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quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23852: Notas de leitura (1529): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte IV: Os cafés de estudantes e a crise académica de 1962 em Lisboa (Luís Graça)

 


Capa do livro de José  Pardete  Ferreira - O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971. Lisboa : Prefácio, D.L. 2004. 169 p., [12] p. il. : il. ; 24 cm. (História militar. Memórias de guerra). ISBN 972-8816-27-8.

1. O ex-alf mil médico José Pardete Ferreira (1941-2021), membro da nossa Tabanca Grande,  que, infelizmente,  nos deixou há quase dois anos (em janeiro de 2021),  é o autor de "O paparratos", um livro que pode ser classificado  como um misto de narrativa histórica e de autobiografia,  em que a realidade e a ficção se misturam. Já fizemos, no passado,  três notas de leitura do livro (*),

A obra, a que o autor chama "romance", tem como subtítulo "novas crónicas da Guiné, 1969/71". Mas o arco temporal da acção   é maior, abarcando, no essencial, a década de sessenta e de setenta (até ao 25 de Abril), com dois acontecimentos marcantes de que o autor foi, ele próprio, protagonista: (i)  a crise académica de 1962; e (ii)  e a sua mobilização, em fevereiro de 1969, para o teatro de operações da Guiné, como alferes mil médico.

 Uma das personagens da narrativa é o João Pekoff (um "alter ego" do autor, José Pardete), apresentado como estudante activista da crise académica de 1962, em Lisboa, ligado à JUC - Juventude Universitária Carólica,  e depois médico no CAOP, em Teixeira Pinto  (de fevereiro a junho de 1969) e no HM 241, em Bissau (até ao princípio de 1971).

Lisboeta, nascido em 1941, filho único, morava, com os pais, no Bairro das Colónias, frequentando, desde cedo, o Café Colonial (que ainda hoje existe, na Av Almirante Reis, aos Anjos; inaugurado em 1934, foi tertúlia e café de estudantes, transformado entretanto em pastelaria, em 1978, hoje Café Pastelaria Colonial).

João Peckoff / José Pardete passou pela Mocidade Portuguesa e a JEC (Juventude Estudantil Católica), enquanto estudante de liceu, e depois pela Acção Católica, a JUC e a Pax Romana - Movimento Internacional de Estudantes Católicos, enquanto estudante de medicina.  Praticou desporto de alta competição na CDUL e no Sporting (onde foi, nomeadamente, guarda-redes nas equipas de andebol)...Além de cirurgião, especializou-se mais tarde em medicina desportiva...

Participou também na organização da assembleia mundial do Movimento Internacional de Estudantes Católicos — Pax Romana, que se realizou em Lisboa, 1960 (vd. cap 16º, "A Pax Romana", pp. 111), ao lado de outros católicos portugueses, como Antero Silva Guerra / António Sousa Franco (?),   Márcia Luisa Piriquita / Maria de Lurdes Pintassilgo, Telma Santana Guera / Teresa Santa Clara Gomes... e outros/as (que não conseguimos identificar). 

2. Interessa-nos dar a conhecer, melhor, aos nossos leitores, essa época da Lisboa dos anos 60, e nomeadamente da crise académica de 1962, vista pelos olhos de João Pekoff, sobre o qual, aliás, o autor diz que  "não tinha grande formação política" (p. 47), o que não o impede ser um dos  "atores" que pisaram o "campus universitário" desse ano histórico (e sobretudo  sua testemunha privilegiada e, ao mesmo tempo,  um crítico da liderança estudantil em Lisboa)... 

Delicioso, como já o dissemos,  é o retrato que ele faz faz de alguns dos históricos dirigentes  do movimento estudantil dessa época: não é difícil descobrir por detrás do pseudónimo Ernesto Figueira, estudante de medicina, a  figura do futuro psiquiatra Eurico Figueiredo (n. 1939, em Vila Real), ou do João Santos, estudante de direito, o futuro presidente da República, Jorge Sampaio. Ambos frequentavam, tal como o João Pekoff, o Café Roma, junto à Praça de Londres, na Av de Roma (pp.  23 e ss). 

Também achámos, na altura, interessante "a ronda dos cafés" (pp. 81 e ss.), uma reconstituição do roteiro histórico dos cafés de estudantes e tertúlias da Lisboa dos anos 50, 60 e 70 (até ao 25 de Abril). Tínhamos prometido falar deste roteiro. Surge agora a oportunidade.(**)

Mal ou bem, os cafés das Avenidas Novas (Roma, Vá-Vá, Monte Carlo...) estão associados, nos anos 50/60/70, à boémia estudantil, animação cultural e sobretudo uma certa atmosfera de "contestação e conspiração" dos jovens que frequentavam a universidade naquele tempo em Lisboa (nomeadamente a Universidade Clássica de Lisboa: letras, direito, filosofia, história...;  mas  também a Universidade Técnica de Lisboa (UTL), frequentada igualmente pelos alunos da Academia Militar que cursavam as engenharias, sem esquecer, na 7ª colina, no Quelhas, o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), hoje ISEG. (Desde os anos 30 que estava integrado na UTL.) 

Ainda não havia em 1962, o ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa (criado em 1972, no Campo Grande e depois com instalações modernas (que eu fui inaugurar) na Av das Forças Armadas. A sua criação está associada ao nome de outro "católico progressista", o Adérito Sedas Nunes.

Já existia, isso, sim, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), designação criada em 1962, para o antigo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU), herdeiro da Escola Superior Colonial (fundada em 1906)... Mas em 1962 era rapaziada ordeira, "situacionista", que tinha emprego garantido no Utramar português, como admistradores coloniais, antropólogos, assistentes sociais, etc. O que não impediu que a contestação estudantil de 1969 lá chegasse, e forte, sobretudo entre a malta de economia... E, claro, também ainda não havia a Universidade Nova de Lisboa, criada no fim do marcelismo, em 11 de agosto de 1973...

Fiquemo-nos pela "cidade universitária", circunscrita ao Campo Grande/Saldanha, ou seja, afinal, à Universidade Clássica de Lisboa.... Dizia-se que o Salazar, provinciano e coimbrão, sempre quis, em Lisboa, os diferentes estabelecimentos de ensino superior universitário, "higienicamente" separados no espaço... Ele lá tinha as suas razões.

O maior destaque é dado ao Café Roma... Mas havia outros cafés frequentados por estudantes, escritores, intelectuais, jornalistas, homens e mulheres do cinema e do teatro,  e demais figuras da vida cultural da cidade no início dos anos 60:

(...) Continuando a ronda alargada dos cafés lisboetas que acolhiam estudantes, é de lembrar o Café Minabela, na Amadora,  não esquecer o Café Monte Carlo, onde pontuava o imponente Pena Peres  [não descortinamos quem fosse o personagem por detrás deste pseudónimo]. , nem a Leitaria próxima, na Duque d'Ávila, que tinha sofrido uma carga a cavalo da GNR (...). 

Não se olvida , do mesmo modo, o Monumental, nem o D. Rodrigo, na Avenida D. Rodrigo da Cunha, aquela via larga que liga a Avenida Gago Coutinho às traseiras da Igreja de São João de Brito, em Alvalade. No D. Rodrigo um castiço trauteava, quase em permanência, as canções de Jacques Brel, muito em voga naquele período, tais como "Le Diable"  e "Les Flamandes" (...).

Provavelmente o mais famoso e icónicos dos cafés desta época é o Monte Carlo, a par do Vá-Vá, duas referências obrigatórias dos roteiros históricos dos cafés lisboetas da época ... Mas, ainda de acordo com o autor que temos vindo a citar:

(...) A Pastelaria Biarritz e a Casa dos Caracóis (...) mantêm-se de pedra e cal. Já o mesmo não se pode dizer do celebérrimo Monte Carlo que deu lugar a uma loja de uma cadeia espanhola de venda de vestuário  [Zara].  Tão pouco o Monumental cumpriu as promessas de antanho. (...). (pág,  81).

(...) É um risco calculado não se citar  com deferência o Vává, o Londres, a Mexicana, e tantos, tantos, tantos mais que, embora omissos, bem por sombras estão esquecidos. Neles, não eram só os estudantes que faziam pulsar a cidade e que viviam 'nessa Lisboa que eu amo', como diz a marcha (...).

Como em Lisboa não havia a típica república da Academia de Coimbra, cada estudante  vvivia com uma família, que por vezes coincidia com a sua, em quarto alugado, ou em algunas das poucas casas próprias para estudantes (...) (pág. 82).

Pardete Ferreira descreve muito bem o que era "o Café, naquete tempo",  enquanto local de sociabilidade (pág. 85):

(...) Era um local onde nasciam e eram alimentadas amizades que perduaravam ao longo de uma vida inteira. Tal como no mato.  Aquela instituição substituia, com naturalidade, aquela grande árvore do largo da igreja lá da aldeia, em torno da qual as gentes se sentavam para cavaquear, cultivando assim a camaradagem e a amizade. (...) Hoje,  o Café está ultrapassado e a maioria das pessoas já não o usa como tertúlia, nem os estidantes o utilizam  como local de estudo institucionalizado".

