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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25027: Notas de leitura (1654): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Podemos pensar o que quisermos deste diário, é indiscutivelmente uma relação, o missionário franciscano estava na hora certa no tempo certo a viver o que registou, reuniões com promessas de profundo apreço pelo trabalho missionário, aquelas notícias desencontradas da muita vigilância à volta de Bissau para repelir não sabemos bem o quê e de quais intentos da FLING, que abertamente era contra a união Guiné-Cabo Verde. Os seus passeios naqueles dias em que partiam os últimos militares portugueses e em que se fixava uma placa de alumínio no que fora a residência do comandante militar e passava a ser a Embaixada de Portugal. Os conceitos de nacionalidade guineense, uma nota espúria de que havia casos de terror, já se praticava a justiça popular, tudo parecia que iria haver um bom entendimento entre o Partido único e os franciscanos, veremos seguidamente que já há nuvens no horizonte.

Um abraço do
Mário



Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (2)

Mário Beja Santos

Na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamaram-me à atenção para o número mais recente da revista Itinerarium, o n.º 227, referente ao semestre de janeiro a junho de 2020, a Itinerarium é a revista semestral de cultura publicada pelos franciscanos em Portugal. Ali aparece um artigo com páginas do diário de Frei Francisco de Macedo (1924-2006) que foi missionário na Guiné entre 1951 e 1997. O diário inclui os apontamentos do religioso sobre os primeiros anos da Independência, a matéria versada relaciona-se com a educação e as missões.

Dando-se continuidade a um diário que vem pela primeira vez à luz do dia, ainda na reunião havida em 20 de setembro com a equipa que o PAIGC nomeara para a Educação escreve Frei Francisco de Macedo: “Saímos com a certeza de que o trabalho dos missionários tinha sido muito válido e que muito contribuiu para que a Guiné-Bissau tivesse alcançado a independência. Essa verdade tem nos sido afirmada muitas vezes por alguns dos responsáveis do Partido, que nos vêm cumprimentar e manifestar a sua gratidão. Entre estes contam-se o camarada José Neto, que foi criado na missão de Cacheu e nutre uma amizade muito especial por Monsenhor Amândio Neto. Outro amigo que nos veio cumprimentar foi o camarada Julião Lopes, antigo aluno da Escola Dona Berta e agora nomeado comandante da Marinha. Estes e muitos outros são unânimes em dizer que quase todos os homens importantes do PAIGC e os seus principais militantes saíram das escolas das Missões, em especial de Bissau, Bula, Canchungo, Bafatá e Bolama”.

Em 24 de setembro anota no seu diário que se celebra o 1.º aniversário da República da Guiné-Bissau. O acontecimento foi festejado em Madina do Boé, onde construíram casas-palhotas para receber os convidados e onde querem lançar as bases da capital do do no Estado. “Disseram-me alguns militantes que querem lançar em Madina do Boé os alicerces da nova Nação, com programas diversos quanto ao Ensino, à Saúde e Agricultura. Há falta de apoio ao PAIGC por parte de muita população. Daí o controlo rigorosíssimo que implantaram em todas as saídas e entradas de Bissau.”

Tece seguidamente considerações sobre os primeiros tempos da independência: “Há uns anos que para a Guiné não vinha ninguém de Portugal, a não ser alguns administrativos e comerciantes. E, digamos a verdade: uns e outros imbuídos de ideias colonialistas, considerando o nativo como um escravo, sem acesso à cidadania; nada produzindo nem se interessando por iniciativas de desenvolvimento económico desta terra, limitando-se a importar panos e outros artigos para na venda tirarem lucros fabulosos. Alguns industriais e comerciantes até se mostraram hostis a que os missionários abrissem escolas e se empenhassem pelo ensino”. Frei Macedo duvida dos dados apresentados pelo PAIGC quanto ao analfabetismo, a propaganda falava em 99% de analfabetos, ele observa que numa população de 500 mil habitantes devia haver, pelo menos, 30 mil que sabiam ler e ter alguma instrução. E, mais adiante, escreve: “Desde meados de setembro que o PAIGC montou um sistema de controlo muito rigoroso nas estradas. Dizem que por causa do movimento da FLING. Ninguém nos informou devidamente sobre este caso. Temos conhecimento, por conversa com muitos estudantes guineenses residentes em Lisboa, que a FLING apoia o Partido que lutou pela independência, mas não apoia a sua união com Cabo Verde para formar uma só nação. Terão razão? O tempo dirá!...”

Anota no seu diário a 3 de outubro que andaram a retirar dos seus pedestais as estátuas associadas à presença portuguesa, caso de Teixeira Pinto, Nuno Tristão, Honório Barreto. E, inopinadamente diz que se continua a assistir a atos de terror, e conta uma história passada em Nhacra que meteu esfaqueamento, terão achado muito bem em ver o povo a fazer justiça sem que as autoridades se tivessem intrometido. A 13 de outubro regista que se fez a entrega do complexo do Quartel-General de Santa Luzia, passou a ser ocupado por dirigentes do PAIGC, os últimos militares portugueses abandonarão dentro de horas a Guiné-Bissau. No dia seguinte, deixa lavrado no seu diário que pela noitinha ele, o Prefeito Apostólico e o Padre Afonso deram a volta pela cidade, os militares portugueses tinham partido no Uíge e em Caió, o Niassa esperava os últimos soldados que vinham em lanchas. “Deve ter sido única esta retirada dos 25 mil militares portugueses, em ordem em sem confusão alguma.” E no dia seguintes escreve: “Dei uma volta a pé pela cidade. Passei em frente da antiga residência do comandante militar e li em placa de alumínio: Embaixada de Portugal. Fiquei satisfeito. É uma ótima residência e bem situada. Portugal continua. É a primeira embaixada a marcar presença, como é natural.”

E no dia seguinte regista que houve uma reunião na Associação Comercial e Industrial de Bissau presidida por Vasco Cabral, comissário da Economia e Finanças, há perguntas e respostas. Vasco Cabral informa quem o interpelou que a Guiné-Bissau faz parte do Terceiro Mundo. “O nosso sistema é de economia democrática. No mundo de hoje, em todas as nações, estamos perante esta realidade: sistema de vida capitalista e sistema socialista. Vamos aproveitar o melhor que houver dos dois.” Interpelado sobre a questão da dupla nacionalidade, respondeu Fidélis Cabral de Almada, comissário da Justiça: “Conscientes de uma larga convivência com o povo português, não deixamos de nos preocupar com aqueles portugueses de boa fé que continuam na nossa jovem República. Todos os cidadãos são classificados em 3 categorias: a) os indivíduos, filhos de estrangeiros, nascidos aqui, com permanência de 10 anos, serão considerados cidadãos e gozam de todos os direitos; b) os indivíduos não nascidos na Guiné, mas com permanência de 20 anos pelo menos, são cidadãos guineenses; c) aqueles que não nasceram na Guiné, mas filhos de gente da Guiné, são cidadãos e gozam de todos os direitos”. Interpelado sobre qual a Justiça para os que pertenceram à polícia política portuguesa, Fidélis respondeu: “Serão estudadas as diversas situações e aplicadas as penas. No que se referem aos cidadãos estrangeiros, podemos nacionalizar os seus bens, sendo atribuída uma justa indeminização. Tudo sem espírito de vingança.” Vasco Cabral observou que tinha estado na CICER: “Visitei a fábrica e fiquei realmente admirado. Não esperava tanto. Há necessidade desta fábrica. Produzir muito para exportar e adquirir divisas e cambiais.”

Frei Macedo também anota uma notícia que encontrou, do seguinte teor: “O Governo português decidiu que os soldados da Guiné, que prestaram serviço no Exército português, podem escolher ser cidadãos da Guiné ou de Portugal. Os que decidirem ser cidadãos da Guiné regressarão imediatamente à sua terra.”

(continua)

Leprosaria da Cumura
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Notas do editor

Poste anterior de 25 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25000: Notas de leitura (1652): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25012: Notas de leitura (1653): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (5) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24806: As nossas geografias emocionais (13): A fonte da Colina de Madina, 1945 (Manuel Coelho / Cherno Baldé / António Murta)

Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné > Região de Gabu > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68) > 1967 > A "Fonte da Colina de Madina", construída em 1945. ao tempo do governador Sarmento Rordrigues. Fotos do álbum do Manuel Coelho, um dos nossos grandes fotógrafos.



Manuel Coelho, um dos bravos
 de Madina do Boé (1966/68)


1. Quatro  grandes fotos do Manuel Coelho (fotos nºs 1, 2, 3 e 4), um dos bravos de Madina do Boé, ex-fur mil trms, da CCAÇ 1580 (1966/68) (natural de Reguengos de Monsaraz, vive em Paço d'Arcos, Oeiras; tem 45 referências no nosso blogue, ingressou na Tabanca Grande em 12 de julho de 2011).


