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segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22679: Notas de leitura (1391): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Trata-se de uma investigação cuidadosíssima, logo na 1.ª edição foi acolhida pelos especialistas com rasgados encómios. David Brookshaw disse mesmo que se pode ler como um romance pós-moderno, é um cintilante percurso onde se fala da aurora dos nacionalismos, se perfilam protagonistas, se contextualizam no pós-II Guerra Mundial os pilares da autodeterminação que levam à organização da luta armada. 

Relato imparcial, como se poderá ver na descrição da participação dos cabo-verdianos nos teatros de guerra da Guiné, a forma como se apresentam as referidas identidades culturais e, compreensivelmente, a história do PAIGC em Cabo Verde até 1991, quando chega e se consagra a via pluripartidária. 

De leitura obrigatória para quem estuda a Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Cabo Verde, os bastidores da independência (3)

Beja Santos

Trata-se do primeiro livro do jornalista e investigador José Vicente Lopes, construído a partir de entrevistas com mais de cem personalidades cabo-verdianas, guineenses e portuguesas, cruzadas com fontes documentais e bibliográficas: “Cabo Verde, os bastidores da independência”, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 3.ª edição, 2013. 

Vai longa a pesquisa deste valioso documento onde a história oral tem um peso determinante. O autor percorreu as raízes da independência, apresentou protagonistas, deitou um olhar alargado às conjunturas internacionais, contextualizou os ideais do império português, iniciou-se a luta armada na Guiné, descreveu-se ao pormenor as tentativas de subversão nas ilhas e mesmo as tensões entre os cabo-verdianos e a liderança do PAIGC. 

Assim se chegou à independência da Guiné-Bissau e se preparou a independência de Cabo Verde. É neste ponto que o investigador pergunta, depois de saber que tudo foi facilitado ao PAIGC para dispor do monopólio do poder: poderia ter sido diferente?

O PAIGC arrogava-se ao papel de interlocutor privilegiado, a sua implantação nas ilhas era minoritária, cita mesmo um trabalho de Manuel Lucena em que este escreveu num relatório enviado a Melo Antunes que “a maior parte da população ficaria muito contente com uma autonomia menor do que a dos Açores…”

São opiniões que valem pelo que valem, vinte anos após a independência quadros cabo-verdianos do então PAIGC irão deplorar o facto de não se ter tratado bem uma real oposição ao PAIGC, que existia, designadamente a de Leitão da Graça e o seu grupo. O próprio Aristides Pereira admitiu excessos. Leitão da Graça, líder da UPICV, simpatizante da linha chinesa, reconhece que o contexto era favorável ao apoio soviético e dos países socialistas, Mao Tsé-tung estava em decadência e os chineses acabaram por se aliar ao imperialismo americano. 

O PAIGC tinha sido reconhecido tanto pela OUA como pela ONU como o único representante do povo de Cabo Verde, fazia a sua entrada triunfal nas ilhas. Carlos Reis, do PAIGC, tecerá o mesmo tipo de considerações, dizendo: 

“O partido único foi proclamado na rua, pela própria evolução dos acontecimentos. Vivia-se naquela altura um clima favorável ao partido único. A própria ONU escolhia representantes legítimos e únicos dos povos que lutavam pela sua independência”

José Vicente Lopes aborda seguidamente a questão do PAIGC e dos intelectuais. Havia uma figura consagrada, Baltazar Lopes, licenciado em Direito e Filologia Românica, passou a sua vida em Cabo Verde no ensino, foi reitor do Liceu Gil Eanes. Distinguiu-se por romances como o “Chiquinho” e pela criação da revista “Claridade”, fundada em 1936. Desconfiava do PAIGC, quadros importantes como Silvino da Luz e Osvaldo Lopes da Silva fizeram acusações bastante ásperas a determinados escritores, falava-se mesmo em atirar os intelectuais ao mar. Baltazar Lopes irá registar magoado o seu ressentimento com o tratamento que lhe deram. Muito se falará também de Onésimo Silveira e de Teixeira de Sousa, figuras que entrarão em rota de colisão com o PAIGC.

Segue-se a construção do Estado, Pedro Pires fica à frente do Governo onde constarão, entre outros, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Carlos Reis, Osvaldo Lopes da Silva, Amaro da Luz, Sérgio Centeio, Manuel Faustino. E diz-nos o autor: 

“O Arquipélago ascendia à independência com uma população estimada em 280 mil habitantes, uma economia completamente arruinada, cabendo ao setor terciário – comércio, serviços públicos e privados – um predomínio absoluto, aparecendo o Estado como o principal empregador. A agricultura, essencialmente a de sequeiro, encontrava-se em profunda crise, face aos efeitos da seca que já se prolongavam há oito anos, mantendo 91% da população economicamente ativa sobre a sua dependência, na maioria dos casos através de brigadas de apoio social. A indústria resumia-se a três ou quatro padarias, uma fábrica de tabacos e duas unidades falidas de pesca”

Este primeiro Governo centrou as suas prioridades no combate ao desemprego, na procura de aquisição de meios de transportes marítimos, na construção de silos e armazéns; os investimentos foram para o desenvolvimento rural e a pesca, numa primeira linha e mais abaixo os transportes e as comunicações. Houve recursos externos que facilitaram muitas destas iniciativas. Mas havia divisões ideológicas, há que as ter em conta para perceber as linhas políticas do PAIGC até ao dia em que o multipartidarismo, depois da queda do Muro de Berlim, mudou o xadrez cabo-verdiano. 

José Vicente Lopes dá-nos um impressivo olhar sobre esta governação do PAIGC: a política de independência face às superpotências, como foi tratado o dossiê da África do Sul, como se tentou um modelo económico misto mas sob a supervisão do Estado, e passa em revista os múltiplos dossiês da governação. 

A oposição foi-se organizando, a UCID ganha expressão. E começam as contradições, a formação de grupos, a fragmentação ideológica, releva-se, pelo bom senso e prudência, a figura de Pedro Pires. O III Congresso do PAIGC realiza-se em Bissau, em novembro de 1977, avultam tensões entre maoístas, trotskistas e leninistas, Pedro Pires passa a ser muito questionado. Toda a problemática da identidade cultural cabo-verdiana é analisada nesta obra.

E assim chegamos à questão constitucional, que levantará muita celeuma nas ilhas e com forte ressonância em Bissau, dirão muitos analistas que será um dos motivos fundamentais para o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980. O tema é abordado com profundidade, a páginas 600 do seu importantíssimo trabalho o autor analisa as diferenças entre Cabo Verde e a Guiné:

“Estudiosos das causas que conduziram à rutura entre os dois países situam-nas, geralmente, na discrepância das realidades que se foram construindo na Guiné e em Cabo Verde. Enquanto, no primeiro caso, havia uma hierarquia partidária e militar que era mais obedecida; no segundo, prevalecia, pelo menos inicialmente, uma massa crítica e uma liderança mais baseada na discussão dos problemas do que na obediência cega. 

A estrutura da sociedade cabo-verdiana – mais moderna, escolarizada e crítica, além de dependente do exterior –, contribuía para que o regime na Praia fosse menos pretoriano do que o seu congénere de Bissau. Em suma, para Pedro Pires, o 14 de novembro foi o desfecho de uma situação contraditória, ‘duas realidades que se foram desenvolvendo e que, em vez de se aproximarem, se afastaram. Teria de ser assim. Não havendo um 14 de novembro, talvez viesse a acontecer uma outra coisa. Sabíamos, entre nós, que havia qualquer coisa que não marchava bem’”

Tanto Aristides Pereira como Luís Cabral se referiam regularmente a desvios, práticas de corrupção, passividade e falta de rigor ideológico. E vão surgir acusações múltiplas: de Nino Vieira contra Luís Cabral, de Aristides Pereira contra Luís Cabral e Nino, de Vasco Cabral contra Luís Cabral, e muito mais. Os dois partidos separam-se, perdurarão as feridas, a reconciliação virá depois. E inicia-se um processo histórico que conduzirá ao multipartidarismo em Cabo Verde. 

A 13 de janeiro de 1991, realizar-se-ão no Arquipélago as primeiras eleições livres e pluralistas da sua história, ganhas pelo Movimento para a Democracia (MpD). No mês seguinte, António Mascarenhas Monteiro vencerá Aristides Pereira, tornando-se no primeiro Presidente da República eleito em eleições multipartidárias.

Obra singular, hoje de referência para entender o papel cabo-verdiano na formação, desenvolvimento, luta armada e independência de Guiné e Cabo Verde. A sigla da unidade foi o medicamento eficaz para a luta vitoriosa mas encerrava em si o peso de uma tormenta que se chama em História a longa duração dos acontecimentos que tanto os guineenses como os cabo-verdianos não ignoravam – dois países com identidades tão distintas jamais poderiam ficar associados.

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22659: Notas de leitura (1390): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 28 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20914: 16 anos a blogar (6): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (2) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 27 de Abril de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos a II parte de Os dias de Abril, mês "de águas mil"


Os dias de Abril, mês de “Águas mil”, de Constituições, de Revoltas, de Revoluções, dos… das Celebrações, Grupos de Risco e do Cofinamento, que mudaram Portugal - Parte II

(Continuado)

Em meados de Abril de 1974, feitas 6 reuniões plenárias à escala dos 3 Ramos das FA, a última em Cascais, mobilizadora de cerca de 200 conjurados, e um mês passado sobre a falhada “Revolta das Caldas”, a Comissão Coordenadora do MFA tinha acelerado e terminado o seu trabalho de casa – a máquina conspirativa estava montada e bem oleada.

A malta conspiradora das Caldas havia-se precipitado. À data da sua saída, a inter-relação dos conjurados limitava-se à ligação, não havia nem plano de acção militar nem programa político, mas apenas um rascunho de cariz político-militar, da autoria do Major do SAM Moreira de Azevedo e o Movimento dos Capitães/Movimento das Forças Armadas encontrava-se neste pé: logo que fossem muitos, entregariam ao Chefe seu elegido (General Spínola) um ultimato para ele apresentar ao Chefe do Governo (Marcello Caetano). Se este o aceitasse, tudo bem; se o recusasse, meteria o General Spínola “dentro”, na Trafaria (com o amparo do livro Portugal e o Futuro) e então eles accionariam o seu chefe profissional, General Costa Gomes.

Uma evidência da falta de equidade de funções, peculiar à comunidade militar. Os generais não substituiriam os capitães e os capitães a tratar de substituir os generais…

Ernesto Melo Antunes
Em 23 de Abril de 1974, o MFA iniciou a acção directa. A participação de oficiais da Marinha, da Força Aérea, as adesões dos seus camaradas milicianos (os espúrios) e de uma proporção significativa de oficiais superiores estavam consolidadas, havia o Programa político, elaborado por uma comissão coordenada pelo açoriano Major de Art.ª Melo Antunes e, também, o Plano da operação militar com o código de “Viragem Histórica”, elaborado por uma comissão coordenada pelo natural moçambicano Major de Art.ª Otelo Saraiva de Carvalho.

Escolhido o dia 25 de Abril para seu dia D e a 1H00 para sua hora H, efeméride da queda do Fascismo na Itália, inspirador do nosso regime do Estado Novo, a sua equipa operacional, comandada pelo Major Otelo, dedicou esse dia a entregar rádios, códigos e senhas aos conjurados, e, em simultâneo, o Major Melo Antunes, numa discriminação positiva ao Partido Comunista e ignorando o Partido Socialista e a Ala Liberal, entregava ao casal Carlos Brito e Zita Seabra, responsáveis da DROL (Direcção Regional da Organização de Lisboa) do PCP, cópias do Plano da operação militar e do Programa Político do MFA – as únicas cópias saídas da intimidade dos conspiradores.

A participação do Povo no êxito do 25 de Abril incruento é facto acontecimental; a participação do povo logo na alvorada da sua manobra militar é um mito.

Ao começo da madrugada de 1 de Abril de 1974, Zeca Afonso encerrou o seu espectáculo do Coliseu dos Recreios com a canção Grândola, vila morena, que havia lançado na Galiza, o Major Otelo estava na plateia, o seu ouvido reteve-a e será a elegida para senha da hora H – a Rádio Renascença transmitiu-a aos 20 minutos da madrugada de 25 de Abril.

O primeiro conspirador a mostrar serviço ao Posto de Comando do MFA, na Pontinha, foi o Capitão Teófilo Bento: ouvida a cantiga do Zeca Afonso, ele, o Tenente Manuel Geraldes e a sua malta da Escola da Administração Militar, especialistas de “apontadores da Bic” e não de apontadores da G3, acabavam de ocupar o Mónaco, nome de código da sua vizinha a RTP.

Jaime Neves
O segundo a sair terá sido o Major Jaime Neves e a sua malta dos Comandos; será recorrente na afirmação de que, quando chegou ao Terreiro Paço, por volta das 6H00 da manhã, com a missão de ocupar os ministérios militares e de prender os respectivos ministros, já havia massas trabalhadoras, vindas da Outra Banda e com palavras de ordem, de apoio à “revolução”. Desconfiado de estar a protagonizar uma revolução comunista, “a coisa era tão secreta e chegara a esse nível”, em vez de apresentar serviço na Pontinha, exigiu explicações ao Posto de Comando, o Major Otelo sossegou-o, e só não desistiu, porque o Capitão Salgueiro Maia e a sua malta da EPC de Santarém começaram a chegar.

A sua perplexidade permitiu que os chefes militares tivessem escapado (momentaneamente) à prisão, derrotando com os machados de guerra dos guerreiros da sua decoração a parede de tijolo, divisória entre o Ministério do Exército e o Ministério da Marinha, apanharam o autocarro e foram parar ao Regimento da PM, à Calçada da Ajuda, onde montaram o Posto de Comando da contra-revolta. Integrou-se activamente na manobra do Salgueiro Maia, foi negociador decisivo, na Ribeira das Naus, na contenção dos blindados Patton que os chefes que não prendera mandaram contra eles, vindos da mesma Calçada, originários do RC7. E ainda efectuará a prisão o General Louro de Sousa, Quartel-Mestre General, - o Comandante do CTIG da Guiné da “Operação Tridente”, à ilha do Como, em princípios de 1964.

O que o Posto de Comando do MFA e o notável soldado e futuro Brigadeiro Comando Jaime Neves não sabiam – este terá partido sem saber – que a sua colisão mental com o surgimento daquela malta, madrugadora e animada, era circunstancial a essa a manobra “secreta” do Major Melo Antunes, que pusera o Carlos Brito a mobilizar a massa trabalhadora da Cintura Industrial de Lisboa para o Terreiro do Paço e pusera a Zita Seabra a mobilizar a massa estudantil (a UEC) a apoiar todo o militar da revolta que encontrasse na rua.

E essas massas desempenharam-se eficazmente; foram o “fermento” que levedou a massa de adesão do Povo.

Se o Capitão Teófilo Bento e a sua malta do SAM foram meteóricos na ocupação da RTP, objectivo não armado, o MFA de Lisboa, não obstante o seu poderio de homens e de fogo, demorou 17 horas a tomar o poder em Lisboa, encheu o Forte da Trafaria de presos, enquanto ao MFA do Norte, enformado por 60 militares, divididos em 5 grupos, comandado pelo então Tenente-Coronel Carlos Azeredo, bastaram 8 minutos para cumprir todas as missões e tomar o poder no Porto – e não meteu ninguém na cadeia.

Às 14H02 entraram em acção e às 14H10 já tinham libertado toda a região de Entre Minho e Douro.

A primeira fractura do MFA também se deu no Norte.

Carlos de Azeredo
O Tenente-Coronel de Cav.ª Carlos Azeredo planeara e executara o 25 de Abril nortenho em parceria com os Majores Eurico Corvacho, Gonçalves Borges e o Capitão Nogueira de Albuquerque, não poderia comandar a Região Militar, por não exercer o comando de unidade, havia requerido a demissão do Exército (o ministro tencionava deferi-la, sob o pretexto de ser paciente de “de doença mental”), mas recusou cumprir a ordem do Posto de Comando na Pontinha, de sair da cena e deixar o comando para o Major Corvacho; no seu entender, os chefes do MFA eram os Generais Spínola e Costa Gomes.

Em corolário a tantas horas de indecisão, a partir do meio-dia desse dia libertador emergiram no Porto não as massas populares de apoio, mas a turbamulta. Molestava-se pessoas, montava-se cercos aos quartéis da GNR, apedreja-se as esquadras da PSP e outras instituições do Estado, incendiavam-se carros, partia-se montras e assaltava-se lojas. Presenciei a Eng.ª Civil Virgínia Moura, que havia conhecido no contexto das obras da Ponte da Arrábida, como autora do projecto do nó e do viaduto de Sto. Ovídeo, em Gaia, a incitar a multidão e a alçar-se ao seu comando, para a temeridade de cercar e assaltar a PIDE – negligenciando o seu armamento.

Foi quando entrou em cena outro oficial também já fora da tropa e também Eng.º Civil – o Coronel Mário da Ponte (que me honrou com a sua amizade, durante mais de 40 anos). Foi para o Quartel-General, puxou dos galões, pôs a PM e a tropa na rua, a restaurar e a manter ordem pública, desmobilizou o cerco à PIDE, no dia seguinte mandou para casa o seu pessoal secundário e o seu pessoal estrutural foi largado no Alto da Carriça, na estrada de Braga, postura que manteve enquanto o Coronel de Inf.ª Passos Esmeriz, que comandava o RI 6, na Senhora da Hora, não foi assumir esse posto, por vontade da maioria dos oficiais dessa Região Militar.

Mário Soares e Álvaro Cunhal
Com o regresso de dois políticos, o optimista e exilado Mário Soares, vindo de Paris, que se apeou na Estação de S. Apolónia, no dia 28, e o céptico e fugitivo Álvaro Cunhal, vindo de Praga, que, no dia 30, desembarcou no Aeroporto da Portela, a revolta passou a tridimensional - os “capitães de Abril” e mais esses dois, como os corifeus do Socialismo…

Há camaradas da Tabanca Grande participantes na operação “Viragem Histórica”? Eu, no 25 de Abril, não pequei por omissão: voluntariei-me e fui recusado.

Naquele dia inicial inteiro e limpo (Sophia), estacionei o carro na Praça da República (então trabalhava no cimo da Rua do Almada) e dirigi-me ao camarada furriel que vi a comandar uma secção em posição de fogo, nos cruzamentos da Rua João da Regras e da Rua da Boavista. Admitindo tratar-se de exercício citadino, comentei o seu realismo e ele disse-me que não era exercício, era uma revolta para derrubar o Governo. Alertei-o do perigo do RC 6, ali tão perto, e ofereci-me a ir para a torre da Igreja da Lapa e fazer a vigilância aérea dos eixos de aproximação dos seus blindados, e ele desarmou a minha disponibilidade, dizendo-me que toda a tropa do Porto estava alinhada com a revolta. Eram 8H30 da manhã…

Naquele tempo também me sentia rebelde, ofereci os meus préstimos (intempestivos), o 25 de Abril recusou-os, mas, modéstia aparte, não deixou de me obsequiar: os Trabalhadores honram o 1.º de Maio como o seu dia e eu não só, mas também - é o dia do meu aniversário!

A celebração desta efeméride, via skype, por aquela meia dúzia de velhotes e “Capitães de Abril” sobrevivos, a cujo grupo etário pertenço, cercados por todos os lados pelo vírus Covid-19, a sua nostalgia de combatentes, no Ultramar e na Metrópole, ao serviço do seu Povo, ora em distanciamento social e em confinamento por um inimigo invisível, a sua exortação aos médicos, enfermeiros e demais pessoal do SNS, para personificarem os “capitães de Abril” da sua derrota, comoveram-me às lágrimas.

E, parafraseando o Almirante Pinheiro de Azevedo, protagonista de dois 25´s, o de Abril e o de Novembro: Não gosto de confinamento; chateia-me estar confinado.

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OBS:- Escolha e edição das fotos da responsabilidade do editor
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Último poste da série de 27 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20912: 16 anos a blogar (5): O barbeiro dos bifes (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf)

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19767: (In)citações (130): As Comemorações de Abril, A Memória e a História (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679)

Com a devida vénia ao fotógrafo Alfredo Cunha


1. Por proposta de José Marcelino Martins e concordância do autor, aqui deixamos este extenso, mas interessante artigo de opinião sobre as Comemorações do 25 de Abril de autoria de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71).

Originalmente publicado no seu facebook em 5 partes, por ser um pouco longo, optamos por publicar tudo de uma só vez aqui no Blogue.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 1

1 de Julho de 1972. De Lisboa para Bissau, um meio aéreo da FAP transportou três capitães, a saber: Jorge Golias e Matos Gomes, oficiais do QP, e José Manuel Barroso, miliciano, este com destino ao Gabinete de Informação e Comunicação do ComChefe.

Golias viria a publicar um livro, no qual afirma que os três estabeleceram uma interessante conversa sobre a condição política e militar que afectava o ultramar português. Chegados a Bissau comprometeram-se a reunir e alargar as conversas a novos camaradas, o que terá acontecido. O autor reivindica para o mencionado encontro a génese do golpe militar.
Sobre as razões apressadamente reunidas para justificação da insubordinação militar: democracia, desenvolvimento e descolonização não fez qualquer referência.

Naquela época - 1972 - a situação militar nos territórios ultramarinos podia caracterizar-se assim: controlada na Guiné e em Moçambique; dominada em Angola.

Naquele tempo, a Guiné era um pequeno território com cerca de trezentos mil habitantes, de escassos recursos e infraestruturas, onde se vivia uma economia de guerra. A política "Por Uma Guiné Melhor" parecia dar resultado e as massas apoiavam o regime. A guerra movida pelo IN era descontrolada e tanto afectava as NT como a população condicionada às minas, aos assaltos e às flagelações. Eram os portugueses que lhes prestavam o auxílio possível sempre que afectadas. Angola e Moçambique, pelo contrário, apresentavam notáveis índices de desenvolvimento e crescimento económico e social, entre 8 e 10% na costa oriental, e 20% em Angola. Eram sociedades em rápido processo de educação e modernização, tanto de equipamentos públicos como empresariais, e altamente exportadoras.

A metrópole registava índices de crescimento económico de cerca de 7%, e crescia em todos os domínios, salientando-se a melhoria dos salários, que então permitiam maior desafogo, melhoria na habitação - quando se desenvolveram grandes urbanizações em Oeiras, Amadora, Sintra, Loures, Almada, Barreiro, para só falar na cintura de Lisboa. Havia muita capacidade de absorção de mão-de-obra, nos serviços, na indústria e na função pública. Os automóveis particulares aumentavam exponencialmente, as casas para além de electrodomésticos, passavam a contar com televisão e gira-discos. O Algarve, embora mal servido de acessos, já era destino de férias de muitos nacionais. O fim-de-semana à inglesa generalizara-se, e começava o modelo americano, com folga de dois dias. Politicamente assistira-se à regularização dos esquemas da segurança-social, CGA/MSE e CNP.
O País vivia em equilíbrio económico-financeiro, com elevadas reservas em ouro e divisas, e sem dívidas ao estrangeiro.

Entretanto dava-se a revolução sexual, e a luta da mulher pela igualdade de direitos, acompanhava a luta de salário igual para trabalho igual. A mulher saía de casa e dirigia-se para o trabalho em condições idênticas às dos homens. Vulgarizava-se o uso da mini-saia, das roupas cingidas e dos generosos decotes. Na praia também era adoptado o biquini, e a mulher prosseguia o caminho da independência pela sedução. As jovens mulheres de alguns capitães também se enquadravam nesta onda, e eram frequentes as intrigas que afectavam os casais, ou os maridos mobilizados em África.

Em 1973, com o recrudescimento da guerra na Guiné, a que os poderes político e militar não deram resposta adequada, a situação sofreu perturbações. Os militares exigiam mais equipamentos e mais contingentes, a que Caetano não respondia, nem evitava esse mal-estar institucional, chegando ao ponto de propor a entrega do poder aos militares, que rejeitaram. Apesar de sobre a questão ultramarina, Espanha França e Alemanha darem apoios políticos a Portugal, e os EUA revelarem maior compreensão às teses portuguesas, o Governo mostrava-se tolhido. Outras nações, pontualmente, também se associavam com apoios.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 2

Em 26 de Dezembro de 1971 Spínola despediu-se de um contingente militar que regressou à metrópole. Discursou como habitualmente, e referiu que os "traidores" estavam na retaguarda. Não os mencionou, mas é fácil inferir que se dirigia a elementos do Governo Central. Já andava às turras, e a partir de 1973 parecia querer tudo, para combater o que antes parecia ter controlado, o IN.

Entre aquelas datas deu bastas provas de querer vir a ser Presidente da República. Desdobrava-se em entrevistas e fomentava reportagens. Parecia um senhor da guerra, um líder incontestado. No entanto, tenho dele amargas recordações, como as que deram ocasião ao assassínio de três majores, um alferes e uma praça. Foi muita e grave a ingenuidade do General. Não ficou por aí. Ambicioso, deixou-se seduzir pela ideia de invadir Conakry, o que seria natural num acto de guerra contra o IN. O auto-proposto Comandante e criador da ideia, é que não soube combater a outra ideia de promover um golpe de estado noutro país, o que não teria sido mau de todo, se não tivesse havido tantas fugas de informação que ditaram o falhanço quase total da operação invasora. Eram ambos muito ambiciosos e descuraram aspectos essenciais. Queriam a glória de engalanar a História de Portugal, mas os resultados foram fracos e poderiam ter sido piores, conforme o testemunho de um importante e destacado participante (não o cito por estar vivo). Mas o ComChefe ainda deu mais provas de desnorte, fechando, reabrindo e voltando a fechar aquartelamentos; permitindo novos aquartelamentos com a água à distância (v.g. Guilege e Bajocunda); mandando tapar as valas de protecção a Pirada com o argumento de que aquela era uma região pacífica e controlada, embora poucos dias após tenha ocorrido um milagre a favor das NT em resultado da invasão da localidade durante uma projecção de cinema.

Spínola também não foi capaz de controlar o erário, pela criação de equipas de auditoria para disciplina da quadrícula, promoção ao bem-estar físico e moral da tropa. Foi um ver se-te-avias, com os maus resultados que se adivinham, embora os relatórios, de baixo para cima, mencionassem sempre o elevado moral do pessoal. Mentira!
O General também parecia estar a jogar em dois campos: com o prestígio internacional, que o obrigava a mostrar aceitação pelo "politicamente correcto", e com a desculpa da insuficiência de meios para a defesa daquele torrão pátrio. Foi quando, com os outros comandantes-chefes, rejeitou a tomada do poder proposta por Caetano.

Com o aparecimento dos Strela - mísseis terra-ar que provocaram alguns estragos iniciais, acentuou-se o sentimento de perturbação e o desejo de muitos militares pelo abandono do território. A guerra era feita em grande parte pelos milicianos, e os capitães em geral procuravam a segurança dos aquartelamentos. Havia dignas excepções, mas eram isso mesmo excepções. Com isso, alastrava a falta de liderança sobre o pessoal, com a consequente quebra da disciplina. S.Exa. também elegia os favoritos e os trastes, por vezes com critérios de pouca compreensão e aceitação. Na transição de 73 para 74, face à acumulação de erros que pareciam dar vantagem ao IN, já o MFA levava adiantada a sua vocação de protesto, e avançava à luz-desarmada com a sua campanha de abandono dos territórios africanos.

Todos sabiam. Sabia a PIDE, os altos comandos militares e o Governo.
Ninguém, nem os mais moralistas, se empenharam na defesa de quantos se bateram pela Pátria, metropolitanos e africanos, dando do País a imagem de cobardia e traição que desqualifica os povos. Entretanto, formara-se no exterior, o Partido Socialista, que em 25 de Abril teria 20 a 30 militantes, conforme refere Rui Mateus na sua obra "Contos Proibidos".
Pouco antes, PCP e PS assinaram um pacto de cooperação contra o Governo e por um novo regime pretensamente democrático.

Em resultado da luta dos movimentos de libertação contra o designado colonialismo português empurrados pela miopia e desinteresse ocidental para os braços da URSS, os anos decorridos, as diferentes circunstâncias que afectavam os mobilizados, e a intensificação da luta na Guiné, dariam lugar ao chamado Movimento dos Capitães, que derrubaria a ditadura do Estado Novo. Esse movimento "pacífico", sem oposição e sem objectivos políticos claros, alegadamente provocado por razões de natureza corporativa - o governo derrogara a lei relativa à progressão dos capitães milicianos, e pela derrota psicológica dos militares portugueses que levaram ao abandono dos territórios, daria lugar a um período de enorme perturbação e ruína, quer em termos materiais, quer em termos morais e anímicos, de que o País ainda sofre, com consequências impossíveis de avaliar, como tentarei mostrar numa terceira parte. A glória da miséria estava para chegar.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 3

A guerra de África que assolou os territórios portugueses a partir de 1961, ocorreu em plena "guerra fria", período dominado pela rivalidade das duas grandes potências, ambas interessadas na expansão e domínio das regiões sob as suas influências. Os EUA contavam desde a 2.ª GGM com parte ocidental da Europa, a mais desenvolvida, com algumas regiões asiáticas, a Oceânia e as américas, com excepção da pequena Cuba. Por seu lado, a Rússia dominava os países da Europa oriental sob a URSS, como se todos esses povos comungassem do mesmo entusiasmo. Ainda estendia influências noutras regiões asiáticas, e, enquanto beneficiária estratégica da Conferência de Bandung, mostrava-se a maior colaboradora dos novos países afro-asiáticos que saíram dos diferentes regimes coloniais. Acolhia e formava os jovens dos movimentos emancipalistas, que também instruía e municiava. A África era a sua principal área de influência, e território de conhecidas reservas minerais.

Em 1973 formou-se o Partido Socialista, que logo foi acolhido pela Internacional Socialista, uma organização de países de índole social-democrática, em geral desenvolvidos e instruídos. Entre eles, avultava a Suécia, onde Olof Palme mostrava toda a vontade de acabar com os regimes coloniais, e exercia grandes pressões para que os territórios naquela condição colonial, ascendessem às respectivas independências. Quer isto dizer, que um teórico esforçava-se para libertar o mundo "colonizado", sem dele mostrar ideias coerentes sobre as multidões que se propunha libertar, nem as circunstâncias em que essas regiões viviam e conviviam. Os territórios de influência anglófona, francófona, italiana e espanhola, logo consubstanciaram pelo abandono o slogan dos "novos ventos da história", que deram origem a novos países ditos progressistas, porque acolhiam-se à área de influência russa. O PS de então tinha beneficiado da generosidade de Palme, Brandt e Janitschek - 1.º Ministro austríaco, quer em meios políticos, quer em apoios financeiros, que se prolongaram por vários anos. Donde, politicamente, os socialistas portugueses não poderiam afastar-se com notoriedade, e ficavam vinculados à ideia da descolonização, sem que essa fosse ou não debatida como a melhor solução para africanos e portugueses. Por esta ocasião, cerca de metade do contingente militar que combatia os movimentos era proveniente dos recrutamentos locais, o que também poderia ter sido entendido como uma demonstração de vontade desses militares para continuarem portugueses. Condição que verifiquei mais de vinte anos depois, quando fiz deslocações ao interior da Guiné e de Moçambique, onde era abordado calorosamente por indivíduos da minha geração, que ainda se reivindicavam de portugueses, e exibiam cartões de identificação civis e militares. Portanto, os socialistas em geral, nacionais ou estrangeiros, estavam vinculados a uma ideia teórico-política sobre a descolonização, também ela representativa de interesses próprios de sobrevivência. De qualquer modo, era intolerável a intromissão desses países nas orientações internas de outros, para mais membros comuns da EFTA.

Na metrópole, entretanto, dava-se continuidade ao projecto de Sines, que pretendi consagrar a "zona do escudo" face aos eventuais boicotes externos, mas tinha virtude de desenvolver o País com vista à auto-sustentação económica. Foi um projecto muito arrojado, que ficou a meio caminho dos objectivos, e poderia ter estimulado a novos desenvolvimentos.

Entretanto, Spínola regressara à metrópole em nítido conflito com o Governo, e deixou no ar, fruto da sua ambição, a ideia de que poderia apadrinhar o movimento dos capitães.
Enquanto isso, os principais órgãos de comunicação-social davam à luz muitas notícias de sinais contrários à política prosseguida, muitas vezes com origem em fontes ou jornalistas comprometidos, que a censura não detectava ou não podia neutralizar. Também os estudantes aumentavam o banzé sobre o destino próximo da mobilização para a guerra, que efectivamente já durava em demasia. Havia, pois, uma predisposição para uma mudança, pese embora que não se sabia para quê.
A par disso, a população branca nas colónias aumentava significativamente, porque os desmobilizados tinham encontrado ali excelentes oportunidades profissionais e para organização das suas vidas. Muito longe iam os tempos coloniais, apesar da estratificação social característica de povos nos inícios do contacto com a civilização. Crescia o número dos casais mistos, e consequentemente dos filhos mulatos. Também a Administração e empresas empregavam muitos funcionários e gestores, em ambiente de grande harmonia. Dizia-se de Angola, que seria um novo Brasil.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 4

Em 1974 Caetano estava abúlico e o Governo tinha a noção de estar a prazo. Digamos que fazia a gestão corrente, desejoso de ser substituído.
"Em Maio de 73 promoveu-se na Guiné a primeira tomada de posição colectiva de grande notoriedade. Foi a propósito do chamado Congresso dos Combatentes do Ultramar, uma iniciativa de antigos oficiais milicianos, apoiada pelo Governo", que na Guiné teve resposta negativa. Em 17 de Agosto, em Bissau, o alargado grupo de capitães antes referido, reuniu para análise de um carta a enviar às altas instâncias políticas e militares. Era em tom duro, e foi amenizada em virtude de várias opiniões, o que gerou a intervenção de Golias, que disse ter sido tão suavizada, que parecia uma carta de amor, e acrescentou, que também deviam ter discutido a guerra, que só poderia ser resolvida com o fim do regime, o que se conseguiria com uma revolução. Estava dado o mote. A carta foi enviada e assinada por cerca de cinquenta oficiais, mas as autoridades não reagiram, melhor, promoveram os capitães mais antigos. Quando Bettencourt Rodrigues tomou posse, já o Movimento dos Capitães estava lançado. Conforme descreve Golias, em finais de 73, Matos Gomes regressou de férias na metrópole e carregava uma pilha de livros "Por Uma Democracia Anticapitalista", de Sottomayor Cardia, que revendeu a preço de custo. Foi esse livro que pôs muitos capitães em contacto com a política, uma espécie de manual escolar que lhes permitiu sentirem-se preparados para a revolução. Golias, ingenuamente, ainda acrescenta o estímulo da leitura de "Textos Políticos", de Cabral, e evidencia uma frase inspiradora: "os nossos povos fazem a distinção entre o governo colonial fascista e o povo de Portugal: não lutamos contra o povo português". E fez fé! Também os portugueses nunca lutaram contra o povo espanhol, guerrearam contra o exército e a cavalaria de Espanha.

Quando Spínola publicou "Portugal e o Futuro", embora estribado pelas teses caetanistas do estado federativo, suscitou grande controvérsia entre os "duros do regime", os intelectuais abertos à liberalização das relações com o ultramar, os chamados europeístas, e a imensidão de patetas que gostam de pronunciar-se sobre o que não sabem, e não têm outros interesses específicos.
Por essa ocasião, e pelo indisfarçável andar da carruagem, Kissinger referiu que a tendência comunista para alcançar o poder em Portugal, seria um castigo bastante para a leviandade dos portugueses, mas preocupado com o resto da Europa do sul, onde os comunistas tinham atingido posições relevantes, deslocou-se a Moscovo para breve conversação sobre a partilha do mundo.

Entretanto, na metrópole já o "movimento" reunia muitas dezenas de oficiais, ingénuos e desconhecedores de como se governa uma nação, pelo que trago à lembrança um episódio pífio de um batalhão que se recusara a embarcar para Guiné, e seguira fraccionado em diferentes levas. Em Fevereiro de 74, o comandante desse batalhão urdia o seu plano para capturar o ComChefe e o Estado-Maior. Note-se, porém, que na política os serviços de informação e contra-informação desempenham importantes papéis, e em Março de 74 chegou a constar o boato de um plano do PAIGC para invadir a Guiné, coisa palerma, tendo em conta que eles seriam 5 a 6 mil guerrilheiros, e só a tropa de recrutamento local, que integrava companhias, pelotões e pelotões de milícias andariam pelos 20 a 25 mil elementos, incluindo um bom número de tropa especial. Houve portanto, um trabalho de desmoralização e desqualificação em relação ao inimigo, que fez exorbitar o desespero da tropa, e o desprezo pelos portugueses de cor.
Apesar de tudo, e decorrente de passagens narradas, Portugal talvez vivesse o período histórico de maior esplendor, pois crescia económica e financeiramente, modernizava-se em equipamentos e infraestruturas, e não tinha dívida externa, salvo a que respeitou a um sindicato bancário que financiava a obra de Cahora Bassa.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 5

Em 1974 ainda não havia MFA nem Programa. Segundo Sanches Osório, o Movimento dos Capitães tinha características exclusivamente profissionais: "eram apresentadas reivindicações que assentavam nas remunerações e que afectavam o prestígio dos oficiais do quadro permanente". Nunca tive oportunidade de conhecer as razões que afectavam o prestígio desses oficiais. Talvez as intrigas familiares que surgiam no meio castrense, e de que fui testemunha.

Em Fevereiro o Gen. Spínola publicou "Portugal e o Futuro". O marcelismo criou ilusões em sectores da oposição do que resultaram cisões. Era uma expectativa de primavera política, mas que esteve sempre condicionada aos duros do regime. Quer dizer, Caetano não foi capaz de provocar, não digo a ruptura, mas uma nova orientação no horizonte nacional, muito menos no que à guerra dizia respeito. Fez brandas reformas sociais, de que se destacou a regulamentação da Previdência e das relações laborais; e imprimiu algum dinamismo a projectos de industrialização e desenvolvimento. Mas os ultras do regime estavam interessados em persistir e torciam o nariz às mudanças. O livro de Spínola abordava com riqueza de argumentos o tema ultramarino, de vincada inspiração de Caetano, mas a corrosão da sua influência e a situação quente que se vivia, não lhe terá permitido apoiar o General, que por sua vez, confiava demais nos seus alegados méritos, e terá dado à estampa com o objectivo de alcandorar-se como favorito à presidência da República. Apesar de relevantes obras em curso tanto na metrópole como no ultramar, e do progresso económico e social constatados, o Governo foi incapaz de se impor, quer pela moralização do sistema, quer pela determinação dos militares em acabarem com a guerra, ainda que satisfeitas algumas exigências, se para tal fosse necessário. O azar, é que os militares já estavam decididos pela derrota consubstanciada pelo abandono de terras e gentes em África. Depois houve o episódio da apresentação da "brigada do reumático", a que faltaram os dois mais prestigiados generais, respectivamente Chefe e Vice-Chefe do EMFA. Nova e importante derrota para o regime, e impulso precioso para os capitães.

E chegou o dia, mais condizente com um filme de ficção, do que com a realidade revolucionária e perigosa que alguns militares gostam de fanfarronar.
Até o MFA pareceu apanhado de surpresa, dada a falta de confiança evidenciada pelos que ficaram a aguardar os acontecimentos, mas, principalmente, pela ausência de um Programa definitivo sobre o método e os objectivos do golpe, o que só viria a concretizar-se meses mais tarde na sequência de diversas alterações ao texto revolucionário. "As ligações políticas do Movimento dos Capitães foram realizadas pelo Maj. Melo Antunes o qual estava estreitamente ligado, através da CDE, ao Dr José Tengarrinha. Tudo leva a crer, assim, que o tom que foi dado às manifestações populares de apoio ao Movimento foi orientado pelo MDP/CDE, com conhecimento de Melo Antunes", cfr Sanches Osório.
Segundo o mesmo autor "o MFA estaria apenas unido em dois objectivos comuns: derrubar o Governo, e caminhar para o progresso e a justiça social. A forma de alcançar esse progresso e essa justiça social é que não foi analisada na altura". O MFA até ao dia D sabia que os portugueses não queriam para o ultramar uma política de terra queimada. Mas logo surgiram os adeptos do abandono imediato do ultramar, prova flagrante de que não tinham a mínima percepção, nem dos interesses envolvidos, nem das obrigações decorrentes da soberania, muito menos das condições que permitiam ao País viver com desafogo para o desenvolvimento que se registava. Apenas reproduziam "slogans" característicos da luta anti-colonial, o equivalente a terem bebido do IN a justificação para o seu acto revolucionário. Tal pobreza daria de imediato lugar a conflitos internos e à confusão no desenrolar da actividade revolucionária, tantas vezes criminosa.

Soares, líder de um mini-partido apoiado por centrais sindicais suecas e por uma fundação alemã, chegou em júbilo e apoiado por milhares ainda por converter. Cunhal chegaria a seguir, mais formal e recebido por Soares, que parecia conceder-lhe o lugar de primeiro combatente contra o velho regime. Todavia não se mostraram cooperantes na construção democrática por um estado digno e sadio. Ambos viriam a integrar o 1.º Governo Provisório, um grosseiro equívoco para um País pertencente à NATO. Depois, apesar da contenção da organização comunista que aproveitou as oportunidades, o processo terá sido condicionado pelo acordo entre Kissinguer e Brejnev sobre o destino português, estabelecido em Moscovo algum tempo antes.

Fontes:
"O Equívoco do 25 de Abril", de Sanches Osório;
"Revolução e contra-Revolução em Portugal (1974-1975)", de Armando Cerqueira;
"Contos Proibidos", de Rui Mateus;
"A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães", de Jorge S. Golias, para além de reflexões minhas e de outras leituras
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19707: (In)citações (129): Feliz e santa Páscoa, com um abraço transatântico do nosso camarada da diáspora luso-americana José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19103: Notas de leitura (1109): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
O autor e seguramente a equipa que com ele colaborou em "Livro Negro da Descolonização" procuraram legitimar o princípio da autodeterminação do Ultramar português como a coisa mais lógica do mundo, a despeito do pusilânime Marcello Caetano ter recusado a consulta popular que teria levado à derrota dos movimentos de libertação.
Na Guiné, tudo seria simples, far-se-ia um referendo, até havia a FLING, o Movimento Democrático da Guiné e a Liga Popular dos Guinéus, e havia a temível força africana, muitíssimo superior ao PAIGC, eram favas contadas. E é com este raciocínio simplório em que as unidades militares portuguesas queriam retirar prontamente, em que a pressão internacional para reconhecer a República da Guiné-Bissau na ONU no princípio do Outono era enorme, não merecem uma só palavra, assim se faz História confundindo desejos com realidades. E já não falo nos disparates avançados sobre a situação militar.

Um abraço do
Mário


Livro Negro da Descolonização, por Luiz Aguiar (2)

Beja Santos

Poder-se-á questionar qual o grau de utilidade de aqui se referir um livro intitulado “Livro Negro da Descolonização”, tendo por autor Luiz Aguiar, Editorial Intervenção, 1977, em que se propunha uma tese hoje varrida do esquecimento: em 1974, já não tínhamos colónias, tínhamos territórios autodeterminados que aguardavam uma consulta popular que relegaria para o caixote do lixo da História os movimentos de libertação.

Se se tiver em conta que nesse mesmo ano de 1977 se escreveu um livro intitulado “África - Vitória Traída” em que um conjunto de oficiais-generais dava como demonstrado que tudo estava a correr de feição nas frentes militares até à chegada do MFA, e que no nosso tempo anda um tenente-coronel aviador a procurar legitimar que o Estado Novo se via forçado a combater em parcelas africanas a que tinha direito e que a guerra que desenvolvíamos era indiscutivelmente sustentável, não se podem iludir os diferentes matizes ideológicos dos ramos ultranacionalistas.

Na tese maior de o “Livro Negro da Descolonização”, como praticamente em todos aqueles oriundos da cepa ultranacionalista, nunca cabe uma reflexão sobre o nacionalismo africano e a luta anticolonial, há um completo silêncio sobre o pano de fundo da busca de identidade dos povos coloniais. Mas, reconheça-se, este livro de Luiz Aguiar e seus parceiros de escrita trazia uma modificação da lógica quanto aos deméritos da descolonização: não se escamoteavam os erros do passado, introduzindo uma varinha mágica: a vontade de autodeterminação irmanava nativos e radicados nos territórios chamados “províncias ultramarinas”. É uma tese que reconhece o princípio da autodeterminação que consta da Carta das Nações Unidas o que, veladamente, contraria a tese do Portugal de Minho a Timor. O que se seguiu ao 25 de Abril, diz Luiz Aguiar, foi uma política incapaz que contrariou e impediu que o processo de descolonização, iniciado em 1961, entra-se numa sequência racional, na sua fase derradeira – a autodeterminação de facto, abalando os alicerces a cupidez dos movimentos de libertação.

Mas não se deixa de pôr pessoas no banco dos réus, de Mário Soares a Melo Antunes, movem-se críticas acerbas a Spínola e a Galvão de Melo. Tecem-se considerações simplificadoras do tipo a Guiné foi entregue ao PAIGC através do Acordo de Argel, devia-se ter feito consulta popular, embora não se explicando como depois do reconhecimento da República da Guiné-Bissau e de como se alterara radicalmente o quadro político da Guiné face ao Direito Internacional.

Luiz Aguiar e quem o acompanha nega a existência de áreas libertadas na Guiné, e explana uma reflexão curiosa sobre refugiados:  
“A maior parte dos que buscaram refúgio nos territórios vizinhos não o fez por qualquer solidariedade com o PAIGC, mas, sim, solicitados por laços tribais que não tinham sido afectados de maneira sensível pelas fronteiras convencionais. Verificou-se, após a entrega da Guiné ao PAIGC, que os refugiados, na sua quase totalidade, não quiseram regressar à Guiné. A estes acresceram, porém, muitos outros. Segundo o jornal senegalês Le Soleil, dos 60 mil refugiados que deviam existir no Senegal antes da independência passou-se para 120 mil, de onde se conclui que o êxodo continuou”.
E o autor continua:  
“Com este êxodo de guinéus para os territórios vizinhos – 60 mil para o Senegal e 20 mil para a Guiné Conacri – a população da Guiné portuguesa ficou reduzida a 480 mil habitantes. Quando da chegada do General Spínola, admitia-se que cerca de 10% tivesse aderido ao PAIGC. Pode-se dizer que o PAIGC era um partido sem representatividade significativa na província – e com pouca possibilidade de a vir a adquirir”.
Dá-se como testemunho o doutor Baticã Ferreira que depois do 25 de Abril liderou o Movimento Democrático da Guiné, ele teria pedido às autoridades portuguesas que supervisionassem uma espécie de eleições primárias para saber de que lado se encontrava o povo e o PAIGC teria conseguido apenas cerca de 2% dos votos. E o autor procura uma explicação, a de que a população temia o colonialismo cabo-verdiano:  
“Percorrendo a lista dos dirigentes da actual Guiné, constata-se que o ministro da Economia, Vasco Cabral, é cabo-verdiano, o ministro da Justiça, Fidélis Cabral, é filho de cabo-verdianos, o ministro da Educação, Mário Cabral, é cabo-verdiano, o Procurador-Geral da República, João Cruz Pinto, é cabo-verdiano, o primeiro-ministro, Francisco Mendes, é cabo-verdiano, o ministro da Defesa, é cabo-verdiano. Este domínio pelos cabo-verdianos foi reforçado pelo acesso a posições importantes dos antigos chefes de posto e funcionários ultramarinos naturais de Cabo Verde e que estavam colocados na Guiné, como aconteceu com Fernando Fortes, Alfredo Fortes, Miranda de Lima, Waldemar, Filinto Barros, Coutinho, Telmo, Eduardo Fernandes”.
O leitor pode avaliar o chorrilho de disparates desta lista.

Para Luiz Aguiar, o PAIGC fazia incursões e dispunha de permanência temporária na Guiné. As flagelações eram contra tropas em movimento, o que é de risota, as temíveis flagelações eram ao cair da tarde e durante a noite e em destacamentos fixos. Vem depois a tese mirífica que o PAIGC nunca conseguiu desalojar os soldados portugueses dos seus campos fortificados nas regiões fronteiriças. Quem informou Luiz Aguiar informou mal, foram abandonadas posições por insustentabilidade, recorde-se Mejo, Sangonhá, Cacoca e Gandembel, ali perto do Corredor de Guileje.

Segue-se uma referência à força africana, 20 mil guinéus que constituíam unidades de Comandos, Fuzileiros, Marinheiros, Milícias e Guardas Rurais (?), formando um conjunto aguerrido. Nem uma só referência às companhias de caçadores africanos. O autor questiona se o PAIGC teria prosseguido na sua atividade se não tivesse havido uma transigência por parte dos representantes do Estado português ao subscrever o Acordo de Argel. E responde dizendo que teriam morrido muito menos guinéus de que os milhares que foram fuzilados pelo PAIGC. Os guineenses, diz o autor, sentiam-se bem com a obra de desenvolvimento impulsionado por Spínola: as vias de comunicação, os aeroportos, a assistência médica à população, a infraestrutura do ensino, a preparação técnica.

Porventura para mostrar como a Guiné estava madura para consultas populares e se autodeterminar de vez, o autor dás-nos o rol das associações políticas existentes depois do 25 de Abril: o Movimento Democrático da Guiné, com o Dr. Baticã Ferreira à frente, a FLING (bastante representatividade junto dos guinéus emigrados no Senegal), a Liga Popular dos Guinéus que na apregoada fase de passagem do colonialismo à autodeterminação aceitara colaborar com a Acção Nacional Popular. Diz o autor que tudo implodiu com o Acordo de Argel.

Urgindo pôr termo a esta leitura sobre a descolonização, recorda-se que os autores também falam de Cabo Verde, de S. Tomé e Príncipe, de Timor (é curiosamente o capítulo mais desenvolvido), e de Moçambique. As considerações finais de Luiz Aguiar e parceiros prendem-se com a violação do princípio da autodeterminação violado pelos acordos de descolonização homologados por um vasto número de personalidades, são todos eles os que colaboraram no processo que devem ser responsabilizados. Desta forma vaga e genérica se deixa o leitor ultranacionalista mais do que desorientado. Falamos, é certo, de 1977, hoje tais teses não apoquentam ninguém, como se sabe.
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Notas do editor

Poste anterior de 8 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19094: Notas de leitura (1108): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (55) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,

O "Livro Negro da Descolonização", surgido em 1977, ao tempo em que se apostrofava o apocalipse da descolonização, introduzia um elemento novo, hoje completamente abandonado pelos teóricos do ultranacionalismo: tinha-se ultrapassado depois do processo de desenvolvimento operado fundamentalmente em Angola, Guiné e Moçambique, a parti de 1961 a fase colonial, vivia-se o estádio da autodeterminação onde Marcello Caetano recusava a consulta direta às populações. Tivesse havido consulta e outro galo cantaria, diz Luiz Aguiar e todos aqueles que contribuíram para estas mais de 700 páginas profusamente documentadas. A tese foi varrida por múltiplos acontecimentos, jaz numa gaveta da História, mas convém não a esquecer e o que pretensioso ela encerrava, mesmo em 1977.

Um abraço do
Mário


Livro Negro da Descolonização, por Luiz Aguiar (1)

Beja Santos

“Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar, Editorial Intervenção, 1977 é o primeiro documento ideológico em que os ultranacionalistas se apresentam com uma tese sobre os caminhos da autodeterminação ultramarina que teria sido atraiçoada por apressados descolonizadores. São mais de 700 páginas e com muita documentação consultada. Não custa crer que Luiz Aguiar é um nome fictício para uma equipa que trabalhou afincadamente em torno de uma tese. Qual? Diz-se claramente no prefácio:

“Examina-se a situação na Guiné, Angola e Moçambique e mostra-se que, em 1961, além de subdesenvolvimento, havia ainda nestes territórios, colonialismo. A solução, para homens sensatos, não era, porém, a demissão, mas, a partir do muito de altamente positivo que representara a soberania de Portugal, buscar uma sociedade em que não houvesse colonialismo e, paralelamente, levar o efeito, em ritmo acentuado, um processo de desenvolvimento. Mostra-se que estes objectivos foram alcançados antes do 25 de Abril e que em 1974 seria fácil validar a obra realizada, através da vontade das populações destes territórios, validamente expressa”.

Ao longo de todo este longo documento, como aliás é peculiar no pensamento ultranacionalista, não existem tendências mundiais, não houve ventos da História, passa-se à margem do pensamento anticolonialista, houve descolonização apressada para entregar territórios autodeterminados a potências estrangeiras, mormente ao imperialismo soviético.

A tese é seráfica: os erros do colonialismo estavam ultrapassados graças ao trabalho ingente iniciado em 1961, chegara-se a uma fase madura de autodeterminação, mas os atropelos revolucionários inverteram a vontade as populações, permitiram a chegada de poderes tirânicos que estragaram a obra feita.

Segue-se a exposição de factos e a apresentação dos responsáveis, com Mário Soares, Almeida Santos, Melo Antunes, entre outros, no topo. Mas a equipa que dá pelo nome de Luiz Aguiar não deixa de zurzir Spínola e até Galvão de Melo. Não estava previsto no documento-base do MFA descolonizar. E cita-se, não sei com que grau de convicção, o reconhecimento do direito de autodeterminação dos povos coloniais da Carta das Nações Unidas. Afinal, por uma interpretação enviesada da Lei 7/74, de 27 de Julho, passou-se rapidamente do reconhecimento da autodeterminação para a concessão de independência sem consulta das populações. Um dos autores procede a uma vasta leitura jurídica para chegar a tal interpretação.

Spínola não é poupado, cita-se abundantemente o que escreveu em “Ao serviço de Portugal” em que o antigo presidente deplora os largos milhares de mortos, a demissão de unidades militares que se recusavam a combater, o fuzilamento de militares leais à bandeira portuguesa, as teias de cumplicidades entre as cúpulas marxistas da revolução e os militares subversivos. Luiz Aguiar trata-o como um político incapaz, um transigente que abriu a porta aos piores despautérios e a entrega das populações a grupo comunitários.

Mas voltemos à ideologia da autodeterminação em curso. Luiz Aguiar procura demonstrar que não havia exploração dos preços das matérias-primas, como a copra, o amendoim, o algodão ou o sisal, que se ultrapassara o quadro vivido no Estatuto do Indigenato e que Marcello Caetano tivera sérias responsabilidades por não ter compreendido que devia ter havido consulta popular para reduzir a pó os “movimentos de libertação”. O autor diz mesmo que uma década após a eclosão do terrorismo em Angola, os radicados no Ultramar entendiam que já estava ultrapassado o período da colonização, havia que recorrer a uma consulta às populações com base num homem/um voto. Esses radicados no Ultramar teriam recebido com entusiasmo o 25 de Abril, supondo que chegara a hora da autodeterminação.

Numa tentativa de balanço sobre a “descolonização” passa-se em revista o que se passou em Angola, na Guiné, Moçambique e outras colónias. Vejamos como interpretam a situação da Guiné. Luíz Aguiar e a sua equipa estão bem documentados, insista-se. Fala-se na visita dos três membros do Comité de Descolonização da ONU que visitam as “áreas libertadas”, em 1972.

Esses três membros chegam à Guiné Conacri e partem para a região fronteiriça em 1 de Abril, não longe de Guileje, reúnem-se com Pedro Pires, entram em território da Guiné e fazem uma longa marcha na direção Noroeste, atravessam rios por pontes primitivas e perigosas. A 3 de Abril chegaram ao setor de Balana, uma base do exército do PAIGC, quartel-general do Comissário Político. Deixaram a base em direção ao setor de Cubucaré, passam perto do quartel de Bedanda. Em Cubucaré ficaram duas noites, visitaram a escola e pessoas que viviam em 14 aldeias; ao amanhecer de 7 de Abril chegaram à base do Comissariado Político da Região Sul e daqui seguiram para a Guiné Conacri.

Luiz Aguiar faz a seguinte interpretação desta missão: deslocaram-se a pé, mormente pela calada da noite em regiões de floresta e pântanos; o quartel-general do Comissariado Político era constituído para várias tendas e barracas, e este relatório comprova que as pretensas regiões libertadas não eram mais do que áreas onde o PAIGC tinha conseguido a adesão de uma parte da população, onde tinha refúgios, mas onde não exercia a soberania.

E Luiz Aguiar acrescenta que a situação militar na Guiné tinha melhorado a partir de 1968, o direito das populações à autodeterminação levava seguramente a que estas escolhessem outra solução que não a proposta pelo PAIGC. E explana quanto à situação militar no 25 de Abril. Diz ele que se podia afirmar que a guerra na Guiné estava ganha, embora isto não fosse tão evidente como em Angola.
E escreve-se:

“Tinha-se levado a efeito uma descolonização autêntica e estavam garantidas todas as condições para que, através de um processo autodeterminativo, a nossa presença na Guiné não pudesse continuar a ser contestada pelos defensores do direito dos povos à autodeterminação – muitos dos quais vieram depois a mostrar que apenas lhe interessava o avanço da estratégia soviética. Estava criada uma situação que nos permitia submeter a resolução do problema à prova real, que nos dava toda a capacidade de argumentação quando, em face da persistência da actividade guerrilheira, deixássemos de ter como invioláveis os seus refúgios além fronteira”.

Vale a pena recapitular o que traz de novo este pensamento ultranacionalista: nunca se fala no império colonial português, fala-se que o colonialismo dera lugar a um quadro propício à autodeterminação, o que tinha faltado a Marcello Caetano, por ser pusilânime, fora ter recusado a consulta direta para validar a autodeterminação. Políticos oportunistas, militares subversivos e agentes do imperialismo soviético estragaram tudo.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19073: Notas de leitura (1106): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (54) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13036: Notas de leitura (583): "Capitãs de Abril - A revolução dos cravos vivida pelas mulheres dos militares", por Ana Sofia Fonseca (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
São ouvidas neste precioso livro de testemunhos mulheres de alguns dos mais significativos nomes dos militares de abril. Como elas tinham visto a evolução da guerra, como acompanharam os maridos ao longo de todo o processo conspirativo, como tomaram conhecimento dos acontecimentos da madrugada em que o regime de Caetano caiu, como colaboraram a escrever os documentos de circulação ultra restrita, a inquietação enquanto aguardavam notícias pela rádio, os famosos comunicados do MFA, a história de duas mulheres, uma que leu comunicados no Rádio Clube Português, outra que trabalhava num self-service, o patrão mandou fechar as portas e deu-lhes cravos destinados aos clientes, uma delas irá subir a Baixa a pôr cravos nas armas, mal sabia que estava a compor História.
É a revolução dos cravos no feminino, são depoimentos por vezes comoventes sobre aqueles momentos decisivos em que tombou a ditadura.

Um abraço do
Mário


Capitãs de Abril: como elas viram nascer o golpe de Estado

Beja Santos

A abordagem é original: indagar mulheres que estiveram por detrás de quem fez um golpe militar, quem, naquele ato de sublevação, arriscou praticamente tudo. O que Ana Sofia Fonseca propõe em “Capitãs de Abril, a revolução dos cravos vivida pelas mulheres dos militares”, A Esfera dos Livros, 2014, é contar a revolução no feminino, vivida dentro de casa, como lutaram nas fileiras da conspiração, como deram cobertura às reuniões clandestinas, como passaram à máquina manifestos. “Esta é também a história da única mulher que leu um comunicado do Movimento das Forças Armadas e da rapariga que, sem saber, deu nome à revolução. São personagens de um dos mais importantes acontecimentos do século XX português. Todas elas, cada uma à sua maneira, protagonistas na sombra”. Projeto aliciante e com resultados dignos de reflexão.

Começando com Maria Dina Afonso Alambre de Carvalho, mulher de Otelo, aquele tempo foi dobadoira, como se escreve: “Foram meses de reuniões, sabe bem que o golpe anda a ser preparado. À sua maneira, ajudou quanto pôde. Nos últimos dias, sentava o filho no banco de trás, ocupava o lugar da frente e acompanhava Otelo por onde quer que ele conduzisse. Aceleravam até à casa de camaradas, estacionavam a observar o Forte de Caxias para melhor planear a libertação dos presos políticos. Como se nada fosse, ela ficava no carro, a ver o filho brincar, a disfarçar. Ansiosas, as agulhas de renda burilavam sem descanso uma toalha com rosetas”.
Outra protagonista, Natércia Salgueiro Maia, também recebeu a mesma informação: “Vai ser hoje…”. Uma despedida que lhe deixou o coração apertado. Sabe que o marido partirá à frente de uma coluna a partir da Escola Prática de Cavalaria, tem desempenho primacial na operação “Fim do regime”.
Nessa mesma noite, Ana Coucello, mulher do adjunto operacional de Otelo, Luís Ferreira Macedo preparou um jantar para receber familiares, era preciso aparentar naturalidade, confundir a polícia política. Pouco antes de abril, Ana bateu à máquina um documento intitulado “O Movimento, as Forças Armadas e a Nação”, afinal um manifesto redigido por Ernesto Melo Antunes. Não tem ilusões, algo de formidável está em marcha, este documento fora lido na reunião de Cascais, em 5 de março, no ateliê do arquiteto Braula Reis, agora vai ser difundido pelos oficiais que aderiram ao Movimento. Vitor Alves diz a Teresa: “Olha, é esta noite”. E ela pergunta-lhe: “É esta noite, o quê?”. E ele, de imediato: “A revolução que temos andado aí a preparar…”. Teresa está apreensiva, é a filha do Chefe de Estado-Maior da Armada. E fica à escuta, sabe que a uma determinada hora alguém, na rádio, dirá que se vai ouvir a canção de Paulo Carvalho “E Depois do Adeus”.

Esta ansiedade toma as mulheres de todos os golpistas, Aura Costa Martins, a namorada de Costa Martins, oficial da Força Aérea, ela gritará exuberante, “Já está, já está!”, João Paulo Dinis, pelas 22h55 anuncia a canção de Paulo Carvalho. O golpe de Estado começa a desenrolar-se. A vida desta mulher terá esta e outras alegrias, mas muito sofrimento posterior. Costa Martins, depois do 25 de novembro, sentindo-se perseguido, irá para Luanda, aí celebrarão casamento. O que se segue é desconhecido de muitos portugueses: “O militar colabora com os camaradas do MPLA. Trabalha nos ministérios da Defesa, do Comércio, dos Transportes e do Trabalho. E veio o golpe de 27 de maio de 1977. Será arrastado na desgraça. Foi torturado até acreditar que a morte não é o pior dos tormentos. A maldade tem excesso de imaginação – chicote, espigão de ferro, correia de camião. O rosto numa bola irreconhecível, o corpo em chaga. Aura desesperada à sua procura. Nada sabia do que se passava, apenas conhecia o que acontecera debaixo do seu olhar – uns homens à porta, decididos a levar o português para prestar declarações”. Mas a sua alegria não terá limites quando na Rádio Renascença, pela meia-noite e vinte, Leite Vasconcelos anunciou “Grândola, Vila Morena”. Uma noite à volta da rádio, começara, na plenitude, a madrugada da libertação.

E aqui entraram mulheres que nada tinham a ver diretamente com o golpe. Foi o caso de Clarisse Guerra, locutora na Rádio Clube Português, onde se estreara em 1962. Joaquim Furtado convida a ler um comunicado do MFA. E pelas duas e meia da tarde a sua voz vai para o ar:
“Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas.
Pretendendo continuar a informar o País sobre o desenrolar dos acontecimentos históricos que se estão processando, o Movimento das Forças Armadas comunica que as operações iniciadas na madrugada de hoje se desenrolam de acordo com as previsões, encontrando-se dominados vários objetivos importantes…”. Tudo numa agitação, nos Açores, Melo Antunes e Vasco Lourenço já se apresentaram numa unidade militar, começaram a ser tomadas as medidas necessárias no arquipélago. Fala-se de Custódia do Martins Guerreiro, de Gabriela Ataíde Mota e de Ernesto Melo Antunes de Maria Luísa e António Marcos Júnior, abril já se faz nas ruas, chegou a hora dos cravos.

É uma anónima quem vai batizar a revolução. Mais tarde, saber-se-á de tudo. Celeste Martins Caeiro chegou ao self-service de onde trabalha, o patrão anuncia que não abrirá as portas, há confusão na rua, militares e carros de combate. Distribuiu uma molhada de cravos pelas empregadas, hoje não há clientes para receberem cravos. O que interessa é que Celeste vai desembarcar na Baixa com uma braçada de cravos. A descrição feita pela autora é tocante:
“Admirada com o cenário da Praça Dom Pedro IV, Celeste não arreda pé, deixa-se ficar a ver os militares passarem. A curiosidade enche-a de coragem, aproxima-se de um soldado:
— O que é que estão aqui a fazer?
— Uma revolução!
— E é para melhor ou para pior?
— É para acabar com a guerra e com a PIDE. Saímos do quartel ainda era noite…
— Então, e precisam de alguma coisa? Como é que posso ajudar?
— Se tiver um cigarrinho… Um cigarro calhava bem.
— Bem gostava de lhe dar um, mas nunca fumei… Olhe, tome lá um cravo que tanto se oferece a uma senhora como a um senhor”.
E depois o Largo do Carmo, onde o regime de Marcelo Caetano tombará. A autora ouve Pedro Lauret e muito se fala da Guiné, de Guidage, Guileje e Gadamael, episódios do maior dramatismo. Lauret irá na lancha Orion subir o Cumbijã, embarcou uma companhia de paraquedistas e vai levá-la até ao porto de Cacine, onde se vivem momentos de desespero. A autora atribuiu a Lauret a seguinte apreciação: “Em Guileje, as ordens de Spínola tinha sido no sentido de que os cobardes eram para morrer”.
O 25 de abril triunfou. Todas estas mulheres distendem, sorriem em liberdade. Os homens que amam estão na bênção da vitória. “Capitãs de Abril” preenche uma lacuna, é uma reportagem bem urdida sobre as mulheres esquecidas que enfunaram aqueles dias tempestuosos que precederam a democracia.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13017: Notas de leitura (582): "Por Terras de África - da Terra dos Cancurans ao Reino da Rainha Gunga", por Francisco Búzio Reis (Mário Beja Santos)