Estamos de resto a falar de uma época, os primeiros anos da década de 60, em que a população universitária lisboeta seria ainda da ordem dos  escassos milhares (c. 12 mil - 15 mil), oriundos da classe média e classe média alta, com apenas uma irrisória representação (da ordem dos 6-7%) das classes trabalhadoras, segundo um estudo do sociólogo Sedas Nunes.

E conclui o autor de "O Paparratos":

(...) Poderá parecer que se tenta dizer que o Portugal de hoje nasceu à volta da mesa de um Café, algures em Lisboa, provavelmente no Roma, saboreando um bica que ia arrefecendo, fumando um cigarro (...). Pensa-se não ser questionável que muitos dos estudantes de 1962 e seguintes, tornados oficiais milicianos, nados e criados tal e qual como o Paparratos, em qualquer aldeia anónima deste país ou em urbe mais ampla, também tenham sido o fermento de um modo de pensar (...) que, uma vez consolidado, permitiu que a sociedade portuguesa acolhesse com tanto entusiasmo os acontecimentos de 1974 (...) (pág. 84.)


3. O Pardete Ferreira dedica o capítulo II, de "O Paparratos",  ao café Roma (pp. 23-28), que descreve nestes termos:

(...) Em Lisboa, junto à Praça de Londres, na Avenida de Roma,  havia um café com cerca de duzentos metros quadrados que dava pelo nome de Roma.  Era um lugar preferencialmente frequentado por estudantes que, a troco de uma simples bica e de um copo de água, nele faziam biblioteca, com livros, sebentas,  cadernos, papéis e outros objectos  ligados à vida escolar pejando as mesas e cadeiras" (pág. 23).

Dois dos conhecidos líderes da crise estudantil de 1962 frequentavam o Roma: o José Santos (pseudónimo de Jorge Sampaio), já licenciado  em direito (em 1961), e Ernesto Figueira (pseudónimo de Eurico Figueiredo, n. 1939, em Vila Real), estudante de medicina, futuro pisquiatra.

Jorge Sampaio (1939-2021) foi presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 1959-1960 e em 1960-1961, e secretário-geral da Reunião Inter-Associações Académicas (RIA), em 1961-1962.

João Santos /Jorge Sampaio é descrito, em "O Paparratos", nestes termos, de fino recorte literário:

(...) Numa das mesas do fundo, no lado essquerdo de quem entrava,  não muito longe do balcão, tinha foral um rapaz de vinte e tal anos, discretamente sobre o ruivo, testa alta, olhos não muito exressivos, por vezes parecendo duros, metálicos, de tom azulado, transportando óculos grossos. Possuía tez clara, era algo magro e tinha uma estatura ligeiramente superior à média. Vestia preferencialmente fato  azul, não muito escuro, sendo a gravata quase sempre a condizer com este último, repousando sobre leito de camisa branca. Interrompia frequentemente o estudo  e passava grande parte das suas tardes a ler Camus ou o último Libération que comprara nas bancas" (...) (pág. 23).

(...) Filho de boas famílias, educado no estrangeiro (...), o José Santos tinha sobretudo a estrutura de um ideólogo. Paradoxalmente, não tinha ainda ideais muito claras e, mesmo desprovido de um carisma marcado de líder, impunha-se pela cordialidade de um discurso escorreito e pela conversa erudita, apoiada em citações de Camus, não descurando Nietzsche, Kant, Engels, Marx e Lenine, à mistura de Baudelaire e Jean-Jacques Rousseau ou, ocasionalmente Voltaire" (pág. 25).

Além disso, "confessava-se agnóstico. Com frequência, era o centro de atenções, juntando à sua volta uma meia dúzia de interlocutores, a  quem por vezes se via obrigado a pagar a despesa (...). Cursava direito e não  escondia uma certa ambição" (...).

João Santos e Ernesto Figueira encontravam-se com frequência no Café Roma, mesmo pejado de informadores da "Pevide" (PIDE), a começar pelos empregados de mesa.  Enquanto o primeiro era "uma  espécie de ideólogo" , o segundo era o "comandante operacional do movimento estudantil" (pág. 35).  

Também se encontravam na Cantina Universitária. Os estudantes também frequentavam o bar do Estádio Universitário onde "por mais cinco ou dez tostões", se comia "francamente melhor" do que na Cantina. "O bitoque, o pão, a imperial e a bica, por doze escudos e cinquenta centavos  [equivalente, a preços de hoje, a 6 euros].

A crise académica de 1962, em Lisboa, é desencadeada quando, a 24 de março,  o Governo de Salazar proíbe, estupidamente,  as comemorações tradicionais do Dia do Estudante, tendo a  Polícia de Choque invadido a Cidade Universitária, e carregado sobre centenas de jovens, rapazes e raparigas.  

Passados dois dias, os estudantes de  todas as escolas superiores de Lisboa declaram "luto académico" (na prática, greve geral às aulas, usando uma forma de luta que era proibida pelo regime). Mês e meio depois, a 9 de maio, há uma escalada do conflito, com a adoção, num plenário de estudantes,  de uma nova forma de protesto: uma greve de fome coletiva, na cantina. 

A medida, arriscada,  for proposta por Eurico Figueiredo e seguida por centenas de estudantes como António Correia de Campos, que eu vou encontrar mais tarde como colega na Escola Nacional de Saúde Pública.

A 11 de maio, a cantina foi cercada pela polícia de choque e os estudantes foram detidos (cerca de 800, segundo a versão da PSP ou cerca de 1200 segundo as associações de estudantes). Terá sido a maior operação policial realizada pelo Estado Novo.

Seguiu-se uma enorme onda de indignação, tendo todos os estudantes detidos sido libertados  libertados a 14 de maioEntretanto, um mês depois, em 14 de junho, um plenário realizado no Instituto Superior Técnico ditou o levantamento da greve.

Um despacho ministerial em final de junho  veio punir 21 grevistas com uma pena de expulsão, durante 30 meses, de todas as escolas de Lisboa.

Mas "poucos foram efetivamente convocados para a primeira incorporação militar que se seguiu ao Luto Académico" (...) "A grande maioria voltou progreessivamente  à sua vida habitual" (...) (pág. 39). Afinal, ninguém queria perder o ano, e isso explica que o fim do "Luto Académico" (eufemismo para não se dizer greve...) foi recebido com alívio... Mas a verddae é que nada ficou como dantes...

Jorge Sampaio, Eurico Figueiredo, Medeiros Ferreira e outros dirigentes estiveram detidos.

A crise académica de 1962 foi um acontecimento de grande significado político e sociológico. Hoje, passados 60 anos, alguns dos seus protagonistas recordam a resposta do movimento estudantil à repressão salazarista.  Caso de António Correia de Campos, antigo ministro da saúde, e conhecido dirigente socialista, em entrevista à Lusa, em 22/3/2022, e citado pelo "Observador":  (..) " enumera três 'dirigentes de grande envergadura', cujo papel foi determinante na gestão da crise: Jorge Sampaio, no centro ideológico — sociais democratas, mais socialistas, Eurico Figueiredo, então militante do PCP, e Vítor Wengorovius, o católico progressista." 

Mais houve mais dirigentes estudantis, a merecer destaque: Alberto Torres da Silva, Afonso de Barros, Manuel Lucena e José Medeiros Ferreira (que viria a suceder a Jorge Sampaio como secretário-geral da Reunião Inter-Associações,  a RIA). Poucos mas corajosos foram os professores que se solidariezra,m com os estudantes, como Lindley Cintra ou Pereira de Moura, por exemplo.

Octávio Quintela, em "Algumas considerações a propósito da crise académica de 1962" (Ler História, 62, 2012, pp. 187/192) escreveu:

(...) A greve de 1962, na sequência da proibição do Dia do Estudante, foi o resultado da luta de milhares de jovens católicos, sem partido, mas muito também da ação dos comunistas. Em cada Faculdade de Lisboa é possível destacar três ou quatro ativistas de um vasto conjunto:

(i) Em Direito, Jorge Sampaio, Vítor Wengorvius, Correia de Campos, J. Felismino, Macaísta Malheiros, Pedro Ramos de Almeida. 

(ii) Em Letras, Medeiros Ferreira, Mário S. M. Cardia, João Paulo Monteiro, Alberto Teixeira Ribeiro, Maria Assunção Franco, Maria João Gerardo e eu próprio;

(iii) Em Ciências, António Ribeiro e Ernani Pinto Basto;

(iv) Em Medicina, Isabel do Carmo, Rui de Oliveira, Eurico Figueiredo, Alexandre Ribeiro, Dante Marques;

(v) No Técnico, João Cravinho, Crisóstomo Teixeira e José Bernardino." (...)

Curiosamente não sabemos em que ponto ficou a situação militar destes jovens. Relatuvamente a Jorge Samapio, sabemos que ficou isento do serviço militar, pro razões de saúde.