(i) Excerto de mensagem do Manuel Coelho,  com data de 23 de julho de 2018 às 19h45 (*):

(...) Parabéns pelo esforço (conseguido) de mostrar uma região tão importante para nós como para o PAIGC. Quem sobreviveu aqui a este conflito não esquece, fica marcado no nosso pensamento e, mesmo após 50 anos. ainda dói!

Quem dera ter a veia poética do Luís ou de outros camaradas para explicar em verso o calvário de meses de isolamento, com falta de reabastecimento, ataques diários, etc...

Para comparar envio mais algumas fotos [inéditas,] do meu álbum, começando pela da célebre "Fonte da Colina de Madina" [que ainda lá estava em 1998]...

Em relação a esta fonte, ela servia não só para fornecer os bidões para banho como para as lavadeiras fazerem o seu trabalho. Para beber tinha de se ferver ou desinfectar devidamente. (...)



Guiné-Bissau> Região de  Gabu > Boé > Madina do Boé > 1998 > A famosa fonte da Colina de Madina, com ornamentação de azulejo português, pintado à mão, de 1945. Parece(ia) haver vestígios de impacto de balas de armas automáticas (?), ou então os azulejos foram picados ou ainda (outra hipótese) estão deteriorados por ação do uso e das intempéries.


Guiné-Bissau> Região de Ganu > Boé > Madina do Boé > 1998 > A famosa fonte da Colina de Madina é um sítio onde se concentra(va) alguma população civil da escassa que há (havia)  nesta região semidesértica, e a única da Guiné que é acidentada (com cotas que sejam quase aos 300 metros). Fotos do álbum do nosso querido amigo e camarada  Xico Allen (1950-2022), que aqui esteve em 1998. As fotos chegaram-nos às mãos em 2006, por intermédio do Albano Costa (**).

Fotos (e legendas): © Francisco Allen / Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados [Edição e çegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Dois comentários de:  (i)  nosso colabor permanente Cherno Baldé, que vive em Bissau, e tem 285 referências no nosso blogue;  e (ii)  António Murta, ex-alf mil inf MA, 2ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), autor da notável série "Caderno de Memórias de A. Murta"; membro da Tabanca Grande desde 12/11/2014, tem mais de 100 referências no nosso blogue; vive na Figueira da Foz.

2.1. Cherno Baldé:

(...) Falando sobre as fontes ou nascentes de água em locais estrategicamente situadas junto de pequenas elevações de terreno, como tenho visto um pouco por todo o território, no Norte, Sul, Este e Oeste, fico sempre maravilhado com a  vista e na presenca deste apurado conhecimento do terreno e da noção do que pode ser um desenvolvimento durável e autossustentado stricto sensu

O que mostra, claramente, que os "colonialistas" que nos governaram nos anos 30 e 40 (aqui certamente no tempo de Sarmento Rodrigues), tinham uma visão de longo prazo e uma noção clara sobre o que era o desenvolvimento autossustentado, centrado nos recursos e bens disponíveis localmente e na sua utilização racional e equilibrada a bem da comunidade.

O Manuel Coelho diz que a água precisava ser fervida antes do seu consumo, mas a verdade é que ela é servida assim mesmo e muitas vezes é do melhor que ha (Iagu Sabi) e, pessoalmente, já a bebi muitas vezes, diretamente da fonte, em Bafatá, Quinhamel, Canchungo e, comparada com a água das nossas bolanhas do leste, era uma maravilha d'água e ainda hoje é. (**)

(...) É o que tenho estado a dizer aos mais novos, sempre que vejo esses maravilhosos locais com as suas fontes quase centenárias, mas que ainda continuam vivas e a jorrar água limpa e da melhor que há disponivel ao beneficio das populações locais e com nomes proprios que as populações lhes deram.

Encontrei-as em Bafatá (Boma), Bissau, Quinhamel (Hoilan), Canchungo, Catiá, Bambadinca, Madina de Boé e sei que existem e estão espalhadas por todo o território nacional.

Já não podemos dizer o mesmo dos furos e bombas manuais que os novos projectos de desenvolvimento, fruto da coooperação e das ajudas internacionais,  espalharam nas zonas rurais em anos recentes, mas que normalmente duram pouco, nãp sabendo ao certo se não teriam, também, um aplicativo de obsolescência programada, como se diz atualmente sobre todos os produtos do capitalismo moderno que nos calhou em escala. (...) | 25 de julho de 2018 às 13:27


2.2. António Murta:

As fotografias 3 e 4 da Fonte da Colina de Madina, que parece ser já um memorial, são muito bonitas e tecnicamente quase perfeitas: pelo enquadramento, pela gama de cinzentos, pela textura, e pelos reflexos que nos dão a sensação de vida daqueles instantes. 

Sei que não é isso que está em discussão e desculpem o arrazoado, mas é porque fiquei que tempos a olhar para elas. Não desmereciam o ilustre Ansel Adams (1902-1984), um especialista do preto e branco, sem contudo carregarem a rigidez técnica obsessiva que tiravam sensibilidade às fotografias dele. 

Parabéns ao Manuel Coelho.(...) | .26 de julho de 2018 às 00:56 
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Notas do editor:

(**) Vd. poste de 10 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11822: Álbum fotográfico do Xico Allen: região do Boé, 1998: trágicos vestígios 'arqueológicos' da guerra colonial, entretanto já destruídos ou desaparecidos...

sábado, 9 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24634: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIV: O jogo do rato e do gato; da Caboiana a Madina do Boé, abril de 1972


Guiné > s/l > s/d > Tenente 'comando' graduado Abdulai Queta Jamanca. Cortesia do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné (Reproduzido no livro, pág. 229)



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xvx) O jogo do rato e do gato: de Cobiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972.


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIV:

 O jogo do rato e do gato: da Caboiana a Madina do Boé 
abril de 1972 (pp. 228-232)


Saímos de Bissau em viaturas até ao Bachile, onde estava uma força à nossa espera, uma companhia de europeus[1], milícias e pessoal de artilharia. Era aí a porta de entrada para a mata da Cobiana. Ficámos no Bachile, até à noite chegar. Depois, iniciámos a caminhada.

O responsável pela operação[2] era o tenente Jamanca, que era o comandante da 1ª Companhia de Comandos Africanos, com o indicativo “Jacaré”, e contávamos ter no ar o coronel pára Rafael Durão, o comandante do CAOP1.

Andámos a noite toda, até que de madrugada achámos um caminho, cheio de pegadas. Emboscámo-nos e mantivemo-nos quietos até por volta das 13h00, quando fomos sobrevoados por uma avioneta.

Como de costume, quando entraram em contacto, pediram a nossa localização. Depois de verem a tela que tínhamos estendido, o coronel Durão disse-nos para seguirmos a trajectória da avioneta, para os lados de um local onde estavam referenciadas várias barracas. Fomos nessa direcção e, quando chegámos ao local, encontrámos muitas barracas, com o chão coberto de folhas secas, sinal de que tinha sido abandonada, talvez há duas ou três semanas.

Em contacto rádio, o Jamanca transmitiu que estávamos lá dentro e o coronel deu-nos a indicação para as queimarmos. Chegámos-lhe fogo, estava o coronel a dizer que via muito fumo e começámos a ouvir rebentamentos, uns atrás dos outros, vindos das barracas a arder. Eram detonações de balas e de granadas. Nunca viemos a saber se eram munições esquecidas ou guardadas. Era quase como se estivéssemos a ser atacados e afastámo-nos bem das barracas. 

Entretanto, o coronel Durão deu novas instruções, para seguirmos a trajectória da avioneta, em direcção a oeste, até junto ao rio, onde dizia que via movimento junto a uma das margens.

Era uma missão ingrata, tínhamos que voltar a passar pelas barracas a arder. A nossa posição estava denunciada e as probabilidades de cairmos numa emboscada eram grandes. O nosso coronel contactou o Jamanca, voltando a perguntar onde estávamos. A avioneta não saía da zona, deu uma volta bem larga e voltou a aparecer em cima da nossa posição.

Nós, de facto, não estávamos a caminhar na direcção que ele nos ordenara. Achávamos uma ideia um pouco suicida.

A pergunta era sempre a mesma, onde estão, do lado esquerdo ou do lado direito da asa da avioneta. E o tenente respondia, se estávamos à direita ou à esquerda.

O coronel desconfiou que o Jamanca não estava a dar as respostas certas e disse para não sairmos daquele local porque ia mandar vir caças para bombardear uma zona onde estava a ver muito pessoal fardado. E disse que nos ia mostrar o local exacto onde estava a ver o tal pessoal, para nós não sairmos dali, onde dizíamos que estávamos.

A avioneta deu uma grande volta e, de repente, mergulhou mesmo por cima do local onde estávamos. Logo a seguir comunicou ao Jamanca que era nesse local que os aviões, que vinham da base de Bissau, iam largara as bombas.

Muito rápido, o tenente disse:

– Não! Não! Não! Somos nós que estamos aqui!

–  Então, “Jacaré”, disse há pouco que a avioneta tinha passado por cima de vocês, bem longe daí! Como é que chegaram a esse local tão depressa?

O Jamanca não sabia o que responder, disse só que não lhe parecera conveniente voltar para trás e explicou os motivos. Nesse momento ainda se ouviam explosões de granadas e tiros e pelo ruído, algumas eram potentes, pareciam de morteiro e bazuca. O coronel Durão mandou-nos voltar ao local onde estivemos emboscados.

Depois, o alferes Tomás Camará, no local onde ficámos, disse qualquer coisa em voz alta. Um grupo do PAIGC, que estava a passar num carreiro um pouco longe na direcção da fumarada, deve ter ouvido a voz do Tomás, aproximou-se e detrás de um baga-baga dispararam contra nós alguns RPG. Mas o Tomás viu-os primeiro e gritou:

– Para o chão, já!

Quase meia dúzia de granadas de roquete bateram nas palmeiras, um pouco acima de nós. Durante alguns minutos ninguém levantou a cabeça. Todos os nossos oficiais foram atingidos. 

Pedido apoio aéreo, chegou um helicanhão a acompanhar os helis para as evacuações. A companhia ficou sem oficiais e eu, como sargento mais antigo, fiquei a comandá-la. A minha primeira medida foi mandar o pessoal preparar-se para sair dali.

Entretanto o coronel mandou-nos procurar um local perto de uma clareira, para no dia seguinte, sermos evacuados. Caminhámos das 18h00 até quase às 21, arranjámos um local que me pareceu bom, para passar a noite. No dia seguinte, fomos recuperados, sem qualquer dificuldade.

***

Tinha acabado de chegar uma informação de que o Amílcar Cabral, acompanhado de jornalistas, estava a visitar a zona do Boé, que o PAIGC reclamava área libertada.

E, rapidamente, encarregaram-nos de irmos até à zona de Madina do Boé[3], com o objectivo de perturbar ou impedir a tal visita.

De Bissau até Nova Lamego fomos de Nord-Atlas, depois em viaturas para Canjadude e daqui aqui até à zona de Madina do Boé fomos de helis, onde nos largaram em várias áreas. 

O meu grupo, juntamente com outros, foi largado em Dongol Nhamalé, onde permanecemos três dias, sem nada termos visto. Depois chegou outra informação a dizer que afinal Amílcar se tinha dirigido para sul.

Antes do meio-dia surgiram os Alouettes para nos levarem de volta a Canjadude. Estávamos com muita sede. Durante o dia a água fervia nos cantis, não a conseguíamos beber. Da avioneta disseram-nos que nos preparássemos para uma retirada rápida.

Quando os helis chegaram acompanhados por um helicanhão,  já estávamos prontos a embarcar e, em minutos, estávamos no ar a caminho de Canjadude. Por rádio deram-nos a informação para passarmos para as viaturas estacionadas na pista. A água era uma miragem, estávamos mortos de sede e alguns disseram que agora só íamos ter água no Gabu.

Chegados ao Gabu, entrámos directamente nos aviões que estavam na pista, à nossa espera. E agora, para onde vamos?

Levantámos voo e, pouco depois, vimos Bafatá, lá em baixo. Bafatá ficava a cerca de cinquenta quilómetros do Gabu. A sede incomodava-nos muito, para já não falar da fome que sentíamos. Vi a ponte do Saltinho, lá em baixo e depois começaram a baixar e aterrámos em Misside Quebo[4]. De cada um dos aviões saíram duas macas com soldados. Tinham desmaiado com a sede, agravada pelo calor dos aviões.
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Notas do autor ou do editor literário (VB):

[1] Nota do editor: CCaç 16.

[2] Nota do editor: entre 28 Abril e 1Maio 1972.

[3] Nota do editor: 28 Março/08 Abril 1972.

[4] Aldeia Formosa, Misside Quebo em Fula.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
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quarta-feira, 19 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24488: Historiografia da presença portuguesa em África (377): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
O rei da festa deste texto é o jornalista-cronista que acompanhou Craveiro Lopes em maio de 1955 à Guiné, é a matéria do primeiro volume que aqui se trata, o segundo volume prende-se com a continuação da viagem para Cabo Verde. Inusitadamente, o jornalista Rodrigues Matias sai do registo encomiástico, deixa Craveiro Lopes no altar e saúda a natureza, o feitiço africano entrou-lhe nas veias, como aqui se procura exemplificar. E mesmo quando tem que engalanar o ilustre visitante, a sua prosa parece assombrada, estes dias que já leva na Guiné trouxeram feitiço, ora vejam como termina um verdadeiro vendaval de dança Nalu na receção de Catió: "Um Sol de fogo chameja sobre o terreiro. Os nativos bailam, suando como esponjas espremidas. A três metros de alto, as caraças de trapo e madeira pintada esfuminham-se num turbilhão de poeira e, de cinco em cinco segundos, um rugido de dezenas de milhares de vozes grita vivas a Craveiro Lopes e a Portugal." De Catió, Craveiro Lopes irá a Cufar, regressando a Catió para pernoitar.

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É Governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda. Continuamos a acompanhar o relato do jornalista Rodrigues Matias, verificará agora o leitor que ele nos aparece manifestamente inspirado. A ilustre comitiva partiu para São João, tinha então população predominantemente Biafada, temos agora um estirão de 42 km até Fulacunda. Diz-nos que a região é a das mais ricas de caça e, toda a Guiné, abundam aqui os búfalos, as gazelas, as cabras de mato e até os leopardos.

A prosa do narrador esmalta-se:
“A clareira por onde rolam os automóveis, remendada a vermelhões de baga-baga, foi machadada no corpo denso da floresta hidrófila, que ao Sul do Geba avança desde o mar, ladeando lalas e pântanos, através do Forreá, até ao limite das paragens montanhosas do Boé.
Vê-se neve na Guiné. Parece, mas não é. O grande poilão que se ergue no meio da neve, abre, a 40 metros de altura, a sua copa imensa sobre a vegetação que o circunda. E da mancha verde-escura da sua ramaria cerrada sacudida pela brisa, desprendem-se e caem flocos brancos de sumaúma chiada, que cobrem tudo por debaixo, vestindo a terra de brancores de neve…
Ébrios ainda da luz da manhã, que acende fulgurações tremeluzentes, na orvalheira do capim, esvoaçam, às sacudidelas bandos de rolas esmeraldinas, um solitário noitibó rabilongo, a freirinha, e a face laranja, habitantes das clareiras abertas.”


Após esta exuberância inusitada, Craveiro Lopes desembarca e recebe cumprimentos do administrador de Fulacunda, os cipaios apresentam armas, descreve Fulacunda, este nome quer dizer lugar de Fulas, é a região da Guiné mais rica de espécies florestais, estranhamente não tem serrações. Veladamente, tece uma crítica: “Fulacunda ficou sempre um produto de reforma administrativa, com autoridade, mas sem alma que a faça crescer. Deram-lhe, em 1946, um campo de aterragem, um quartel para cipaios e uma fonte pública em lugar aprazível, decorada com um painel de azulejos. Traçaram-lhe, à ilharga, na mesma altura, uma espantosa reserva de caça. No entanto, Fulacunda continua como a descrevemos.” E ficamos a saber que a estrada de Fulacunda vai até Catió. Craveiro Lopes procede à condecoração de quatro régulos, o régulo de Fulacunda ofertou duas pequenas onças, destinadas ao Jardim Zoológico de Lisboa.

Seguiu-se o habitual desfile dos povos da região, apresentando-se em grande maioria os Biafadas de Fulacunda, de São João e do Cubisseco, os Fulas de Buba, os Balantas de Tite e os representantes de grupos menos numerosos. A viagem agora continua rumo a Catió, mas o autor aproveita para fazer uma descrição detalhadíssima dos Biafadas, com base no trabalho do administrador Octávio C. Gomes Barbosa, intitulado “Breve Notícia dos Carateres Étnicos dos Indígenas da Tribo Biafada” publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, N.º 2, 1946.

Já chegámos a Catió, é sede de circunscrição. E vamos aprender com o relato do nosso jornalista. Catió nasceu da teimosia de um comerciante, de nome Abel Gil de Matos, mas a história de Catió vem de mais longe, vem do século XIX e da China. O que se segue já mereceu escritos do nosso saudoso António Estácio e do investigador Philip Havik. Vamos aos factos. Dois chineses, acusados de crime de homicídio e jogo clandestino, depois de condenados vieram para aqui desterrados. E o autor esclarece que a Guiné continuava então a ser uma verdadeira terra de degredo, bom local para desterro de assassinos. Pois bem, os dois chineses dedicaram-se à pesca, adquiriram embarcações e ganharam intimidade com os nativos, tendo-lhes pedido informações de terras que pudessem cultivar. Terão assim obtido a revelação de que no continente, subindo um grande rio até a umas terras mal conhecidas se encontravam enormes extensões de boa terra inundada, onde era abundante a produção do arrozal. Começava assim a sua aventura, cultivaram e foram bem-sucedidos. Depois, correu fama entre os Balantas de algures, no Tombali, a terra era milagrosa e produzia ouro sobre a forma de arroz.

Bissau e Bolama pasmaram com a qualidade do arroz do Tombali, cabo-verdianos e europeus pediram concessões de terrenos. Instalou-se um posto administrativo em Sugá, mas um comerciante discordou do local e assim nasceu Catió, hoje povoado de primeira, tem estação radiotelegráfica, delegação de saúde, capela e escola missionária, bem como recinto de jogos. Ponto curioso é haver povoados na circunscrição com nomes de inconfundível sabor chinês, como é o caso de Com-Hane.

Baseando-se no relato do ex-governador Carvalho Viegas, de sua obra Guiné Portuguesa, o jornalista faz-nos uma descrição do povo Nalu, dado o facto da circunscrição de Catió ser o chão característico dos Nalus. O jornalista já pôs de parte os seus enleios de prosador esmerado, agora o que pesa é o estilo noticiário. “Ao desembarcar do automóvel presidencial no topo da artéria, uma espécie de loucura coletiva se apossou daquelas dezenas de milhares de pessoas, que irromperam em vivas e palmas.” Craveiro Lopes entregou o seu retrato encaixilhado aos quatro régulos da região.

Estamos perante um jornalista que gosta da etnologia e da etnografia, a descrição que se segue é a observação das danças Nalus, é uma escrita empolgada:
“Os marinheiros tinham assentado no terreno as suas marimbas, em bataria, e percutiam-nas elevadamente, conduzindo os pés dos bailarinos em paralelo á dança das baquetas saltitantes. Lembravam executantes de ‘mssau’ zavala, acompanhando a contracanto a narração de pecados de amor que atraíssem sobre a tabanca as iras das divindades.
E dois bailarinos de exceção, os campós, metidos em saiões de monstros encimados de caraças horrendas varriam o terreno em fúrias de rodopio estonteante. Uma das caraças, vagamente sugerindo cabeça de cavalo, com cabeças amarelas de tachas luzindo ao Sol e riscos de zarcão circundando os olhos por sobre uma bocarra de alvaiade e lama, erguiam-se a mais de 3 metros, gesticulando hieróglifos macabros de ameaça, de espanto, de ataque e de fuga, de raiva e de medo.
Era a grande máscara da dança Nalu, aterrorizando os espíritos maus que vagueiam pelos matos do Tombali, para que o pavor os confunda e os afaste do trilho dos passos do Homem Grande, em cuja honra pipilavam as marimbas da tribo e dançava em festa o povo das suas tabancas.
Depois, entrou em cena a formação dos grandes tambores Nalus, presos à cintura de mais bailarinos, cuja fila executa marcações de reta, de círculo, de arco e de triângulo. As macetas batem na pele de todos os bombos ao mesmo tempo, ao ritmo lento de um comando que ninguém sabe de onde vem, e que faz a todos os dançarinos avançar a perna direita, fletir o joelho esquerdo, executar um golpe de rins, jogar a cabeça para trás, avançar ou recuar um passo. Conjuntamente, corpos e tambores executam a pancada uníssona, coletiva, lenta como o desespero. Depois, a fila faz repentinamente meia-volta e gira em sentido oposto. O ritmo das macetas acelera. Os tambores agitam-se, a golpes de rins mais frequentes.
E o cavalão-caraça, montado sob o bailarino estrela que obedece às marimbas, entra de novo em cena, faz vénias aos tambores e manda-os a anunciar aos longes, por bolanhas e matagais, que o Homem Grande chegou à terra dos Nalus e traz consigo a paz e a alegria e a fertilidade dos arrozais de Catió.”


E digam-me lá se este jornalista não estava verdadeiramente inspirado, a gravar as suas emoções para uma literatura luso-guineense.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
General Craveiro Lopes
Diário da Manhã de 11 de maio, general Craveiro Lopes junto da estátua de Nuno Tristão, imagem do Museu da Presidência, com a devida vénia
Placa evocativa da visita de Craveiro Lopes durante a construção da ponte sob o Corubal, maio de 1955, imagem de Albano Costa, com a devida vénia
1.ª página do Diário Popular de 7 de maio de 1955
De Bolama para São João
De São João para Fulacunda

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24472: Historiografia da presença portuguesa em África (376): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24062: Notas de leitura (1554): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
A viagem do olhanense João Peres à Guiné é um testemunho afetivo que nos embala a memória. Viajou com o Núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes, chocou-lhe aquelas estátuas dispersadas, depositadas a esmo na fortaleza de Cacheu, como se não fossem resquícios de uma memória comum, nenhuma nação pode vicejar sem memória e o relacionamento com Portugal não se pode rasurar. Conversou com imensa gente, de todas as idades, de todas as profissões, é comedido no seu desapontamento com o estado lastimável em que encontrou a Guiné. Mas é aquele povo que não se rende às diabruras do destino que o empolga a todo o instante, veja-se o que ele escreve de um médico carinhoso, de um produto de bananas, das fainas dos pescadores Felupes, são retratos admiráveis, vão do coração dele para o nosso. É este o significado de tais retratos, singelos e só comprometidos com o afeto inabalável.

Um abraço do
Mário



Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (3)

Mário Beja Santos

Este livro intitulado "Retratos" tem como autor João Peres, terá sido autarca em Olhão, chefiou à Guiné uma delegação do Núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes, esta sua obra espelha a sua atração pelo feitiço africano, será este o primeiro livro do autor, no escaldo de uma viagem de saudade. Na ficha técnica ficamos a saber que a edição é de 2011, João Peres é natural de Olhão, bancário aposentado, ex-autarca e colaborador do jornal "O Olhanense".

Enceta o seu caderno de retratos com uma síntese da história da Guiné. Fala-nos da jangada de Ché-Ché indispensável para a travessia do Corubal, conta a história de Bubacar que chegou a conhecer a jangada no tempo da guerra, agora é ele que cuida dela, limpa filtros, aperta a cabeça do motor, tem muitas histórias para contar, naquela jangada já mulheres deram à luz. “Ganha para comprar uma saca de arroz para o mês, com o pouco que sobra compra sal, açúcar, óleo e café. No dia de folga, vai à pesca com rede, apanha peixes e camarão. A jangada, a tabanca e a família são a sua vida. O sol muito vermelho dá-lhe sinal de que está na hora, é a última viagem naquele dia. Amanhã, bem cedo, vai verificar o óleo, o combustível, antes de pôr o motor da jangada a trabalhar”.

E prosseguirão as histórias, a de Armando Ernesto Gomes, o Tio Bill, escapou aos acontecimentos da carga no Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959, ele é o presidente da Associação dos Marinheiros. “Caminha pelo cais como se a sua vida tivesse sido passada quase naquele local. Está velho e cansado. Sonhou com um país independente, mas que ficou muito aquém pela falta de desenvolvimento”. Segue-se a história de Lumumba, que aos 18 anos ingressou no Exército Português. Quando se avizinhou a independência da Guiné-Bissau, receando represálias, foi para o Senegal, onde trabalhou alguns anos. Depois voltou à Guiné, tornou-se num construtor naval. E temos Ocante Dju, garoto de 10 anos que vive no Interior, onde a escola ainda não chegou. Ajuda o pai na pesca, já sabe escalar o peixe, tirar-lhe as vísceras, salpicá-lo de sal e pô-lo ao sol. “Não sabe ler, se calhar não vai ter oportunidade, ignora que noutros países as pessoas têm água canalizada, energia elétrica. Ocante sem ter acesso a tudo isto é feliz no seu mundo”. Ana Maria é uma linda rapariga, a sua mãe, durante a guerra, relacionou-se com João Pedro, natural de Guimarães. Maria ficou grávida nos últimos meses da comissão de João Pedro. Sempre que encontra portugueses segreda-lhes que o seu pai é português. Apesar de todas estas adversidades, é uma mulher batalhadora, ainda acredita que o pai venha de Guimarães reconhecê-la como filha.

Mário Andrade é guineense, estudou num seminário em Portugal, foi sacerdote no Minho, em Bissau ficou às ordens do bispado. Elaborou um projeto para visitar as populações do país. Dividiu a área territorial em setores, quantificou o tempo e custos por cada a ser visitado, era um projeto em que ele propunha o apoio de Portugal para haver vacinas e pessoal de enfermagem. Tempos depois foi chamado pelos seus superiores, era-lhe confiada a missão de evangelização, ajuda humanitária e vacinação.

Nestes retratos de João Peres ganham relevo os agricultores, mulheres grandes, há Cissoco, artista plástico e pedreiro, esteve a trabalhar em Bafatá, visitou a casa onde nasceu Amílcar Cabral e pensou em fazer vários desenhos, pediu ao governador algum material e deixou trabalho plástico, é homem de sonhos, gostaria de ver transformada esta casa onde nasceu Amílcar Cabral num museu. Há também Cassamá que é professor primário, colabora com a cooperação portuguesa. João Peres visitou Madina do Boé, conversa com enfermeiras, taxistas, velhos artesãos, criadores de gado, velhos combatentes do PAIGC e outros aliados dos portugueses, há também curandeiros, pescadores Felupes, produtores de banana, jornalistas, fala-se do Islão, do desporto, da dança, de Amílcar Cabral e de Spínola.

Alguém o tocou muito, Paulo Mendes, um médico que tirou o curso na Universidade de Coimbra. Faz do hospital a sua casa, pede todo o apoio possível aos seus colegas portugueses. “Visita os doentes internados acompanhado de outros médicos. Dirige-lhes palavras amigas, anima-os para que ganhem força. Preocupa-o muito a ala da Pediatria, onde estão crianças a lutar pela vida em cada segundo que passa. Tenta por todas as maneiras que medicamentos, oxigénio, alimento adequado não faltem a estes anjos que ainda agora começam a viver. O Dr. Paulo Mendes assegura-se de que tudo está a funcionar como previsto. Retira-se para o seu gabinete. Liga o computador. Prepara uma mensagem para enviar a um dos seus amigos em Portugal. Precisa do envio de medicamentos para garantir a vida a algumas crianças. A mensagem segue. Há avião dentro de 48 horas. Se os medicamentos chegarem as crianças salvam-se. É um país ainda dependente a quem Portugal tem perdoado a dívida. É assim a vida de um diretor clínico num país que vive com muitas dificuldades”.

Livro profusamente ilustrado, tocante esta paixão pelas coisas de uma África, assumidamente despretensioso. Quando fala da nossa presença na Guiné, ele que viu as esculturas desconjuntadas e arrancadas de Bissau na fortaleza de Cacheu, faz bem em lembrar-nos e lembrar aos guineenses que é necessário repor estas figuras nos seus lugares, todo o país tem direito à memória, não é puro acaso este afeto e esta interação, aquelas centenas de milhares de jovens que ali combateram renderam-se ao povo afável e a inversa é também verdadeira. Daí aqueles vídeos de septuagenários que vão ao interior da Guiné visitar povoações onde viveram aquartelados, o choro lancinante das lavadeiras, os velhos milícias e caçadores nativos que reconhecem o viajante, os abraçam tão afetuosamente, lhes pedem apoio, lhes mostram com o mesmo extremo cuidado os seus documentos pessoais ciosamente metidos em plásticos, assim como os acompanham na visita aos velhos quartéis, ao que deles resta.

É por isso que nos toca a singeleza dos retratos de João Peres que nos desvela o mesmo povo amável que nos acolheu, meio século antes.

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Notas do editor:

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Último poste da série Notas de leitura de 12 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24060: Notas de leitura (1553): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte XI: Cobumba, manga de minas?!... Vamos lá levantá-las e noutro dia arrasar aquela... brincadeira!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23965: Notas de leitura (1541): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a estas histórias e memórias com que Luís Cadete nos mimoseou, tudo decorreu naqueles vastos pontos da região Sul por onde ele terá andarilhado, diz ter passado 8 meses e meio em Mejo, todo o aliciante desta narrativa passa pelo rigor com que ele apresenta os diferentes locais, o modo como entremeia risos e lágrimas, dores e alegrias, felizes acasos e momentos funestos. Excelente contador, lamentarei se este livro não vier a conhecer uma reedição e divulgação que permita, a quem gosta de boa leitura que a literatura de guerra permite, esta oferenda de memórias que vêm enriquecer o que há de melhor na literatura memorial da Guiné.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (3)

Mário Beja Santos

Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses. Como já se referiu, Luís Cadete dá-nos quadros muito precisos sobre a situação dos destacamentos, fala dos militares e dos civis, veja-se o que diz de Gadamael Porto, poderá estar relacionado este episódio com a ida da sua Companhia para Mejo. Fala na implantação de Gadamael Porto à beira de um dos braços do rio Cacine, tão à beira estava que, quando a maré subia as águas entravam, pacifica e parcialmente pelo destacamento adentro, de tal modo que as barcaças encalhavam dentro do recinto. Foram muito bem recebidos, houve direito a almoço, e lá se conta a história de que apareceu um novo comandante de Companhia que pouco tempo depois de ter chegado verificou um dado insólito: faltavam 177 capacetes de aço modelo 940, rebuscou-se a papelada, ficou-se a saber que era um artigo que fazia parte da carga da primeira Companhia que ali assentara arraiais nos idos de 1963. Consultou-se Bissau, não havia dúvidas, a Companhia tinha os capacetes em carga e por eles teria de responder quando terminasse a comissão. Andou-se à procura da melhor solução, talvez um auto de ruína prematura alegando que tinham sido roídos pelo baga-baga. Assim se procedeu, o comandante militar despachou: “Concordo com o proposto. A Companhia elabora o respetivo auto de abate.”

Mudemos de localidade, vamos agora às colunas de reabastecimento a Madina de Boé, do Gabu até à transposição do Corubal eram 60 quilómetros de mais estrada, a transposição do rio era um quebra-cabeças. “A cerca de 5 quilómetros do Ché-Ché a estrada bifurca-se: para a esquerda segue a picada para Béli, cerca de 40 quilómetros de poeira e buracos; para a direita, segue a estrada para Madina a mais de 25 quilómetros de distância. Madina de Boé era nessa altura uma tabanca reduzida à sua expressão mais simples, dominada a norte, Leste e Oeste – a não mais de 300/400 metros da tabanca – por duas linhas de alturas com cerca de 112 metros de altitude e cerca de 1500 de comprimento no sentido dos meridianos. A Sul, afastada mais ou menos 1000 metros, fica uma outra linha de alturas com cerca de 171 metros de altitude e cerca de 2600 metros de extensão, correndo no sentido Leste-Oeste e 1300 no sentido Norte-Sul que, qual triângulo isósceles, dá pelo pomposo nome de Dongol Dandum, de topo plano, careca, amplo e juncado de gravilha. Com a fronteira a pouco mais de 8 quilómetros, em linha reta, Madina passou a ser flagelada e atacada quase diariamente – quando não sucedia sê-lo várias vezes por dia – e, do alto das colinas que a enquadravam, o inimigo fazia tiro ao alvo, segundo se dizia".

Também não esquece de contar aqueles achados ditados pela boa sorte, caso daquela operação lá para os lados de Empada, um soldado ao aliviar a bexiga, reparou em algo que brilhava por baixo da cobertura. Meteu a mão àquilo que brilhava, apareceu-lhe uma espingarda AK, chamou os camaradas, tinha sido descoberto um depósito de armamento, dali saíram espingardas, metralhadoras, pistolas, minas e granadas de mão. Não esconde que terá sido um erro não se ter ocupado Salancaur, decisão tomada por Arnaldo Schulz, depois da ocupação de Mejo, aquele ponto era uma pedra no sapato das nossas tropas, e ele explica o porquê:
“Com cerca 400 metros no sentido Este-Oeste e o topo careca em forma de tampo de mesa, ligeiramente inclinado para Leste, Salancaur dominava uma vasta área em redor, nomeadamente o corredor de Guileje. É óbvio que a ocupação de Salancaur não impediria, em definitivo, as infiltrações do PAIGC, mas permitiria um melhor controlo da zona e forçaria o Inimigo a diligenciar itinerário alternativo. De encostas íngremes, exceto na ponta Leste, inçadas de matagal e de enormes poilões de tronco pregueado que davam proteção a ambos os contendores, Salancaur obrigava a nossas tropas a atacar a subir, coisa pouco agradável e que conferia vantagem manifesta às gentes do PAIGC.”

Tenho vindo a desenvolver estas pequenas histórias de Luís Cadete por as considerar muitíssimo bem elaboradas, por iluminarem a atividade militar desenvolvida nesta região Sul entre 1966 e 1968, tempos de Mejo, de Sangonhá e de Cameconde, posições que Spínola deliberou abandonar. Histórias de afetos, de dramas de guerra onde não falta a mina bailarina, o fornecimento de peixe e carne por expeditos nativos na pesca e na caça, as penosidades do abastecimento, havia que comer sem remissão o pãozinho com gorgulho; é manifestamente crítico com o abandono de certas posições, descreve a importância de Contabane, que depois de um ataque devastador, foi abandonada. As histórias multiplicam-se, andaremos entre Fulacunda-Buba-Catió, Aldeia Formosa, de Guileje a Gadamael, tudo enroupado com apreciações nem sempre positivas à burocracia militar, há notas soltas sobre obsessões de gente que só bebia água engarrafada, infidelidades conjugais, porventura com caráter autobiográfico será mencionada a aventura do cultivo de abacaxis que não surtiu efeito porque as cabras encontraram ali alimento. Sempre dentro desta linha que houve abandono de posições que se tornaram verdadeiras vitórias militares do PAIGC, volta-se a falar em Madina do Boé, e conta-se a história que havia para lá um corneteiro destemido que se punha em campo aberto a executar o toque de silêncio.

A última história que nos presenteia Luís Cadete é seguramente fidedigna, passou-se em Mejo e em 1966. Ouviu-se roncar motor de helicóptero, voava a Sul da estrada Guileje-Bedanda, notificou-se superiormente, e meses depois apareceu um outro helicóptero e ali aterrou, o piloto desfez-se em desculpas, confundira aquela pista com a de Boke. “Comunicado o facto superiormente, com o grau de prioridade máxima que a situação aconselhava, foi a Companhia informada de que a FAP iria tomar conta da situação. E cerca de quinze minutos depois havia dois T-6 sobre a pista e pouco depois um helicóptero.” Era um Antonov An-2, soviético. O aparelho levantou voo escoltado pelos T-6 e terá seguido para Bissalanca. Lá na Companhia não se soube mais nada, abateu-se um manto de silêncio. “Uma aeronave estrangeira, oriunda de um país apoiantes ostensivo do PAIGC, sobrevoara parte considerável do território português em guerra e dera-se ao desplante de nele aterrar sem que ninguém o referenciasse nem a FAP o intercetasse. E isto em pleno dia, com excelentes condições atmosféricas e não menos excelentes e extensa visibilidade!”

Insista-se que se trata de leitura imperdível.

Guileje, 1973
Numa vala no quartel de Guileje, CCAV 8350 ‘Os Piratas de Guileje’, imagem retirado do Correio da Manhã, com a devida vénia
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Notas do editor:

Postes anteriores de:

26 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

2 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23938: Notas de leitura (1539): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23837: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XI: Uma equipa inteira do Grupo de Comandos "Fantasmas", destroçada em 28/11/1964, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé - Contabane



Guiné > Brá >  Grupo de Comandos "Fantasmas" > 1964 > Desta equipa do Gr Cmds “Fantasmas” só não morreu. junto do Rio Gobige, na estrada de Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964; o segundo da esquerda. Da esquerda para a direita, o 1º cabo Ferreira, o soldado Carreira, o furriel mil. Artur Pires e os soldados Artur e Godinho.

Foto (e legenda): © João S. Parreira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


 
Guiné > Bissau > Cemitério de Bissau, talhão militar. (onde foram inumados alguns dos comandos do Grupo Fantasmas, mortos em Gobige, em 28/11/1964) , como o Manuel Couto Narciso,  soldado condutor auto comando, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, ou o Ramiro de Jesus Silva, 1º cabo condutor auto comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria.

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné > Região de Gabu  > Madina do Boé > Imagem aérea de Madina do Boé. Na mata ao fundo fizemos o acampamento. 

Imagem: Cortesia do blogue  Luís Graça e Camaradas da Guiné com a seguinte indicação: “Presumo que a sua autoria seja de Jorge Monteiro (ex-capitão miliciano da CCAÇ 1416, Madina do Boé, 1965/67) ou de Manuel Domingues, ex-alf mil da CCS/BCAÇ 1856, Nova Lamego, 1965/66.”



Guiné > Carta geral da província > 1961 > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Madina do Boé e estrada para Gobige e Contabane., na fronteira sul com a República da Guiné.

Infografia: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2022)

 
1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do nosso camarada, já falecido, Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010.

A fonte continua a ser o ser o seu  livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. 

A edição, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível  que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretantio, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965,
 e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / 
set 1966) fez, duarnte largos meses, com enorme paciência, 
generosidade, rigor e saber, as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, 
a partir dos seus rascunhos.

Recorde-se, aqui o último poste 
desta série (*): demos um salto no tempo, de 1964 para 1970, para  acompanhar  as suas memórias da Op Mar Verde (Conacri, 22 de novembro de 1970). Um ano e tal antes, ele tinha sido selecionado 
para integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos (em formação), comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló, seu amigo de Catió, e com a supervisão do major Leal de Almeida.  
 
Hoje voltanos ao Gr Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG. O grupo, comandado pelo alf mil comando Maurício Saraiva, parte para Madina do Boé em novembro de 1964. Irá perder 9 dos seus homens..




Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.




 
Amargas recordações de Madina do Boé:  a tragédia de 28/11/1964, junto ao pontão do rio Gobige 
(pp. 94/105)

por Amadu Djaló (*)



Estávamos em Novembro de 1964. O alferes Saraiva soube,  no QG, que o PAIGC já tinha chegado à zona de Madina do Boé, no sudeste. Que tinham vindo com muitos carros carregados de material até à linha de fronteira, até uma tabanca chamada Boloi Ela, que fica no território da República da Guiné-Conakry, a pouca distância da fronteira com a Guiné Portuguesa.

O alferes ofereceu o grupo para ir para lá, enquanto não houvesse reforços para destacar para aquela zona [1].

Assim, fui a minha casa preparar a roupa interior para levar. Eu não queria despedir-me da minha mãe durante o dia, porque era dia 13 de lunar 
[2]e nós evitamos viagens nos dias 3, 13 e 23 de lunar e também na última 4ª feira de lunar. A partir do dia 21 de lunar temos que evitar as 4ªs feiras, esse espaço de tempo até à lua nova. Nos restantes dias só não devemos sair para viagens nos dias 3, 13 e 23, já que a maioria das separações, nestes dias, seriam para nunca mais, quanto mais ir para a guerra.

Quando o cabo Braima  [Seidi]. me falou da saída, não me senti muito bem. Mas se fosse de noite não fazia mal, podia sair.

Quando cheguei a Brá, encontrei os colegas europeus à nossa espera. Fui a correr pegar na arma e no equipamento e seguimos para o aeroporto, onde estavam cinco avionetas à nossa espera.

Chegámos a Madina entre as 16 e as 17 horas. Estavam todos os homens a fazer a pista para as avionetas poderem aterrar e, como o local e a clareira eram de lapas de pedra e cascalho,  não custou muito fazerem a pista num dia só. Tambor a tocar, os rapazes e homens de meia-idade trabalharam com vontade e, às 16 horas, quando chegámos, não tivemos nenhuma dificuldade em aterrar as cinco avionetas. Depois, também acompanhados com os toques dos tambores, deslocámo-nos para a entrada do aquartelamento.

Depois do alferes Saraiva explicar ao alferes [3], comandante do pelotão de Madina do Boé, sobre a nossa missão, tratámos de arranjar lugar para nós. Não ficámos dentro do “quartel”, fizemos um acampamento numa mata perto, com seis barracas, uma para cada equipa e outra para armazenar os nossos mantimentos.

A ideia era cozinhar dia sim, dia não. Um dia ração quente, outro dia ração fria. E tínhamos programado sair para o mato, também dia sim, dia não.

A população ajudou-nos a fazer as barracas, à entrada de Madina, para quem vem de Dandum. Quando era dia de descanso, dormíamos nas barracas fora do quartel e das tabancas.

Durante a semana, nas saídas que fizemos,  não vimos nem ouvimos nada. O alferes já não tinha confiança nas informações da população local. Num dia à noite, disse-me:

–  Amadu, quero ir contigo e com um guia para a tabanca de Hore Moure, na República da Guiné-Conakry.

 O que é que disse? Está bem, vamos quando quiser!

 Amanhã, Amadu. Não vamos fardados, tomamos emprestadas duas camisas grandes, vestimos como homens grandes Fulas e não vamos com as nossas armas, só levamos granadas ofensivas, duas ou três cada um.

O alferes perguntou-me em quem eu tinha confiança ali. Era a primeira vez que vinha a Madina, mas, quanto a mim, era melhor levar o chefe da tabanca. Tinha mais responsabilidades que os outros.

No outro dia, por volta das 17 horas, seguimos em duas viaturas na direcção de uma tabanca abandonada, Guileje [4] do Boé, e apeámo-nos antes de chegarmos ao local. Depois seguimos a pé até á tabanca e ficámos emboscados até às 23h00 no caminho que vem de Hore Moure.

Nessa altura o alferes comunicou a missão ao grupo. Que os três, ele, eu e Mode Hure[5], íamos fazer uma visita a uma tabanca da República da Guiné, enquanto o grupo se deveria manter emboscado naquela zona, mais ou menos a 500 metros do monte da fronteira.

Que só levávamos granadas e que se tivéssemos contacto com o PAIGC, lançávamo-las e retirávamo-nos na direcção da fronteira e o chefe da tabanca devia fugir sem se preocupar connosco. Para o grupo que ficava emboscado, o alferes disse que se aparecesse algum vulto, que atirassem, porque não seríamos nós. E, se ouvissem rebentamentos das granadas, não contassem com a nossa presença. A comandar o grupo ficou o furriel Artur.

