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quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24871: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VI: Cobumba... onde é que isso fica?


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956)  > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda,  Cobumba, Cufar e rio Cumbijã.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).


Parte VI - Cobumba? Onde fica isso?

(...) O pior da nossa comissão estava para vir.  No fim de março de 1973, a nossa Companhia foi informada que íamos ser transferidos para Cobumba, nome para nós desconhecido, mas logo nos disseram que ficava na zona sul,  próximo do Cantanhez, e estava tudo dito, uma das piores zonas de guerra na Guiné. (*)

Deixámos Mansambo, e depois de cerca de uma semana em Fá Mandinga e mais três ou quatro dias em Bissau, era chegado o dia de rumarmos ao Sul na LDG que nos haveria de levar até Cobumba. 

Iniciámos a viagem ao começo da tarde do dia 7 de abril de 1973, sábado, acompanhados daquilo que era indispensável para início da nossa instalação no terreno. Ao anoitecer chegámos algures à foz do rio Cumbijã e ali tivemos de ficar o resto da noite. 

Ao mesmo tempo que a LDG parava, levantou-se uma trovoada violentíssima ao ponto de ficarmos todos assustados com a agitação do mar que até aí tinha sido de calma absoluta, depois dos marinheiros terem descido as âncoras e a trovoada acalmar, passámos uma noite com a normalidade possível.

No dia seguinte fizemos o resto da viagem rio acima acompanhados por um navio patrulha da Armada até Cobumba, sítio onde nunca tinha estado aquartelada tropa portuguesa. Chegámos ao início da tarde, estava na região muita tropa especial (paraquedistas, do BCP 12) mantendo segurança ao nosso desembarque. 

À medida que as quatro viaturas que levávamos (duas Berliet e dois Unimog 404) iam saindo da LDG, eram carregadas e seguiam fazendo uma pequena viagem de cerca de quatrocentos metros onde eram descarregadas.

As viaturas tinham sido dias antes levantadas em Bissau por quatro condutores que para esse efeito tinham saído mais cedo da Companhia. Durante a descarga foram esses condutores a manobrar as viaturas (eu, não indo a conduzir,  fui um dos que foram nas primeiras quatro carradas), à medida que descarregavam voltariam ao rio para novo carregamento.

Sendo eu o condutor que naquele momento estava mais próximo da primeira que descarregou, o capitão, comandante da Companhia, disse-me para eu seguir com ela para o cais, tendo eu perguntado ao condutor que fizera o primeiro trajecto se ele queria que eu fosse ao rio, respondendo-me que não, que ia ele. Com toda aquela confusão nem sequer pensávamos em minas, pois a estrada teria sido supostamente bem picada e já tinham passado as quatro viaturas uma vez.

O condutor Cabral, e o Varela.  das transmissões,  eram os únicos ocupantes que seguiam na viatura de regresso ao rio, percorreram cerca de trinta ou quarenta metros e a viatura acionou uma mina que,  pelo estrago feito,  talvez fosse antipessoal, mas mesmo assim ficou alguns dias inutilizada, tendo o Cabral e o Varela ficado feridos, e voltado logo para Bissau, rumo ao Hospital Militar num helicóptero que passados poucos momentos chegou ao local. 

O Varela,  não tendo nada de grave, no dia seguinte voltou para a Companhia; o Cabral não mais voltou, foi ferido com gravidade numa vista tendo sido enviado para o Hospital Militar Principal de Lisboa.
 
O desembarque do resto do pessoal e de carga continuou, mas com atenção redobrada dado as coisas começarem a correr mal logo de início; o resto da operação de desembarque decorreu sem sobressaltos de maior. 

Na primeira noite a Companhia ficou toda no mesmo sítio. Na manhã do dia seguinte quase toda a formação (criptos,  radiotelegrafistas, condutores, padeiros, mecânicos, enfermeiros, alguns elementos de transmissões, uma secção de artilharia tendo a seu cargo o morteiro de 107 milímetros, o comando da Companhia e mais dois pelotões de atiradores) foram instalar-se a cerca de quatrocentos metros. 

Os outros dois pelotões ficaram no mesmo sítio, assim como uma secção de especialistas de armas pesadas tendo como função ocupar-se de um canhão sem recuo, a precisar de reforma.

A cerca de trezentos metros do pessoal da nossa companhia estavam mais dois pelotões que, estando connosco,  pertenciam a outra companhia, ou seja, estávamos distribuídos em três sítios,  formando um triângulo separados por poucas centenas de metros, um desses três era como que o equivalente à CCS do Batalhão,  já que aí se situava o comando da Companhia, e quase toda a formação.

Depois foi instalarmo-nos o melhor possível,  o que não foi fácil, estávamos habituados a ter luz, abrigos com alguma segurança e menos guerra, ali tudo era diferente, houve que fazer valas apressadamente, montar tendas, fazer um forno para cozer o pão, tendo sempre como companhia a inseparável G3. 

No primeiro mês o PAIGC não nos incomodou… durante esse tempo foram feitos outros trabalhos, mas aquela calma… deixava antever qualquer coisa que nós não sabíamos muito bem o que seria!

Entretanto,  conforme estava previsto, vim a segunda vez de férias à Metrópole; numa zona sem vias de comunicações viárias, isolada com guerra por todos os lados, restava-nos fazer o trajecto pelo rio ou via aérea("mas pelo ar só em casos especiais"), e lá fui numa coluna de pequenos barcos de fibra,  os “sintex”, até ao aquartelamento de Cufar, onde existia uma pista de aviação (creio ser a melhor do sul da Guiné). 

No mesmo dia embarquei num avião Nordatlas até Bissau, foi a aeronave mais barulhenta das sete em que viajei durante o meu tempo de guerra que foram: o DC 6, o Dakota, a avioneta DO 27, o Boeing 727, o Nordatlas, o Helicóptero, e o Boeing 707, que nos trouxe de regresso à metrópole no final da comissão.

Passados dois dias em Bissau, embarquei em Bissalanca rumo a Lisboa onde cheguei ao cair da noite: se da primeira vez que vim de férias,  o meu pensamento estava quase sempre no dia em que teria de regressar a África, agora a confusão era ainda maior; mesmo junto da minha esposa e do meu filho muitas vezes a minha ausência era quase total, foi um tempo de tal confusão que quase nada me lembro daquilo que por essa altura terá acontecido.

Se da primeira vez conhecia bem o sítio para onde iria voltar; da segunda apenas sabia ir para uma das zonas de maior actividade operacional do IN. Ainda bem que durante as férias não tive qualquer notícia daquilo que por lá se passava, pois se tal tivesse acontecido a partida teria sido ainda mais dolorosa.

Terminadas as férias lá fui uma vez mais rumo a Bissau onde cheguei ao fim da manhã, no mesmo dia tive transporte para Cufar e de novo no barulhento Nordatlas, como os homens por mais que fossem eram sempre poucos naquela zona, à tardinha arranjaram-me boleia para Cobumba, desta vez de helicóptero com uma breve passagem por Bedanda, onde o heli que me levava se manteve no ar enquanto o helicanhão foi a terra, cheguei a Cobumba ao fim do dia.  (...) (**)

(Seleção / revisão / fixação de texto /negritos: LG)
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Notas do editor:

(*) Excerto de 21 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9635: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (3): De Mansambo para Cobumba

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24815: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte V: o sentinela, o 1º cabo mecânico Santos, que afinal confundiu gazelas com 'turras' junto ao arame farpado..


Foto nº 1 > Guiné > Zona leste > Região de Bafatá  > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O alf mil Torcato Mendonça (1944-2021) junto a um obus 10,5 ou 105 mm. Em 1972/73, ao tempo da CART 3493,  já não havia artilharia (obus 10,5) em Mansambo, apenas uma esquadra de morteiro 81, do Pel Mort 2268. (No subsector de Mansambo, além da CART 3493, jan 72/mar 73, havia um Pel Mil, 0 308,  em Candamã.)

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça  (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Foto nº 2 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento de Mansambo, construído de raiz pela CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69).  Situava-se perto da estrada   Bambadinca -Xitole, à direita (assinalada a tracejado, a amarelo). 

Dentro do perímetro do aquartelamento, situava-se o heliporto, à esquerda, assinalado a vermelho (na foto). A zona envolvente estava  completamenmte desmatada.  Havia só uma grande árvore ao fundo,  à entrada do aquartelamento, numa saída  que dava acesso à bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole, com Bambadinca (a norte) (lado esquerdo) e o Xitole (a sul) (lado direito da foto).  

Em 1960, havia dois  obuses 10,5, um de cada lado,  à esquerda e à direita. Ao fundo vê-se uma mancha,  à esquerda do trilho de entrada,  que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a horta da CART 2339. A fonte ficava à direita da foto onde se veem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo.  

Em 1973, o PAIGC deslocou parte das suas forças, da chamada Frente Xitole, para o sul, aliviando a pressão sobre o sector L1, em geral, e Mansambo, em particular, incluindo a estrada Bambadinca-Xitole (que chegou a estar interdita entre finais de 1968 e setembro de 1969). Em 5 de abril de 1973, a CART 3493 será transferida para Cobumba, na região de Tombali, passando a integrar o COP 4  (com sede em Cufar).
 
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto (e legenda): ©  Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).

A pequena história aqui contada não é virgem... Uns  anos antes, c. 1969/70, em Bambadinca,  houve um soldado básico, que estava, certamente por castigo, num dos postos de vigia à noite, e que provocou um  enorme alarido, ao começar a gritar  que estava uma manada  de  "elefantes" junto  ao arame farpado... 

Este nosso camarada de Mansambo, o 1º cabo cabo mecânico Santos,  viu, não uma manada de elefantes mas de gazelas à cata da mancarrra, semeada pelo pessoal da tabanca dos guias e picadadores (não havia população) e despejou-lhe um carregador de G3 em cima, mas com tanto azar que não acertou em nenhum bicho... Se tivesse acertado, seria bem pior: comia bife, no dia seguinte, ao almo9ço, e uma porrada ao jantar...

Uma história pícara aqui contada pelo 1.º cabo condutor auto Jerómimo (**), e que vem enriquecer o anedotário da nossa guerra...


Parte V: O sentinela, o  1.º cabo mecânico Santos, que afinal confundiu gazelas com turras junto ao arame farpado...

(...) Certa noite em Mansambo, o cabo mecânico fazia reforço num posto de vigia que ficava próximo do heliporto (vd. foto nº 2, acima). 

Quem o conhecia, o Santos, sabia bem como era o seu comportamento, sempre pouco preocupado com o que pudesse acontecer.

Em Mansambo no nosso tempo não era permitido fazer fogo quer fosse de noite ou de dia. Naquela noite tudo decorria com normalidade como era costume, até que o Santos viu entrar na primeira vedação de arame que circundava o aquartelamento uma manada de gazelas e vai disto, sem pensar na confusão que iria arranjar, despejou o carregador na direção dos pobres bichos que naquela noite pensavam ir ter uma refeição especial ao mondar a mancarra que o pessoal da Tabanca tinha semeado entre as duas vedações, mas ficaram-se só pelo susto.

Com aquele despertar toda a rapaziada supôs ser ataque junto ao arame,  nós que até nem sabíamos o que isso era (nunca aconteceu enquanto tivemos em Mansambo), foram perguntar ao Santos o que é que ele tinha visto. Ele. com aparente convicção, disse que tinha visto homens junto ao arame e por isso tinha disparado nessa direção.

Mesmo sem resposta ao fogo do Santos por parte do inimigo, a ordem foi para bater toda a zona e, a reação ao suposto inimigo, foi de tal ordem que as nossas munições de armas pesadas ficaram quase esgotadas (vd. foto nº 1).

No dia seguinte foi feita uma coluna a Bambadinca para repor o material em falta e certamente para dar mais pormenores acerca do sucedido ao Comando do Batalhão (o BART 3873). 

Só passado algum tempo, é que o Santos disse o que na verdade tinha acontecido, viu as gazelas,  disparou e tinha que arranjar maneira de sair daquela situação, e assim se safou,  inventando essa pseudoaproximação do inimigo ao arame.(...)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)
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Nota do editor:


(**) Vd. poste de 6 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10043: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (2): Gazelas em Mansambo

domingo, 29 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24804: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte IV - A lavadeira... lavada em lágrimas


Guiné > Região de Quínara >Fulacunda 1972/74 >  Lavadeiras na Fonte Velha

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné], com a devida vénia


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*). 

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro.  Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).


Parte IV - A lavadeira... lavada em lágrimas (**)

A primeira foi a Califa, uma menina ainda muito nova. A esta distância no tempo já não me lembro como foi que ela apareceu como minha lavadeira, talvez já desempenhasse esse serviço para os condutores que nós fomos substituir. Apesar da sua idade… era muito responsável. 

Passados alguns meses da nossa companhia estar naquele local, a Califa deixou Mansambo e foi casar com um homem bastante mais velho que ela. Foi mais um acontecimento que me causou algum espanto (...)  ver uma menina com tão pouca idade ir casar com um homem muito mais velho, que diziam… já ter mais algumas a quem ela se ia juntar!

Depois da partida da Califa… a minha lavadeira passou a ser outra de quem já não me recordo o nome, mas não esqueci que era alguém bela,  elegante e muito calma, sempre bem vestida mais parecia uma menina identificada com outro tempo!... 

Apesar de ainda nova já tinha um filho que trazia sempre consigo quando vinha buscar ou entregar a roupa. Pouco tempo antes da nossa saída de Mansambo para Cobumba, um dia estava eu sozinho no abrigo, como acontecia muitas vezes, quando ela lá apareceu levar-me a roupa com o seu menino ainda pequeno às costas, como era hábito das mães… andarem com os filhos. 

Sentou-se na minha cama com o semblante carregado próprio de quem estava a sentir-se perturbada e disse-me:

- António, estou grávida.

António Eduardo
Jerónimo Ferreira
(1950-2023)
Notava-se que tinha vontade de falar… não sei se seria com todas as pessoas… Estivemos 
algum tempo a conversar em que foi ela quem mais falou, entre outras coisas, disse-me que o pai do seu filho e daquele que vinha a caminho… também era tropa e naquela altura estava em Bambadinca. 

Depois de termos estado algum tempo a falar, quando abalou, as lágrimas bailavam-lhe nos olhos, o que me deixou por momentos algo perturbado. 

Das mulheres com quem tive oportunidade de falar e de ouvir durante o tempo que estive na Guiné (atendendo ao tempo que por lá andei não foram muitas… ), era aquela alguém diferente de todas as outras!...

Em Cobumba não tive lavadeira, nem ouvi falar que houvesse por lá alguém que tivesse. A roupa que eu lá trazia vestida também era pouca, apenas uns calções e nos pés uns chinelos de plástico sem peúgos. Só durante a noite quando estava de serviço, a fazer reforço, que fazia todas as noites, algumas vezes vestia o camuflado. 

A minha falta de jeito para lavar roupa, apesar de ser pouca a que tinha de lavar, ajudou a valorizar ainda mais o serviço das lavadeiras que tive em Mansambo. Espero que ainda por lá estejam… e que a vida lhe tenha corrido o melhor possível. (...)

(Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parènetses retos: LG)



2. Na altura comentei: 

António, és um homem de grande sensibilidade e bem formado. O teu poste merece ser comentado. Dás-nos conta de dois dramas com que alguns de nós lidaram, sem meios para poder intervir ou ajudar: 

(i) o casamento precoce e forçado das jovens guineenses; 

(ii) a maternidade não desejada, a ausência de planeamento familiar, a poligamia, a separação do homem e da mulher devido à guerra...

É possível que o homem da tua segunda lavadeira, que chorou à tua beira, fosse da CCAÇ 12, aquartelada em Bambadinca e depois no Xime a partir de Março de 1973...

Lembro que Mansambo no meu tempo tinha escassa população. Fui lá diversas vezes. E, muito bem, recordas que em Cobumba, no Cantanhez, não havia lavadeiras...A guerra não foi igual para todos.

Saúde e um alfabravo. Luis | 31 de maio de 2021 às 12:51 

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriortes da sér ie:


25 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24792: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte II: partida de avião para Bissau, em 24 de janeiro de 1972, deixando a mulher e um filho na maternidade 

23 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24785: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte I: A porta estreita da vida

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24797: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte III: Tem calma, és novo e o tempo há-de passar"


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadina > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Cartaz humorístico pregado numa árvore nas imediações do "campo fortificado de Mansambo", como lhe chamava a "Maria Turra": "Bem vindo, welcome, bienvenu, bienvenidos. willkommem"

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74). O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. 

Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014). Aí esreceveu ("Quem sou eu"):

(...) Nasci a quinze de maio de mil novecentos e cinquenta, até aos cinquenta e três anos tive como companheira inseparável, a pressa.  Um dia, a doença bateu-me à porta de forma violenta, foi então que reparei que por onde tinha passado não era muito o que tinha visto, do que tinha ouvido, talvez não tenha dado a atenção que devia. 

A partir daí o meu modo de encarar a vida passou a ser diferente, passei a valorizar coisas que antes não dava importância e, outras que considerava  interessantes, afinal não tinham o interesse que eu supunha. Hoje, sei o que quero,  por isso penso assim e digo aquilo que penso, talvez  por isso tenha construído este blogue, que me permite falar para todos e  para ninguém ao mesmo tempo. (...)


II. Em Mansambo, de fevereiro de 1972 a março de 1973: "tem calma, ainda és novo e o tempo há de passar" (*)

(...) Os primeiros dias   [em  Mansambo, onde cheguei em fevereiro de 1972, e onde já estava instalada a minha CART 3493]  foram de uma tristeza enorme e difícil de explicar; recordo-me de um dos primeiros serviços que fiz, foi segurança à fonte, onde íamos buscar a água com que abastecíamos o aquartelamento para uso diário, que ficava a cerca de duzentos metros do arame farpado que circundava as nossas instalações, mas para fazer esse trajecto era necessário proceder à picagem do caminho todos os dias pela manhã, tendo em vista detectar alguma mina que a coberto da noite o IN lá pudesse ter colocado.

Ao chegar junto da fonte, cinco ou seis homens ficavam por ali a fazer segurança enquanto outros dois andavam com um unimog, o famoso "burrinho",  a transportar água para o aquartelamento. 

Eu estava triste pensando em quase tudo... e não encontrava nada que me levantasse o ânimo, por momentos ocorreu-me a ideia de escrever qualquer coisa… escrevi a seguinte frase: tem calma, ainda és novo e o tempo há -de passar; frase que sempre me acompanhou, e que eu li vezes sem fim durante o tempo que estive na Guiné.

Na minha especialidade de condutor, tinha como função principal o transporte de pessoal, as viagens maiores eram as que fazíamos em coluna a Bafatá, onde íamos com regularidade uma vez por semana, normalmente buscar, entre outras coisas, duas vacas que eram consumidas pelo pessoal da Companhia , eram animais de pouco peso, e outra coisa para nós não menos importante, que era o correio, naquele tempo, a única forma de ter noticias da terra, da família e dos amigos. Eu era um dos que recebia muita correspondência. 

Recebi cartas e aerogramas escritos todos os dias em que estive na Guiné, ainda que muitos chegassem no mesmo dia; também eu, durante o tempo que lá estive escrevi todos os dias para a minha esposa, quando recebia correspondência, respondia com uma carta, os outros dias escrevia aerogramas. Para outras pessoas de família e para alguns amigos também escrevia mas só aerogramas. 

Havia também quem ao longo do tempo de permanência em África raramente recebesse correspondência, quando chegava o momento da distribuição todos se aproximavam, mas para alguns, em vez de alegria, era um momento de acrescida tristeza, pois correspondência para eles não havia.

As viagens de transporte de pessoal aconteciam também quando elementos nossos iam participar em operações fora da nossa zona, assim como fazer segurança aos que passavam na picada na zona de Mansambo, em especial às colunas de abastecimento que iam de Bambadinca ao Xitole, e regressavam ao fim do dia, enquanto não regressassem tínhamos de estar algures na picada na missão de segurança que nos era destinada.

 (...) 
Quando saíamos de Mansambo, durante cinco ou seis quilómetros na frente do pessoal que seguia a pé e das viaturas, iam três ou quatro picadores tentando descobrir alguma mina que pudesse existir na picada, o que nem sempre conseguiam, eram momentos de grande tensão em particular para os condutores, durante esse tempo de picagem, só o condutor seguia na viatura, porque tinha que ser, senão nem ele lá ia… as minas anti-carro eram demolidoras, pobre daquele que tinha o azar de conduzir o veiculo que as accionasse, principalmente se ela rebentasse do lado do motorista.

O aquartelamento de Mansambo, naquele tempo em que a nossa Companhia lá esteve, de fevereiro de 1972 a fins de março de 1973, não era considerado muito mau, atendendo ao que acontecia em quase todo o território da Guiné.

Certamente não pensam assim… o furriel Ferreira, que seguia numa viatura na picada de Candamã que accionou uma mina e ele ficou sem um pé, ou o Silva do 2.º Pelotão que estava para vir de férias dentro poucos dias, e mais outro de quem já me não lembro o nome, que ficaram cada um sem um pé ao accionarem minas anti-pessoal. 

Durante o tempo em que lá estive, só uma vez fomos flagelados à distancia, onde o IN utilizou o morteiro 82, eu e mais cinco condutores estávamos nesse momento com o carro dentro dum grande buraco, que terá sido feito a quando da construção dos abrigos pelas companhias que nos antecederam, a carregar terra para levarmos para a oficina, estávamos a fazer uma pausa e todos a beber uma cerveja, a popular bazuca que era uma cerveja grande, creio ser de seis decilitros, quando ouvimos o som de disparo de um morteiro, uma saída. 

 (...) Antes no verão de 1972 vim de férias à Metrópole. A viagem de Mansambo até Bissau foi demorada, de coluna até Bambadinca onde estive três dias à espera de transporte, até que tive boleia numa avioneta que me levou até Bissau, de todas as viagens que fiz por via aérea foi a que menos gostei, onde estive mais três dias à espera do voo TAP que me trouxe até à Metrópole, onde passei um mês de férias. Férias… não sei se será a definição correcta, pois mesmo estando cá, o pensamento estava sempre no dia do regresso, que em breve aconteceria a terras de África.

No abrigo dos condutores tínhamos um faxina, era um miúdo da tabanca, que a troco de uns pesos nos ia buscar a comida à cozinha,  lavava a loiça e varria o abrigo, a quem eu prometi levar uns sapatos quando fosse de férias; durante o tempo em que estive na Metrópole, os meus camaradas mandaram o Sherifo embora, para ele a chatice maior não era ir embora, o pior é que o Fireira, como ele me chamava, provavelmente já não lhe dava os sapatos; mas não, assim que cheguei, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos novos, coisa que ele com treze ou catorze anos de idade nunca tinha tido.

No dia seguinte, o Sherifo na companhia de mais três meninos da tabanca, com alegria e a felicidade estampada no rosto, vieram levar-me uma galinha, momento que jamais esquecerei, e certamente o Sherifo também não, dentro do possível sempre procurei respeitar os nativos como pessoas iguais a todos os demais. 

Recordo-me de certo dia um grupo de condutores ter tirado um cabrito, que era de alguém de uma tabanca por onde passaram. Fui convidado para ajudar a comer o petisco mas recusei-me a participar. Era para mim uma forma de protestar ainda que em silencio contra um acto com que eu não concordava. Passados alguns dias, o dono do animal queixou-se ao Comandante da Companhia, tendo este ordenado o pagamento do valor do animal a quantos o tinham comido.

Em Mansambo todos os militares tinham uma lavadeira, que a troco de alguns pesos, moeda da Guiné, lavavam-nos a roupa e passavam-na a ferro. A Califa era a menina que me lavava a roupa, tinha só catorze anos, mas já estava vendida a um homem com cerca de quarenta. (...) (**)

(Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos  / Parêntes retos: LG)

domingo, 22 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24783: In Memoriam (487): António Eduardo Jerónimo Ferreira, (15/05/1950 - 21/10/2023), ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493 / BART 3873 (Mansambo e Fá Mandinga, 1972/74)

IN MEMORIAM

António Eduardo Jerónimo Ferreira (1951-2023)
Ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493 / BART 3873


Mais uma notícia que nos deixa triste, esta a do falecimento do nosso camarada António Eduardo Ferreira que há muito lutava contra um cancro.

O seu filho, Paulo Jerónimo, enviou-nos ontem esta mensagem através do Formulário de Contacto do Blogger:

Boa noite sou Paulo Jerónimo, filho do vosso camarada António Eduardo Jerónimo Ferreira.
É com enorme tristeza que venho comunicar-vos que o meu Pai deixou de estar entre nós, não terminou a sua luta contra o cancro que o atacava há 20 anos.

Um grande abraço a todos.
Cumprimentos,
Paulo


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O António Eduardo Ferreira apresentou-se à nossa tertúlia no dia 15 de Março de 2012 (Vd. P9608), tem 74 entradas na nossa página, e foi um colaborador muito activo, mesmo nos períodos em que a sua doença o debilitava mais.

Dizia-nos ele na sua mensagem de apresentação:

[...]
A primeira coisa que fiz mal comecei a mexer no computador ainda que timidamente, (ainda hoje) foi escrever o que foi o meu tempo de Guiné tendo em vista deixar para memória futura. Por essa altura ainda não conhecia o vosso blogue. Tudo que me lembrei escrevi pelo que te envio esse trabalho de onde podes retirar alguns excertos se assim o entenderes. Não será muito o tempo que tens para ver todo o trabalho, verás se, e quando for possível.
Dentro de poucos dias enviarei as fotos para poder (com muito gosto) fazer parte do vosso grupo.

[...]

Tem duas séries suas, O tempo que ninguém queria e Pedaços de um tempo, além de ter outras publicações integradas nas séries "Blogpoesia" e "Blogoterapia", entre outras.

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A propósito da sua morte, diz o nosso camarada António Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 3493 e CCAÇ 12):

Boa tarde a todos os camaradas.

Mais um de nós que nos deixa.
Estive com o Ferreira em Mansambo até ir para a CCaç 12 em Janeiro de 1973. Lembro-me dele 
como um homem que se destinguia dos restantes, pela sua maturidade, apesar de sermos todos, ou quase todos da mesma idade.

Acompanhei sempre com atenção os seus escritos aqui no Blogue, destacando os relatos dos acontecimentos em Cobumba, local que não cheguei a conhecer.

Revelava uma humanidade no que escrevia, que comovia, fazendo de forma muito sentida a ligação das crianças de Mansambo e de Cobumba, que com ele conviviam, ao seu filho acabado de nascer dias antes, de se juntar à CArt 3493, já na Guiné.

Deixo um grande obrigado ao nosso camarada Ferreira, pelas recordações que com todos nós partilhou e à família apresento as minhas condolências, nesta hora de dor.

O Ferreira viverá em todos nós enquanto por cá permanecermos.

Um abraço a todos e um em particular ao filho.

António Duarte
CArt 3493 e CCaç 12


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Como diz António Ferreira no texto que reproduzimos abaixo, quando partiu para a Guiné, deixou a sua esposa com um filhote acabado de nascer, na Maternidade, por isso o seu estado de alma não seria o melhor quando lhe aconteceu este episódio:

A caminho de Mansambo com o pensamento na Nazaré

Lá longe, ouvia-se algo estranho... e eu sem saber que era normal… cada vez estava mais confuso, com o olhar fixado nas mulheres e nas crianças que estavam próximo de mim. Mas a minha mente estava muito longe dali, situação que eu tentava, mas não conseguia disfarçar.

Na véspera da minha partida para a Guiné também eu tinha deixado a minha esposa com o meu filho na metrópole, não a brincar, mas na maternidade do hospital no Sítio da Nazaré onde ele tinha nascido dois dias antes da minha ida para a guerra. A ânsia em que eu estava a ficar mergulhado, começou a tomar conta de mim e a tornar-se por demais evidente, foi então que uma das mulheres que ali estava me dirigiu umas palavras que eu não entendi, por isso nada lhe disse. Ela tinha uma oleaginosa na mão que partiu com os dentes, deu-me metade e comeu a outra metade. Mesmo sem saber o que era aceitei e comi.

Foi aquele tempo que ali estive junto daquelas mulheres e crianças, enquanto esperava transporte para Mansambo, um dos mais conturbados do meu tempo na Guiné. Ainda hoje não sei o nome daquilo que a senhora me ofereceu e que eu aceitei. Mas não mais esqueci a intenção e o apoio que aquela mulher, sem me conhecer, entendeu dar-me naquele momento tão confuso e triste que eu estava a viver.

Faço votos para que aquela Senhora e a família tenham tido e continuem a ter a felicidade possível, por companhia!... 

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Falando ainda de crianças, deixamos este texto que nos foi enviado pelo António Ferreira em 2021 e publicado no P22219:

As crianças de Mansambo e de Cobumba

Há dias, quando da passagem de mais um aniversário (já são 71) o amigo Cherno Baldé ao enviar-me os parabéns dizia que eu ainda não teria esquecido as crianças de Mansambo assim como de outros sítios por onde passei na Guiné. Se existe alguém que eu jamais esquecerei “enquanto a mente me permitir” são as crianças da Guiné daquele tempo.
Crianças de Mansambo, ao tempo da CART 2339 (1968/69)

Foto ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados

Começando pelas de Mansambo, a esta distância no tempo, basta, mentalmente olhar para lá e logo as vejo a brincar... com particular destaque para o tempo que eles passavam a jogar a bola, que era muito. Os condutores de que eu fazia parte, éramos oito no mesmo abrigo, tínhamos um menino que durante algum tempo trabalhava para nós... a quem chamávamos faxina, o primeiro foi o xerife (o nome porque era conhecido, não sei se era assim que se escrevia) o serviço que lhe estava destinado era ir à cozinha buscar a comida na hora das refeições para trazer para o abrigo... depois comia connosco e a seguir lavava a loiça. Ao fim do mês recebia algum dinheiro que todos lhe dávamos, já não me recordo qual era o valor. Passado alguns meses de lá estar vim de férias à metrópole, mas antes já lhe tinha prometido quando voltasse que lhe levava uns sapatos.

Passado o mês de férias quando regressei a Mansambo o xerife tinha sido substituído, não sei qual o motivo... o seu lugar passou a ser ocupado pelo António a quem assim que cheguei lhe pedi para ir à tabanca chamar o xerife para lhe entregar os sapatos conforme lhe tinha prometido, pedido por ele logo aceite. Assim que o xerife chegou ao nosso abrigo e lhe entreguei os sapatos novos foi grande a alegria que ele não conseguia disfarçar... e a minha não foi menor. No outro dia, logo pela manhã, o xerife apareceu lá no abrigo acompanhado por vários meninos da tabanca, todos muito alegres, e veio levar-me uma galinha. Passado algum tempo o António foi embora, (diziam que a sua partida tinha a ver com o fanado) sendo o seu lugar ocupado pelo Demba, um menino mais novo que os seus antecessores a quem prometi quando voltasse de novo à metrópole de férias, como tinha previsto, que lhe levava também uns sapatos novos. Mas as coisas alteraram-se e os sapatos para o Demba (com grande pena minha) não chegaram a ser entregues.

A nossa companhia foi transferida para Cobumba e foi já depois de lá estar que voltei de férias à Metrópole, não mais voltei a ver os meninos de Mansambo.

Em Cobumba também havia crianças, mas a distância entre eles e nós, pelo menos no início, era diferente, não estavam habituados a ter a companhia de tropa branca. Mas a alegria com que eles brincavam levava-me a pensar como era possível a viver num ambiente tão complicado como aquele que tinha lugar em Cobumba e eles sempre alegres passando muito tempo a brincar como se nada de anormal estivesse a acontecer. Certamente que os meninos da Guiné também choravam, mas durante o tempo que por lá estive nunca vi isso acontecer!... Algumas vezes, alguns atravessavam o rio Cumbijã a nado e riam-se quando sabiam que alguns de nós não sabíamos nadar. 

Já próximo do fim da permanência da nossa companhia naquele local, as minas na picada entre os três sítios em que se encontravam as nossas tropas, eram cada vez mais. Alguém decidiu que enquanto a viatura andasse em movimento (já só tínhamos uma pronta a andar, as outras três já tinham sido destruídas pelas minas) tinha que andar sempre alguém da população ao lado do condutor!... Os condutores éramos muitos, para uma só viatura, pelo que o nosso serviço de condução tinha um intervalo bastante grande. 

Só me recorda de ter de andar um dia em serviço acompanhado em que tive a companhia do José, um menino que era filho do chefe da tabanca. Foi um dia de muita conversa em que eu procurei saber como era a vida naquele local antes de nós lá chegarmos, das várias coisas que ele me falou, há uma que eu não mais esqueci, foi quando ele a rir me disse que daquilo que eles tinham mais medo antes de nós lá termos chegado, era do passarinho grande (o avião) quando andavam na bolanha. Assim que o viam deitavam-se ficando apenas com um olho fora da água enquanto ele andasse por ali.

Junto à tabamca onde se encontravam dois pelotões e quase toda a formação da nossa companhia, quando lá chegamos já eles tinham um abrigo junto a um mangueiro onde várias pessoas da tabanca, certos dias, passavam grande parte do tempo, o que nos causava alguma apreensão, talvez eles soubessem de alguma coisa que nós desconhecíamos.

A vida das crianças em Mansambo e Cobumba, sempre me causou bastante preocupação ainda que nem sempre a expressasse. Esse modo de eu as observar e sentir alguns dos problemas que elas tinham de enfrentar, talvez tivesse a ver com a situação difícil porque passei quando parti para a Guiné (a primeira vez) no dia 24 de janeiro de 1972 o meu filho tinha ficado com a mãe no hospital, onde tinha nascido há dois dias.

António Eduardo Ferreira


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Aqui fica esta pequena homenagem ao nosso camarada António Eduardo Ferreira,  um homem sensível e valente, com espírito de sofrimento e de privação, que soube vencer uma ausência forçada da família recém constituída, para cumprir uma comissão de serviço numa guerra para a qual não tinha contribuído, num território que lhe era de todo desconhecido e do qual eventualmente só tinha ouvido falar de relance. Contudo, terá visto nas famílias guineenses, que vivia entre dois fogos, o drama da sua.

Quis o destino que as suas provações não terminassem com o seu regresso da Guiné, já que a vida lhe destinou outro sofrimento, o de uma doença prolongada, que o vitimou depois de 20 anos de luta inglória.


Está finalmente a descansar este nosso guerreiro que tivemos o gosto de conhecer através da sua escrita.

A tertúlia e os editores deixam o seu mais sentido pesar ao seu filho Paulo Jerónimo, a quem agradecemos a consideração que teve ao nos comunicar o falecimento do seu pai, assim como a todos os restantes familiares e amigos.

É um lugar comum, mas uma triste realidade, cada camarada e amigo que nos deixa, vai engrossar o Batalhão celestial, onde hé-de haver um poilão para continuarmos a contar as nossas aventuras na Guiné.

C.V.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24678: In Memoriam (486): Fernando de Pinho Valente Magro (10/05/1936 - 18/09/2023), ex-Cap Mil Art do BENG 447 (Bissau, 1970/72) (Abílio Magro)

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23849: Fichas de unidades (29): BCAÇ 4616/73 (Bambadinca, 1974)

1.  O BCAÇ 4616/73 é uma daqueles unidades que podíamos pôr na série "Os nossos últimos seis meses"... ou nas "Memórias dos últimos soldados do império"...

Chegou ao CTIG já no início do ano de 1974 e regressou à metrópole oito meses depois, no início de setembro. Como  se tornou normal, nos últimos anos da guerra, o comandante da CCS era um capitão SGE (oriundo da Escola Central de Sargentos) e os comandantes das subunidades operacionais eram todos milicianos...

Lamentavelmente não tem história da unidade... Mas o livro da CECA, diz que na parte final da comissão, "adaptou a sua actividade à situação então vigente, comandando e coordenando a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC."

Se repararmos na ficha da unidade, a seguir reproduzida, a 2ª C/BCAÇ 4616/73 (sediada no Xitole) em oito dias "fechou a porta duas vezes", primeiro a do Xitole e depois a de Bambadinca, o mesmo é dizer, desativou e entregou ao PAIGC o  setor L1 (parte importantíssima do "chão fula" (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole):

(...) Em 1Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Xitole, seguiu para Bambadinca, onde substituíu a 1ª Comp/BArt 6523/73 na responsabilidade do respectivo subsector. Em 8Set74, iniciou o deslocamento dos seus efectivos para Bissau e efectuou, em 9Set74, a desactivação e entrega do aquartelamento de Bambadinca, tendo recolhido a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.(...)

Vale a pena juntar (e reflectir sobre) estes factos (*)...


Ficha de unidade > Batalhão de Caçadores n.º 4616/73


Identificação: BCaç 4616/73

Unidade Mob: RI 16 - Évora

Cmdt: TCor Inf Luís Ataíde da Silva Banazol | TCor Inf Joaquim Luís de Azevedo Alves Moreira

2.° Cmdt: Maj lnf Joaquim Luís de Azevedo Alves Moreira

OInfOp/Adj: Cap lnf Bernardino Luís de Matos Pereira Torres

Cmdts Comp:

CCS: Cap SGE Domingos Roque

1ª Comp: Cap Mil lnf Augusto Vicente Penteado

2.ª Comp: Cap Mil lnf Luís Fernando de Andrade Viegas

3.ª Comp: Cap Mil lnf João Lontra Leite Martins


Divisa: "Conduta Brava e Distinta" 
 [de acordo com a imagem do brasão, acima reproduzida, colecção Carlos Coutinho, 2009, com a devida vénia]

Partida: Embarque em 30Dez73; desembarque em 05Jan74 |  Regresso: Embarque em 12Set74 (1*  e 2*: Comp), 15Set74 (3ª Comp) e 16Set74 (Cmd e CCS)


Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 9Jan74 a 6Fev74, no CML, em Cumeré, seguiu depois, com as suas companhias, excepto a 3ª Comp, para o sector de Bambadinca, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com o BArt 3873, de 13Fev73 a 8Mar73.

Em 9Mar74, assumiu a responsabilidade do Sector LI, com a sede em Bambadinca e abrangendo os subsectores de Mansambo, Xime, Xitole e Bambadinca.

Desenvolveu a actividade operacional adequada às características do sector, com realização de várias operações, patrulhamentos, emboscadas dos reordenamentos de Nhabijões, Samba Silate e Bambadinca e de construção, manutenção e controlo dos itinerários da sua zona de acção. 

Na parte final, adaptou a sua actividade à situação então vigente, comandando e coordenando a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuada nos subsectores de Xitole, em 1Set74, de Mansambo, em 2Set74 e de Bambadinca e Xime, ambos em 9Set74.

Em 2Set74, após desactivação e entrega dos aquartelamentos de Bambadinca, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 1ª Comp, após efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CArt 3494 na região de Mansambo, sob orientação do BArt 3873, assumiu, em 9Mar74, a responsabilidade do subsector de Mansambo, tendo destacado um pelotão para Bambadincazinho, este no subsector de Bambadinca, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 22Ago74, dois pelotões seguiram para Porto Gole e destacamento de Bissá, a fim de substituirem a 1ª Comp/BCaç 4612/72 a partir de 26Ago74, os quais ficaram na dependência do BCaç 4612/74, procedendo depois à desactivação e entrega dos aquartelamentos de Bissá, em 1Set74 e de Porto Gole, em 2Set74, após o que recolheram a Bissau.

Em 2Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Mansambo, a companhia, então a dois pelotões, deslocou-se transitoriamente para Xime, recolhendo em 8Set4 a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 2ª  Comp, após efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CArt 3492 na região de Xitole, sob orientação do BArt 3873, assumiu, em 9Mar74, a responsabilidade do subsector de Xitole, com um pelotão destacado na ponte do rio Pulom, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 1Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Xitole, seguiu para Bambadinca, onde substituíu a 1ª Comp/BArt 6523/73 na responsabilidade do respectivo subsector.

Em 8Set74, iniciou o deslocamento dos seus efectivos para Bissau e efectuou, em 9Set74, a desactivação e entrega do aquartelamento de Bambadinca, tendo recolhido a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 3ª  Comp cedeu, a partir de 5Jan74, um pelotão para reforço da 2ª Comp/BCaç 4512/72, o qual se instalou em Jumbembém. 

Em 11Fev74, a subunidade seguiu para Farim, a fim de efectuar o treino operacional com a CCaç 4944/73, sob orientação do BCaç 4512/72 e seguidamente reforçar este batalhão, a fim de fazer face ao agravamento da situação na sua zona de acção.

Em 23Mar74, mantendo-se no mesmo sector do BCaç 4512/72, foi toda colocada em Jumbembém, em reforço da actividade da guarnição local, tendo destacado um pelotão para Canjambari, também em reforço da guarnição local, de 23Mar74 a 2Jun74.

Em 6Jun74, substituindo a 1ª  Comp/BCaç 4516/73, assumiu a responsabilidade do subsector de Farim.

Em 7Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Farim, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações -  Não tem História da Unidade.

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp.195/197. (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23693: Voltamos a recuperar as antigas cartas da província portuguesa da Guiné, um dos recursos mais preciosos do nosso blogue - Parte III: Do Gabu a Pirada


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento de Mansambo, construído de raiz pela CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69).  Ao fundo, da esquerda para a direita, a estrada Bambadinca-Xitole. Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

"Quanto à foto de Mansambo, a vista aérea – que é espectacular e que pessoalmente agradeço - gostava de saber de que ano é, se o Humberto tiver esses dados. A zona está totalmente nua, só com uma grande árvore ao fundo que se encontra à entrada do aquartelamento, pois vê-se a bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole (esquerda-direita. Falta ali uma árvore, a tal de referência para o IN, e que os nossos soldados chamavam a árvore dos 17 passarinhos, tal era a quantidade deles, que se situava na parte mais afastada da entrada. A mancha branca de maior dimensão seria o heliporto. Faltam os obuses, um de cada lado à esquerda e à direita. Ao lado dessa árvore ficava o depósito, que era uma palhota, de géneros e munições, que ardeu a 20 de Janeiro de 1969 (nesse dia chegaram os 2 Obuses 105 mm). Era véspera do aniversário da CART 2339. Ao fundo vê-se uma mancha à esquerda do trilho de entrada que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a nossa horta. A fonte ficava à direita da foto onde se vêem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo. Se confrontares com um mapa da zona vê-se aí uma linha de água" ( Carlos Marques dos Santos)

Foto (e legenda): Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Estamos a recuperar os "links" ou as "URL" das cartas (ou mapas) da Guiné, dos Serviços Cartográficos do Exército, que estavam alojadas desde finais de 2005 na antiga página pessoal do editor Luís Graça, cujo servidor era o da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP / NOVA). Mais concretamente estavam alojadas numa pasta institulada "Luís Graça e Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial"...

As cartas (ou mapas) da Guiné e os demais recursos dessa página estavam acessíveis a partir do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.  Com o fim da página, em 2022, passam doravante a poderem ser consultadas, de novo, "on line", no nosso blogue, mas a partir do Arquivo.pt.(https://arquivo.pt):

O Arquivo.pt (criado e mantida pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia)  permite  "a preservação da informação publicada na Web portuguesa para que o conhecimento nela contido esteja acessível às nossas gerações futuras"... e continue a estar disponível para todos (incluindo os investigadores das mais diversas áreas disciplinares, da linguística à história, da sociologia à literatura, da geografia à etnografia, da ecologia à economia...

É o caso da página pessoal do nosso editor, "Saúde e Trabalho - Luís Graça", e o blogue que ele fundou e tem ajudado a manter desde 2004, "Luís Graça & Camaradas da Guiné". Para saber mais, ver aqui: Arquivo.pt.


2. Continuamos, entretanto, a repor as nossas preciosas cartas (ou mapas) da Guiné (Escala 1/50 mil), por ordem alfabética, agora alojados no Arquivo.pt. É só carregar no link.

No final desta série continuarão a estar disponíveis na coluna estática do blogue, do lado esquerdo. Por enquanto esses links continuam quebrados, bem como todos os topónimos que até agora (ou até há alguns meses) usavam os links antigos, quando estavam alojados na página da ENSP/NOVA. Aqui vão os novos links, das cartas (de G a P):


Cartas na escala de 1/50 mil - Parte III  (G / P) 


Gabu (Nova Lamego) (1957)

Gadamael / Cacoca (1954) (Carta de Cacoca que inclui Cacoca, Sangonhã, Gadamael Porto, parte do Quitafine e do Cantanhez, rio Cacine e fronteira sudeste com a Guiné-Conacri)

Galomaro / Duas Fontes (Bangacia) (1959) (Carta de Duas Fiontes que inclui Galomaro...)

Geba / Bambadinca (1955) (Carta de Bambadinca) (inclui rio Geba Estreito, Nhabijões, Finete, Missirá, Fá Mandinga, Geba...)

Guidaje (1953) (Inclui Guidaje, e não "Guidage", e a fronteira com o Senegal)

Guileje (1956)  (inclui Guileje, Mejo, Gandembel, Balana, e fronteira com a Guiné-Conacri)

Jumbembem (1954) (Inclui Jumbembem e fronteira com o Senegal)

Jábia (1959)  (inclui  rio Corubal)

Madina do Boé (1958) (inclui Madina do Boé, rio Corubal e fronteira com a Guiné Conacri)

Mansabá / Farim (1954)
(Carta de Farim)

Mansambo / Xime (1955) (Carta do Xime) 

Mansoa (1954) (inclui Mansoa, rio Mansoa, Bissorã, Encheia, Morés...)

Nova Lamego (Gabu) (1957) (Carta de Nova Lamego, hoje Gabu)


Pelundo (1953) (Inclui Pelundo, Jolemete, rio Mansoa, rio Cacheu...)

Piche (1957) (inclui Piche, ponte Caium, rio Caium...)

Pirada (1957) (incui Pirada, Bajocunda, fronteira com o Senegal...)

Província da Guiné (1961) (Escala 1/ 200 mil)

(Continua)
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Nota do editor:

Vd. postes anteriores da série: 

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23485: (In)citações (211): Quando o ontem e o hoje pode não ter nada a ver (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 30 de Julho de 2022:


QUANDO O ONTEM E O HOJE… PODE NÃO TER NADA A VER

Por vezes, vou assistido a algumas conversas entre ex-militares que, como eu, andaram pela então província da Guiné; em que as opiniões que eles vão expressando sobre o que por lá passaram chegam a ser tão diferentes que, alguns, são levados a pensar que os outros não estão a ser muito corretos acerca daquilo que dizem; porque estão a falar de um sítio por onde também eles tinham andado e não era bem assim.

Cada um pode pensar o que quizer!... Mas é bom termos em conta que, apesar de ser um território relativamente pequeno - era povoado por várias etnias, em que algumas tinham comportamentos muito diferentes de outras, para connosco… Depois, com o evoluir da guerra as coisas foram sofrendo grandes alterações. Se no início existiam sítios que eram considerados muito maus… mais tarde, podia já não ser tanto assim… o contrário também aconteceu.

À medida que o tempo foi passando, para além da preparação mais acentuada dos guerrilheiros, com a vasta experiência que foram adquirindo, também muito do armamento por eles utilizado passou a ser diferente… melhor que o nosso. Por tudo isso nenhum de nós que por lá andamos deve de dizer que o outro não está a falar correto… As coisas, com o passar do tempo, foram sofrendo grandes alterações… Se no início da guerra havia companhias que faziam dezenas de quilómetros a pé, sem picar os caminhos ou trilhos por onde passavam, mais tarde, isso era impossível…

Nos cerca de vinte sete meses que a companhia de que fiz parte por lá andou, foram muitas as alterações com que fomos confrontados, sobretudo, depois de termos saído de Mansambo e a consequente ida para Cobumba, a que se juntou o efeito provocado pela chegada dos Strela. 

Assim, como também o que depois nos aconteceu quando nós regressamos a Bissau, onde estivemos alguns meses, em que a nossa companhia que estava prestes a fazer dois anos de comissão, passou a ser totalmente operacional… só os criptos e dois da secretaria não saíam… Os outros passaram a fazer todos os mesmos serviços, que foram vários, sempre com a G3 como companheira e a ter de ir para muitos sítios…

Quando estávamos em Mansambo, todas as semanas íamos a Bafatá buscar duas vacas “pequenas” para consumir durante a semana. Em Cobumba, com o efeito provocado pelos Strela e os estragos que eles começaram a fazer, tivemos duas semanas em que não recebemos alimentos frescos como era normal acontecer - os helis durante esse tempo não apareceram por lá, e os bens alimentares estavam a acabar. Houve um dia em que o nosso almoço teve de ser arroz cozido com um pedaço de marmelada… 

Mais grave ainda, foi quando num desses dias uma viatura nossa acionou uma mina a poucos metros do arame farpado do nosso destacamento de que resultaram alguns feridos graves, que depois estiveram durante várias horas deitados nas macas no local onde os helis costumavam descer - enquanto nós íamos esperando que eles chegassem, como era costume!… Mas eles não chegaram a aparecer! Foi necessário, à noite, irmos levá-los nos nossos sintex a Cufar, com a companhia de alguns fuzileiros que vieram do Xugué, de onde depois foram evacuados para o hospital militar de Bissau.
O estado em que ficou a viatura que acionou a mina

Isto são apenas alguns exemplos, ainda que resumidos, daquilo que nós por lá passamos, “como aconteceu a outros”. Foram muitas as mudanças que aconteceram em pouco tempo com as quais passamos a ter de conviver… Por isso, quando vejo alguns relatos escritos sobre o que por lá terá acontecido, algumas vezes, por pessoas que nem sequer lá foram… chega a dar-me que pensar…

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23375: (In)citações (210): O Vinho Nosso de Cada Dia (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR da CCS/BCAÇ 3872)

segunda-feira, 21 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23098: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (22): Lugares da Guiné

Carta Geral da Província da Guiné
© Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Em mensagem do dia 18 de Março de 2022, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71), lembra os locais da Guiné por onde peregrinou.


RECORDAÇÕES DA CART 2520

22 - LUGARES DA GUINÉ

A CART 2520 enquanto sediada no Xime exerceu uma grande actividade fora do arame farpado, tanto a nível de Companhia ou de pelotão e conjuntamente com a CCAÇ 12 e os Pelotões de Caçadores Nativos 52 e 54, originando para os operacionais um enorme trabalho e também um grande desgaste físico e psicológico. O 3.º pelotão a que pertenci, percorreu praticamente todos os cantos, trilhos e picadas da zona operacional. Por mero acaso fui tomando alguns apontamentos numa pequena pasta onde guardava a minha correspondência e que actualmente a conservo quase religiosamente.

A partir destes curiosos apontamentos, da minha memória e com recurso à carta do Xime e de outros locais, elaborei uma lista que vou partilhar com os camaradas da nossa Grande Tabanca, ou melhor, da Tabanca Grande, dos lugares da Guiné por onde andei, incluindo também os lugares da segunda fase da nossa passagem pelo Ultramar quando a nossa Companhia assentou arraiais em Quinhamel:

Bissau - Início da comissão em 30 de Maio de 1969, alguns dias. Em Junho e Julho de 1970 várias vezes e em Março de 1971
Brá - Primeiras dormidas na Guiné antes da partida para o Xime
Xime - Base da CART 2520 durante o 1.º ano, Junho de 1969 a Junho de 1970
Bambadinca - Um sem número de deslocações com a finalidade de alguns reabastecimentos, ir buscar e levar correio e outros serviços
Mansambo - Primeiras 3 semanas para o treino operacional com o 3.º pelotão
Bafatá - Várias idas com a finalidade do Vaguemestre comprar vacas para nossa alimentação
Ponte Rio Udunduma - Por inúmeras vezes como mini destacamento e de passagem para Bambadinca
Enxalé - Mais de dois meses como destacamento e para segurança da população
Finete - Patrulhamento até ao Enxalé
Mato de Cão - Patrulhamento a partir de Finete até ao Enxalé
Mato Madeira - No percurso entre Finete e Enxalé
Malandim - Zona do Enxalé, patrulhamento
Gambana - Nas proximidades do Enxalé, patrulhamento
Madina Colhido - Inúmeros patrulhamentos e montagem de emboscadas e de seguranças aos barcos que passavam no rio Geba
Ponta Varela - Em operações
Ponta do Inglês - Três passagens em Operações
Foz do Corubal - Uma passagem em Operação
Ponta Coli - Dezenas de seguranças para a passagem de colunas da nossa Companhia e de outros militares
Ponta Luís Dias - Passagem durante Operação
Mouricanhe - Em Operação
Chacali - Em patrulhamento
Chicamiel - Em Operação
Poidon - Em patrulhamentos
Háfio - Em operações
Darsalame/Baio - Em Operações
Buruntoni - Em Operações
Colicumbel - Em patrulhamentos
Lantar - Proximidades do Xime em patrulhamentos
S. Belchior - Em operações
Malafo - Patrulhamento
Bissilão - Em Operações
Gundagué Beafada -Em operações
Amedalai - Ponto de passagem obrigatório para colunas a Bambadinca
Samba Silate - Em patrulhamento, passando por Amedalai
Taibatá - Colunas de apoio à população
Demba Taco - Colunas de apoio à população
Quinhamel - Base da CART 2520, tendo divergido para Safim, João Landim e posteriormente para o Biombo
Safim - Base do 3.º pelotão - Junho, Julho e parte de Agosto de 1970
João Landim - Permanência de dois meses com uma secção
Nhacra - Breve passagem
Biombo/Ondame - Entre Setembro de 1970 e Março de 1971 como destacamento
Blom - Tabanca nas proximidades do Biombo
Blimblim - Tabanca nas proximidades do Biombo
Dorce - Tabanca nas proximidades do Biombo
Ponta Biombo - Patrulhamentos e momentos de descontração
Ilondé - De passagem
São Vicente da Mata - De passagem
Cais de Pigiguidi - Chegada a Bissau e "Adeus Guiné"

José Nascimento

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22311: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (21): Martins, o caçador de rolas