Alguns terão ido parar á Guiné. É o caso de José Augusto Rocha (1938-2018), que foi alf mil, CCAÇ 557, (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65): director da Associação Académica de Coimbra, em 1962, foi expulso de todas as Escolas Nacionais, por dois anos, na sequência da crise académica de 62, esteve preso no Forte de Caxias; liberto sem culpa formada, ao fim de 4 meses, acabando por ser chamado para a tropa e mobilizado para o CTIG. (Só terminaria a licenciatura em direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois de ter regressado do TO da Guiné, em novembro de 1965.)

Um outro caso, mais conhecido dos leitores do nosso blogue, é o do açoriano José Medeiros Ferreira (1942-2014) (tem 7 referências): depois de se destacar na crise estudantil de 1962, foi chamado em 1967 a cunprir o serviço militar; mobilizado para a Guiné, não comparaceu ao embarque da sua companhia, a CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato)/ BCAÇ 2851 (Mansabá e Galomaro) (1968/70), no T/T/ Uíge, em 24 de julho de 1968.

È provavelmente o mais conhecido dos desertores da guerra colonial: viveu na Suiça, onde se licenciou em História, pela Universidade de Genebra (1972). Depois do 25 de abril, foi eleito deputado à Assembleia Constituinte (1975), pelo Partido Socialista, e exerceu o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional (1976–1978), chefido por Mário Soares. Foi professor universitário (Faculdade de Ciências Sociais, Universidade NOVA de Lisboa).



Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé e da esquerda para a direita, o Raul Albino, o Francisco Silva e o Medeiros Ferreira, aspirantes milicianos.  [Os dois primeiros são membros da nossa Tabanca Grande, e o Raul, infelizmente já falecido.]

O João Bonifácio, ex-furriel mil SAM, CCAÇ 2402 (Mansabá e Olossato, 1968/70) e que vive no Canadá, evocou aqui no poste P1592, o exemplo do Medeiros Ferreira que, como é publicamente sabido, não compareceu ao embarque, para a Guiné . Ele é, das nossas figuras públicas, talvez o mais conhecido dos desertores da guerra colonial.

Na foto acima, o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Mário Soares (I Governo Constitucional, 1976/78), historiador e professor universitário (FSCH/NOVA), já falecido, José Medeiros Ferreira (Ponta Delgada, 1942 - Lisboa, 2014), aparece assinalado com um círculo a vermelho.  

Foto (e legenda) : © Raul Albino (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

__________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

15 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22008: Notas de leitura (1346): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte III: Rui Angel, aliás, Pedro Rodriguez Peralta, capitão do exército cubano, o mais famoso prisioneiro da guerra colonial... Aqui tratado com humor desconcertante (e humanidade) (Luís Graça)

23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21939: Notas de leitura (1343): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte II: os "mentideros' de Bissau (Biafra, 5ª Rep) e ainda e sempre a retirada de Madina do Boé (Luís Graça)

 
(**) Último poste da série > 5 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23848: Notas de leitura (1528): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21622: In Memoriam (376): Raul Albino (1945-2020): recordando as peripécias da formação e partida da CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851, com menos duas baixas de vulto, à chegada a Bissau




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > Da esquerda para a direita, o primeiro é o Raul Albino, o segundo é o Francisco [Henriques da] Silva e a seguir o Medeiros Ferreira. Só falta nesta fotografia de grupo o Beja Santos. Também aqui falta o Comandante da Companhia, Capitão Vargas Cardoso.  O Medeiros Ferreira iria desertar antes do embarque para o CTIG; o Beja Santos iria, em rendição individual, comandar o Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70).

Foto (e legenda): © Raul Albino (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Em memória de um camarada e amigo, um histórico da nossa Tabanca Grande,  que nos deixa, precocemente, o Raul Albino (1945-2020) (*)...

Para avivar e honrar  a sua memória, não podíamos deixar de voltar a reproduzir aqui este excerto da História da CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851, história essa publicada por ele,  no nosso blogue, pelo menos em dezoito postes,  entre 2006 e 2010 (**). 

Em papel, ele organizou e publicou dois volumes com a história dos "Lynces de Có", o segundo dos quais,  em 2008, com a participação especial de Vargas Cardoso (ex-comandante da companhia) e do João Bonifácio, que emigrou para o Canadá (ex-fur mil SAM). E ainda com a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro (ex-1º cabo, o talentoso fotógrafo da companhia). 

Desse segundo volume, com excelente execução gráfica, possuímos uma cópia, que o Raul nos oferecera em tempos.  No prefácio, o antigo comandante, cor inf ref Vargas Cardoso,  fez um grande elogio ao Raul Albino justamente pela sua capacidade de  manter vivo, até então, o espírito da CCAÇ 2402, os "Lynces de Có". Nesse II volume estão documentados os 10 primeiros convívios anuais do pessoal, entre 1982 e 2007.
 

História da CCAÇ 2402 > Uma cruz pesada para o alf mil at inf MA Raul Albino, logo no início da comissão, com duas baixas de vulto, as de Beja Santos e Medeiros Ferreira

por Raul Albino (2006)


Partida para a Guiné


A Companhia de Caçadores 2402 do Batalhão de Caçadores 2851 formou-se no Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora.

Embarcou no paquete Uíge a 24 de Julho de 1968, com destino à Guiné. O BCAÇ 2851 (Mansabá e Galomaro, 1968/70]  foi acompanhado na viagem pelo BCAÇ 2852 [, Bambadinca, 1968/70].

Achei imensa graça a esta poesia popular, sentida, do soldado António Maria Veríssimo, militar da nossa companhia, retirada do seu livro de poesia Diversos.


Uíge! Volta para a terra,
Muda de rota, de direcção,
Não nos leves para a guerra.

Por favor! Pára p’ra pensar,
Não corras tanto,
Navega mais devagar.

Somos crianças, que vais deixar
Na guerra do Ultramar.
Porque não queres a rota mudar ?

Uíge! Não sigas p’rá guerra,
Muda de direcção! Muda de rota!
Volta p’rá nossa terra.


A M Veríssimo


[Formação da Companhia]

Mas voltemos um pouco atrás, mais propriamente à altura em que a companhia se formava na Amadora, comandada pelo então Capitão Vargas Cardoso.

Estive inicialmente incluído na formação, em Évora, de uma companhia independente com destino a Timor. A minha felicidade era imensa, como podem calcular. O quartel de preparação da companhia era o RI 16, aquartelamento que na altura mais parecia um museu militar em decadência. Não possuía instalações suficientes, pelo que os oficiais eram convidados a procurar alojamento no exterior. A alimentação também era no exterior, salvo erro, numa unidade de artilharia, que não recordo o nome.

Do que me recordo bem – além da simpatia para connosco das raparigas que estudavam em Évora – era do parque de obstáculos para o treino dos militares:

(i) A Ponte interrompida estava tão interrompida pela podridão das madeiras, que foi considerada vedada ao trânsito;

(ii) A Vala estava seca, o que não seria de estranhar nos tempos actuais com as temperaturas elevadíssimas que temos, mas naquela época só se tinha alguma rotura e como os engenheiros tinham ido para a guerra, as valas tinham virado alfobres, com alguma terra no fundo e ervas a crescer;

(iii) As Paliçadas estavam decadentes, com a madeira apodrecida, não aconselhando a sua utilização sem um seguro contra todos os riscos;

(iv) O Pórtico dava graça de tão baixo que era, parecendo ter-se enterrado no chão com o tempo, mas mantendo-se gloriosamente de pé, com as cordas puídas pendentes;

(v) Lá nos entretínhamos a saltar o Muro e mais algumas brincadeiras. Mesmo o muro, devido à idade avançada, a altura mais alta (1ª), parecia a intermédia (2ª) e a intermédia, devido ao desgaste, estava quase alinhada com a baixa (3ª). Um paraíso portanto. E como eu gostava de lá estar …

Mas foi sol de pouca dura. Ao fim de cerca de três semanas de exercícios, chega uma ordem de dissolução da companhia e redistribuição dos militares. Para mim saiu-me na rifa a rendição individual de um aspirante de uma companhia em preparação na Amadora que iria seguir para a Guiné, a CCAÇ 2402.

Qual pára-quedista, fui cair no meio de um barril de pólvora, que outro nome não se pode dar à composição do quadro de oficiais da companhia em formação. Inicialmente o quadro de oficiais era constituído pelos membros abaixo indicados e eu vi-os, na altura, da seguinte forma:

(i) Capitão Vargas Cardoso

Militar de carreira, de perfil autoritário, muito organizado, com tendência para controlar tudo e todos. Gostava de ser considerado como um pai para todos os seus militares;

(ii) Aspirante Francisco Silva

Formação académica no sector das Letras, politizado tanto quanto a vida académica o permitia, parecia ser um militar apostado em cumprir a sua comissão sem hostilizar ninguém. Para melhor o identificar, ele foi, há poucos anos atrás, Embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, além de outros cargos diplomáticos;

(iii) Aspirante Medeiros Ferreira

Formação académica no sector das Letras, altamente politizado, parecia querer levar a comissão até ao fim, mas, se assim era, depressa compreendeu que essa pretensão não era fácil de concretizar. Creio que todos se recordam dele, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal;

(iv) Aspirante Beja Santos

Também oriundo do sector das Letras, politizado, este elemento dispensa apresentação, pois todos o conhecem, pelo menos, como um dos nossos tertulianos mais versáteis na arte de bem escrever, como o Tigre de Missirá, ou pela sua cruzada em defesa do consumidor;

(v) Aspirante Raul Albino

Resto eu, com formação Contabilística e não politizado. Esta minha formação permitiu-me ser inicialmente seleccionado para o CSM [, Curso de Sargentos Milicianos], a especialidade de Contabilidade e Pagadoria, o que me tornou no mais feliz dos militares ao cimo da terra. 