A tabanca para onde íamos,  ficava acima do monte, no nosso idioma Hore Moure, mais ou menos a 2 kms da fronteira, dentro do território da Guiné-Conakry.

Depois de tudo esclarecido iniciámos a marcha em direcção ao sul, com destino ao nosso objectivo. Cerca de 500 metros andados chegámos ao monte de pedra [marco] de fronteira    e, agora daqui para a frente estávamos na República da Guiné-Conakry, disse-nos o chefe da tabanca.

Até aí, Mode Hure seguia à frente, eu ia a seguir e o alferes atrás. A partir dessa altura, o alferes passou à minha frente e disse-nos que se nos apanhassem deveríamos dizer que éramos árabes. Eu disse para mim, sim senhor, meu alferes, sou um árabe que não sabe falar árabe.

A tabanca estava ali à nossa frente. Deixámos o chefe ali e eu e o alferes entrámos. Vimos uma arrecadação de mantimentos, afastada das casas de habitação por causa dos incêndios. Lá dentro, com a lanterna de mão, subimos as escadas, feitas de paus e cana de bambu. Empurrei a porta, não tinha nada, estava vazia. Saímos da arrecadação, com muito cuidado, aproximámo-nos de uma casa, entrei e também não estava lá ninguém. 

Revistámos mais de dez casas, não vimos pessoas [6], só vestígios, maços de cigarro “Nô Pintcha”,  vazios, caixas de fósforos também vazias e muitos restos de cigarros. Não havia nada a fazer, só ir embora dali, sussurrou o alferes. E eu respondi, vou levar esta maca que estava na varanda. Dobrei-a e trouxe-a para eles saberem que tínhamos lá estado.

[ Imagemà esquerda: Marca de cigarros, de fabrico soviético, que eram distribuídos aos guerrilheiros do PAIGC, durante a guerra colonial / luta de libertação. "Nô pintcha", em crioulo, quer dizer Avante!... ]

Foto (e legenda): © Magalhães Ribeiro  (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Regressámos no mesmo caminho em que viemos até que já perto do local da emboscada, o alferes chamou pelo furriel Artur e mandou levantar a emboscada.

Seguimos para uma pequena tabanca, perto do local onde o grupo tinha estado emboscado. O alferes deu três tiros para o ar. Quando lá chegámos,  tinham fugido todos. O lume ainda estava a arder nas casas e, como estava frio, aquecemo-nos. Eram para aí 3 horas, mais coisa menos coisa. O chefe dessa tabanca apareceu, começámos a falar em futa-fula. Dissemos-lhe quem éramos, chamou a população, conversámos com eles e prometemos-lhes segurança.

Ao fim da primeira semana da nossa presença em Madina do Boé, tínhamos recebido uma informação de que um rapaz tinha sido preso pelo PAIGC, no local onde o nosso grupo tinha estado emboscado, Guilege do Boé. O rapaz vinha de Jarga Dongo e ia para Gobige, quando foi preso no cruzamento de estradas que vem de Madina de Boé, paralela à fronteira, até Contabane e Aldeia Formosa e passa por Gobige.

Vivia em Gobige com a irmã e o cunhado. Quando o pessoal do PAIGC lhe perguntou quem era, de onde vinha e para onde se dirigia, ele disse que vivia com a irmã e o cunhado, Jarga Bora, que, viemos a saber depois, era um colaborador clandestino do PAIGC.

Quando soubemos desta história enviámos um recado ao rapaz para ele vir falar connosco, e que viesse acompanhado pelo cunhado Jarga Bora. Passados vários dias, nem vieram nem tinham dito nada.

Contactámos o chefe da tabanca e dissemos-lhe que precisávamos de alguém que fosse a Gobige, dizer ao Jarga Bora que ainda estávamos à espera da resposta. E, que se não viesse, íamos nós lá. O chefe arranjou-nos um rapaz e quando chegámos à estrada vimos três homens de bicicleta. Como já nos conheciam, pararam e cumprimentámo-nos. Disseram que iam para Gobige. Então, já não precisávamos do rapaz, agradecemos-lhe e mandámo-lo regressar à tabanca. E aos homens que encontrámos na estrada pedimos-lhes que dessem o nosso recado ao Jarga Bora. Passados poucos minutos, chegaram as nossas viaturas e regressámos a Madina.

O dia e a noite estavam destinados ao nosso descanso, mas o alferes estava preocupado com a população de Dandum, que estava sem segurança na linha da fronteira, e disse-nos que seguíamos para lá ainda nesse dia e que regressávamos no dia seguinte.

Fomos então para Dandum e regressámos a Madina na manhã do dia seguinte [7]. Era dia de ração quente. Logo pela manhã, eu e o cabo Braima fomos a Dandum comprar quatro cabritos para o grupo, regressámos à nossa cozinha e quando começámos a tratar deles chegou o Mode Hure, o chefe da tabanca de Madina do Boé, acompanhado de Jarga Bora e do tal rapaz que tinha sido aprisionado pelo PAIGC. 

Quando o Alferes Saraiva chegou, vindo da loja do senhor Campos [8], informei-o do que o Jarga Bora me tinha acabado de contar. Que tinha encontrado uma caixa pequena que estava dentro de um buraco cavado na estrada onde passava roda de carro. O alferes disse logo, é mina, vamos lá levantar.

 Tu, Amadú, não vais, ficas a cozinhar.

Fiquei com uma equipa, os restantes foram todos. Passada uma hora, mais ou menos, vieram com a mina, todos a cantar. O alferes levantou 500 escudos, pagou a Jarga Bora e aproveitou para lhe pedir toda a colaboração.

No fim do almoço fui com o alferes no Unimog pequeno, para Dandum a casa do meu primo, Iaia Djaló, que vivia na tabanca e era o homem mais rico de toda a zona. Estivemos com ele até às 17h00, voltámos para Madina e quando estávamos a chegar, o Mode Hure, acompanhado de Jarga Bora, de Gobige, fez sinal para pararmos. Disse-nos o que o Jarga Bora nos queria pedir que o levassem a Gobige, porque tinha medo de regressar a pé. E o alferes, como ele nos tinha avisado da mina, disse a Mode Hure que ia pedir um carro maior no quartel, para levar escolta. Ficou assente que, em vez desta noite, partiríamos no dia seguinte de manhã, porque já não descansávamos há três noites.

Então, nessa manhã [9], o alferes disse ao furriel Artur que íamos dar um passeio a Gobige e que perguntasse ao pessoal quem queria ir, porque não valia a pena ir o grupo todo.nPreparámos duas viaturas. O alferes mandou o Jarga Bora e a mulher subirem para um Unimog 404 e depois distribuiu os nossos quinze homens pelas duas viaturas, quatro na viatura da frente, um Unimog 411, e onze na outra.

Saímos alegremente, vi o furriel Artur a cantar e fomos até Gobige. Quando chegámos, o homem ofereceu-nos um cesto grande cheio de laranjas. Depois de muita conversa, a certa altura, o alferes disse:

 Bem, vamos embora.

Mas o Jarga estava muito falador, não se calava. Só por volta das 13 horas arrancámos de regresso. A primeira viatura, a mais pequena, levava cinco homens e a segunda doze, contando com os condutores.

Duzentos ou trezentos metros andados ouvi um rebentamento [10] atrás de nós,
o alferes gritou “mina” e, quando saltei vi a viatura ainda no ar, colegas a cair, o depósito da gasolina a rebentar, a gasolina a sair, a arder para cima deles.

Entrámos no fogo também e arrastámos os companheiros. Não podíamos fazer muito mais.

 Amadú, toma conta disso    disse o alferes.

Enquanto ele e o condutor arrancavam no outro Unimog a toda a velocidade para Madina, a cerca de 30 e tal kms, pedir auxílio, eu, o António Kássimo e o Aquino [11], três soldados, ficámos ali a fazer o que podíamos. Passados uns minutos, o Carreira [12] despertou onde tinha caído e passámos a ser quatro, dois negros e dois brancos, a tomar conta da situação.

Jarga Bora e a população da tabanca observavam a cena. Jarga aproximou-se, perguntou-me pelo alferes e eu perguntei-lhe se ele tinha vindo ali para dar informações ao PAIGC. Foi-se embora, desapareceu com a população atrás.

Continuámos a tratar dos nossos feridos. Quatro soldados com dez companheiros deitados, dois dos quais carbonizados, o furriel Artur[13] e o cabo Ramiro [14].

O alferes tinha-me dito que se demorasse muito, devíamos recolher as armas e esconder-nos com elas no mato. Para quem vem de Gobige e vai para Madina do Boé, o capim e a montanha ficam à esquerda, do outro lado era uma mata cerrada.

Nem meia hora depois do rebentamento, o Kássimo ouviu alguém chamar pelo alferes. Entrámos no capim alto, cobria-nos, e depois de procurar encontrei o Ferreira sentado. Tinha sido projectado a mais de 10 metros. Eu não vi nada de ferimentos e perguntei-lhe o que tinha.

–  Amadu, os meus pés!

Olhei, eram esqueletos. Do joelho ao tornozelo ficou sem carne, só osso branco e do tornozelo para os pés, nada, tinha desaparecido tudo. O Aquino e o Carreira ajudaram-me a levá-lo para a beira dos outros camaradas moribundos e dos dois mortos carbonizados que, na altura, tínhamos. À nossa guarda estavam, nessa altura, dois mortos e sete feridos, todos muito graves. Continuámos a acudi-los no local. Um local de grande risco, uma autêntica terra de ninguém, horas à espera da escolta de socorro que vinha de trinta e tal kms. Estávamos sem rádio e em Madina só ficariam a saber do acontecido quando lá chegasse o alferes.

Estivemos sempre à espera que o PAIGC nos atacasse. Para mim, isso não aconteceu porque o Jarga Bora tinha muitas famílias a proteger e, se nos atacassem, com certeza as NT destruiriam a tabanca e os mantimentos para todas as famílias. Penso que foi ele, o Jarga, que pediu para não nos atacarem.

O terreno também não nos era favorável. Nós estávamos na berma da estrada, perto do local da mina. À nossa direita era uma mata cerrada, nem se via o sol, um atirador podia aproximar-se à queima-roupa sem dificuldade e eliminar-nos a todos. À nossa esquerda estava com capim muito alto, maior que a altura de um homem.

O Ferreira perguntou quando é que vinha o helicóptero. Pedi-lhe para ter calma que o alferes tinha ido tratar disso, que podia chegar a qualquer momento. Todos os feridos tinham queimaduras grandes, menos o Ferreira e nós não podíamos tirá-los do local. Até à chegada da coluna de socorro, já estava escuro, passava das 19h30, tinham morrido mais dois companheiros, o cabo Ferreira [15] e o soldado Godinho [16].

Quando o médico [17] mandou dar água a todos, o condutor morreu, mal acabou de beber. O cabo Braima Seidi, quando iniciámos a viagem de regresso, também morreu. Entrámos em Madina do Boé com quatro feridos graves [18] e oito [19] mortos, sete europeus e um guineense.

O alferes disse-me que falasse com o régulo e lhe pedisse cinco homens para me ajudarem a tomar conta do acampamento e do nosso material. Que de manhã tirávamos as nossas coisas. Passei lá a noite com esses homens. Quando, na manhã seguinte, regressei a Madina, os mortos e os feridos já tinham sido evacuados. Alguns foram para o Gabú e dali no Dakota para Bissau.

Ficámos três praças e o alferes. Uma Dornier 
 [DO-27]  foi-nos buscar e trouxe-nos para Bissau.

Nunca esquecerei o passeio a Gobige, como lhe chamou o alferes. Para nós, muçulmanos, evitamos ir de viagem nos dias 3, 13, 23 e na última quarta-feira de lunar, quanto mais ir para a guerra! São dias negros e aquela viagem realizou-se no dia treze de lunar.

Dois dias [20] depois realizou-se a cerimónia do funeral, na Sé de Bissau. Aos corpos dos Comandos, ainda se juntaram mais dois, de um furriel e de um milícia, que tinham morrido num ataque a Guilege.(***)

Não me posso esquecer do ambiente que pairou no enterro, a tristeza dos amigos e companheiros e o ar de satisfação que se via em alguns presentes na cerimónia.

A seguir descansámos uma semana.

(Continua)

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Notas do autor e do editor literário:

[1] Nota do editor: o Comandante do CTIG Brigadeiro Sá Carneiro tinha determinado o imediato destacamento “para Madina do Boé, em reforço do BCaç 506”, de um pelotão da CCaç 727, tendo aquele pelotão ficado instalado em Madina do Boé a partir de 18 de novembro de 1964, sob o comando do alferes miliciano António Angelino Teixeira Xavier.

[2] Diz-se 1º ou 2º dia de lunar, conforme se trata do 1º ou do 2º dia da lua, após o novilúnio. As noites não contam, só os dias.

[3] Nota do editor: alferes miliciano infantaria António Figueiredo Pinto que pertenceu à 3ª Companhia de Caçadores, em Nova Lamego, e aos BCaç 506 e 512 e BCav 705, todos sediados em Bafatá. (**)

[4] Guileje de Madina do Boé.

[5] Mode é senhor. Para nós, Futa-Fulas, quando um homem é respeitado, a partir de 20 anos de idade, ninguém o chama sem dizer Mode.

[6] Casas que estavam habitadas durante o dia. À noite, como o local era desprotegido, o PAIGC abandonava a tabanca. Esta informação foi-nos prestada, mais tarde, por um rapaz.

[7] Nota do editor: 27 de  novembro de 1964.

[8] Europeu casado com uma negra africana e que tinha uma loja onde comerciava tudo o que podia.

[9] Nota do editor: sábado, 28 de novembro de 1964.

[10] Junto a uma passagem de cascalho sobre o rio Gobige.

[11] Nota do editor: soldado António Aquino de Sousa

[12] Nota do editor: soldado António de Jesus Carreira

[13] Nota do editor: furriel miliciano Artur Pereira Pires

[14] Nota do editor: 1º cabo Ramiro de Jesus Silva

[15] Nota do editor: 1º cabo António Joaquim Vieira Ferreira.

[16] Nota do editor: soldado João Ramos Godinho.

[17] Nota do editor: Dr. Luiz Goes.  (****)

[18] Nota do editor: destes, o soldado comando Artur Mateus Martins, foi evacuado em 30 de novembro de 1964 do HM 241, Bissau, para Lisboa, HMP, onde veio a morrer em 8 de dezembro de 1964.

[19] Soldados José da Rocha Moreira, Manuel Coito Narciso, furriel mil. Artur Pereira Pires, 1ºs cabos Ramiro de Jesus Silva, António Joaquim Vieira Ferreira e Braima Seidi e soldados João Ramos Godinho, todos dos “Comandos” e o soldado condutor Eugénio Campos Ferreira, pertencente á CCS / BCaç599, que se voluntariou para levar a viatura.

[20] Nota do editor: o funeral realizou-se em 30 de novembro de 1964, na presença do Governador, tendo o cortejo fúnebre, com os féretros transportados individualmente em camiões Mercedes, saído da capela militar de Santa Luzia para o cemitério da cidade, onde ficaram sepultados.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]

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Notas do editor:

(**) Vd. postes de:

4 de fevereiro de  2007 > Guiné 63/74 - P1493: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (2): Eu e o Furriel Comando João Parreira

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

(***)  O grupo de Comandos Fantasmas perderam 9 homens na região de Madina do Boé, antes de serem extintos: 8 homens em 28 de novembro de 1964 (junto do Rio Gobije, na estrada Madina do Boé para Contabane, a oeste); 1 homem em 8 de dezembro de 1965:

António Joaquim Vieira Pereira, 1º cabo corneteiro comando, natural de Santa Leocádia / Baião, inumado no cemitério de Santa Leocádia, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Artur Pereira Pires (foto à direita), furriel miliciano comando, natural de S. Sebastião da Pedreira / Lisboa, inumado no cemitério da Ajuda em Lisboa, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Braima Seidi, 1º cabo comando,  natural de Buba / Fulacunda, inumado no Cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Eugénio Campos Ferreira (foto à esquerda), soldado condutor auto comando, natural de Vila Frescaínha (São Pedro) / Barcelos, e inumado no cemitério de Vila Frescaínha, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


João Ramos Godinho (foto à direita), soldado condutor auto comando, natural de Valverde / Coruche, e inumado no cemitério de Coruche, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

José da Rocha Moreira, soldado condutor auto comando, natural de Arcozelo / Vila Nova de Gaia, inumado no cemitério de Arcozelo, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Manuel Couto Narciso, soldado condutor auto comando, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Ramiro de Jesus Silva, 1º cabo condutor auto comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Artur Mateus Martins (foto à direita), soldado cozinheiro comando, natural de Olhão, inumado no cemitério do Alto de S. João - Lisboa, faleceu, no Hospital Militar Principal (Lisboa), em 8 de dezembro de 1964, vítima de ferimentos recebidos em combate em 28 de novembro de 1964, no contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane.


(****) Vd. poste de 19 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10406: Evocando a trágica emboscada com mina, de 28 de novembro de 1964, em Madina do Boé, que vitimou 7 camaradas da equipa de comandos Os Fantasmas, alguns dos quais morreram nas mãos do alf mil médico Luiz Goes (1933-2012) e do alf mil António Pinto

Vd. também poste de 20 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)