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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23994: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVIII: Breve história do império do Cabú



A lenda de Alfa Moló - belíssima ilustração do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos 
maiores ilustradores e autores de banda desenhada (pág 53)



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5




O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amigaé também o autor do sítio 

1. Transcrição das pp. 89/91 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


Breve história do Império de Cabú 
(pp. 89-91)



A história de Cabú começa quando o grande general Tiramakan Traore, às ordens do famoso primeiro Imperador do Mali, Sundiata Keita, cria o Reino de Cabú em 1250 (45), com capital em Cansalá.

O Reino de Cabú começou por ser apenas um Reino vassalo do grande Império do Mali, mas com a queda deste no século XVI, tornou-se um Império, o qual abrangia vários reinos, que iam desde a Gâmbia à Guiné-Bissau, passando pelo Senegal.

A grande migração de fulas para a Guiné nos séculos XVIII e XIX, trouxe as sementes da nova etnia dominante ao Império de Cabú.

Os fulas vinham do norte de África, eram na sua maioria pastores, com uma minoria de agricultores. Muitos deles eram devotos seguidores do islamismo e do modelo de civilização a ele associado.

Constituíam uma sociedade onde existia também uma classe instruída, e por isso, consideravam que tinham uma cultura superior à dos ignorantes mandingas.

Os mandingas eram principalmente agricultores, mas eram também guerreiros orgulhosos e valentes, que olhavam com desprezo para os fulas, pois não passavam de famintos e miseráveis criadores de gado, vestidos de trapos e farrapos.

A crença dos mandingas era animista, mas eram tolerantes com as outras crenças, e aceitavam o islamismo, tendo existido reis e imperadores mandingas no antigo Império do Mali, que se converteram ao islamismo e disseminaram a sua fé.

A chegada dos fulas à Guiné no século XVIII foi pacífica, pois foram bem recebidos pelos mandingas, que os deixaram utilizar as suas terras, em troca do pagamento de um tributo (46).

Os terrenos cedidos aos fulas pelos mandingas eram chamados pelos mandingas de fulacundas (47), ou seja lugares dos fulas.

O aumento de tributos,  por parte dos mandingas, levou os fulas a deslocarem-se para outras zonas mandingas e também para as terras dos biafadas, escolhendo os locais onde as exigências de tributos eram menores.

Nesta altura apareceu um marabu (48), Seiku Umarú, que profetizou que os fulas em breve iriam mudar a sua condição de submissão, passando a ser os novos senhores, o que correspondia às suas aspirações, e os levou a começarem a pensar numa revolta.

Os mandingas, ao terem conhecimento de tal prenúncio, ficaram preocupados, além disso a contínua imigração fula fazia aumentar assustadoramente o seu número (49), e a continuar assim em breve seriam mais numerosos do que os mandingas, o que veio a acontecer mais tarde.

Os mandingas decidiram desincentivar a vinda dos fulas, e afastar os que já estavam nas suas terras. Então fizeram um aumento generalizado dos tributos, mas a resposta não foi a que esperavam, pois os fulas não abandonaram as suas terras e revoltaram-se, pedindo ajuda aos fulas do Reino do Futa Djalon.

A criação do Reino do Futa Djalon fez mudar as relações dos fulas com os seus vizinhos, pois a partir dai iniciaram a sua campanha de levar a luz divina aos pagãos, lançando uma guerra santa contra os seus vizinhos animistas (a jihad), e a conquista do Império de Cabú estava
entre os seus planos.

O momento era propício para os fulas, pois o Império de Cabú estava dividido por conflitos internos, e a sua economia estava em decadência.

Os fulas do Futa Djalon olhavam para esta guerra com agrado, pois ela dava resposta aos seus anseios de levarem a mensagem divina do Islão aos reinos animistas e permitia também poderem responder aos pedidos de ajuda dos seus irmãos fulas do Império de Cabú, além disso esta guerra iria assegurar-lhes escravos para trabalharem nos campos, dar-lhes o acesso aos cereais de que necessitavam, e garantir-lhes a segurança das suas caravanas, quando estas passassem por aquelas regiões.

A primeira grande batalha entre fulas e mandingas é denominada batalha de Berekolong (50) (1850-51), e ocorreu em Sancorla.

Os fulas venceram a batalha de Berekolong, e o Reino de Sancorla passou para o domínio fula, mas o exército fula sofreu grandes perdas, não tendo força suficiente para continuar a conquista.

As revoltas fulas sucederam-se por todo o lado, os biafadas e os nalus foram igualmente atacados pelos fulas revoltosos, os quais com a ajuda dos fulas de Labé e Timbo (51) em 1868 tomaram Bolola (52) aos biafadas.

A região conquistada pelos fulas aos biafadas passou a chamar-se Forreá, terra da liberdade em língua fula.

As forças militares portuguesas, apesar de não se envolverem nas lutas, apoiaram os revoltosos, dando guarida aos mesmos nas suas fortificações.

O poder no Império de Cabú desde o início do século XIV que era dividido entre três clãs da nobreza, um Sané e dois Mané (53), os quais consideravam que apenas eles tinham direito ao título de Mansa Bá, que significa Grande Rei ou Imperador, pois apenas eles possuíam a linhagem real, pelo que o lugar de Imperador rodava entre eles.

O sistema de rotação do lugar de imperador funcionou bem até à morte do Mansa Sibo Mané (54), da província de Same, pois neste caso os s
eus descendentes esconderam a sua morte, e não cederem de imediato o lugar de Imperador na capital ao seu sucessor por direito de rotação, Djanqui Uali Sané. Assim, apenas se retiraram de Cansalá um ano depois, gerando um conflito interno entre os clãs Mané e Sané.

O Império de Cabú estava numa situação difícil, com revoltas internas e invasões fulas, era necessário manter a unidade entre os mandingas, mas aconteceu precisamente o contrário. 

Por outro lado a economia do Império de Cabú estava em decadência, as caravanas que passavam por Cabú eram cada vez menos, e o comércio de escravos era reduzido, na verdade agora existiam novas rotas e outros destinos, devido aos comerciantes estrangeiros e às rotas comerciais marítimas (55).

Os fulas, que tinham vindo progressivamente a conquistar territórios ao Império de Cabú, aproveitaram as divisões internas dos mandingas para darem o golpe final, e assim um poderoso exército do Reino do Futa Djalon (56) invadiu Cabú e destruiu Cansalá (1867) (57), passando os fulas a dominar todo o território.

[ Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]
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Notas de CF:

(44) Tiramakan Traore - o nome também surge nalguns textos com a designação Tirmakhan Traore, Tiramong Traoré e Tiramaghan Traore.

(45) Cabú - pag, 83, “Kaabunké - Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais”, de Carlos Lopes.

(46) “Conflitos interétnicos” – Carlos Cardoso.

(47) Fulakunda - lugar fula, a palavra kunda na língua mandinga significa lugar.

(48) Seiku Umaru - este marabu também conhecido pelo nome El Hadgi Omar, é referido em vários textos como espalhando a mensagem, que no futuro os fulas serão os novos senhores, por exemplo na pag. 78 de “Fulas do Gabú” de José Mendes Moreira, e na pag. 63 da “Grandeza Africana” de Manuel Belchior.

(49) “Fulas do Gabú” - pag. 79, “Fulas do Gabú” de José Mendes Moreira.

(50) Berekolong - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes.

(51) Forreá - pag. 160 em “Guiné Portuguesa” – A. Teixeira da Mota.

(52) Bolola - pag 147 em “História da Guiné I” - René Pélissier.

(53) Kaabunké - pag. 179, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais - Carlos Lopes.

(54) Mansa Sibo - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes refere, “Quando o Mansa Sibo, da província de Sana morreu, a rotatividade exigia que o Mansa-Bá seguinte fosse Janké Wali, da província de Pakana. Mas os descendentes do primeiro fizeram
“ouvidos de mercador” e mantiveram o poder por mais um ano. Este foi o factor que desencadeou um conflito importante entre os Mané e os Sané de Pakana, numa altura em que as agressões do Futa-Djalon exigiam coesão e não dispersão de forças Kaabunké”.

(55)  Cabú - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes.

(56) Exército do Futa-Djalon - a sua dimensão é referida na pag. 28 de “Mandingas da Guiné Portuguesa” de António Carreiras: “ Os Fulas- Pretos, animados pelos bons resultados das operações do Futa, solicitaram novamente o auxílio do Almami de Timbó para tentarem
a batida definitiva dos Soninkés. Reunidos trinta e dois mil homens de guerra dos quais doze mil cavaleiros, aquele régulo de Timbô fez a concentração de tropas em Kitchar (imediações de Kadé)”.

(57) Cansalá - não existe uma data aceite por todos os historiadores sobre a destruição de Cansalá, eis alguns exemplos: Carlos Lopes na “Resistência Africana ao controlo do território”, indica a data de 1867;  Mamadu Mané,  em “O Kaabu”, indica “por volta de 1865”; Carlos Cardoso,  em “Conflitos interétnico”, indica o ano de 1865;  René Pélissier na “História da Guiné I”, pag. 143, refere que “a grande batalha de Kansala (Cam-sala) data de 19 de Maio de 1864, dando como referência o historiador António Carreira; Joel Frederico Silveira em “O Império Africano 1825-1890”, na pag. 216 refere a data de 1867.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 18 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23992: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVII: Breve história do império do Mali

(**) Vd. também postes de



Guiné 61/74 - P23992: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVII: Breve história do império do Mali


Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das pp. 85/87 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


Breve história do Império do Mali



A história do Império do Mali começa com a queda do Império do Gana no Século XI.

O Império do Gana foi um dos mais antigos e poderosos impérios africanos, talvez remonte ao século IV, mas os dados sobre a sua formação são pouco rigorosos; o seu território ia desde o deserto da Mauritânia até ao rio Níger no Mali, mas não incluía os territórios da República do Gana, que apesar de ter o mesmo nome não possui qualquer ligação ao Império do Gana.

O geógrafo Al-Bakri (38)  (século XI), de Córdova, escreveu sobre o Império do Gana e sobre o seu poderio militar, referindo que possuía um exército de 200 mil homens, dos quais 40 mil eram arqueiros.

Este Império, inicialmente designado de Kumbi pelos seus habitantes, foi chamado de Gana pelos árabes.

A crença dominante no Império do Gana era a animista, mas o nascimento do islamismo no século VII, e os seus contactos com ele, irão provocar no século XI a queda do Império, face ao crescimento do islamismo no seu território e aos almorávidas.

Os almorávidas eram uma espécie de monges guerreiros, que em nome do Islão empreenderam no século XI uma “guerra santa”, e nela acabaram por destruir o Império do Gana, libertando muitos povos do jugo dos seus senhores. 

Um deles foi o povo mandinga, originando o Reino do Mali, o qual viria a assumir um papel dominante na nova ordem,  e um outro importante reino que se constituiu, foi o Reino Sosso.

O Reino Sosso, conduzido por Sumanguru Kanté (39) , dominou inicialmente os Reinos vizinhos, entre eles o Reino do Mali, mas depois de várias batalhas acabaria por ser totalmente derrotado na batalha de Kirina por Sundiata, a qual leva à criação do Império Mali.

Os mandingas tornam-se os grandes conquistadores da região, e em 1230 Mari Diata I, também conhecido por Sundiata Keita ou Sundjata Keita ou simplesmente Sundiata, que reinou de 1230 a 125540, funda o  poderoso Império Mali, o qual incluía os territórios do Senegal, Gâmbia, Mali e Guiné-Bissau, e partes da Guiné-Conacri (41), Mauritânia e Níger.

O nome de Sundiata e a história do Império do Mali, são conhecidos pelos povos dos países da África Ocidental, pois a sua história tem sido transmitida até aos dias de hoje.

Apesar da importância e popularidade da figura de Sundiata como fundador do Império do Mali, quem o dá a conhecer ao mundo é o Imperador do Mali, Mansa Bá Mussa, também conhecido apenas por Mansa Mussa ou por Mansa Kankan Mussa, que reinou de 1312 a 1337, devido à imponente peregrinação que fez a Meca em 1324.

Al-Umari, um viajante árabe que no começo do século XIV visitou o Império, descreve a sala do seu trono assim:

“(…) O sultão preside no seu palácio numa grande varanda onde se encontra um enorme trono de ébano feito para uma pessoa alta e corpulenta; o sultão é ladeado por duas presas de elefante viradas uma para a outra, e as suas armas todas em ouro, são colocadas ao pé dele: sabre, lanças, carcás, arco e flechas (…) (42)”.

A famosa peregrinação levada a cabo por Mansa Mussa, seria composta por uma caravana com 60 mil pessoas, entre elas 12 mil servos, e 500 escravos cada um transportando ouro, e 80 camelos carregados com mais de duas toneladas de ouro para serem distribuídas entre os pobres (43).

Apesar de não existir um entendimento consensual entre os historiadores, sobre os números reais da peregrinação de Mansa Mussa, sejam eles quais forem, a verdade é que os árabes ficaram deslumbrados com o poder e riqueza no Império Mali.

A peregrinação colocou literalmente o Mali nos mapas do mundo medieval, pois Mansa Mussa surge com uma pepita de ouro na mão, no mapa do catalão Abraão Cresques, em 1375.

A peregrinação a Meca do Mansa Mussa em 1324, teve também influência na expansão do islamismo, pois deu mais força à sua fé, e gerou mais determinação em o difundir.

Outro homem religioso do Mali, que ainda hoje é lembrado pelo seu fervor religioso, é o Mansa Koy Komboro, que em 1280 impôs o islamismo como religião oficial no seu reino, Djenne, e construiu a enorme Mesquita de Djenne, o maior edifício do Mundo construído com lama. Os habitantes de Djenne ainda hoje lhe chamam “Mesquita de Komboro“, e ela continua a causar admiração aos viajantes que por ali passam.

Em 1545 o Império Songai ocupa Niani,  a capital do Império do Mali, ponto fim a um Império em decadência, dividido com lutas internas pela conquista do trono, e minado com revoltas.

[ Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]

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Notas do CF:

(38) Al-Bakri - pag. 69 da “História da África” de J. D. Fage. Al-Bakri escreveu o livro “Descrição de África” em 1087, que serve de fonte a muitas obras literárias.

(39) Sumanguru Kanté - este nome é usado na pag. 86, “História da África” de F. D. Fage, e também em Sundiata – Lion King of Mali de David Wisniewki, e em Sundiata – Uma Lenda Africana de Will Eisner, mas esta figura surge também com outros nomes, como por
exemplo na pag, 167 em História da África Negra, de Joseph Ki-Zerbo, o seu nome é Sumaoro Kanté, na pag, 27 de Sundiata – An Epic of Old Mali, de Djibril Tamsir Niane, o seu nome é Soumaoro Kanté.

(40) Sundiata - 1230-1255, pag. 46 “A Descoberta de África”, de Catherine Coquery - Vidrovitch.

(41) Guiné-Conacri - oficialmente designa-se República da Guiné, mas vulgarmente também é chamada de Guiné-Conacri, para se distinguir da Guiné-Bissau.

(42) Mansa Musa - pag. 24 da “A Guiné do século XVII ao século XIX”, de Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha.

(43)  Mansa Musa - pag. 25 da “A Guiné do século XVII ao século XIX”, de Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha.

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Nota do editor:

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

1. Mensagem de 8 de Julho , enviada pelo nosso Cherno Baldé, membro da nossa Tabanca Grande (*):


Caro amigo Luís,

Na continuação das estórias que chamei de 'memórias de infância' (**) envio mais dois excertos. O primeiro fala da minha família. Não queria enviá-la mas apercebi-me que faz falta para uma melhor compreensão das partes seguintes sobre as origens da família e alguns factos ligados com a fuga do irmão do meu pai e patriarca da família, o Sambagaia. O segundo fala do meu pai[, Aliu Tambá Baldé, ] e da encenação de um Marabú tradicional.

Obrigado e um forte abraço,

Cherno Baldé


2. Memórias do Chico, menino e moço (6)

DE CANHAMINA A SINCHÃ SAMAGAIA

Uma família a procura de estabilidade

A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.

Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.

Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade. 

Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] .

O Naor terá morrido logo a seguir após uma doença prolongada (dizem que por desgosto pela morte do seu primo e amigo inseparável) e, com a morte prematura deste, acedeu ao lugar de patriarca da família, o Sambagaia, o irmão mais novo que lhe seguia segundo a linhagem.

Decorridos alguns anos após a morte de Naor, a nossa família saiu de Canhámina. Não consegui obter informações certas sobre as razões que motivaram esta mudança, todavia, algumas vozes especulam que estaria ligada a morte do Régulo Brandjame Baldé, cujo desaparecimento teria provocado uma luta de sucessão bastante perigosa no seio da família reinante.

De qualquer modo, a transferência para a zona de Farimbali, marca o início da liderança de Sambagaia na família e abre uma nova era, marcada por grandes dificuldades materiais de existência, alguma turbulência no seio da família e guerra política.

Para uma família que já estava, de certo modo, habituada a viver não muito longe da sombra do poder e das suas facilidades, a provação foi dura. As dificuldades do duro trabalho agrícola que era a principal actividade da família se juntou a desastrosa gestão do patriarca Sambagaia que utilizava os magros recursos da família (colheita de cereais e gado) para granjear reputação e mobilizar apoios, votando a família à fome e miséria contínuas.

As suas mãos largas e suas frequentes deslocações e viagens para o centro do poder e da administração colonial em Bolama onde servia de agente policial, e também procurava alianças, permitiu-lhe entrar, assim, nos meandros das intrigas e das guerras pelo poder, que eram suportadas pelo esforço da família, obrigando-a a vender tudo que existia, inclusive as vacas de seguro (teguê) das mulheres que normalmente não se vendiam, em obediência às regras de uma tradição secular.

A família estava sem posses, sem segurança para as calamidades naturais, bastante frequentes na época e junte-se a isso mudanças constantes de uma aldeia à outra de forma sucessiva e por períodos muito curtos, provocando a erosão dos poucos recursos disponíveis abalando com isso a coesão social preexistente no seio da familia.

Primeiramente saíram de Canhámina para Saré Saliu, lado norte da bolanha de Berécolom (onde encontraram e conheceram a família de um caçador profissional, originário de Forrea, chamado Samba Candé, vulgo Samforrea, pai da minha futura mãe, Cadi Candé), tendo aí permanecido por pouco tempo.

Nesta aldeia faleceu Paté (Pareru), o quarto dos cinco irmãos, após alguns anos de doença psíquica. Contam as más-línguas que ele ousara desafiar o patriarca Sambagaia ao pretender em herança a mais jovem das mulheres do falecido Naor, a Nhama Aua, filha de Brandjame, pelo que este o teria feito guerra através de forças ocultas para o enlouquecer. Outros afirmam que a jovem viúva teria escolhido do seu livre arbítrio o jovem e bonito Patê, provocando desta forma a desgraça deste.

Esta história ilustra, independentemente do que teria acontecido na realidade, que os vínculos de dependência e/ou obediência aos costumes e a tradição, na reprodução e manutenção das práticas culturais ancestrais, se faziam também por diversos meios, inclusive a difusão de falsas informações a fim de paralizar e/ou neutralizar o(s) adversário(s).

De Saré Saliu passaram para Solambuntô, aldeia situada junto a fronteira com o Senegal, a oeste de Cambajú. Por aqui, viveram uns poucos anos. O que estaria o Sambagaia a procura? Certamente uma base de apoio para as suas ambições politicas. Após Solambuntô, fizeram meia volta regressando para Saré Coba, aldeia vizinha de Sare Saliu. Foi aqui que os filhos de Naor, Baciro e Ioba foram circuncisados. Teriam vivido nesta aldeia perto de 3 anos.

De seguida, regressaram, de novo, para o lado sul da bolanha, e instalaram-se em Farimbali, na altura uma povoação enorme, situada perto de Canhámina (ver recenseamento de 1950), onde a minha mãe Cadi se juntou à família casando com o meu pai, Aliu Tambá (provavelmente entre 1949/50) e onde também nasceram os seus primeiros filhos, Aua (1951/52), Cumba (nome da esposa de Cherno Abdulai Shall, almane da mesquita de Farimbali)(1953/54), Ibraima (1955/56-), Carlos Bubacar (1957/58), hoje farmacêutico formado na Faculdade de Farmácia de Lisboa, e eu, Cherno Abdulai (entre 1959/60).

A partir desta localidade, Sambagaia lançou-se na corrida à conquista do poder da casa reinante de Sancorlã, fazendo frente aos seus primos de Canhámina. Tendo conseguido mobilizar para a sua causa um grande número de aldeias à custa de alianças fortuitas em terreno movediço num contexto social e político bastante atribulado, minado por ambivalências e sobreposição de poderes de naturezas diversas: colonial, tradicional, religioso etc.




Capa do livro de Manuel Dias Belchior, editado no início da década de 1960, A Grandeza Africana – Lendas da Guiné Portuguesa. (***)

Foto: © Torcato Mendonça (2008). Direitos reservados


No momento decisivo, só ficaram ao seu lado as chefias e as aldeias de etnia Mandinga, nomeadamente de Sumbundo e Tendinto [ vd. carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line'], um número claramente insuficiente quando foram confrontados, no posto administrativo de Contuboel, perante a situação de escolher o futuro régulo de Sancorla.

Conforme já se referiu mais acima, a vida e situação em Farimbali não eram fáceis de suportar. A pobreza extrema, conflitos permanentes com os vizinhos, o mal-estar resultante da humilhação sofrida com a derrota de Sambagaia na luta pela sucessão do seu tio Brandjame tornava inviável a continuação da família numa aldeia minada por intrigas, encomendadas a partir de Canhámina em conluio com alguns representantes das autoridades administrativas de Contuboel e Bafatá.

Foi devido a esta situação, no mínimo embaraçosa, e a chacota que dela resultaram, segundo explicou a minha mãe, é que justificou a fundação, entre 1959 a 1960 de uma nova aldeia no lado norte da bolanha, a menos de 2 km de Sare Coba, na confluência de Berekolóm (antigo feudo mandinga do Séc. XIX), que recebeu o nome do chefe da família, Sinchã Samagaia, que literalmente quer dizer a aldeia de Samba Gaia. Para agradar aos seus amigos da administração de Bolama, Sambagaia deu-lhe o nome de Luanda (porquê Luanda e não Lisboa?...).

Esta mudança de residência coincidiu com o meu nascimento. Eu nasci em Farimbali mas fui baptizado, sete dias depois, na nova aldeia. Deram-me o nome de Cherno Abdulai em honra ao chefe religioso e almane da mesquita de Farimbali, originário de Futa Toro, do Senegal, que conduziu a cerimónia do baptismo.

Cherno não é propriamente um nome mas um título a que se dá aos homens letrados, que orientam a comunidade durante as orações, sobre aspectos da vida social/religiosa e ensinam o Alcorão às crianças. O seu apelido era Shall, que faz pensar nos acompanhantes do célebre homem de letras e também chefe de guerra, El-hadj Cheik Omar Saidou Tall que marcou profundamente o então Sudão Ocidental da época pré-colonial com a suaDjihad e que teria feito uma passagem discreta pelos actuais territórios da Casamança e da Guiné-Bissau antes de se estabelecer no Futa Djalon.

O meu pai, Aliu Tambá Baldé (ou Tambá Maudô, como lhe chamava a Mãe), era o mais novo dos irmãos que formavam a família. Trabalhador intrépido e fiel à disciplina familiar, esteve muito ligado ao Naor que, praticamente, conduziu a sua educação após a morte do pai. Esta mesma dedicação faria dele o preferido de Sambagaia. Na verdade, ele estava destinado a liderar a família após a fuga de Sambagaia pois, com a morte de Patê, o belo, ficavam ele e o Dembaro. Este último era mais velho que ele, todavia, não oferecia aos olhos de todos o carisma e as capacidades requeridas para isso.

Mas, as diferenças de pontos de vista entre Sambagaia e Tambá eram também conhecidas de todos e não raras vezes vinham à superfície. De referir que este último, descontente com a maneira como Sambagaia geria os destinos da família, tinha feito uma aliança com Dembaro a fim de formarem um fogão à parte (núcleo familiar restrito no seio da família alargada), separando-se de Sambagaia e seus filhos, embora continuassem a viver juntos.

Este facto, todavia, não impediu que este o tivesse indicado para trabalhar no posto de auxiliar de comércio que lhe tinham oferecido (primeiro em Farim e depois em Cambajú), entre os comerciantes lusos que faziam o negócio de compra e venda local de borracha e outros produtos agrícolas, talvez, no intuito de acalmar o seu apetite pelo poder que seus primos da casa real não viam com bons olhos. Aliás, mesmo assim, [Tambá] ver-se-ia obrigado, mais tarde, com o início da guerra contra a ocupação colonial na zona norte (1963/64), a exilar-se no Senegal para fugir da conspiração dos herdeiros directos de Brandjame e seus seguidores.

Tudo levava a pensar que viveríamos para sempre em Sinchã Samagaia, aliás Luanda, onde, finalmente, tínhamos encontrado um pouco de paz e sossego, para se tentar reorganizar e construir as bases de uma família normal para a época. Aqui nasceu a minha irmãzinha Ramatulai e foi aqui onde comecei a descobrir o mundo, a minha família (**).

Desde cedo ganhei o gosto da aventura acompanhando o meu irmão Ibraima na pastorícia dos poucos animais (gado bovino e caprino) que, entretanto, os nossos pais tentavam reunir. As deambulações atrás dos animais, as brincadeiras junto dos poços de água, locais onde davam de beber aos animais (Bidal), constituíam a minha única ocupação. Não tendo ainda idade para a iniciação à vida adulta, aqui tudo estava em aberto, a minha liberdade e curiosidade não tinham limites. Tudo acabou com o rebentar da guerra que pouco a pouco se alastrou a partir de Cola-Carresse (Oio) e atingiu o Sancorlã em cheio.

A desmoralização e o abandono que se seguiram no seio do Regulado, não condiziam com a epopeia da guerra de pacificação com o Graça Falcão ou Teixeira Pinto. Nós acabámos por fugir para Cambajú (**).

(Continua)


Bissau, Novembro de 2006

[Revisão / fixação de texto / bold / cores: L.G.]


2. Comentário de L.G.:

Meu caro amigo e irmão: Obrigado por teres tido a coragem de abrir, para nós, o álbum de memórias de família... É uma verdadeira saga... Ajuda-nos muito a entender o que foi a história do Séc. XX na tua terra, nomeadamente no chão fula. Mas também da nossa história, dos portugueses e dos europeus na época da expansão colonial, e do choque (cultural e não só) que isso representou para os povos africanos...
É, da tua parte, um gesto de grande hospitalidade, na melhor tradição fula, e de da grande apreço e amizade por nós, portugueses e guineenses, aqui reunidos na Tabanca Grande, debaixo do velho poilão... Percebo as tuas hesitações: revisitar o passado é sempre abrir a caixinha de Pandora... Estás, além disso, a expor-te e a expor a tua família, mostrando nesta aldeia global é que a Internet que afinal a tua família, tirando o contexto histórico, geográfico e cultural, é igualíssima a todas as outras nossas famílias, incluindo as nossas, do Minho ao Algarve, com as suas alegrias e tristezas, os seus altos e baixos, os seus amores e os seus ódios, as suas alianças e os seus conflitos, com os seus exemplos, bons e maus, de liderança, mas sempre com a mesma vontade e tenacidade na luta pela dignidade, liberdade e justiça...
É atravésa dessa instância de socialização que é a a família, que aprendemos, em primeiro lugar, a falar, a comunicar, a conhecer o que nos rodeia, a perceber o outro, o diferente, o estrangeiro... Mas é também, para o pior e o para o melhor, o lugar onde o aprendemos e imitamos os exemplos dos nossos maiores. Felizmente tiveste um pai e uma mãe que passaram o melhor das suas famílias, que são a memória, os valores, os princípios, a ética, o conhecimento, o nosso verdadeiro kit de sobrevivência. Vê-se que tens orgulho e ternura por eles... Obrigado, irmãozinho, em meu nome e em nome de todos nós. Um AB (Alfa Bravo), abraço. Luís

PS - Por azar, não tenho agora à mão a carta de Tendinto... Depois mando-ta... Está digitalizada mas ainda não disponível 'on line'...

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

Vd. também poste de 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)


(**) Vd. postes aneriores da série:

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

(***) Vd. poste de 2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)