Mais uma vez a sorte me foi madrasta, pois acabei – não sei como – por ser reclassificado para o COM [, Curso de Oficiais Milicianos], nas especialidades de Atirador Especial e Minas e Armadilhas. Será que viram em mim a capacidade de disparar números e armadilhar escritas?

Viria a crescer posteriormente com a Informática, ao longo de 30 anos na IBM, na especialização de grandes e médios sistemas. Os micro sistemas têm sido para mim um hóbi de velho, que tem a virtude de me manter afectiva e minimamente ligado aos tempos do pioneirismo informático da minha juventude.

– Mas – dirão vocês – onde está o barril de pólvora?

Pois, o barril consistia no clima explosivo que se tinha criado no relacionamento entre o Capitão e os seus Aspirantes.

Quando eu chego ao grupo, vejo o Capitão preocupado com a circunstância de levar para a Guiné a dupla Medeiros Ferreira/Beja Santos, sobre os quais não conseguia ter o controlo pretendido e com a perspectiva do relacionamento vir a degradar-se ainda mais com o passar do tempo.

Quanto ao Francisco Silva, não o vi preocupado em sua relação, talvez pensando que ele seria mais fácil de controlar. Algum tempo após a minha chegada, confidencia-me ele (por estas palavras ou semelhantes):

- Sabes? Creio que temos letrados a mais na companhia! – ao que eu lhe retorqui:

- Bem, para compensar, agora tem-me a mim que não sou de Letras, sou de Números!

Depressa me apercebi ao longo desta conversa, por sinal bastante infeliz, que não era mais que uma tentativa de aliciamento da minha pessoa para a sua causa. Tentativa semelhante ter-me-á feito o Medeiros Ferreira. Tentativas inúteis, porque eu era um indivíduo convictamente independente, avesso a alinhamentos e não politizado. Além disto era ingénuo, porque julgava que me podia manter neutral, com o equilíbrio existente a manter-se ao longo da comissão.

Ainda hoje uma dúvida me afecta a alma. Terá a minha resistência a alinhamentos, – comunicada ao Medeiros Ferreira – influenciado de algum modo o desenrolar dos acontecimentos que se seguiram no seio do grupo?

Duas a três semanas antes da partida da companhia, eu era enviado com um sargento, em avião militar, para a Guiné, com a missão de preparar a chegada da companhia em termos de material e equipamento. O que se terá passado durante esse período de tempo, escapou-me, na altura, ao meu conhecimento pessoal, razão pelo qual não o abordo aqui (...).

A minha surpresa não teve descrição, ao constatar que a companhia chegava à Guiné com duas baixas no quadro de Oficiais: o Medeiros Ferreira (**) e o Beja Santos. 

O capitão tinha ganho a primeira batalha (pessoal), mesmo antes de chegar ao teatro de guerra. Senti a minha cruz começar a ficar mais pesada...

Raul Albino

[Revisão e fixação de texto para efeitos de edição neste blogue:  LG]
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Notas do editor:



(**) Vd. postes de:


19 de setembro de  2010 Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) José Medeiros Ferreira (Ponta Delgada, 1942 - Lisboa, 2014) destacou-se na crise estudantil de 1962, foi desertor da guerra colonial (1968), vuiveu na Suiça, onde se licenciou em História, pela Universidade de Genebra (1972). Depois do 25 de abril,   foi eleito deputado à Assembleia Constituinte (1975), pelo Partido Socialista, e exerceu o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional (1976–1978), chefido por Mário Soares. Foi professor universitário (Faculdade de Ciências Sociais, Universidade NOVA de Lisboa).

sábado, 25 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) com data de 24 de Abril de 2020:


Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal

A condição de reformado fez-me cliente assíduo (ou rato) de arquivos e bibliotecas, e, graças ao longo tempo em que me enfronhei no “Portugaliae Monumenta Historica” (5 grossos volumes), cheguei à conclusão de que D. Afonso Henriques foi o primeiro “capitão de Abril” da nossa História, ao ter escolhido esse mês para organizar e comandar a revolta do nascimento de Portugal.

Começou por se tornar soldado, ao auto-armar-se cavaleiro, “como os reis”, tomando em sua mão a espada e ungindo o seu bico com sangue do corte no seu pescoço e não com sangue do corte dos seus testículos, como era próprio dos dependentes; a culminar dois anos de reuniões conspirativas e como líder, no dia 5 (seria no dia 25?) de Abril de 1127, trocou a malta de Coimbra pela malta do Norte, “furtou” os castelos do Neiva e de Faria, “para fazer guerra à mãe” e fundar a nossa Nacionalidade.

Nuno Tristão
A Guiné que nos é tão cara, mátria de um lugar de memórias, que a História já regista no blogue LG&C, foi descoberta por Nuno Tristão, em meados de Abril de 1446, mas África a sul do Sahara já não era virgem de portugueses: parte da sua malta já havia andado a “inventar” o mulato pelas suas praias e ele pagou com a vida a sua ida para o mato nessa então Guinela.

No descobrimento do Brasil e Novo Mundo (a América), por Pedro Álvares Cabral, em finais de Abril de 1550, dois grumetes da sua malta navegante aproveitaram a ida à missa campal de Acção de Graças para desertar para o mato – são os primeiros “cara” da “invenção” do mestiço.

O rei de Portugal por uma semana, D. Pedro IV, em Abril de 1826, explicitou e outorgou a Carta Constituição da Monarquia Portuguesa, a nossa primeira Constituição abrilista e a nossa segunda Constituição vintista.

D. Maria II, a brasileira nossa rainha, em Abril de 1838, jurou a nossa segunda Constituição abrilista e 3.ª Constituição da Monarquia Portuguesa.

A redacção da 1.ª Constituição Política da República, a nossa 3.ª Constituição abrilista e a 4.ª de Portugal, foi iniciada em Abril de 1911.

A “Operação Georgette" do exército alemão, desencadeada em Abril de 1918, derrotou na Flandres francesa o Corpo Expedicionário Português, sob a dependência do comando inglês, - a Batalha de La Lys. Em 22 dias de combates, os soldados portugueses sofreram quase tantas baixas como as sofridas nos 13 anos da Guerra do Ultramar do nosso tempo.

(Foi na 1.ª Grande Guerra. Se Portugal não tivesse entrado, o seu Ultramar seria perdido para a Alemanha ou Inglaterra, mas a nossa geração teria sido poupada à sua guerra, desencadeada em 1961). A Constituição Política da República Portuguesa, explicitada pelo Estado Novo, que nos fará conhecer a geografia da Guiné e andar durante dois anos aos tiros e a bombardear as suas matas e bolanhas, entrou em vigor em 11 de Abril de 1933, sendo a nossa 4.ª Constituição abrilista.


Adiante, adiante, a dar lugar a memórias do nosso tempo.

O guineense Amílcar Cabral, jovem eng.º agrónomo, benfiquista ferrenho e putativo génio inspirador e o motor da liquidação do Império português, em carta de Abril de 1950 à sua namorada, a colega flaviense Maria Helena, opinava essa Constituição como “dos mais belos documentos da igualdade dos homens (…) com práticas diametralmente opostas”.

Salazar esconjurou o golpe palaciano de 11 de Abril de 1961, a abrilada da sua demissão, da autoria do seu ministro da Defesa, General Botelho Moniz, não obstante apoiado pelo seu ex-PR General Craveiro Lopes e inspirado pela embaixada dos Estados Unidos; outra oportunidade que nos teria livrado de dar com os costados na Guerra da Guiné.

O nosso conhecido navio Niassa zarpa de Lisboa, em 21 de Abril desse ano, carregando o primeiro contingente de tropas – a decisão de Salazar, de “rapidamente e em força para Angola”, que assumira o ministério da Defesa.

A 4.ª Comissão Especial entrou e andou clandestinamente no sul da Guiné, entre 1 e 8 de Abril de 1972, chegou a Cubacaré e conseguiu dependurar a bandeira da ONU no galho duma árvore.

José Medeiros Ferreira
Em Aveiro, realizou-se nos princípios de Abril de 1973 o 3.º Congresso da Oposição Democrática, com o beneplácito da lei e a presença de alguns oficiais da Marinha e do Exército, putativos “capitães de Abril”, a primeira reunião pública em que foi publicamente advogado o início das conversações, pelo fim das guerras do Ultramar. A mudança de regime à mão armada não foi abordada e a tese do socialista Medeiros Ferreira (lida pela sua mulher, pela sua situação de desertor) de Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, foi ruidosamente contestada pelas correntes de opinião revolucionárias, marxista e maoísta.

Na esteira desse congresso, em 14 de Abril desse ano, um grupo de ex-oficiais milicianos, evocando que “não seriam a geração da traição”, anunciou a organização do I Congresso dos Combatentes, a realizar em princípios de Junho, livre de antagonismos e de facções, a sua comissão executiva central era formada por três oficiais deficientes da Guerra do Ultramar e o seu Presidente da Mesa será o General Reformado António Augusto dos Santos, a pedido do ministro da Defesa.
A reunião da malta do QP, no Agrupamento de Transmissões da Guiné, resultou na contestação de 51 oficiais à motivação e ao conteúdo do Congresso dos Combatentes, o oficial guineense Marcelino da Mata e o oficial cabo-verdiano Rebordão de Brito, condecorados com a “Torre Espada”, foram os subscritores do telegrama de repúdio, o General Spínola proibiu a representação da Guiné e o Ministro da Defesa proibiu aos militares do QP da sua representação. Pouco depois e cavalgando a onda das reacções corporativas da classe dos Capitães aos Decretos-Lei n.º 353 e 373/73, “do Curso de Promoção a Capitães Milicianos”, os então Majores Ramalho Eanes e Carlos Fabião, prós e o Capitão Vasco Lourenço, fogoso anti-spinolista, recolheram centenas de assinaturas de contestação e de requerimentos de demissão de Capitães do QP.
A comissão executiva lisboeta do Congresso dos Combatentes correspondeu à turbulência criada pelos prós e contras ou pela direita e a esquerda com a demissão, o Dr. José Vieira de Carvalho, ex-alferes miliciano combatente, presidente da sua comissão no Norte e Presidente da Câmara Municipal da Maia agarrou a sua organização e dinamização, a dar nas vistas com os “rateres” do escape e com o amarelo-torrado do seu Renault 5 – a novidade automobilística na altura – mas demitiu-se, ao chegar a hora.

Gen António de Spínola
O General Spínola reuniu em Bissau cerca de 400 oficiais do mato, em 16 de Abril de 1973, para lhes dar directivas e lhes anunciar o “fim da guerra” da Guiné, convicto da situação de fraqueza do PAIGC, confiante no êxito dos três Majores na negociação da rendição premiada dos seus bi-grupos no Chão Manjaco e optimista quanto ao efeito dominó dessa rendição nos combatentes das regiões Leste e Sul.
O Capitão Vasco Lourenço, comandante da quadrícula de Cuntima, criticou essa sua táctica e estratégica com tal veemência, que ele o tomou de ponta.
De facto, o PAIGC aproveitou-se do contexto da trégua para essas reuniões no Chão Manjaco para reabastecer os seus combatentes na região Norte, e, em 20 de Abril, correspondeu ao dia D dessa manobra com o assassinato desses três Majores negociadores e dos seus quatro acompanhantes.

Duas semanas depois da reunião de Bissau, o General Spínola aterrou na tabanca de Cuntima, em visita de inspecção ao comando do Capitão Vasco Lourenço e à sua CCaç 2549, pegou-lhe por tudo e por nada, ameaçou-o com a transferência para Jolmete, a fazer a aprendizagem de comando com o seu capitão miliciano e mandou distribuir uma circular pelas unidades, a divulgar o seu relatório acerca da inaptidão do Comandante da Companhia de Cuntima.

A companhia a nomadizar em Jolmete era comandada pelo transmontano António Carlos Almendra, alferes miliciano graduado em capitão, ora Coronel na reforma, merecedor de 15 louvores e de 10 condecorações, então camarada do camarada e tabanqueiro Manuel Resende. Diz-se que durante os 18 meses do exercício desse comando, ele fora sempre abonado do soldo de alferes e que a diferença para o soldo capitão terá saído do próprio bolso do General Spínola.

Mas o General Spínola e o Capitão Vasco Lourenço não se ficaram por aqui.

O I Congresso dos Combatentes, mais ou menos nacionalista, decorrerá de 1 a 3 de Junho de 1973, no auge das violentas batalhas dos 3 G´s – Guidaje, Guileje e Gadamael -, travadas pelas reservas de infantaria e pela parafernália da artilharia de última geração do PAIGC, planeadas e comandadas por oficiais do exército regular cubano, que nos custaram 63 mortos e 269 feridos militares, 15 mortes e 18 feridos civis e 6 aviões abatidos – 4 DO e T6 de pistão e 2 Fiat G 21 de propulsão.

O Tenente-Coronel, Comandante do Agrupamento de Transmissões da Guiné e anfitrião da reunião anti-Congresso dos Combatentes irá hospedar-se no Palácio da Praça do Império, e sentar-se na cadeira que fora do General Bettencourt Rodrigues, alçado pelo “golpe de Bissau”, em 26 de Abril de 1974, e o COPCON lisboeta catrafilará o Dr. Vieira de Carvalho no Forte de Caxias, durante 9 meses, sob ameaças de fuzilamento, acusado do delito de organizador desse Congresso e como fundador e dirigente do Partido do Progresso.

O I Congresso dos Combates funcionou de embrião ao MFA, Movimento das Forças Armadas, acontecera o advento da revolta do 25 de Abril e o Capitão Vasco Lourenço como o seu profeta.

(Continua)
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Nota o editor

Último poste da série de 23 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20893: 16 anos a blogar (3): o obus de Bambadinca (foto do Frederico Amorim, autor da página "Mundo do Fred", 26/4/1997)

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20838: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (2)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Trata-se de uma revisitação, no meu livro A Viagem do Tangomau, editado pelo Círculo de Leitores em 2012, falo da minha experiência na terra da bagacina, a terrível experiência de ter sido gerente de messe e a indignar desde o primeiro dia os senhores oficiais dando-lhes a comida mais barata, andava por ali o espetro de um anterior gerente de messe que pagava às prestações centenas de contos de prejuízo, felizmente que o Comandante do Batalhão, ele próprio amesendado com a família, me pôs rapidamente na rua.
Tive, nessas recordações do livro, circunstância para falar da descoberta da cidade e de quase toda a ilha, das amizades firmadas, sobretudo com o José Medeiros Ferreira, o casal que me recebeu e onde passava os fins de semana, a fabulosa festa de Natal, expediente encontrado para receber carinhosamente os instruendos marienses, as condições atmosféricas não tinham permitido que fossem passar o Natal à sua ilha, fez-se festa da rija nos Arrifes, com consoada organizada por muitas boas vontades.
O que aqui se conta tem laivos de revisitação, obedece a dois propósitos, homenagear uma amiga recentemente falecida, Cremilde Tapia e saborear uma porção de fotografias recentemente descobertas. Foram tempos que ficaram gravados no meu coração, guardo-lhes devoção e saudade.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (2)

Mário Beja Santos

Adaptei-me facilmente à cidade de Ponta Delgada, uma escala perfeitamente humana, ganhei apreço ao basalto e às tonalidades cinza, como se fosse o espetro da lava, as belíssimas calçadas, empedrados perfeitos, passeios muitas vezes estreitos, mas na época o trânsito era reduzido. Regressávamos da instrução, e depois da higiene doméstica, cada um partia para o seu destino, só os continentais é que tinham que tratar de si, os oficiais micaelenses tinham as suas casas. Aluguei quarto na Rua de Lisboa, n.º 31, e era comensal junto do município, um café com porta giratória Arte Deco, o Nacional. Comensal significava que tinha direito a sopa, um prato de peixe ou carne, uma peça de fruta da região (eu pelava-me pelo ananás), havia por vezes uma entrada de queijo fresco com pimenta da terra. As contas bem controladas, um aspirante auferia cerca de 1100 escudos, havia que pagar o quarto, com tratamento de roupas, e as despesas de comensal. Não dava para uma vida estouvada. O Teatro Micaelense oferecia regularmente cinema e concertos com um ou dois solistas, regra-geral artistas em fase de arranque oriundos dos EUA e Canadá. Com bom tempo, ia para o Largo de São Francisco e lia até à hora de jantar. Com mau tempo, ia para o Café Gil onde à noite aparecia o José Medeiros Ferreira, tínhamos estado juntos na recruta e especialidade em Mafra, partiremos de Ponta Delgada para a Amadora, foi nos Açores que firmámos uma gratíssima amizade.

Largo do Município com a estátua de São Miguel Arcanjo, Ponta Delgada

Portas da cidade, Ponta Delgada

Esquina do Largo 2 de Março com vista do Palácio da Conceição, Ponta Delgada

José Medeiros Ferreira

A Avenida Marginal era muitíssimo mais reduzida do que é hoje, agora está totalmente rasgada pela nascente. Os primeiros passeios eram de pura exploração, contemplar a Matriz, manuelina de branca, barroca de negridão basáltica. Barroco é o que não falta em Ponta Delgada. Os antigos conventos do Campo de S. Francisco, o edifício do Museu Carlos Machado (antigo Convento de Santo André), a fachada jesuíta da Igreja do Colégio, ao tempo indisponível ao público, mas só a fachada dava para se ficar um bom tempo a saborear aquela composição paradoxalmente austera e voluptuosa. O século XIX deixou marcas indeléveis na arquitetura, basta pensar no Palácio de Santana.

Teatro Micaelense, Ponta Delgada

Largo de São Francisco, Ponta Delgada

O capelão dos Arrifes era o Padre Couto Tavares, que vivia no seminário. Intrigou-se por eu não ter ali nem família nem amigos, fez questão de me apresentar a um casal que habitava numa moradia na Rua Segunda de Santa Clara, n.º 2, ele, de nome Marino Teves Lemos, ela, Maria, a quem passarei a chamar a “mãe do oceano”. Impuseram que eu ali me fosse amesendar aos sábados e domingos, acedi inicialmente, até porque o Marino se ocupava de uma correspondência colossal com uma obra qualquer relacionada com cursos de cristandade, pôs-me o gira-discos à disposição, um cadeirão confortável, lia e ouvia música. É num desses sábados ou domingos que irrompe pela sala um vozeirão, uma mulher alta com um fato roxo, ia conhecer Maria Cremilde Morgado Tapia, será a madrinha da minha filha Glória, em sua casa, na Rua da Alegria 6A, bem perto da casa de Maria e Marino, elas passarão as férias de Verão, inesquecíveis.

Em casa de Maria e Marino Teves Lemos, na companhia da Maria Cremilde Tapia e José Braga Chaves

Dei duas recrutas no BII N.º18, a primeira com mancebos fundamentalmente de Santa Maria (mas havia gente da Graciosa e do Faial, pasme-se), começou em outubro e findou em cima do Natal, um dos mais belos natais da minha vida, voltarei a esse evento; a segunda, era exclusivamente composta por micaelenses. Ora um dos meus instruendos de Santa Maria, José Braga Chaves, de Vila do Porto, chamou-me rapidamente a atenção porque tinha o indicador da mão direita imobilizado, ou quase, fazia movimentos muito lentos, ele referiu-me ter tido um acidente em pequeno, ficara assim. Não me conformei. Pedi uma entrevista a uma das sumidades da terra, o Dr. Furtado Lima, se o podia operar, era inconcebível um homem ir para a guerra com tal limitação. Propôs-se fazer operação, coisa de somenos importância, havia que lancetar e corrigir, talvez um nervo ou um tendão, para o caso pouco importa, pediu-me uma importância, respondi-lhe que lhe pagaria todos os meses em prestações, aceitou. O Zé fez a convalescença em casa da Maria e do Marino, nessa altura também ali se aboletava uma professora do Liceu Antero de Quental, Isabel Bracourt.

Imagine-se a comoção que senti quando dei por este pequeno conjunto de fotografias dos três e os dois em casa dos nossos generosos anfitriões. O Zé foi para Moçambique, trocámos correspondência. Veio e ficou a viver em São Miguel, trabalhando na meteorologia do aeroporto, casou com a Fátima, já falecida. A vida separou-nos temporariamente, a ternura é intemporal. Perdi o rasto à Isabel Bracourt. A Maria e o Marino já partiram deste mundo, não me ocorre nenhum adjetivo satisfatório que expresse a minha gratidão pelo bem que me (e nos) fizeram. Quando regressava a Ponta Delgada ia visitar a neta, então a trabalhar na biblioteca da universidade. Um dos filhos do casal, Álvaro Teves Lemos, estava na Guiné na altura em que eu dava ali recrutas. Não descansámos enquanto não chegámos à fala, aqueles pais, o Álvaro compreendeu imediatamente, tinham tido um papel tão construtivo naqueles meses micaelenses que era impossível que ele não quisesse saber as histórias de todos aqueles tempos. Cremilde Tapia fazia questão de me ir mostrando os belos rincões da ilha. O primeiro passeio teve como itinerário S. Roque, a Praia do Pópulo, a Lagoa, a Serra da Água de Pau, e chegados aos Remédios fui confrontado com um testemunho único da natureza, a Lagoa do Fogo e depois o Pico da Barrosa, daqui tem-se uma vista simultânea das costas Norte e Sul, avista-se até à Ribeira Grande. Foi um passeio de estalo. A sedução pela ilha assentara raízes.

(continua)
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Nota do editor

Primeiro poste de 3 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20806: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)

sábado, 22 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16628: Recortes de imprensa (83): Guerra colonial: mais de 200 mil refratários, mais de 8 mil desertores... e faltosos, não se sabe..., segundo estudo em curso conduzido pelos historiadores Miguel Cardina e Susana Martins (Lusa / DN - Diário de Notícias / Expresso, de ontem


Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé e da esquerda para a direita, o Raul Albino, o Francisco Silva e o Medeiros Ferreira, aspirantes milicianos.  [Os dois primeiros são membros da nossa Tabanca Grande.]

O João Bonifácio, ex-furriel mil SAM, CCAÇ 2402 (, Mansabá e Olossato, 1968/70) e que vive no Canadá, evocou aqui no poste P1592, o exemplo do Medeiros Ferreira que, como é publicamente sabido, não compareceu ao embarque, para a Guiné . Ele é, das nossas figuras públicas, talvez o mais conhecido dos desertores da guerra colonial.

Na foto acima, o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Mário Soares (I Governo Constitucional, 1976/78), historiador e professor universitário (FSCH/NOVA), já falecido, José Medeiros Ferreira (Ponta Delgada, 1942 - Lisboa, 2014), aparece assinalado com um círculo a vermelho. Foi também um dos principais dirigentes estudantis durante a crise académica de 1962.

Foto: © Raul Albino (2006). Todos os direitos reservados.



Cartaz do Colóquio O (as)salto da memória", 27 de outubro de 2016,  FSCH / NOVA, Lisboa



1. Reprodução de excerto, com a devida vénia,  de notícia da Lusa, publicada no DN - Diário de Notícias, de ontem,  "Mais de oito mil soldados desertaram da Guerra Colonial"


(...) O número de militares do Exército Português que desertaram entre 1961 e 1973 ultrapassou os oito mil, segundo uma investigação dos historiadores Miguel Cardina e Susana Martins que vai ser apresentada num colóquio sobre deserção e exílio.

"Este número, baseado em fontes militares, é um número que peca por defeito e refere-se ao período entre 1961 e 1973. É bastante acima de oito mil e é um número importante porque, até agora, não tínhamos dados sobre o pessoal já incorporado", disse à Lusa Miguel Cardina, um dos autores da análise histórica sobre o fenómeno da deserção da Guerra Colonial.

Miguel Cardina antecipou à Lusa algumas das conclusões do estudo que será apresentado na próxima quinta-feira na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas [da Universidade NOVA de Lisboa], em Lisboa.

"Tínhamos algumas referências a números mas eram parcelares e faziam eco de um certo tipo de deserções. O que nós vamos mostrar é que a deserção é um fenómeno mais complexo do que aquilo que se considerava", explicou.

Os historiadores do Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra,  vão apresentar os dados finais do estudo no colóquio "O (as)salto da memória: histórias, narrativas e silenciamentos da deserção e do exílio", que se realiza na quinta-feira, no qual será também apresentada documentação inédita sobre desertores da Guerra Colonial.

De acordo com os investigadores, o número definitivo do novo estudo sobre militares que desertaram da Guerra Colonial "pode pecar por defeito" porque ainda não é possível contabilizar os dados referentes a todos os territórios e o estudo tem como base apenas fontes do Exército.

O Código de Justiça Militar definia como desertor aquele que não comparecia na instalação militar a que pertencia num prazo limite de oito dias.

Segundo Miguel Cardina, para compreender o fenómeno da recusa de ir à guerra, além dos militares que desertaram, é preciso também considerar os refratários - jovens que faziam a inspeção mas que fugiam antes da incorporação - e os faltosos, que nem sequer faziam a inspeção militar.

"Temos dados que indicam que entre 1967 e 1969 cerca de dois por cento dos jovens que são chamados à inspeção foram refratários. Este número é certamente superior ao número dos desertores. Os faltosos são aqueles que nem sequer se apresentam à inspeção. Dados de 1985 do Estado-Maior do Exército indicam que cerca de 200 mil terão abandonado o país. Na década de 1970, cerca de vinte por cento dos jovens que deveriam fazer a inspeção já não se encontravam no país", indicou o historiador do CES.

Para Miguel Cardina, o "processo de afastamento e fuga" da estrutura militar deve ser estudado com profundidade e, por isso, o estudo começa pelos desertores - porque não existiam números conhecidos até ao momento - mas frisou que é preciso considerar as outras categorias: os refratários e os faltosos.

"Temos de colocar estas três categorias na mesma equação, sabendo que elas são diferentes e têm uma ligação com o fenómeno da guerra, também ela diferente. É natural que, no quadro dos faltosos, a guerra possa estar presente mas não tem o mesmo peso que tem nos refratários e também nos desertores", explicou.

Segundo o historiador, o "fenómeno dos faltosos" cruza-se com o fenómeno da emigração, sendo que uma boa parte destes jovens não estavam a "fugir da guerra" mas também da falta de perspetivas de futuro, ou seja, "a guerra podia ser" uma das motivações para o ato de emigrar.

A primeira conclusão do estudo indica, sobretudo, que a Guerra Colonial tem ainda aspetos de natureza historiográfica que é preciso aprofundar e torna evidente que a temática do exílio, da deserção e da recusa da guerra precisa de ser estudada. (...)

Sobre os militares que desertaram, Miguel Cardina indicou que "todas as histórias de fuga são individuais" e que, por isso, devem ser tidos em conta os portugueses que vão para a África e que desertam das colónias, refugiando-se em Argel ou na Europa, assim como os africanos incorporados nas forças portuguesas.

Cardina frisou que, nos anos finais do conflito colonial, há um fenómeno de africanização das tropas, "porque havia pouca gente e, por isso, havia necessidade de soldados para a guerra", verificando-se que muitos africanos incorporados na tropa portuguesa constituem, em muitos casos, um fluxo específico de deserção.

O colóquio é organizado pela Associação dos Exilados Portugueses (AEP61-74) [, tem página no Facebook, aqui], Centro de Documentação 25 de Abril, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) e Instituto de História Contemporânea.

Vão estar presentes, além de Miguel Cardina e Susana Martins, os historiadores Rui Bebiano, do Centro de Documentação 25 de Abril, Victor Pereira, da Universidade de Pau, em França, e os historiadores Irene Pimentel, Sónia Ferreira, Sónia Vespeira de Almeida e Cristina Santinho.

O presidente da Associação de Exilados Políticos Portugueses, Fernando Cardoso, disse à Lusa que a questão dos desertores da Guerra Colonial (1961-1974) deve ser "analisada com profundidade" porque ainda divide a sociedade portuguesa. (...)


2. Recorte do Expresso, com data de ontem > Centro de Documentação 25 Abril divulga material sobre desertores da Guerra Colonial



(...) O Centro de Documentação 25 de Abril está a preparar documentação inédita sobre desertores da Guerra Colonial para divulgar durante o colóquio sobre a deserção, na próxima quinta-feira, em Lisboa.

“Basicamente, são documentos, muitos deles pessoais e de organizações que se destinavam a apoiar politicamente e pessoalmente os desertores, e que não são conhecidos. Muitas destas organizações resultaram de circunstâncias que já passaram e que só existiram enquanto foram necessárias”, disse à Lusa Rui Bebiano, historiador e diretor do Centro de Documentação 25 de Abril.

O historiador é um dos participantes no colóquio “O (as)salto da memória: história, narrativas e silenciamentos da deserção e do exílio”, que vai decorrer na próxima quinta-feira na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em Lisboa.

A divulgação inicial de material respeitante à deserção da Guerra Colonial (1961-1975) - através do site do Centro de Documentação 25 de Abril - está integrada nos trabalhos do colóquio e organiza documentos pessoais e de material de países estrangeiros que apoiavam os movimentos de libertação nas antigas colónias portuguesas, assim como os militares que decidiram desertar.

“Nós temos o espólio de organizações de apoio aos desertores na Suécia, na Holanda e em França e temos materiais que nos foram cedidos por exilados e desertores, e é isso que vamos apresentar nesta exposição virtual”, acrescentou Rui Bebiano.

Além da apresentação do material de arquivo, o diretor do Centro de Documentação 25 de Abril vai também fazer uma comunicação que levanta a interrogação sobre se os desertores da Guerra Colonial foram heróis ou traidores.

“Pretendo refletir sobre esta divisão entre aquelas pessoas que consideram os desertores como heróis e aqueles que vêm os desertores como traidores. Há aqui duas vertentes: há pessoas que pensam que o desertor abandonou o teatro de guerra por medo, porque não queria morrer ou ficar ferido. Essas pessoas continuam a pensar da mesma maneira, ainda hoje”, referiu Rui Bebiano, sublinhando que a sociedade portuguesa ignora os motivos da deserção assim como a realidade vivida pelos exilados e desertores antes de 1974.

“É preciso desfazer a ideia de que o desertor ia para uma bela vida no estrangeiro porque, na verdade, foi uma vida de dificuldades e de privações”, afirmou o historiador.

“A animosidade em relação aos desertores – que perdura nos dias de hoje - deve-se à ausência de memória. Não se conhecem as razões que levaram as pessoas a desertar e desconhece-se como foi a vida que essas pessoas levaram a partir do momento em que escolheram não combater, e isso é muito importante. É por isso que este colóquio faz todo o sentido”, disse Rui Bebiano, considerando que se trata de um assunto “esquecido” pela sociedade portuguesa. (**)

“O importante é a compreensão, quer em relação àqueles que decidiram desertar como também em relação a todos os que quiseram combater”, concluiu. (...) (***)


(Excerto reproduzido com a devida vénia...)
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(...) [João Bonifácio:] Pessoalmente, acho que cada um de nós tem o direito a demonstrar o seu ponto de vista, mesmo que negativo. Depois do 25 de Abril, penso que todos os que foram obrigados pelo antigo regime de Salazar e Marcelo Caetano, a refugiar-se em certos países da Europa, puderam todos, ou quase todos, regressar a Portugal e restabelecer as suas vidas junto aos seus familiares.

Por isso, penso que este tema, por muito complicado que seja, deverá ser discutido abertamente por todos os que sintam ter as suas ideias quanto aos chamados desertores. Hoje, e depois de ler neste blogue que o Amigo Luís em tão boa hora iniciou, ter lido das dificuldades de tantos militares, que por pouco não foram apanhados à mão e até fugiram para o mato, para não falar do abandono total por parte dos chefes da guerra em abandonar estes nossos irmãos, até já fiz a pergunta se eu não deveria ter feito o mesmo. (...)


(...) [Paul Raposo:] Quem fugiu, foi por medo, conveniência, comodismo, etc. Uma coisa é certa, por política é que não foi. Esta de, à ultima da hora, vir dizer que se era antifacista, não cola. Se havia assim tantos, então no tempo da outra senhora onde andavam? Andavam a mamar à custa do regime e, para se branquearem, viraram resistentes para aranjarem novos tachos. Cambada de oportunistas.
Atenção, não me compete criticar ninguém, mas galos e perús não são todos uns. Bem me custou o embarque, fugir era mais fácil. (...)


(...) J. L. Vacas de Carvalho:] Uma parte da minha consciência diz que não devemos fazer juízos de valor sobre as causas que levaram um português a desertar. pode ter sido por razões familiares, razões de consciência ou por outras razões que não me compete a mim julgar ou criticar. Outra parte de mim diz-me que eles simplesmente fugiram, tiveram medo, acobardaram-se. Ponto final. Admiti-los no nosso blogue é uma traição a quem lá esteve e que por quem lá morreu. No entanto o nosso Presidente no seu mais alto critério assim o decidirá.(...)

(**)  "Desertores" é um dos temas fraturantes do nosso blogue, que é um blogue de combatentes, dos que cumpriram o dever como portugueses, independentemente das reservas ou objeções (políticas, ideológicas, religiosas, morais, etc.) que podia, ter ou não em relação àquela guerra.

Temos, mesmo assim, cerca de meia centenas de referências com o marcador "desertores"... Em prosa,. em verso: vd. por exemplo poste de 2 de outubro de  2014 > Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1975: Álbum das Glórias (19): Eu e o Zé Manel [Medeiros Ferreira], duas baixas da CCAÇ 2402 (Beja Santos)

Amadora > Regimento de Infantaria nº 1 > 1968 > Pessoal da CCAÇ 2402, em formação. Esta unidade irá embarcar para a Guiné no Uíge, em finais de Julho, integrada no BCAÇ 2851 (, Mansabá, Olossato, 1968/70). AS duas primerias baixas são dois oficiais milicianos, hoje conhecidos do país: Mário Beja Santos e José Manuel Medeiros Ferreira. Estão juntos, na foto, assinalados com um rectânguloa a amarelo (1).

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Beja Santos:

Afinal, sempre existia uma fotografia em que apareço ao lado do Medeiros Ferreira! (C/C ao Raul Albino, para que conste da história... da CCAÇ 2402).

Fomos sempre muito amigos, o Zé Manel ( sempre o tratei assim) ajudou-me imenso no auto de averiguações em que se procurava incriminar-me como agente subversivo ou "moralmente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar Português".

Já perdoei tudo ao desgraçado autor (moral) destas calúnias, que propalou ou mandar propalar estas calúnias...

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts sobre a história da CCAÇ 2402:

15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

6 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1343: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (2): O primeiro ataque ao quartel de Có, os primeiros revezes do IN

12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1516: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (3): Combatentes, trolhas e formigas bagabaga

13 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1658: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (4): Uma emboscada em Catora e um Lobo Mau pouco predador

28 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1790: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (5): Protecção a uma coluna logística Bula/Có

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

Guiné > CCAÇ 2402 (Có / Mansambá, 1968/70) > Emblema da unidade




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > "De pé e da esquerda para a direita, o primeiro sou eu, o segundo é o Francisco Silva e a seguir o Medeiros Ferreira. Só falta nesta fotografia de grupo o Beja Santos, que, por qualquer razão, andava desenfiado. Também aqui falta o comandante da companhia, Capitão Vargas Cardoso" (RA).




Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé, da esquerda para a direita: Aspirantes Francisco Silva e Raul Albino, e Capitão Vargas Cardoso.


Lisboa > Paquete Uíge > A CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 partiu para a Guiné a 24 de Julho de 1968, com as restantes companhias do seu batalhão, e ainda na companhia do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).

Texto e fotos: © Raul Albino (2006)


Damos início à publicação das memórias de campanha do ex-alf mil da CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 (, Mansabá, Olossato, 1968/70), que embarcou no Uíge, em finais de Julho, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).

Partida para a Guiné

A Companhia de Caçadores 2402 do Batalhão de Caçadores 2851, formou-se no Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora.

Embarcou no paquete Uíge a 24 de Julho de 1968, com destino à Guiné. O BCAÇ 2851 foi acompanhado na viagem pelo BCAÇ 2852.

Achei imensa graça a esta poesia popular, sentida, do soldado António Maria Veríssimo, militar da nossa companhia, retirada do seu livro de poesia Diversos.


Uíge! Volta para a terra,
Muda de rota, de direcção,
Não nos leves para a guerra.

Por favor! Pára p’ra pensar,
Não corras tanto,
Navega mais devagar.

Somos crianças, que vais deixar
Na guerra do Ultramar.
Porque não queres a rota mudar ?

Uíge! Não sigas p’rá guerra,
Muda de direcção! Muda de rota!
Volta p’rá nossa terra
.

A M Veríssimo


Mas voltemos um pouco atrás, mais propriamente à altura em que a companhia se formava na Amadora, comandada pelo então Capitão Vargas Cardoso.

Estive inicialmente incluído na formação, em Évora, de uma companhia independente com destino a Timor. A minha felicidade era imensa, como podem calcular. O quartel de preparação da companhia era o R. I. 16, aquartelamento que na altura mais parecia um museu militar em decadência. Não possuía instalações suficientes, pelo que os oficiais eram convidados a procurar alojamento no exterior. A alimentação também era no exterior, salvo erro, numa unidade de artilharia, que não recordo o nome.

Do que me recordo bem – além da simpatia para connosco das raparigas que estudavam em Évora – era do parque de obstáculos para o treino dos militares:

(i) A Ponte interrompida estava tão interrompida pela podridão das madeiras, que foi considerada vedada ao trânsito;

(ii) A Vala estava seca, o que não seria de estranhar nos tempos actuais com as temperaturas elevadíssimas que temos, mas naquela época só se tinha alguma rotura e como os engenheiros tinham ido para a guerra, as valas tinham virado alfobres, com alguma terra no fundo e ervas a crescer;

(iii) As Paliçadas estavam decadentes, com a madeira apodrecida, não aconselhando a sua utilização sem um seguro contra todos os riscos;

(iv) O Pórtico dava graça de tão baixo que era, parecendo ter-se enterrado no chão com o tempo, mas mantendo-se gloriosamente de pé, com as cordas puídas pendentes;

(v) Lá nos entretínhamos a saltar o Muro e mais algumas brincadeiras. Mesmo o muro, devido à idade avançada, a altura mais alta (1ª), parecia a intermédia (2ª) e a intermédia, devido ao desgaste, estava quase alinhada com a baixa (3ª). Um paraíso portanto. E como eu gostava de lá estar …

Mas foi sol de pouca dura. Ao fim de cerca de três semanas de exercícios, chega uma ordem de dissolução da companhia e redistribuição dos militares. Para mim saiu-me na rifa a rendição individual de um aspirante de uma companhia em preparação na Amadora que iria seguir para a Guiné, a CCAÇ 2402.

Qual pára-quedista, fui cair no meio de um barril de pólvora, que outro nome não se pode dar à composição do quadro de oficiais da companhia em formação. Inicialmente o quadro de oficiais era constituído pelos membros abaixo indicados e eu vi-os, na altura, da seguinte forma:

(i) Capitão Vargas Cardoso – Militar de carreira, de perfil autoritário, muito organizado, com tendência para controlar tudo e todos. Gostava de ser considerado como um pai para todos os seus militares;

(ii) Aspirante Francisco Silva – Formação académica no sector das Letras, politizado tanto quanto a vida académica o permitia, parecia ser um militar apostado em cumprir a sua comissão sem hostilizar ninguém. Para melhor o identificar, ele foi, há poucos anos atrás, Embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, além de outros cargos diplomáticos;

(iii) Aspirante Medeiros Ferreira – Formação académica no sector das Letras, altamente politizado, parecia querer levar a comissão até ao fim, mas, se assim era, depressa compreendeu que essa pretensão não era fácil de concretizar. Creio que todos se recordam dele, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal;

(iv) Aspirante Beja Santos – Também oriundo do sector das Letras, politizado, este elemento dispensa apresentação, pois todos o conhecem, pelo menos, como um dos nossos tertulianos mais versáteis na arte de bem escrever, como o Tigre de Missirá, ou pela sua cruzada em defesa do consumidor;

(v) Aspirante Raul Albino – Resto eu, com formação Contabilística e não politizado. Esta minha formação permitiu-me ser inicialmente seleccionado para o CSM na especialidade de Contabilidade e Pagadoria, o que me tornou no mais feliz dos militares ao cimo da terra. Mais uma vez a sorte me foi madrasta, pois acabei – não sei como – por ser reclassificado para o COM, nas especialidades de Atirador Especial e Minas e Armadilhas. Será que viram em mim a capacidade de disparar números e armadilhar escritas?

Viria a crescer posteriormente com a Informática, ao longo de 30 anos na IBM, na especialização de grandes e médios sistemas. Os micro sistemas têm sido para mim um hóbi de velho, que tem a virtude de me manter afectiva e minimamente ligado aos tempos do pioneirismo informático da minha juventude.
– Mas – dirão vocês – onde está o barril de pólvora?

Pois, o barril consistia no clima explosivo que se tinha criado no relacionamento entre o Capitão e os seus Aspirantes.

Quando eu chego ao grupo vejo o Capitão preocupado com a circunstância de levar para a Guiné a dupla Medeiros Ferreira/Beja Santos, sobre os quais não conseguia ter o controlo pretendido e com a perspectiva do relacionamento vir a degradar-se ainda mais com o passar do tempo.

Quanto ao Francisco Silva, não o vi preocupado em sua relação, talvez pensando que ele seria mais fácil de controlar. Algum tempo após a minha chegada, confidencia-me ele (por estas palavras ou semelhantes):
- Sabes? Creio que temos letrados a mais na companhia! – ao que eu lhe retorqui:
- Bem, para compensar, agora tem-me a mim que não sou de Letras, sou de Números!

Depressa me apercebi ao longo desta conversa, por sinal bastante infeliz, que não era mais que uma tentativa de aliciamento da minha pessoa para a sua causa. Tentativa semelhante ter-me-á feito o Medeiros Ferreira. Tentativas inúteis, porque eu era um indivíduo convictamente independente, avesso a alinhamentos e não politizado. Além disto era ingénuo, porque julgava que me podia manter neutral, com o equilíbrio existente a manter-se ao longo da comissão.

Ainda hoje uma dúvida me afecta a alma. Terá a minha resistência a alinhamentos, – comunicada ao Medeiros Ferreira – influenciado de algum modo o desenrolar dos acontecimentos que se seguiram no seio do grupo?

Duas a três semanas antes da partida da companhia, eu era enviado com um sargento, em avião militar, para a Guiné, com a missão de preparar a chegada da companhia em termos de material e equipamento. O que se terá passado durante esse período de tempo, escapou-me, na altura, ao meu conhecimento pessoal, razão pelo qual não o abordo aqui, especialmente agora que o melindre e crítica à falta de rigor se instalaram no seio dos nossos tertulianos, com o caso Ranger Eusébio (2) a servir de exemplo.

A minha surpresa não teve descrição, ao constatar que a companhia chegava à Guiné com duas baixas no quadro de Oficiais: o Medeiros Ferreira e o Beja Santos (2). O capitão tinha ganho a primeira batalha (pessoal), mesmo antes de chegar ao teatro de guerra.

Senti a minha cruz começar a ficar mais pesada...

Raul Albino

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)

(2) José Medeiros Ferreira, hoje com 64 anos, é professor universitário (Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Nova de Lisboa) e escreve regulamente no blogue, de que é co-editor, Bicho Carpinteiro. E-mail: bichoscarpinteiros@hotmail.com
 


Capa do livro de José Medeiros Ferreira, "Memórias anotadas" 
(Lisboa: Temas e Debates, 2017, 468 pp) (Cortesia da editora)
 

Açoriano da Ilha de São Miguel, nasceu em Ponta Delgada, em 1942... Desertou em 1968, quando estava mobilizado para a Guiné (CCAÇ 2402). Licenciou-se em Ciências Sociais, em Genebra, Suíça. Militante e dirigente do PS, ocupou o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros no I Governo Constitucional (1976/78), presidido por Mário Soares. No início de 2006, desligou-se de todos os cargos dirigentes no seu partido, voltando à condição de militante de base...Morreu em 2014.




Dr. Mário Beja Santos, conhecido especialista no domínio os direitos do consumidor. É assessor principal do Instituto do Consumidor. É também membro da nossa tertúlia...

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados