Mostrar mensagens com a etiqueta Mandinga. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Mandinga. Mostrar todas as mensagens

domingo, 8 de setembro de 2019

Guné 61/74 - P20133: Em bom português nos entendemos (23): Morocunda, topónimo mandinga = Moro (o que se converteu ao islamismo) + Cunda (localidade ou habitação) (Cherno Baldé)

1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P20130 (*)

Um pouco de história e etnografia da Guiné e/ou da Senegâmbia:

Morcunda, Morocunda ou Moricunda é a designação em mandinga, do Bairro ou localidade (assentamento) de mandingas de confissão muçulmana, assim como Fulacunda significa assentamento de Fulas, na mesma lingua. 


Estas terminologias teriam sua origem no império de Kaabu ou Gabu, em meados do séc. XIX, com o aparecimento das guerras santas [Jiade] e dos primeiros reinos teocráticos fundados por marabus fulas e saracolés no território do actual Senegal, Mali e Guiné-Conacri.

O prefixo Moro ou Mori faz referência aquele que deixou a religião tradicional dos soninquês (idólatras) e se converteu à religião dos Mouros ou Maures (Mauritanos e Marroquinos) e aprendeu alguns versículos corânicos e sua escrita em Árabe.

Cunda, como se pode notar nos topónimos de muitas aldeias da Guiné [Bajocunda, Cancunda, Colicunda, Faracunda, Fulacunda, Iracunda, Massacunda, Sissaucunda, Tienecunda ...], significa localidade ou habitação em Mandinga.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20130: Controvérsias (133): Os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, de 1 de novembro de 1965, um brutal ato de terrorismo, cuja responsabilidade material e moral nunca foi apurada por entidade independente: causou sobretudo vítímas civis, que estavam num batuque: 27 mortos e 70 feridos graves

(**) Último poste da série >  15 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19981: Em bom português nos entendemos (22): nas grandes ocasiões, como o nosso léxico pode ser tão.. pequeno!

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P18986: Historiografia da presença portuguesa em África (129): Relatório do Comando Militar do Oio, nascia o ano de 1915 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Ainda não consegui apurar até que ponto estes relatórios elaborados por administradores e militares em resposta a um longo questionário formulado pelo Governador Oliveira Duque tiveram utilização posterior, no campo da investigação ou mesmo no corpo dos relatórios dos governadores da Guiné para os respetivos ministros. Mas não deixa de ser uma grata surpresa ver o cuidado do governador em juntar as peças do puzzle e a resposta que foi dada pelos seus colaboradores.
Dirão que há poucos dados novos, que o que aqui se reporta é matéria mais do que consabida. Atenda-se que o Tenente Ribeiro enviou este seu manuscrito, em fina caligrafia, no dia 1 de janeiro de 1915, a chamada pacificação dá os seus primeiros balbucios, o comandante em Mansabá teve escassos meses para recolher este acervo informativo. É um militar que sonha com a liberdade da mulher, acredita que a sua libertação recomporá as relações de modo a que o homem passe a trabalhar e ela deixe de ser escrava. Sente-se no documento que ali chegou a I República.

Um abraço do
Mário


Relatório do Comando Militar do Oio, nascia o ano de 1915 (1)

Beja Santos

Através de uma circular publicada no Boletim Oficial da Guiné Portuguesa, em 1914, o Governador Oliveira Duque determinava a todos os responsáveis da administração civil e dos comandos militares que elaborassem um detalhado relatório contemplando um número apreciável de itens tais como: raças que habitam a região; organização social e política dos povos aí instalados; respeito para com os velhos; tribunais e julgamentos; contratos e seu cumprimento; relações com os povos vizinhos; qualidades guerreiras e armas usadas; constituição da família; formalidades que precedem o nascimento; fanado e sua cerimónia; consideração com a mulher; formalidades e cerimónias do casamento; adultério e sua punição; mortes, cerimónias, enterro e luto; administração da propriedade, sua transmissão; tratamento das doenças; práticas religiosas; vestuário e adornos; indústrias indígenas; formas de povoamento, casas e sua constituição; desporto; instrução; alimentação e bebidas; agricultura e seus produtos e que indivíduos estão ligados à agricultura; ferramentas e utensílios; épocas das diferentes formas de cultura; utensílios de uso doméstico; caça, gado, água potável; plantas especiais de aplicações úteis, e algo mais.

Desconhecia a circular, e mais adiante só vejo utilidade em a referir, há ainda instalado o preconceito da inexistência de inventários ou pouco cuidado dos governantes em identificarem as grandes questões da colónia, como se vê não foi necessário chegar ao importantíssimo mandado de Sarmento Rodrigues para tentar obter o perfil identitário da Guiné.

Quem vai responder a partir de Mansabá é o Tenente Barbosa, com uma caligrafia mais do que harmoniosa. O documento foi cedido à Sociedade de Geografia de Lisboa pelo Capitão Carlos Alberto Soares que serviu longos anos na Guiné, e está na secção dos reservados.

O nosso relator aborda em primeiro lugar as raças, fala nos Soninqués e Fulas. Os Soninqués são designados por “mouros” quando são convertidos à religião maumetana ou por Sonincas, os não convertidos. Sempre desfiando o que vai na caligrafia do Tenente Barbosa, ele avança que os Soninquenses são de origem Mandinga, cuja língua falam, foram os primeiros a estabelecerem-se na região, os Fulas terão vindo da atual circunscrição de Geba, estavam estabelecidos no Oio há cerca de um século, com consentimento dos Soninquenses, pagavam-lhes tributo.

Quanto à organização, Soninquenses e Fulas viviam em grupos de famílias sempre em tabancas. O chefe da morança é o seu fundador e proprietário. Cozinham por famílias, mas juntam os cabaços de comida e comem em três grupos distintos: homens, rapazes e mulheres e raparigas.

É grande o respeito para com os velhos, é um atentado desconsiderar um velho, a sua experiência é sempre tida em conta pelos mais novos. Os homens, logo que começam a aparecer os cabelos brancos, são considerados grandes e conhecerão uma redução no trabalho.

Não tinham tribunais. Os chefes não fazem justiça alguma por sua conta, com receio do que possa vir a suceder-lhes. Antes da ocupação, porém, quando algum indivíduo cometia um delito era capturado e levado para casa do régulo, onde continuava preso para responder pelo crime de que era acusado. O régulo consultava a sós dois grandes íntimos, seguia-se pois uma reunião dos grandes da Tabanca, havia exposição dos factos, decretava-se a sentença, quase sempre o pagamento de um certo número de vacas ao régulo.

Segundo o nosso Tenente, todos procuravam o cumprimento dos contratos, excecionavam-se os contratos de casamento e um ou outro sobre compra de gado, todos os contratos ficavam, em geral, logo liquidados.

Registava-se uma nova atitude de relações com os povos vizinhos. Ao tempo, os Soninqués do Oio não mantinham boas relações com os povos de Geba e Mansoa, mas mantinham boas relações com Farim e os Balantas de Bissorã, sendo estes últimos quem os auxiliava nas guerras. Mas depois da ocupação houvera uma melhoria de relacionamento com todos os povos vizinhos, daí estas etnias se conservarem pacíficas, sem demonstrações de guerra entre elas. Os Oincas eram guerreiros de nomeada, tendo rechaçado várias colunas que tentaram submete-los. Somente uma coluna de irregulares, com um pequeno núcleo de tropa, sob o comando do Exmº. Chefe do Estado Maior, Capitão Teixeira Pinto, conseguiu reduzi-los à submissão completa. Antigamente usavam espingardas de pedreneira e de espoleta e espada mandinga. Agora não lhes é permitido o uso de qualquer arma, com exceção para a defesa de gado contra os animais ferozes.

O relatório fala agora da família, é geral um homem ter várias mulheres. Quando morre um homem casado as mulheres são divididas pelos irmãos, principiando a divisão pelos mais velhos. A mulher, para o homem, vale tanto mais quanto mais filhos tiver, é na quantidade de filhos que é verdadeiramente lucrativa. As mulheres são escravizadas pelo trabalho. A mulher levanta-se, em média, das 3 para as 4 horas da manhã, para pilar o milho ou o arroz e preparar a primeira refeição; depois de comer, vai para as lavras de arroz, auxiliando ainda noutras lavras. É sobre ela que recaem todos os trabalhos pesados. Daí o comentário do Tenente Barbosa: “Chega a ser um crime o excesso de serviço das mulheres, comparado com a ociosidade dos homens”. Sente-se que os ideais republicanos devem atravessar a mentalidade do Tenente José Ribeiro Barbosa que conjetura tempos melhores para a vida das mulheres: “Uma vez abolido o pagamento da mulher e dada a esta a livre escolha do homem, este dedicar-se-ia necessariamente ao trabalho, desaparecendo a ociosidade e a origem das mais importantes questões”.

Na sequência, o relator aborda as formalidades que precedem e se seguem ao nascimento. Oito dias após o nascimento, corta-se o cabelo ao nascituro e dá-se-lhe nome. Quanto ao fanado, todos os Oincas o praticam, no homem e na mulher.

Quanto à consideração para com a mulher, a atenção que o homem lhe dispensa é só pela falta que ela lhe faz para o trabalho. Nenhuns cuidados especiais têm com as mulheres grávidas, estas trabalham até à ocasião do parto.

Neste quadro de desapego, abunda o adultério, devido à educação e meio em que são criadas às mulheres e principalmente à obrigação de viverem com um homem de quem às vezes não gostam.

(Continua)


Nos arquivos do BNU encontrei estes dois curiosos documentos de 1923 e 1925, é Governador da Guiné, Jorge Frederico Velez Caroço, que vive em permanente estrangulamento financeiro e com os comerciantes também em permanente protesto, tudo por causa dos impostos e dos cambiais. Em 23/7/1923, o Governador solicita ao Ministro das Colónias um empréstimo que seria canalizado através do BNU em Bolama; em 1925, estando trabalhos em curso, volta a pedir ao governo um contrato com o BNU, um empréstimo gratuito.

Litografia de Abel Bravo da Mata para o novo edifício do BNU (hoje Caixa Geral de Depósitos), situado entre Avenida 5 de Outubro e a Rua Laura Alves, projeto do arquiteto Tomás Taveira.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18946: Historiografia da presença portuguesa em África (127): Duas publicações sobre a Guiné na Fundação Mário Soares (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P375: Al barka ou obrigado em mandinga (A. Marques Lopes)

Texto do A. Marques Lopes:

Caros camaradas:

Enviei ao Indami uma mensagem de Boas Festas, usando aquela que o Mário Dias nos mandou a nós. Ele respondeu-me como transcrevo em baixo. Mando-vos isto para realçar a maravilha que é podermos falar como amigos com gente daquela terra da Guiné. O Indami e a sua família são mandingas, mas ele não tem problemas em desejar Bom Natal.

O pai dele, Agostinho Indami, que fez 50 anos a 13 de Dezembro pp, foi, como já vos disse, governador do Oio de 2001 a 2004; antes da independência, muito jovem, portanto, esteve num curso na antiga União Soviética. Foi um quadro do PAIGC. É ele que quer contactar o tal furriel e o tal alferes que conheceu em Có, quando era muito jovem, e deseja receber em Farim qualquer ex-militar português.

Muitos de nós tivemos casos destes, gente que conhecemos e de quem fomos amigos e que se "passou para o outro lado", ou já era. Natural, nas circunstâncias, como é natural agora que haja esta amizade, pois penso que ninguém combateu com ódio fundo, mas sim por razões e condicionalismos impostos.

Indami:

«Heheee.. o teu crioulo de uma forma geral esta óptimo, mas tem algo do crioulo de caboverde: dgenti, no crioulo da Guiné, é djinti ..heheeee. Mas tá bom.

Mais uma coisa,em crioulo da Guiné, não é ,mas sim Bu, pois é plural. Hehee...gramática.

"Fiquei feliz por saber que você conseguiu falar com meu irmão,embora nao ter conseguido falar com meu pai. Você não está conseguindo falar comigo,porque neste momento não estou na minha cidade(São Paulo),estou de férias em Vitória-Espírito Santo. E como é um outro Estado o meu número está indisponível,porque estou sem crédito. So estará disponivel quando eu tiver crédito.


"Por último desejo a você e a sua família UM FELIZ NATAL E UM BOM ANO NOVO.

"AL BARKA - Obrigado em língua Mandinga"

segunda-feira, 11 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P103: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

Versão, modificada, de um texto que publiquei originalmente em O Jornal, em 16 de Abril de 1981 (A tropa-macaca e a elite da tropa), no dossiê Memória da guerra colonial.


Furriel miliciano numa companhia africana (a CCAÇ 12, sediada em Bambadinca, na Zona Leste da Guiné), conheci de relativamente de perto as misérias e as grandezas da 1.ª Companhia de Comandos Africanos. 

Privei inclusive, embora ocasionalmente, com algumas das figuras que o Carlos França retratou do seu artigo “Arame farpado em tempo de massacre”, publicado em O Jornal, nº 319, de 10 de Abril de 1981.

Tal como a tropa-macaca (termo depreciativo dado às unidades do exército constituídas por praças do recrutamento local e por quadros de origem metropolitana tal como a CCAÇ 12, e outras que também já existiam, e que têm sido aqui evocadas no nosso blogue: a CAÇ 3, do ex-Alferes miliciano Lopes, a CCAÇ 13, do ex-furriel miliciano Fortunato, a CART 11 [depois CCAÇ 11] do ex-furriel miliciano Monteiro, a CCAÇ 14...), os comandos africanos faziam parte da nova força africana que era então a menina bonita de Spínola e da sua entourage.

Havia porém alguns diferenças substanciais entre a 1ª Companhia de Comandos Africanos (CCA) e as restantes unidades, incluindo os Pelotões de Caçadores Nativos (conheci alguns: estacionados em Bambadinca, Fá Mandinga, Missirá, estes dois últimos, comandandos respectivamente pelos ex-alferes milicianos Cabral, o 53, e Beja Santos, o 52): os comandos africanos eram uma tropa de elite, bem paga, bem treinada e bem armada, com quadros operacionais exclusivamente africanos, desde os oficiais aos sargentos.

Os muchachos de Pancho Villa

O primeiro contacto que tive com os futuros comandos africanos foi aquando da sua chegada ao Xime, vindos de Bissau, em LDG da Marinha. O meu grupo de combate havia sido escalado para os escoltar no percurso até Fá Mandinga – a mesma povoação onde, por ironia, fora a antiga estação agronómica onde, se dizia, trabalhara o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (o que  não correspondeu  à verdade factual).

Em , situada junto ao Rio Geba, entre Bambadinca e Bafatá, ficariam instalados os futuros comandos africanos, para efeitos de instrução da especialidade e treino operacional. Isto passa-se em princípios de Fevereiro de 1970, já não posso precisar de cor.

Foi então que tive a oportunidade de conhecer o instrutor da 1ª CCA, o capitão-comando Barbosa Henriques. É a ele, muito provavelmente, que se refere o Carlos França, ao evocar a figura do capitão pretoriano, arrancado às páginas de clássicos romances de guerra como os de Jean Lartéguy. Julgo que ele já tinha feito uma comissão na Guiné, à frente de umas das companhia de comandos então existentes.

No meio da bandalheira geral que já era então o nosso exército, corroído pelo mal dos milicianos e o cansaço dos oficiais e sargentos do quadro, o capitão-comando Barbosa  Henriques era, para mim, a personificação do profissionalismo militar, cada vez mais raro naquelas paragens: um tipo espartano, frio, calculista, distante, seco de palavras mas formalmente correcto… Imaginava-o programado até ao mais ínfimo dos gestos, saído da linha de montagem de fábricas de militares como as de West Point!

A ele se atribuía, justa ou injustamente, a afirmação tão sintomática quanto estereotipada de que uma “instrução de comandos sem uma boa meia-dúzia de mortos não era instrução de comandos nem era nada".

E no entanto por detrás daquela máscara impassível de duro e daquele comportamento quase robotizado que me causava simultaneamente atracção e repulsa, havia um homem de carne e osso, tímido e sentimental, tão só como todos nós, capaz de deixar trair as suas emoções,e de falar de outras coisas bem mais comezinhas e menos metafísicas do que a arte da guerra. Ou não fora ele de origem cabo-verdiana, se não me engano...

Chegámos a conversar, em grupo, com alguma descontracção e civilidade, entre dois copos de uísque e o All you need is love dos Beatles, como música de fundo, no bar do quartel de Fá Mandinga, enquanto lá fora os seus rapazes, sedentos de aventura e de emoções fortes, preparavam um festival de fogo de artifício como recepção ao periquito do alferes miliciano médico que acabava de chegar à companhia (Um luxo, diga-se, de passagem já que no TO da Guiné o que era normal era haver um médico por batalhão, ou seja, um médico, para no mínimo quatro companhias, ou sejam, 600 homens; diga-se de passagem que nunca convivi com o médico dos comandos, nem me lembro do seu nome).

O comandante operacional, esse, era o lendário capitão graduado comando João Bacar Jaló, um torre e espada, ex-alferes de 2^linha, comandante de miílicias em Catió, milícia, de etnia fula, que viria a morrer em combate, mais tarde, já depois de Conacri. Também me lembro do Zacarias Saeigh, o 2º comandante (creio que juntamente com o Januário Lopes, se não erro), Era um dos tipos mais evoluídos e correctos no convívo com os outros militares. Era libanês, ou de origem libanesa.

Não creio que tenha trocado com o João Bacar Jaló mais do que meia dúzia de palavras, em português. Mas estou a vê-lo, a entrar na parada do quartel de Bambadinca, ao volante de um burrinho (Unimog 411), à revelia de qualquer Regulamento de Disciplina Militar (RDM), à frente dos seus garbosos comandos, fabricados em série, denotando forte espírito de corpo e moral elevada.

Alguns de nós chamávamos-lhes, com uma certa ironia, os muchachos de Pancho Villa por andarem armados até aos dentes e com fitas de metralhadora a tiracolo, além de gostarem de se fazer anunciar com enervantes rajadas de Kalash para o ar… Nas barbas do comandante do BART 2917 e do seu oficialato.

- Comando africano é aquela máquina – diziam eles, pavoneando-se nas tabancas, de de Kalash na mão, impecáveis no seu camuflado a que a boina e o lenço vermelhos, além do crachá, davam o traço de distinção dos grandes predadores.

- Comando tem manga de mania, nô furriè – comentavam, não sem uma certa ponta de inveja, alguns dos meus soldados fulas, praças de 2ª classe, mal pagos, mal alimentados e já duramente marcados pela guerra…

Este comportamento sadobelicista não deixaria de ser, entretanto, fatal para alguns deles: estou-me a recordar, por exemplo, do primeiro dos seus graduados, um furriel, morto em combate em 18 de Junho de 1970, na antiga estrada da Ponta do Inglês, na região do Xime. Vi os restos do cadáver na capela de Bambadinca. Tinha sido literalmente serrado a meio como quem corta um tronco de árvore com cordão detonante: ao pisar uma mina antipessoal, as numerosas granadas de mão que levava à cintura haviam rebentado por simpatia...


Uloma, caçador de cabeças


Desconheço a origem dos comandos africanos, bem como os critérios utilizados no seu recrutamento e selecção. De qualquer modo, contrariamente às companhias de caçadores africanas como a CAÇ 3, 11, 12, 13 e 14 cuja composição tendia a obedecer a razões de natureza etno-luinguística geográfica, os elementos da 1ª CCA eram (ou pareciam-me ser) etnica e  socialmente heterogéneos.

Os seus quadros revelavam, inevitavelmente, um baixo nível cultural, embora falassem razoavelemente o português. Um ou outro desses quadros tinha sido educado nas Missões Católicas: caso do tenente graduado comando Januário, de etnia papel, que mais tarde irá jogar um papel determinante, por omissão, na Op Mar Verde, tendo sido considerado desertor pelas NT. Também havia alguns cabo-verdianos ou filhos de cabo-verdianos, segundo creio.

Julgo que as praças eram fracamente escolarizadas. Uma boa parte eram fulas, mas havia em contrapartida bastantes elementos já destribalizados, ou em perda de identidade cultural por via da assimilação, alguns podendo ter sido recrutados entre os descamisados, o lumpen-proletariado que vegetava pelas ruas de Bissau e pelas tabancas do Pilão. Seriam precisos mais elementos para uma boa caracterização sociodemográfica da 1ª Companhia de Comandos Africanos [mais tarde Batalhão, a 3 companhias].

Um dos comandos africanos mais conhecidos em Bambadinca era o furriel Uloma, filho de régulo, da zona de Varela, e um dos raros felupes que vestiam a farda do exército português, segundo se dizia no meu tempo. Uloma era uma espécie de coqueluche ou mascote da companhia, não só pelo seu aspecto físico (era um tipo entroncado, corpolento)  como sobretudo pelos seus estranhos rituais de guerra e pela sua macabra colecção de cabeças cortadas ao inimigo, conservadas em álcool (trinta e duas, ao que parece, segundo os cálculos do Carlos França, que terá privado com ele, em Fá).

- Essas práticas culturais de bom selvagem teriam a ver com as reminiscências do canibalismo ritual entre os felupes – como me tentava, em vão, explicar, em jeito de antropólogo, com uma garrafa de uísque na mão, o meu amigo Cabral, com fama de poeta, antimilitarista, filho de militar de carreira, alferes miliciano, tão dilacerado como eu pela brutal irracionalidade daquela guerra, e que privava como os comandos africanos na sua qualidade de comandante do Pelotão de Caçadores Nativos local, o Pel Caç Nat 63.

Para mim, não havia dúvidas: essas práticas, não sendo obviamente encorajadas, eram pelo menos toleradas pelos responsáveis da 1ª CCA e, no mínimo, pelas autoridades militares da zona leste (Bafatá) e do sector L1 (Bambadinca). Havia quem encolhesse os ombros, alegando que os comandos africanos dependiam directamente do Com-Chefe e, como tal, tinham carta branca.

Recordo certa vez que o Uloma  se deixou fotografar, como um verdadeiro predador, exibicionista, imponente, triunfante, com um dos seus sangrentos e macabros troféus de caça, no regresso de um raide a território IN, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor. (Julgo que esta cena se passou no final de um operação de vários dias em que a 1ª CCA actuou na região a norte do Enxalé, de 30 de Outubro a 7 de Novembro de 1970, às ordens do BART 2917; de qualquer modo, foi antes da invasão de Conacri).

À falta de caça grossa, dizia-se, tinha atirado sobre um pobre camponês, porventura balanta ou biafada, que cultivava, desarmado, o seu arroz na bolanha… Cortada a cabeça, rente ao pescoço, de um só golpe de catana, atara-lhe um pano branco que ligava a boca ao esófago, à laia de pega…

O nosso 1º cabo Encarnação, fotógrafo amador por necessidade e jeito para a biscatagem (batia e revelava, num estúdio fotográfico improvisado as chapas que os tugas mandavam para a família na Metrópole, as namoradas e os amigos, como certificado de que continuavam vivos, inteiros e de boa saúde), aproveitou o boneco do Uloma segurando a cabeça, pela carapinha, de um terrível e bravo inimigo, para fazer o negócio da sua vida…

De forma que muitas dezenas dessas macabras fotografias foram vendidas rápida mas discretamente em Bambadinca, como postal ilustrado de um ronco típico das terras da Guiné, até que a coisa chegou aos ouvidos do tenente-coronel, comandante do BART 2917...

Este, claro, alarmado com a eventualidade de algum escândalo (estava-se no auge da ideologia e da política da Guiné Melhor, da acção psicossocial, do spinolismo…) e, pior ainda, receoso da porrada mais que certa do Com-Chefe se a coisa não fosse abafada a tempo, mandou recolher de imediato as fotografias em circulação, confiscar e destruir as restantes cópias, além dos negativos… Mas algumas chegaram à Metrópole...

Moral da história: o nosso fotógrafo encartado, o pobre do nosso cabo Encarnação, como se não bastassem já as perdas e danos sofridos, esteve à beira de levar uma porrada…

Quanto ao Uloma,  teve um fim triste, às mãos dos vencedores, já depois da independência... Está na triste lista das vítimas das execuções sumárias levadas a cabo pelas novas autoridades da Guíné-Bissau.

O horror destas cenas de guerra, não só pela sua gratuitidade como também pela hipocrisia das autoridades militares de Bambadinca, não deixaram de impressionar alguns de nós, milicianos, mais informados, civilizados e/ou politizados, mas ninguém mexeu uma palha para as denunciar ou simplesmente divulgar. Eu próprio limitei-me a tomar algumas notas para o Diário de um tuga.


O filho da puta do tenente Januário

Nós não éramos a elite da tropa nem sequer a fina flor da Nação (como nos repetia ad nauseam o garboso tenente de Tavira que foi meu comandante de companhia, o tenente Esteves)... Mas quantos de nós, milicianos, não terão consciente ou inconscientemenete desejado sê-lo, ao admirar com volúpia e ciúme os brinquedos, os roncos, apanhados ao IN pelos páras, pelos comandos ou pelos fuzos ?

Estes poderiam ser algumas notas para outros tantos capítulos da história da 1ª CCA. A sua participação na temerária e controversa invasão anfíbia de Conacri em 22 de novembro de 1970 é, só por si, um outro capítulo, embora já relativamente conhecido depois das revelações feitas em 1976 pelo cérebro e comandante operacional da Op Mar Verde, o fuzileiro Alpoim Galvão.

Eu próprio vi-os partir, aos comandos africanos (só mais tarde saberia para onde…) e vi-os regressar, carregados de roncos, com o ar triunfal dos guerreiros de antigamente…

Lembro-me ainda de um deles que trazia um trombone de varas, pilhado num cabaré de Conacri que fora destruído à granada de mão e que não me consta que fizesse parte dos objectivos político-militares a atingir… Depressa deram à língua, contando histórias incríveis de perigos e de heroísmo, ao mesmo tempo que faziam negócio com armas automáticas que haviam trazido de Conacri como souvenirs. Na altura chegaram a oferecer-nos espingardas automáticas Kalash, novinhas em folha, em Bambadinca e Bafatá, por 500 pesos...

Alpoim Galvão, no seu livro (De Conakry ao MDLP. Lisboa: Editorial Intervenção. 1976), fala em 500 baixas por parte do IN. Rádio-Conacri, por seu turno, fazendo balanço dos trágicos acontecimentos, estimava-as em duas ou três mil, entre civis e militares. Entretanto, pudemos acompanhar, em Bambadinca, através daquela emissora os interrogatórios, em francês, do tenente graduado comando João Januário Lopes e dos seus homens pela comissão de inquérito da ONU.

As informações reveladas vieram confirmar o que já sabíamos (ou suspeitávamos ) sobre o grau do nosso envolvimento nesta operação que visava, claramente, o derrube do regime de Sekou Touré e a liquidação dos principais dirigentes do PAIGC, além da libertação dos soldados portugueses detidos em Conacri, alguns há vários anos, incluindo dos camaradas da CART 1690, do nosso amigo Marques Lopes, apanhados à unha em Catacunda no ataque à aquele destacamento do subsector de Geba, em 11 de Abril de 1968.

O "estranho e inexplicável rebate de consciência" do supervisor da 1ª CCA (o então major Leal de Almeida) que inicialmente se teria recusado a participar na Op Mar Verde; o "momento de hesitação" do capitão graduado comando e herói Bacar Jaló; e, mais tarde, a deserção do "filho da puta" (sic) do tenente graduado Januário e dos seus homens, além da "forma bizarra" como actuou no terreno a equipa do alferes graduado Jamanca (as expressões entre aspas não são minhas, mas do comandante Alpoim Galvão) não deixam, entretanto, de pôr em causa a tão proclamada eficácia, eficiência, disciplina e espírito de corpo dos comandos, sendo factos reveladores desta verdade tão simples e comezinha: mesmo os profissionais da guerra, mesmo a tropa de elite, por muito máquinas que sejam, não deixam de ser tão livres, responsáveis, vulneráveis e… até mortais como os outros homens, civis ou militares.

Post scriptum > Presto aqui as minhas homenagens aos comandos africanos, que eu escoltei do Xime até Fá Mandinga, que eu vi crescer e alguns morrer, com quem convi esporadicamente e que nós abandonámos miseravelmente depois do 25 de Abril (não dei se estou a ser justo para como homens como o Carlos Fabião, o Almeida Bruno, o Folques ou o Carlos Matos Gomes, brilhantes e corajosos oficiais portugueses que os enquadraram ou comandaram)... E sobretudo àqueles que foram perseguidos, presos, torturados e fuzilados no seu país, na sua terra, sem qualquer acusação ou julgamento. Esta página do pós-guerra colonial tenho pena que tenha sido escrita pelo (ou em nome do) PAIGC... Não digo: envergonho-me, porque eu nunca pertenci ao PAIGC (nem, aliás, a um nenhum partido político)... Mas confesso que na época (Guiné, 1969/71) tinha alguma simpatia pela figuar do Amílcar Cabral.


Páginas sobre a 1ª Companhia de Comandos Africanos > Links


Comandos: tropa de elite > Companhias: Guiné> 1ª Companhia de Comandos Africana

Associação de Comandos > Historial dos comandos: efemérides

E depois do adeus... O massacre dos comandos negros do Exército Português, por Hugo Gonçalves

João Paulo Borges Coelho (2003) > Da violência colonial ordenada à ordem pós-colonial violenta. Lusotopie.2003: 173-195


Vida e morre da 1ª Companhia de Comandos Africanos (CCA):


9 de Julho de 1969 - Início da organização da companhia, em Fá Mandinga, formada exclusivamente por naturais da Guiné e ecom base em anteriores grupos de comandos já existentes nos batalhões"

6 de Fevereiro de 1970 - Início da sua instrução

26 de Abril de 1970 - Cerimónia de juramento de bandeira em Bissau, na presença do COM-CHEFE.

21 de Junho / 15 de Julho de 1970 - Treino operacional na região de Bajocunda. No final é colocada em Fá Mandinga, com a missãod e interevenção e reserva do COM-CHEFE.

30 de Outubro a 7 de Novmebro de 1970 - Operação a norte da região do Enxalé, na zona de acção do BaRT 2917 (Bambadinca, 1970/72).

21/22 de Novembro de 1970 - Toma parte na Op Mar verde, sob o comando de Alpoim Galvão (invasão da Conacri). Perde um dos seus grupos de combate (comandando pelo tenente graduado Januário).

Princípios de Dezembro de 1970 / Finais de Janeiro de 1971 - Três pelotões em refeorço temporário das guarnições fronteiriças de Gandembel e Guileje.

Finais de Julho de 1971 - Segue de Tite para Bolama, para um curto período de descanso e recuperação.

Meados de Agosto de 1971 - É colocada em Brá (Bissau), nas instalações do futuro Batalhão de Comandos. Continua a sua intensa actividade operacional, durante o resto do ano de 1971 e o ano de 1972, em conjunto com a 2ª Companhia de Comandos Africanos, entretanto formada. Penetra em santuários do IN que eram verdadeiros mitos no meu tempo, como por exemplo o Morés (20-24 de Dezembro de 1971; 7-12 de Fevereiro de 1972), o Choquemone (18-22 de Outubro de 1971), a região de Salancaur-Unal-Guileje (28 de Março a 8 de Abril de 1972)e outras.

2 de Novmebro de 1972 - É integrada no Batalhão de Comandos.

7 de Setembro de 1974 - A 1ª CCA é desactivada e extinta, bem como as restantes forças do Batalhão de Comandos.

Fonte: Comandos: tropa de elite > Companhias: Guiné> 1ª Companhia de Comandos Africana