”, e aqui eu vejo Camões e não o “Velho”, pois estão confirmadas as duas correntes existentes no tempo, a expansão para o Norte de África em detrimento do Oriente. Não será que Camões põe na boca do “Velho” a sua própria opção? Com ela ou sem ela, aqui estamos nós, nas mesmas condições, embora com armamento diferente.
- É impossível falar com Camões! Não há duvidas que acima de tudo, mesmo considerando a corrente da época, é que ele era um grande humanista.

Sorrindo para a malta, saiu-se com esta:
-O que o Velho do Restelo critica em tom sério e austero, Gil Vicente fá-lo satiricamente! É ou não verdade?

Seriam subversivas, estas culturais conversas? Esperamos que nin­guém tenha a ousadia de nos considerar antipatriotas, pois nunca virámos a cara às nossas responsabilidades, e medo também jul­go que não o tenhamos. Aliás, valentes e loucos são todos os "Las­sas" .

Vejo-o perfeitamente, na tabanca de Impungueda, fa­zendo segurança a um comboio de barcos mercantes, para abas­tecimento a Bedanda. Eu, sentado de encontro a um cajueiro, tronco velho carcomido, mantendo a G3 assente sobre as pernas esticadas, no solo de terra vermelha. Ao lado, junto a uma palho­ta, duas crianças nuas, encostadas ao barro da parede, olham para os militares. No chão, vê-se um pau rachado em cuja ponta fendida, se encontra incrustada uma cunha de ferro, amarrada por fita de liana. Humberto de pé, à minha frente, olhando o arcaico objecto, nele pegou. Mirou-o bem, pegou-lhe pelo cabo e com movimento rápido, cravou o simulado machado, no enor­me poilão que há frente se encontrava. Aproximou-se, empurrou o capacete um pouco para trás, dobrou-se sobre os joelhos fican­do de cócoras na minha frente, sorriu e disse:
-Já viste, Mamadu!? Olha o resultado de quatrocentos anos, da nossa obra para estes desgraçados!

E apontando as crianças proferiu:
-Se não fosse a escola dos militares de Cufar, eles nem o nome de Portugal conheceriam. Olha para o instrumento de trabalho que nós damos a estes desgraçados! Vês? Mas ... há a contradição! Os pais, amigos, e irmãos deles têm armas melhores que as nossas. Como se pode comparar situações e métodos tão antagónicos?

Olhei para os miúdos, e verifiquei que Humberto estava certo. Só agora aqueles pobres diabos, podiam aprender a língua da nacionalidade imposta, há quatrocentos anos.

Assim eram muitas vezes as conversas entre estes dois furriéis.

Na semana seguinte, voltamos novamente para os lados do norte, Cabolol, e o que existe á sua volta, já se toma obses­são. Mas as coisas, vamo-nos apercebendo, não melhoram e continua tudo sem dar aquela volta necessária que se espera. A sul vamos controlando, e as populações mantêm-se relativa­mente fiéis mas, a partir de Boche-Mende, para norte, é tabu. 

Entramos então na operação Saguim, para verificar o que se passa por Cachaque. Evitamos seguir pela estrada até à ponte do rio Caianquebam, onde tínhamos sido emboscados a outra semana. Utilizamos outra forma de progressão e, pelas três da manhã, alcançamos o atalho para Cachaque, cambando o rio. Podemos agora verificar e confirmar que as coisas estão muito diferentes do que anteriormente era, pois a C.CAÇ chegou a fazer isto com dois grupos de combate. E mais, até a fazer nomadização. Agora vamos três companhias do exército e, mesmo assim, temos pro­blemas. Nós fazemos muito estrago, é verdade, mas também levamos muita pancada. Carlos tinha razão quando falava na inutilidade do Cachil.

Mas, voltemos então à Op Saguim. Após a cambança do rio, a CCAÇ e a outra companhia dispõem-se em linha e iniciam a batida no sentido norte sul. A tabanca foi cercada e a população foi reunida. Constituída por mulheres e crianças essencialmente, havendo alguns homens válidos, rece­bemos a informação que o IN não se encontrava naquela zona, mas sim mais a norte, na região de Boche-Bissã, e que, por ve­zes, transitavam por ali grupos de elementos armados, mas vin­dos de Cansalá. Desta vez regressámos sem contacto com o IN.

A oito de Março, um ano depois de aportar a Cufar, Car­los abandona os Lassas nas mãos do Bolinhas. Valha-nos São Paulo.

Quem parte não leva saudades, quem fica, tem pena de não partir. A experiência de Carlos é vista pelos cegos dos gabi­netes.

Com esta partida de Carlos, renasce uma esperança na CCAÇ 763, é possível que olhem para a nossa obra e que, em vez dos louvores e condecorações, nos coloquem num local onde se descanse um pouco, pois a continuar neste ritmo, em breve vão começar a aparecer situações graves.

Vã esperança a destes homens a quem, depois de lhe comerem a carne, irão tirar-lhe a pele e tentarão com os seus ossos refinar açúcar. Meus amigos, há três hipóteses apenas: ou morrem na estrada de Cabolol, tanto faz, ou ficam apanhados da mona e são evacuados para tratamento no Júlio de Matos, ou en­tão resistentes, antes quebrar que torcer aguentarão o pacote até entrarem directamente daqui para o Niassa.

Vontade e sorte, azar ou pouca sorte, o destino já nos está traçado.

Mamadu concentra a mente em duas forças: Ou o padre velhote orou e pediu a Deus por si e estará safo, ou então o homem grande "palhinha" de Miriam, não deixa o diabo fazer entrar bala no seu corpo. Outras alternativas não vê.

Voltamos a Darsalame, executando a Op Safanão.

Desta vez ainda entrámos nas bordinhas da mata. Não espera­vam a nossa manobra. Enquanto estavam entretidos connosco, os periquitos apareceram-lhe nas costas, e tiveram que dar às de Vila Diogo. Eis aqui a sorte, azar, ironia do destino. Os periquitos que tinham andado todo o dia na mata sem contacto e sem dar um tiro, só a sua aproximação fez o IN debandar. Quando se reuniam a nós, um tiro isolado apanha um pobre soldado em pleno coração. Mamadu, já um pouco longe do militar guerrilheiro, voltou a sentir os olhos húmidos por aquele pobre jovem.

Cuidado rapaz, ainda há muito pela frente e, se começas a ficar sentimental, é uma merda. Acorda! Isto está para durar.

Abril [de 1966]. Continuamos a obra a sul, e a manutenção da população em fidelidade. Mas há que voltar para norte. A CCAÇ começa a estar muito cansada, e as baixas vão minando o moral, influenciando e reflectindo-se no desempenho das missões, mal conseguimos arranjar dois grupos de combate, pois o resto está no estaleiro, mas vamos com a milícia efectuar a operação Toi a Camaiupa e Cachaque. Sem problemas, conseguimos falar nova­mente com o pessoal nativo de Cachaque. O chefe de tabanca informa que tinham sido levados para Cansalá por um grupo IN, chefiado por um indivíduo de nome Brandão. Mais tarde teriam fugido e regressado a Cachaque. Seria? Mamadu tomou-se incrédulo. Já não acredita em ninguém.

No regresso, no cruzamento de Cachaque com a estrada de Cabolol, monta-se uma emboscada. Nada de novo e nem viva alma. Levantamento da emboscada e voltamos a Cufar. As viaturas vão buscar o pessoal à entrada da mata de Cufar Nalu na estrada para Catió. O furriel retoma o seu velho hábito de se sentar no tejadilho do unimog, por cima do condutor. A visuali­zação da paisagem de capim seco leva-o para longas terras, para a sua planície, para confirmar o contraste. É Abril. A planície não deve mostrar a sua terra, mas sim a pujança da beleza parida no seu ventre. O furriel deixa-se levar no enlevo do seu pensa­mento, e vê os caminhos bordejantes de douradas grisandras dançando na brisa primaveril. Os montes e vales, telas verde­jantes com maravilhosas pinceladas dos arroxeados chupa-méis, alternando com a margaça e margaridas de áureo olho e alvas pétalas, mostram a beleza da Planície. Na cidade, a pequenada começará pacientemente com uma agulha, enfiando as marga­ridas em linha grossa, fazendo os seus colares e grinaldas com que se enfeitam e à boneca de trapos, que será posta em simulado altar, pedindo depois aos transeuntes e vizinhos, um tostãozinho para a “Maia”. Assim irão tentando mais qualquer coisa, para mediar o magro mealheiro. As ruas encher-se-ão de cheiroso rosmaninho, para dar passagem à procissão do Senhor dos Passos que rememorando a Via-sacra a caminho do Gólgota, percorrerá todos os Passos da cidade. A semana da Paixão termi­nará com o enterro do Senhor. É Páscoa, é Ressurreição, devia ser renovação, mas a civilização, depois de perder a Fé em Deus e no próprio homem, volta-se para a mistificação das formas e cria símbolos, embalagens ocas que, obsessivamente vai cuidando, tentando esconder o vazio em que existe.

Diz sim! Diz, Maria de Deus que eu sou um romântico, coração mole, travestido de homem duro. Podes dizê-lo, contigo eu sou obrigado a reconhece-lo, mas que mais ninguém o saiba, principalmente Tânia. Pronto, não vou pensar mais nisso! Ou vou? Eterno indeciso!...

Pensa na sua aldeia, e percorre-a através da poesia de Manel Piorna.


Recordo-te!...
Nas desalinhadas calçadas
De pedra britada.
No Rossio terreiro
Ginásio da pequenada.


Contorno-te!...
Em cada Esquina
Pilar da tua memória.
Em cada largo
A pedra marco da história.

Descubro-te!...
Em cada casa
Orgulhosa de alva brancura.
Aldeia planície
Do coração saudosa procura.

Revejo-te!...
Aninhada, ao redor da Igreja
Em penitente oração.
Vila Fernando agora...
Voltando a Conceição.

Ouço-te!...
No anunciar da Natureza
Os diversos destinos.
Repicando em festa ou dobros saudade
Os teus sinos.


Suplico-te!...
Jardim de grisandras e chupa-méis
Horizonte sem serra.
Planície! Dá-me abrigo no teu ventre...
Amada terra!


-Então meu furriel, não desce?
- O quê?
- Já chegámos?!.

Mamadu não tinha dado pelo caminho nem pela entrada no aquartelamento.

A vida não pára e os Lassas também não. Maio, Junho, o chefe de grupo armado IN Ala Na Mone e Varna Na Buta, constantes do ficheiro fotográfico, são aprisionados por um grupo de combate, numa rusga em Cantone e em Mato Farroba são aprisionados Sande Na Manan de Catunco e Sulé Na Brama de Cabedu. As operações continuam: Signo, Sonda, Sarilho, nesta operação a população de Cachaque a seu pedido, foi recolhida e levada para Catió. 

Na Op Petardo vamos para Ganjola, mas já não somos uma Companhia de Caçadores, somos um Grupo a quem outros têm de emprestar pessoal. Lá está a 1484 a ceder os seus Grupos de Combate, tempos duros, amigo Benito! Obrigado a ti e aos teus homens pelo companheirismo.

Chegamos à triste situação de só conseguirmos arregi­mentar quarenta e oito Lassas em condições operacionais. É uma tristeza!. .. Paolo chega a ir a Bissau e tomar posição, como já foi descrito. Se não fossem outras causas, o mostrar que tinha os tomates no sítio certo, podia-lhe custar uma porrada em grande. Carlos, apesar de estar fora, ainda era útil.

Na operação Petardo, foi-nos dada a oportunidade de ver um homem chorar e desistir de viver. É simplesmente horrível quando a pessoa já não acredita nos outros e em si própria. Os rios de maré são autênticas ratoeiras, para os cambar, é neces­sário esperar pelo momento certo, e saber fazer a cambança, ou seja, a passagem para a outra margem. Tem saber, não há dúvida, e só a experiência nos ensina e dá o saber. Como as margens são só lodo, a abordagem tem de ser feita de forma a haver uma distribuição do peso do corpo, por uma base o maior possível, e nunca devem vários homens passar pelo mesmo sítio; de forma, que a melhor maneira de o fazer, na generalidade é passar de gatas. Esse gatinhar terá que ser arrastante, de forma a não nos enterrarmos muito na lama, porque como nas areias mo­vediças, quanto mais força fazemos, mais nos enterramos. Foi pois o que aconteceu ao pobre soldado periquito, durante a ope­ração referida. 

Após cumpridos os objectivos, começámos o re­gresso e havia que atravessar um dos milhares de pequenos rios que enchem esta terra. Os Lassas já macacos velhinhos como o caralho e a malta da 1484, já experientes também, foram pas­sando de gatas, pondo ramos de tarrafo, para melhorar a sustentação. A ânsia do regresso, por vezes é perigosa, e já tivéramos experiências dolorosas por causa disso. Mamadu, com a sua secção em último escalão, aguardou mantendo a segurança. Praticamente tudo passado, foi a vez de Tambinha, com os seus homens do outro lado, tomar posições de segurança, para os Vagabundos de Mamadu passarem, o que foi simples e rápi­do. Só que havia um problema: um periquito, da 1499 enterrado até à cin­tura, debatia-se num descontrolo total. E para fazer parar o ho­mem? Estar quieto, não se mexer, para haver possibilidade de arrancá-lo daquela si­tuação? Era impossível! Para não lhe darem dois socos e pô-lo a dormir, como se faz aos náufragos que se estão a afogar, o fur­riel teve de gritar:
-Pára porra! Que merda é esta? Temos aqui crianças?!
-Vão-se embora! Eu morro aqui! - tespondeu o periquito.

As lágrimas caíam-lhe em catadupa, e foram as únicas palavras que lhe saíram da boca. Homem completamente no fundo, acei­tando piamente a morte.

Mamadu informa pelo rádio para na frente aguentarem um pouco. Manda cortar ramos de tarrafo, que são estendidos até junto do esgotado militar, e diz a Orlando para se esticar sobre a cama ramificada dos pedaços de tarrafo. Orlando, deitado, pede a mão ao camarada, mas sente nela uma mão vazia e sem vigor nenhum. Mamadu manda retirar a arma ao soldado e as cartu­cheiras já semienterradas. À outra malta, pede mais ramos de tarrafo, que Orlando agora vai enfiando junto às pernas do soldado, que parece ser já decepado tronco, rebentando por baixo. Trabalho pronto, vamos ao mais difícil: tentar acalmar o homem. O fur­riel, agora com voz calma e incutindo-lhe confiança, manda-o inclinar o corpo para a frente, e não fazer força nenhuma. Tem de ser rápido, pois o soldado parece estar a entrar em estado de cho­que. Pede a Orlando, que lhe agarre o camuflado com unhas e dentes. Entretanto, já uma corda humana ligada aos pés de Or­lando, estava preparada para entrar em acção.
-Atenção malta, vamos puxar o Orlando devagar até ele estar firme, e sentir que o homem está a mexer, O.K.!?
-Orlan­do, quando sentires que és capaz de o sacar, grita para dar o puxão final!
-Certo, meu furriel.
-Vá pessoal, devagar, o homem é nosso caralho! Ou ele ou nós todos juntos.

Mamadu vai entusiasmando e morali­zando os seus homens. De repente o corpo de
Orlando começa a esticar, e dá um berro:
-Força!

São momentos de sufoco. O pessoal puxa e Orlando aguenta. Não se nota nada, o camuflado do infeliz começa a rasgar e a malta começa a gritar:
-Vai! ... vai!

E foi mesmo, o corpo do homem começa a subir e o de Orlando a deslizar. Está ganho, os Vagabundos sentem-se orgulhosos, e o pobre rapaz chora, tentando pôr-se de pé. As unhas de Orlando estão rasgadas e começam a sangrar. Eis aqui com a maior sim­plicidade, a trilogia do Sangue, Suor e Lágrimas.

Mereceis melhor sorte, e regressar a casa sãos e salvos, meus valentes Vagabundos. Tenho um imenso orgulho, em ter homens com esta fibra assim. Um dia compreendereis, que a minha dureza foi e é apenas armadura para defesa de todos nós. Relembrando o seu tempo de escuteiro, Mamadu verifica a utilidade presente, dos apreendimentos de antanho. Em Cufar festejaremos com uma bazuca de 6,6 dl. 


Pela segunda vez temos novamente a porra da época das chuvas e voltam os problemas das viaturas nas picadas e nos reabastecimentos. De manhã fica-se atolado em lama, à tarde tem de se pôr um lenço na cara por causa do pó.

Mais uma emboscada na estrada maldita, mais um morto, mais uns feridos! Não interessa, estamos cá para isso, só pensamos que seja breve e sem muito sofrimento, quando nos calhar a nós. Pensamento colectivo.

A 22 de Junho [de 1966], os Lassas saem a fim de tomar parte na operação Salsifré. A Companhia, a 2 GComb reforçada com um GComb da 1484 e pessoal da Compª. Milª. 13, sai de Bedanda pelas 22H00. Progredindo pelo itinerário previamente determinado, com a 4ª.CC em 1º. Escalão, atingido o objectivo cerca das 9h00 do dia seguinte. A CCAÇ emboscou-se no itinerário Salancaur - Mejo, à direita da 4ª. CCAÇ.


Havia informações sobre uma coluna de fornecimentos para o PAIGC.
Cerca das 14h00 o inimigo fez três tiros de reconhecimento da mata em frente procurando localizar a nossa posição, não se tendo respondido. Pelas 16H00 o PCV ordenou que fosse levantada a emboscada. Com a 4ª. C.C. novamente em 1º. Escalão iniciou-se a retirada pelo itinerário previsto. O objectivo foi percorrido sem ter sido detectado qualquer coluna nem localizado algum acampamento IN. Cerca das 19h00 e quando o último GComb dos Lassas, com os Vagabundos na retaguarda se encontrava a cambar um pequeno rio, o IN abriu fogo sob as NT com armas ligeiras e uma MP. Mamadu com seu pessoal atascado na lama do rio, a merda do rádio banana sem funcionar, tentava responder de qualquer maneira. Apenas o GComb da 1484 e os outros Lassas, recuaram para ajudar à cauda da coluna, porque os meninos da 4ª. CCaç nem pararam, pois o que queriam era chegar a Bedanda. Resolvido este incidente, a Companhia reagrupou continuando a progressão em direcção a Bedanda, onde chegou cerca das 22h30, sem ter tido mais contacto com o IN.

Dia 24 os Lassas regressaram a Cufar da Op Salsifré.

Vagabundo, encontrou em Bedanda o conterrâneo sargento Ventura, também lutando naquelas paragens.

Nesta altura Baté já tinha deixado Empada e regressado a Lisboa. De certeza, os dedos calejados de tanto tocar os botões do seu “Rómio, Alfa, Delta, Índia, Óscar,” tentando desenras­car os seus companheiros.
-Poucos quilómetros nos separavam, meu amigo. Empa­da fica um nadinha a Norte! Mas, também havemos de beber um copo na nossa aldeia.

Quantos filhos teus, minha aldeia, passarão por aqui? Quantos patrícios e amigos, passarão nesta maldita terra sofrendo o mesmo ou mais ainda do que eu estou passando? Que tenham sorte! E se acreditarem, que a nossa Padro­eira se lembre deles, pois parece ser a única tábua de salvação, e, já agora, de mim também, embora eu não seja boa rês e merecedor desse dom. Não sei se, por questões militares, confio no Santo Mártir Oficial Romano, ou será que sem eu saber Tânia lhe estará orando por mim? Tudo é possível... Acreditar é difícil! Mas não é Deus grande? Não revolve a Fé montanhas? Por mim só me alegra.

Nada de distracções pois, mesmo com trovoadas tropicais, com tornados, na lama da bolanha e do tarrafo, na estrada e na mata não se pode parar, e há que realizar as operações Pinoca, Piri-piri, Patacão, Penacho I, Penacho II, Pirilampo, Pileca, Paciência, Subsídio, e a Suspiro.

Soma e segue. Na Op Penacho há mais um morto e catorze feridos. Fica a Op Suspiro, como a última operação da CCAÇ 763 em terras da Guiné, e tem de ser para os lados de onde o perigo é maior, Cabolol. É claro, embora não seja propriamente à zona quente, querem que levemos daqui uma boa recordação, pelo que nos mandam para Boche Mende, a 5 de Novembro de 1966. Seguem-se patru­lhamentos e seguranças diversas.

(Continua)

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Nota do editor: