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sábado, 3 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16794: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte I (José Teixeira)




Sítio das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, onde vem inserido o poste "O fim da dominação colonial", com uma entrevista, concedida em 2001, pelo cor Arafam Mané (1945-2004), sobre o histórico ataque a Tite em 23 de janeiro de 1963.



O inicio da Guerra Colonial no CTIG, contada pelo outro lado:  entrevista,  de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam Mané (1945-2004) -Parte I  (José Teixeira)



1. Enquadramento 

por José Teixeira



[Foto à esquerda: José Teixeira, em 2013, com o régulo de Medjo: 

(i) é nosso grã-tabanqueiro da primeira hora; 

(ii) tem mais de 300 referências no nosso blogue; 
(iii) foi 1.º cabo aux enf,  CCAÇ 2381, "Os Maiorais", Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70; 

(iv) está reformado como gerente bancário;  (v) vive em São Mamede de Infesta, Matosinhos; 

 (vi) é dirigente no movimento nacional escuteiro, onde é conhecido por "esquilo sorridente"; 

(vii) é um dos fundadores e 'régulos' da Tabanca de Matosinhos e continua a ser um dos nossos grã-tabanqueiros mais solidários e inquietos;

 (viii) foi talvez dos poucos de nós que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal, pela sua generosidade, coragem, inteligência emocional, sensibilidade sociocultural,, empatia  e demais qualidades humanas), conseguiu saltar a 'barreira da espécie': ele, "tuga" e cristão, foi aceite e amado pela população fula e muçulmana, e ainda hoje tem verdadeiros amigos, fulas, lá Guiné-Bissau profunda, onde  é amado, mimado, adorado quando lá volta (e já lá voltou não sei quantas vezes) ]


Todos nós, os que passamos pela guerra, temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vivenciadas no ambiente agressivo da guerra. É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou. É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças nas versões dos acontecimentos, ou pormenores que desconhecíamos. Foram vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém, com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação. O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afetam a informação registada na memória. A memópria humana é seletiva.

Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite. Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes (e tão "respeitáveis", omo os nossos relatos). São estes conjuntos de pontos de vista, diferentes entre si, e muitas vezes contraditórios, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

José Teixeira, Tabanca de São Martinho do Porto,
11/8/2011. Foto de LG.
É comum afirmar-se que a guerra colonial na ex-província da Guiné teve o seu inicio com um ataque a Tite na célebre noite de 22 para 23 de janeiro de 1963, Aliás, o próprio Amílcar Cabral afirmou-o uns dias depois.

Na realidade, este ataque, pela sua dimensão e resultados, com mortos e feridos de ambas as partes em contenda, assinala simbolicamente a abertura das hostilidades.
E, no entanto, foi um acontecimento fortuito, desorganizado, sem comando definido e sobretudo à revelia dos órgãos do PAICG. 
Assim o afirmou, em 2001, o coordenador do ataque,  o então coronel Arafam Mané. 

Segundo ele, a guerrilha, à data, já era um facto no Norte, no Centro Sul e Sul desde 1961. Tite já terá sido atacada em 1962. As regiões do Tombali e Quínara estavam a fervilhar numa luta surda entre as forças portuguesas e o PAIGC, com muitas mortes (assassínios) na população, da responsabilidade de ambos os intervenientes. Esases primeiros tempos foram de terror e contarterror, subversão e contraversão... Uma época muito mal conhecida (e pior estudada)...

Revivo com saudade o meu amigo Samba, de Mampatá Foreá, infelizmente já falecido há muitos anos. Sargento da milícia, imã da comunidade muçulmana local (Fula). Homem culto, excelente cozinheiro,  que deixou Bissau para regressar à sua terra, o Regulado Foreá, e defender o seu povo. Muitos serões passámos em amena conversa, onde a religião e o drama da Guiné eram assunto.

Recordo, apesar da poeira do tempo, uma conversa sobre a forma como o inimigo procurava conquistar aderentes à força, no início da luta. Eles, dizia-me, o PAIGCV, entravam, armados, pelas tabancas dentro, e tentavam convencer o chefe da tabanca a entregar os jovens para as forças da guerrilha. Se não o fizesse,  era morto ali mesmo, e os homens válidos eram convidados a segui-los ou em caso de resistência eram forçados, com muitas mortes pelo meio.

Não foi por acaso que o Amílcar Cabral convocou o Congresso em Cassacá, em 1964. Um dos objetivos deste Congresso, foi acabar com as barbaridades,  as arbitrariedades eos abusos de poder, praticadas por alguns chefes de guerrilha, sem qualquer preparação política, de modo a que o povo voltasse a ganhar a confiança no Partido, nos seus dirigentes e no destino da luta de libertação nacional.

Muitos anos mais tarde, em 2008 no Simpósio Internacional de Guileje, tive oportunidade de conhecer e conversar com um ex-combatente das FARP da Guiné-Bissau que me tinha atacado várias vezes em Mampatá e na estrada de Gandembel, em 1968. É dele esta frase, que recordo com emoção:

“Guerra é guerra, meu 'ermon', quando passa não deixa saudades, mas, muitas amizades, neste mundo perdido. Os antigos inimigos se procuram, para saldar as contas com um abraço sentido.” Dizia-me ele: "Desculpa. Eu fui apanhado na minha tabanca, tinha quinze anos."

Mas não pensemos que as autoridades portuguesas ofereciam mel e pão aos guineenses para os conquistar para a sua causa. Os factos narrados nesse Simpósip, por vitimas guineenses, que fugiram para o mato, creio que por medo (alguns) e posteriormente integraram a guerrilha, são de fazer arrepiar o mais “durão”. Era o tempo do “chapa ou fogo” na versão mais agressiva do temido e odiado capitão Curto por parte dos guineenses afetos ao PAIGC (*).. E, nas minhas idas à Guiné-Bissau, tenho conversado com ex-combatentes do PAIGC, onde relembram os tempos de terror imposto pelos "tugas" nas tabancas do interior, que os levou a fugirem para o mato e entrarem na luta.

Mas voltemos ao ataque a Tite para rever os acontecimentos através de relatos insuspeitos de terceiros e presenciais.

".... Em Janeiro de 1963, foi a sede do Batalhão atacada com armas automáticas e de repetição e granadas de mão. Deste ataque resultou 1 morto e 1 ferido das NT e 8 mortos confirmados e vários feridos graves IN. Depois deste ataque foram intensificados os patrulhamentos de que resultou a morte do Papa Leite, elemento IN que actuava na área e que facultou a recolha de valiosíssimos elementos da Ordem de Batalha IN..."

In, Carta de 7-07-1981 do ten cor  Manuel José Morgado, enviada ao director do Arquivo Histórico Militar, em resposta ao assunto " História das Unidades ".

Resumo da Actividade do BCaç. nº 237/BCaç. nº 599 - Maio de 1963 a Maio de 1965 [Caixa nº 123 - 2ª Div/4ª Sec., do AHM


O historiador José de Matos fala em quinze a vinte elementos do PAIGC, que mantem o quartel sob fogo intenso, durante cerca de meia hora, provocando um morto e dois feridos às nossas tropas e deixando três mortos no terreno.(vd. poste  P15795).

O nosso investigador de serviço ao blogue, o incansável José Martins, convidado pelo Luís Graça a investigar o ataque a Tite, concluiu:

“Arafan Mané (, nome de guerra, 'Ndajamba'), militante do PAIGC, destacado Combatente da Liberdade da Pátria, é considerado o 'responsável' pelo inicio das hostilidades na Guiné, ao ter disparado a primeira rajada de metralhadora e comandado a ofensiva. Teria menos de 20 anos. Veio a falecer em 2004, em Espanha, de doença". (P10990)

Estranhamente pouco ou nada se escreveu oficialmente sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.

Há o testemunho do Gabriel Moura, (vidé P 3294; P 3298 e P 3308 de 11/11/2008; 12/10/2008 e 13/10/2008 respetivamente). Foi este soldado português de Gondomar que estava de sentinela ao quartel de Tite, naquela fatídica noite, que entrou no Blogue pela mão do Carlos Silva, (seu conterrâneo e amigo) já depois do seu falecimento para contar a história que vivenciou. Foi o primeiro militar português, quando se encontrava de guarda ao aquartelamento, a responder ao fogo da força que atacou as instalações de Tite. Na reação ao fogo de que foi alvo, consumiu todas as munições de que dispunha, provavelmente três carregadores, assim como utilizou as duas granadas que lhe estavam distribuídas para o serviço. Faleceu em 2004, dois anos após ter editado as suas impressões sobre o acontecimento, e por coincidência no mesmo ano da morte de Arafan Mané.

Temos agora a oportunidade de tomar conhecimento do testemunho do Arafam Mané, ou seja, a versão de quem comandava o outro lado da barricada, numa entrevista publicada em 2001 no jornal O Defensor – Orgão de Informação Geral do Estado Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Reproduzida em 2015 no sítio das FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo, por iniciativa do major  Ussumane Conaté,. diretor da publicação.



2. Arafam 'N' djamba' Mané (1945-2004)
(segundo nota biográfica redigida pelo major Ussumane Conaté, diretor de O Defensor; adaptação de JT])

[Foto à esquerda, Arafam Mané, cortesia de O Defensor]


O comandante Arafam 'N’djamba'  Mané nasceu no dia 29 de setembro de 1945, em Bissau, sendo filho de Lassana Mané e de Nhalin Cassama. Faleceu, de doença de evolução prolongada,  no dia 4 de setembro 2004,  num hospital de Madrid,  onde estava internado, [A data de nascimento pode não ser precisa, os guineenses nessa época não tinham registo civil].

Arafam Mané entrou cedo para o PAIGC, tendo chegado a Conacri, capital da República de Guiné em 1961, onde se foi juntar a Amilcar Cabral e outros militantes do PAIGC que tinham deixado Bissau para, a partir dali, organziar e dirigir a luta de guerrilha.

Após a proclamação unilateral da independência do país em 24 de setembro de 1973, o coronel Arafam 'N´djamba'  Mané ocupou vários cargos  entre as quais os  de chefe de Casa Civil da Presidência da República, director geral da farmácia Farmedie, governador (sucessivamente) das regiões de Gabú e Bafata, ministro da Defesa Nacional,  ministro dos Combatentes da Liberdade da Pátria.

Foi também deputado  durante vários mandatos legislativos, membro do Comité Central, membro do Bureau Politico do PAIGC e também membro do Conselho de Estado durante o mandato presidencial de Koumba Yala. (Notas de Ussumane Conaté,  coronel, diretor de O Defensor)

[Mais elementos sobre Arafam ou Arafan Mané: vd.  poste P2190 de Virgilio Briote]

Esta entrevista, de que se reproduz uam primeira parte, hioje neste poste,  foi concedida em 2001 ao jornal O Defensor  "no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional para a independência total da Guiné-Bissau do jugo colonial".

É um documento de interesse para todos nós, pelo que tomamos a liberdade de o reproduzir e divulgar, no nosso blogue, com a devida vénia.  São raros os testemunhos de históricos dirigentes e comandantes do PAIGC, como o Arafam Mané.  Muitos deles morreram, levando consigo irremediavelmente para a tumba as suas memórias.  Nunca escreveram ou deram uma entrevista em vida.


3. Sinopse da entrevista (parte I) 


O Arafam Mané assumiu, com 18 anos, o comando da operação. Começa por confessar que o grupo,  vindo de Conacri,  não tinha experiência militar e estava muito mal armado - tinham apenas, três armas e uma pistola.  Ao grupo juntaram-se civis,  de várias tabancas locais, num total de cerca de 150 pessoas, munidos de catanas, paus, pedras e algumas armas de fogo, suponho que mausers (?) e canhangulos.

A iniciativa partiu do grupo sem que tenha sido dada qualquer ordem superior. Ele mesmo afirma ao entrevistador: “Garanto-lhe que ninguém nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite”. E explica o "contexto":  "A operação foi realizada com raiva porque, em 1962, fomos corridos pelos 'tugas'. Este episódio aconteceu, depois de termos efetuado uma sabotagem, cortando as linhas telefónicas e os cabos elétricos daquela zona sul do país. Foi a partir das ações de sabotagem, que a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa presença na área."

Muito interessante a ideia (romântica?) de se fazer acompanhar de um “djidiu” de kora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Só que o “djidiu” deu ás de “vila diogo” e o combate ficou sem música, que não fosse a das espingardas e os gritos de dor.

Afirma que só tiveram um morto, creio que o seu guarda-costas, Wagna Na Bomba, o que contradiz a informação recolhida no nosso blogue, que fala em 8 mortes. Dado que grande parte dos atacantes eram da população local, talvez se esteja a referir apenas aos elementos do grupo vindo de Conacri e os outros mortos tenham sido dos elementos civis, locais

Refere que o  Quemo Mané [, um homem temperamental  e violento, associado a cenas de terroer, pós-independência, segundo o testemunho do nosso Cherno Baldé] foi encarregado de tentar eliminar o major Fabião.

Suponho que ele se queria referir ao major Pina, comandante da unidade sediada em Tite. [Nessa altura, era o BCAÇ 237, chegado à Guiné em 18/7/1961; esteve em Tite até ao fim da comissão, em 19/10/1963; teve dois cmdts: major inf [José] António Tavares de Pina; e depois o nosso conhecido ten cor Hélio Augusto Esteves Felgas, que será mais tarde o cmdt do Comando de Agrupamentio nº 2957, Baftá, 1968/70.]

Aconselho a leitura do testemunho do Gabriel Moura / Carlos Silva para se entender o conteúdo da entrevista que se segue e apurar as contradições. (Sinopse de JT).



Primeira página de O Defensor, órgão das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo. Edição nº 22, dezembro de 2015, 16 pp.,   disponível aqui em formato pdf. O jornal, fundado em 1994, e de periodicidade mensal, tem como  diretor o major Ussumane Conaté.


4. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte I

Com a devida vénia ao jornal O Defensor, ao seu diretor, major Ussuame Canoté, e ao sítio das FARP. Revisão e fixação de texto: José Teixeira.



O Defensor – O coronel fez parte do comando que em janeiro de 1963 orquestrou o ataque 

contra o aquartelamento fortificado de Tite, em Quínara, no sul do país. 

O que é levou o vosso comando, mal-armado e inexperiente, 
a atacar esse quartel colonial?



Coronel Arafam Mané - O ataque contra o aquartelamento de Tite foi realizado com poucas experiências militares, pois o efetivo que participou nele, era constituído por um grupo de camaradas do partido vindo de Conakry, [a que se juntaram elementos das] populações locais , munidas de algumas armas de fogo, catanas, paus e pedras. 

O ataque que surpreendeu as tropas do exército colonial, [que era]  muito temido pela sua barbaridade contra os autóctones, foi de facto executado sem um comando designado. Foi um ato de coragem e patriotismo que, desde a época dos nossos antepassados, sempre caracterizou a resistência dos guineenses contra qualquer tipo de dominação.

Em termos de armamentos, tínhamos apenas quatro (4) armas, uma pistola (1). Entreguei aos camaradas uma pistola e a arma que eu tinha, e fiquei com uma pistola automática com a qual disparei o primeiro tiro {[para o]  ar para assinalar ]a]os companheiros o início do ataque quando estávamos no interior do quartel fortificado de Tite. Com esse disparo, os camaradas entraram em ação,  utilizando todos os meios de combate que possuíam. O estrondo das armas,  misturado com as vozes de comando dos guerrilheiros que procuravam orientar melhor os companheiros para evitar perdas humanas, acordou as tropas coloniais e despertou a atenção dos sentinelas.

A operação foi realizada com raiva porque,  em 1962, fomos corridos pelos "tugas". Este episódio aconteceu, depois de termos efetuado uma sabotagem,  cortando as linhas telefónicas e os cabos elétricos daquela zona sul do país. Foi a partir das ações de sabotagem, que a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa presença na área.

[Em] 1963 repetimos a mesma operação de corte de linhas telefónicas e cabos elétricos. Estas práticas que eram prejudiciais para a comunicação e o funcionamento das instituições públicas e militares, irritaram os colonialistas que começaram a pressionar as populações com ameaças e torturas para obterem informações sobre os que eles chamavam “terroristas”. No âmbito da repressão foram alargadas as redes da PIDE-DGS (Polícia colonial).

O Defensor  – Na altura, a guerrilha já tinha criado 'barracas' 
a partir das quais coordenava as ações militares 
contra os interesses coloniais?

Coronel ADM - Na altura ainda não tinha constituído 'barracas' [acampamentos temporários]. Às vezes alguns camaradas nossos saiam do Sul, iam até Bissau cumprir missões do partido e regressar sem serem descobertos pelas autoridades portuguesas, a PIDE e os seus agentes. Para além de Bissau, cidade capital, mais controlada, os guerrilheiros também se infiltravam nas tabancas,  partilhando refeições e outros alimentos com as populações sem que ninguém desse  conta ou soubesse quem eram.

Mas não pense que tínhamos homens prontos para efetuar trabalhos de reconhecimento e outras missões arriscadas. Não. Às vezes era eu, o meu guarda-costas e meu adjunto, camarada Fernando Badinca, entre outros.

Foi assim que,  em 1962, nos instalámos na tabanca de Cantongo a 3 km de Nova Sintra, a partir de onde nos movimentávamos até as aldeias de Flac-An, Flac Mindé, Flac-Mim, Flora, Bunaussa... Às vezes atravessávamos o rio, íamos a Bolama e daí íamos para a tabanca de Uato para entabular contactos com a população, com o régulo Oliveira Sanca, contactar Jaime Sampa, Lai Canté e outros camaradas. [Eram]  estes que nos enviavam jornais e outros objetos de que precisávamos.

Tínhamos também contactos com o camarada Rafael Barbosa, Aristides Pereira,  inclusive o senhor Eustáquio que, ultimamente, depois da independência teve problemas [de saúde mental]. Foi assim que se iniciou a luta armada de libertação nacional.

O Defensor  – Qual é a estratégia adotada pela guerrilha 
quando se sentiu ameaçada pela movimentação 
da força militar colonial na zona?


Coronel ADM - Alguns tempos depois fomos obrigados a abandonar esses locais, devido as ações do inimigo que, em termos de material bélico, nos superava na altura. Este é o primeiro fator. 

O segundo fator é que abandonamos a zona para salvaguardar as nossas populações, alvos de torturas quando os "tugas"  descobriam que a tabanca manteve contactos connosco ou albergava os nossos camaradas.

Entretanto, quando nos retiramos de lá, fomo[-nos]  instalar na tabanca de Calunca a partir da qual conseguimos ocupar todas as tabancas da fronteira com a Guiné Conakry. Logo depois da ocupação daquelas tabancas,  mandamos o camarada Malam Sanhá, para Conacri, para contactar os membros da Direção Superior do Partido e dar-lhes informações sobre a nova situação.

A chegada de Malam Sanhá a Conacri coincidiu com a chegada das primeiras armas provenientes do reino de Marrocos. Eram cerca de quatro a cinco armas de marca “Patchanga” [metralhadora ligeira DEGTYAREV RDP Cal. 7,62 mm] que,  quando chegaram,  foram distribuídas entre nós,  antes de voltarmos para o mato.



Guiné > 1964 > PAIGC > Cassacá > I Congresso.do PAIGC, Quinta, 13 de fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de fevereiro de 1964, Da esquerda para a direita, Abdulai Barry, Arafam Mané, Amílcar Cabral, Domingos Ramos e Lai Sek durante o I Congresso.do PAIGC, em Cassacá,

Foto (e legenda): Portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, Consult em 28 de junho de 2016. Disponível em http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05224.000.056 (Reprodução parcial, com a devdia vénia)


O Defensor –A chegada das primeiras armas do reino de Marrocos 
às mãos da guerrilha, foi acompanhada de uma ordem superior 
para atacar o quartel colonial de Tite?


Coronel ADM – Garanto-lhe que ninguém nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite. Amílcar Cabral não nos tinha dito nem ordenado atacar o fortificado quartel com três ou quatro armas. Amílcar Cabral recomendou apenas que voltássemos para o mato,  visto que estávamos armados. Mas, no entretanto, para assustar os colonialistas e também para libertar os nossos companheiros, encarcerados na prisão, decidimos assaltar o quartel de Tite.

Eu me encontrava baseado em Nova Sintra enquanto Malam Sanhá estava na área de Cantona (Fulacunda), onde já se sentia sufocado,  devido a falta de matas densas para se esconder melhor. Esta realidade que representava um potencial risco para ele e seus homens, obrigou[-o] a abandonar o local e juntar-se a nós,  em Nova Sintra.

Recordo que Malam Sanhá chegou a Nova Sintra, precisamente na altura em que nós já estávamos em plena preparação da operação de assalto ao quartel de Tite. Aproveitamos logo a oportunidade para apresentar-lhe a nossa ideia de assaltar as instalações militares de Tite e ele concordou.

Portanto, uma vez a ideia acertada, procedeu-se a distribuição de tarefas claras e concretas a cumprir por cada um de nós. Assim, o camarada Malam Sanhá,  que já tinha sido militar no exército colonial português, foi designado para destruir a caserna dos soldados, enquanto o camarada Quemo Mané tinha como missão eliminar fisicamente o major Fabião, comandante da força colonial em Tite. Quemo Mané, que era grande caçador, tinha essa missão porque conhecia muito bem a residência do major, a quem ia sempre vender carne de caça.

O camarada Dauda Bangura tinha como missão rebentar as portas da prisão, [fazendo  explodir uma mina. Ele tinha feito um treino militar na República Popular da China por isso tinha alguns conhecimentos sobre as minas.

Eu fui encostar-me [a uma] das esquinas da caserna que devia ser atacada pelo camarada Malan Sanhá. Foi a partir dali que disparei a pistola, o primeiro tiro que deu início ao histórico ataque da guerrilha contra o quartel fortificado de Tite. 

Neste ataque, levámos connosco um “djidiu” de kora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Mas este camarada,  com a intensidade do fogo e a tentativa de resposta do inimigo, não desempenhou o seu papel e acabou por desaparecer,  abandonando os instrumentos musicais.

Eu, a partir da posição que ocupava,  gritava com força ao camarada Dauda Bangura,  dizendo-lhe “Dauda! Mina, mina, coloque a mina no sítio indicado e faça-a explodir”. Eu gritava tanto, porque não tínhamos experiência de guerra. Talvez foi por essa razão que não sentíamos o perigo que pairava sobre nós assim como as consequências que poderiam advir.

(continua)

Introdução, seleção, notas, revisão e fixação de texto:  Zé Teixeira

______________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6866: O Nosso Livro de Visitas (97): José Pinto Ferreira, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, CCS/BCAÇ 237 (Tite, Julho de 1961 / Outubro de 1963): Evocando o lendário Cap Curto (CCAÇ 153, Fulacunda, 1961/63)