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domingo, 13 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16715: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (16): Os nossos dois soldados, cadastrados, que tentaram fugir para o Senegal... Para sorte deles e tranqulidade minha, foram apanhados logo, uma hora depois, pelas milícias que lhes mandei no seu encalce...

1. Mensagem, com data de 11 do corrente,  de Domingos Gonçalves [ex-alf mil inf da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), autor de O Céu de Guidage (edição de autor, 2004]

Braga/11/11/2016

Antes de mais, boa noite de S. Martinho, para todos os que navegam pelas ruas largas da Tabanca Grande, com muitas castanhas, e bom vinho.

Depois, envio mais um texto que poderá´ser publicado.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves


2. CCAÇ 1546  > Destacamento de Guidaje, dia 18/07/1967

De tarde dois soldados tentaram fugir para o Senegal. Eram duas da tarde quando iniciaram a fuga. Eu estava sentado junto do abrigo da 1ª secção quando olhei para os lados da fronteira e vi dois indivíduos brancos, em tronco nu, atravessar a bolanha para o outro lado. Achei estranho. De imediato dirigi-me à porta de armas e perguntei ao sentinela o que se passava, e quem eram os fugitivos.

Tratava-se de dois cadastrados que vieram de outras companhias, já com diversos castigos, e que o comandante de companhia enviou para este paraíso. Deu-lhes um lindo prémio! Mas, apesar deste meu reino ser um verdadeiro paraíso, eles quiseram fugir. São da raça de satanás, que tinha o gozo do paraíso e preferiu as profundezas do Inferno!. Mas eles tiveram mais sorte do que o diabo. Acabaram por não perder o céu donde quiseram sair. Afinal eu mandei buscá-los às portas do Inferno...

São dois loucos. Saíram do destacamento em tronco nu, armados de G3, e de granadas de mão, atravessaram a fronteira na bolanha e seguiram pelo Senegal dentro.

Quando me apercebi do que se passava mandei chamar as milícias nativas e mandei-as em perseguição dos fugitivos, em território do Senegal.

A decisão que tomei teve de ser muito rápida. Bastariam alguns minutos de hesitação e eles já estariam do outro lado, muito dentro do Senegal, onde não teríamos nenhuma hipótese de os prender.

Cerca de uma hora depois, as milícias conseguiram prendê-los, a mais de dois quilómetros de Guidage, já bastante longe da fronteira.

De imediato informei o comando da companhia sobre o sucedido e pedi que os viessem buscar.

Guidage não pode transformar-se num manicómio, e muito menos numa prisão de qualquer tipo de cadastrados. Pelo menos vou tentar que isso não aconteça.

Só não consigo é adivinhar o que terá passado pela cabeça destes dois rapazes, que nem são ingénuos, para que tenham planeado, de forma tão irracional, a fuga para o outro lado. Não consigo mesmo entender para onde pretendiam fugir, ou a quem se queriam entregar.

Desertar da tropa, a partir desta terra, dada a vizinhança da fronteira, nem é difícil... Eles é que tiveram azar quanto ao momento em que pretenderam concretizar uma fuga mal pensada... Mesmo para eles, penso que este deve ter sido o melhor desfecho para toda esta história triste.

Se tivessem sido apanhados pelas autoridades senegalesas, não se livrariam de trabalhos. Se por acaso fossem os turras a prendê-los, iriam passar, por certo, bastantes mais problemas. Assim, resta-lhes apenas cumprir o castigo que a tropa entender aplicar-lhes.

Como não participei, por escrito a ocorrência, ficando tudo pela mensagem em que pedi para os retirarem de cá, pode muito bem acontecer que não venham a ser molestados.


Destacamento de Guidaje, dia 19/07/1967

Veio de Binta [, sede da companhia,]  uma coluna de viaturas. Para facilitar o trabalho aos que vinham a escoltar a coluna, mandei picar a estrada até Ujeque.

Trouxeram só três viaturas e passaram bem...

Das coisas que fazem falta no destacamento não trouxeram nenhuma. Vieram apenas buscar os dois indivíduos que ontem tentaram fugir. É um problema a menos que deixo de ter aqui.

De tarde dei uma volta pelos arredores de Guidage, para me certificar do andamento dos trabalhos agrícolas.

Está tudo muito adiantado. Esta gente tem trabalhado bastante. O calor e a chuva não têm prejudicado o andamento dos trabalhos.

Estes campos verdes de milho que cresce à volta de Guidage fazem-me lembrar os da metrópole. Eles têm um pouco da verdura do Minho... E fazem-me olhar para muito longe. É a saudade!...
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Nota do editor:

Último poste da série 28 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16534: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (15): 1 de Abril de 1967, o dia em que se verificou a morte, em combate, do Alferes Linhares de Almeida

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16534: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (15): 1 de Abril de 1967, o dia em que se verificou a morte, em combate, do Alferes Linhares de Almeida

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de hoje, 28 de Setembro de 2016:

Prezado Luís Graça:

Antes de mais, votos de boa saúde.

Depois, na sequência do texto enviado pelo Dr. Adão Cruz, tomo a liberdade de remeter mais um apontamento, que poderá ser publicado, sobre os acontecimentos ocorridos no dia 01/04/1967, dia em que se verificou a morte em combate, do Alferes Linhares da Almeida[1].

Um abraço para todos os camaradas.
Domingos Gonçalves

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Às cinco horas da manhã saiu de Guidage uma coluna de quatro viaturas, transportando dois grupos de combate. Cerca de 200 metros antes da antiga tabanca de Ujeque os dois grupos desceram das viaturas e seguiram a pé, ao longo de uma picada que segue para Uália.

Cerca de 1000 metros antes de se atingir esse local montou-se, em sítio previamente escolhido, uma emboscada. A nossa força permaneceu emboscada até às nove horas.


Posição relativa de Ujeque, Samoje/Talicó/Sambuiá, Binta e Bigene
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné

Durante o período em que permanecemos emboscados não passou ninguém pela picada. Todavia, pelo carreiro adiante, existem muitos vestígios da passagem dos gajos.

Pouco antes das oito horas, não muito longe de nós, desencadeou-se um tiroteio bastante intenso. O detonar das granadas, e as rajadas das armas ligeiras, diziam que tudo se estava a passar relativamente perto. Contudo, não sabíamos se o fogo era com a Companhia 1547, de Bigene, ou se era com a 1585, e com os “Roncos” de Farim.

Durante cerca de quinze minutos o fogo deixou de se ouvir, para voltar, de novo, a iniciar-se, com a mesma intensidade.

Pelas nove horas levantou-se a emboscada, armadilhou-se a picada, e iniciou-se o regresso a Ujeque e, de seguida, a Binta.

De tarde chegou-nos a notícia: Os tiros que tínhamos escutado tinham sido travados com a Companhia de Bigene, que sofreu dois mortos, um dos quais o Alferes Almeida, a quem chamávamos o Bijagó, por ser natural aqui da Guiné.

No espaço de quinze dias já morreram na península de Sambuiá cinco dos nossos homens, sendo três negros e dois brancos. Os feridos, alguns com muita gravidade, também já são bastantes. Apesar de todo este sacrifício, em homens e material, o mito de Samboiá ainda continua vivo. Não é com este tipo de forças, que temos aqui, que se destruirá aquela base inimiga. Até hoje não foi possível chegar ao coração da base dos gajos. Todo o nosso trabalho, e todas as nossas canseiras, têm sido inúteis.

Para além disso, os estúpidos dos comandantes mandam fazer operações naquela área algumas vezes sem qualquer apoio aéreo. Tudo isto não passa de uma autêntica loucura. Infelizes, os vivos! Para os mortos, apenas poderá haver lágrimas, e saudade.

O Vidal Cambayo, empregado da Casa Ultramarina, foi preso pela PIDE, de Farim. Desde há bastante tempo que havia suspeitas sobre a filiação dele no PAIGC.

Era uma pessoa que não nos inspirava confiança, e que vivia paredes meias com a tropa, em condições de recolher todo o tipo de informações sobre os nossos movimentos.


Texto, retirado do relatório de actividades do batalhão. 1887

"A morte do alferes Linhares de Almeida foi extraordinariamente sentida na sua companhia, por ser o seu elemento mais destacado na actividade operacional em que revelou inexcedível coragem e valentia, que arrastavam e entusiasmavam pelo exemplo os restantes elementos. A estas qualidades notáveis aliava qualidades pessoais também notáveis, que lhe granjearam além do respeito, grande amizade e simpatia de todo o pessoal. Nesta operação, como de costume, o alferes Linhares de Almeida distinguiu-se pela forma como, após os primeiros tiros, marchou à frente de seus homens numa zona manifestamente perigosa, e como após os primeiros tiros ainda tentou reagir, até ser mortalmente atingido."
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 27 de Setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16528: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): O Tanque

Último poste da série de 7 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16366: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil): O padre de Guidaje (imã)

domingo, 7 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16366: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (14): O padre de Guidaje (imã)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 1 de Agosto de 2016:

Com votos de saúde, e de boa férias, tomo a liberdade de remeter mais um pequeno texto, que poderá ser inserido no Blogue. 

Aproveito também a oportunidade para mandar ao Dr. Adão Cruz, médico do Batalhão 1887, a que pertenci, UM GRANDE ABRAÇO.

Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546

O padre de Guidaje (imã)

O sacerdote da religião muçulmana é, talvez, a pessoa mais importante e mais influente de Guidage. É um homem virtuoso e bom. Para além da actividade religiosa propriamente dita, a que se dedica com muita devoção, ele é também o professor de árabe, que todos os dias vai ensinando à criançada os segredos da língua em que foi escrito o Sagrado Alcorão.

Como seria bom que existisse aqui, também, uma escola e um professor, onde estas crianças pudessem aprender, em simultâneo com o árabe, a língua portuguesa! Mas a nossa administração, infelizmente, nunca se preocupou com isso.

Mas o padre, dá gosto vê-lo, junto da sua casa humilde, rodeado de crianças que seguram nas mãos pequenas tabuinhas, onde vão escrevendo, com uma tinta preta, o alfabeto árabe, ou outros exercícios que, pacientemente, lhes vai ensinando.

Sob a capa de um homem simples, que de facto é, esconde-se uma personagem culta, conhecedora da história do seu povo. Às vezes falo com ele, sempre com muita seriedade, por forma a que das diferenças entre aquilo em que os dois acreditamos, nada surja que o possa magoar.

Recentemente ofereceu-se para me ensinar a língua árabe. Estive tentado a iniciar as lições. Todavia, porque não irei ficar por aqui o tempo suficiente para assimilar seja o que for, preferi não dar início ao estudo. Mas fica-me uma certa pena.

Em conversa recente dizia-me:
- Hoje são os portugueses que estão na Guiné e mandam nesta terra e neste povo. Mas não foi sempre assim. Tempos houve, já muito longínquos, em que foi o meu povo que mandou em Lisboa(1). Foi destas terras que partiu um conquistador poderoso que dominou pela força das armas todas as terras africanas a norte da Guiné, e chegou mesmo a mandar em Lisboa. Foi uma dominação quase que efémera, mas que aconteceu.

Ainda há pouco tempo fui convidado para ser o “padrinho” de uma menina recém nascida. E ele lá estava na cerimónia.

A dado momento, enquanto o sangue de uma galinha decepada jorrava para o chão, perguntaram-me o nome que dava à criança. E eu respondi:
- Quero que se chame Fátima. É um nome muito bonito.

E ele, o padre, respondeu-me:
- Sim! É um nome muito bonito! “Alfero” sabe. É o nome da filha do profeta. Trata-se do nome de uma grande mulher que todos veneramos e por quem temos muito respeito.

E acrescentou:
- O “Alfero”, ao escolher o nome já sabia que o povo ia gostar muito. E a menina, quando crescer, vai sentir-se orgulhosa do nome que o “alfero” lhe deu.

Em conversa recente lamentava-se:
- Quando a guerra começou a tropa dizia-nos que ao fim de três ou quatro anos tudo estaria terminado. Mas isso ainda não aconteceu. Os anos foram-se passando, e a guerra, em vez e terminar, tem continuado cada vez mais implacável e dura. E a paz não se vislumbra ainda no horizonte.

Com uma certa tristeza perguntava-me:
- “Alfero”... Esta guerra quanto tempo mais irá ainda durar? Este povo, quando voltará a ter paz? Todo este sofrimento a que o povo está sujeito, por quanto tempo ainda se prolongará?

Com alguma dificuldade respondi-lhe que esta guerra ainda vai durar muitos anos e que ninguém poderá vaticinar-lhe o fim.

Ele entende que nós, os que estamos aqui, não temos nas mãos o poder que permita decidir seja o que for nesta matéria, assim como ele, e o resto do povo, que também não têm voz activa em nada que respeite à definição do futuro desta terra e desta gente.

Ele entende, e bem, que o futuro de muitos é decidido pelo capricho de uns poucos, que indevidamente assumem e exercem um poder que ninguém lhes confiou. Quer nós, quer os turras, dizemos que é em nome do povo, e para bem do povo, que esta guerra se faz. Mas, ninguém perguntou ao povo o que de facto pretende, que futuro deseja ter. Todos pretendem falar em nome do povo. Todos pretendem actuar e fazer a guerra em nome desse mesmo povo. Todos mobilizam os filhos do povo para a guerra, colocando guinéus contra guinéus.

E o povo, esse, termina por não ter nada daquilo que precisa, destruindo-se mesmo ao lutar de um e do outro lados.

Nota:

(1) - Referia-se, penso eu, às invasões muçulmanas, dos almorávidas, provenientes do Norte de África
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 Nota do editor

Último poste da série de 21 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15648: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil) (13): Dias 13 e 14 de Dezembro de 1967

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15648: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (13) - Reportagens da Época (1967): Dias 13 e 14 de Dezembro de 1967

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 11 de Janeiro de 2016:

Prezado Luís Graça:

Tomo a liberdade de remeter mais um pequeno texto que poderá ser publicado.

Para todos, continuação de feliz ano de 2016.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)

REPORTAGENS DA ÉPOCA - 13



Dia 13/12/1967

Às oito horas saí com duas secções e com os caçadores nativos para verificar a causa do rebentamento das armadilhas.
Afinal, tinham sido accionadas por bichos...
Rearmadilhei, sensivelmente nos mesmos locais, as duas estradas.

O destacamento já não recebe correio da metrópole há três semanas...
O envio das cartas ainda se consegue fazer, de quando em quando, através dos helicópteros que levam para Bissau os doentes, ou os feridos. Infelizmente estamos também a ficar sem aerogramas e selos.

Ontem expedi uma carta com duas moedas de 2$50 coladas ao envelope com fita adesiva...
Espero que a façam seguir...

À noite ouvia-se perfeitamente o batuque na tabanca senegalesa de Maria.
É um pouco de festa que nos chega de longe.

Do nosso lado os tempos já não permitem festas...
É uma tristeza...
Milagrosamente hoje conseguiu-se uma vaca para matar.
É a primeira vez que no rancho geral se vai comer carne em Guidage, desde que estou aqui em substituição do colega doente.

Foi uma aventura...
Durante a noite consegui que um nativo se deslocasse ao Senegal e roubasse o bicho...
O procedimento não é muito ético...
Mas a sobrevivência deve estar acima da moral caseira...
Pelas dez horas da noite o animal entrava, sem pagar qualquer imposto alfandegário, nos meus domínios.

Enquanto o roubo não der problemas...
Lá terá que ser...
É mesmo para continuar.

De quando em quando, a carne é um bem demasiado precioso para que se possa dela prescindir.
E como do outro lado da fronteira há muito gado, não é por causa de algumas vacas que a economia do Senegal se vai ressentir...
A economia dos donos das vacas, essa, enfim, poderá ficar um pouco tremida...


Dia 14 

Pela manhã a população do Senegal veio queixar-se dos turras, dizendo que eles, de noite, tinham roubado uma vaca...
Desta vez, eles ficaram com a fama...
E nós com o proveito...
Tenho que começar, também, a ser guerrilheiro...
A gente faz o mal...
A culpa cai para o lado dos outros...
Assim é que é bom...
E hoje não aconteceu mais nada de especial...
Nem tiros houve, para quebrar esta monotonia...
Chegaram a Ierã cerca de 100 turras vindos da zona do Oio.

Têm como missão carregar material bélico, alimentação e roupas para a referida área.
Conseguiram trazer do Oio 30 vacas para vender à população do Senegal.
O dinheiro conseguido com a venda dos animais destina-se à compra de alimentos.

O grupo que recentemente atacou Bigene e tentou atacar este meu reino continua em Ierã.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de julho de 2015 Guiné 63/74 - P14820: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil) (12): Coluna a Farim

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14820: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (12) - Reportagens da Época (1967): Coluna a Farim

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 18 de Junho de 2015:

Prezado Dr. Graça:
Saúde. Mais uma vez tomo a liberdade de remeter um pequeno texto que poderá ser publicado.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)

REPORTAGENS DA ÉPOCA

12 - Coluna a Farim

Dia 19 de Junho de 1967

Parti de Binta com o meu grupo de combate, e alguns nativos armados, numa escolta rotineira, como tantas outras que temos feito até Farim.
A coluna seguiu normalmente, e sem incidentes, até Canicó.
Ao atravessar essa tabanca abandonada, quando a estrada começa sensivelmente a descer, vi, não muito longe, levantar-se nos ares uma nuvem de fumo negro, e estranho.
Naquele local nada justificava o aparecimento daquele fumo.
Mandei parar a coluna de viaturas, deixei ficar metade do pessoal a manter a segurança dos camiões, e avancei pela estrada adiante, com os restantes soldados, para averiguar as causas daquele fumo insólito.

Binta, localizada na margem direita do Rio Cacheu, próximo da estrada Farim-Bigene. Vd. Carta da Província da Guiné - Escala 1:500.000

Ao fim de algumas centenas de metros, os homens que seguiam mais à frente vieram dizer-me:
- É uma viatura que está a arder.
- Uma viatura?
- Sim, uma viatura. - Confirmaram-me.

Segui adiante com bastante apreensão, e com todas as cautelas possíveis.
A dado momento começámos a ouvir gemidos, vindos ainda de certa distância.
Seguimos adiante.
O primeiro vestígio concreto de que algo de anormal se tinha passado, foi metade do pneu de uma viatura, desfeito no meio da estrada.
Algumas dezenas de metros, mais à frente, estava uma viatura, a arder.
De quando em quando, no meio do fogo detonavam munições.
Cautelosamente, fomo-nos aproximando.

Sob a viatura incendiada jazia, totalmente carbonizado, o corpo de um soldado, que só com muita dificuldade me apercebi de que era de um branco.
Ao lado da estrada, jaziam os corpos de três pretos mortos.
A gemer, desfeito em dores, encontrei o furriel H., do pelotão de morteiros, com o corpo todo coberto de pó, e desfeito pelos estilhaços.
Ali perto, escondidos entre as palmeiras, alguns nativos armados a manter a segurança.
Tropa branca, não se via nenhuma.

Depois, quando se aperceberam da nossa presença, apareceram alguns soldados brancos, bem como o alferes, comandante da coluna, que se dirigia para Binta.
O que ali estava não era uma força organizada, ou a escolta de uma coluna de viaturas, mas um grupo de homens vencidos, desmoralizados, que os turras, se o tivessem tentado, teriam dizimado, sem dificuldades, ou mesmo feito prisioneiros.
Mas ninguém decidia nada.

Perante aquele cenário, mandei avançar para junto do local, com toda a precaução, os meus soldados, que tinham ficado a guardar as viaturas, informei, via rádio, o comando do batalhão, sobre o que se tinha passado, recolhi os feridos, que mandei, de imediato, a toda a velocidade para Farim, e mandei carregar noutra viatura os cadáveres.

Entretanto, os meus homens passaram a pente fino todo o terreno à volta da estrada, e detectaram ainda uma mina anti-carro, que se fez explodir no local.
A mina que rebentou sob o rodado da viatura, bem com a que, depois, se detectou, era comandada à distância, através dum engenhoso sistema de fios.
Afinal, se eu tivesse saído de Binta alguns minutos antes, seria eu a sofrer a emboscada, e os efeitos da mina.

Entretanto, chegaram ao local os “roncos” de Farim, e um pelotão da companhia 1585, com a finalidade de verificar donde tinham vindo os turras, e efectuar a perseguição do grupo.
Quando tudo ficou resolvido dei ordem de marcha aos meus homens, e seguimos para Farim.
Regressei a Binta, fazendo a pé quase todo o percurso, e picando a estrada.
Estou, no entanto, horrorizado.
Doido.

Nunca tinha visto, nem me passava pela mente ver, um quadro humano tão horrendo, e sinistro.
Esta guerra mostra-nos todos os dias cenas diferentes, terríveis, que jamais se apagarão das nossas memórias.
Mas há momentos, que são demasiado sinistros, que escapam às leis da racionalidade, que todos preferiríamos não ter vivido.
Ainda hoje, a companhia de intervenção vai realizar uma operação, que terá por objectivo seguir o trilho que os turras deixaram no capim quando se retiraram, no fim da emboscada.
Só que, a esta hora, eles já estão bem longe, no interior do Senegal, a delirar de satisfeitos, com todo este sofrimento.
A vida não passa de uma grande loucura.

No regresso de Farim, dei escolta aos homens da secção de cinema, do Quartel-General, que vieram dar umas sessões em Binta, e em Guidage. À noite exibiram, efectivamente, um filme, mas não fui assistir. Estava ainda demasiado impressionado com as cenas reais, que de manhã tinha contemplado.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14698: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (11): Buruntuma

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14698: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (11) - Reportagens da Época (1967): Buruntuma

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Prezado Luis Graça:
Envio mais alguns dados, respeitantes aos últimos dias do mês de Junho de 1966, que poderão ser publicados.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

11 - Buruntuma

Dia 24 de Junho de 1966

Ainda cedo saí de Nova Lamego escoltando seis viaturas carregadas de géneros alimentícios.
Deixando para trás uma imensa nuvem de pó as viaturas fizeram-se à estrada.

Ao fim de três quilómetros uma viatura avariou-se e a coluna-auto imobilizou-se na estrada.
Impacientes, os soldados murmuravam:
- Raios partam as viaturas... Linda maneira de entrar na guerra...

Apoiando-os, um furriel insinuava, convencido:
- Sempre a mesma porra... Mandam-nos escoltar umas viaturas que já deviam estar na sucata. Isto é tudo uma porcaria...

Como não havia solução para a avaria mandei distribuir a carga que a viatura transportava pelas restantes, pedi o reboque para levar o camião avariado ao ponto de partida e segui viagem.

Em Piche juntaram-se à coluna duas viaturas militares e quatro civis.

No destacamento da Ponte do Caium esperava-me um pelotão da companhia de Buruntuma, que picou a estrada.

Sem qualquer incidente atingi Buruntuma pouco depois do meio-dia.

Estrada Nova Lamego-Buruntuma

Os cerca de quarenta homens que comandava praticamente nada almoçaram após a chegada.

Em Nova Lamego não nos distribuíram a ração de combate com a desculpa de que haveria uma refeição quente quando chegássemos a Buruntuma...
Em Buruntuma não havia a tal refeição quente porque não esperavam que chegássemos antes do almoço.
Valeu a todos a camaradagem da guarnição local e o desenrascanço imaginativo de cada um.

De tarde o capitão levou-me a casa de um comerciante branco que nos ofereceu Whisky com Água Castelo.
Diz-se que o homem é um ex-degredado que, após o cumprimento da pena, ficou por estas paragens.
O capitão de Buruntuma é um homem de aspecto pachorrento, alto e gordo, compreensivo e bondoso. Parece-me um homem inteligente e sensato.

O aquartelamento e a povoação localizam-se quase sobre a linha da fronteira com a República da Guiné-Conakry.
É a única povoação no raio de alguns quilómetros.

A guerra obrigou as populações ao abandono das tabancas de que, um pouco por todo o lado, ainda restam vestígios.
Uns retiraram-se mais para o interior do território português. Outros fugiram para o Senegal, ou para a República da Guiné-Conakry. É principalmente entre esses que fugiram, que os terroristas recrutam os seus combatentes.

À noite ouviu-se um tiro dentro do aquartelamento. Gerou-se alguma confusão mas, afinal, não se tratou de ataque do inimigo.


Dia 25

De manhã saí com duas secções e alguns “milícias” à procura de lenha para a cozinha do quartel. Carregaram-se, sem grande dificuldade, duas viaturas de madeira seca, utilizada na construção das tabancas abandonadas.
O ambiente que reina entre a tropa é bom.
O calor não deixa de ser um martírio mas o trabalho ao Sol não é muito.

À noite, pelas dez horas, não longe do arame farpado, ouviu-se uma explosão, talvez de granada de morteiro.
A tropa manteve-se serena e não aconteceu mais nada.
No entanto, basta isto para manter todas as pessoas num “stress” permanente, num ambiente de medo e angústia... São os nervos sempre à flor da pele...


Dia 26

Às quatro horas e meia da manhã o capitão acordou-me e deu-me ordem para mandar equipar o meu pelotão com a finalidade de abrir o itinerário até ao Caium.

Piquei a estrada de Buruntuma a Caium, escoltei uma coluna de viaturas de Caium, Buruntuma e de novo até Camajábá.
Pela manhã, quando nos dirigíamos ao Caium, ouviram-se rajadas de armas automáticas lá para os lados da fronteira.
Estes disparos têm um efeito psicológico bastante negativo. Obrigam-nos a uma tensão quase permanente.

Ao entardecer rebentou uma armadilha colocada pelas nossas tropas perto da fronteira.
Um alferes da guarnição local com o respectivo grupo de combate, reforçado por alguns dos soldados do meu grupo, comandados por mim, foi verificar as causas da explosão.
Junto do local das armadilhas, que não sei se era em território português, ou da Guiné-Konacry, encontravam-se duas vacas quase mortas. Com alguns tiros de G3, acabou-se-lhes com a vida.
Imediatamente, do outro lado da fronteira, bastantes armas pesadas começaram a disparar sobre Buruntuma, enquanto que, as armas ligeiras, alvejavam o terreno fronteiriço onde nos encontrávamos.

Cautelosamente conseguimos retirar do local, mais para o interior, sem, contudo, conseguir entrar no nosso aquartelamento que, durante cerca de uma hora, ficou sob o fogo cerrado das armas do inimigo.
Abrigados por um ligeiro declive do terreno, e pela protecção do arvoredo, sentíamos nos ares o silvar das granadas que, às dezenas, choviam sobre Buruntuma.
Aqui e além as explosões provocavam incêndios, principalmente nas casas dos nativos, cujo telhado era feito de capim.

Quase em simultâneo as armas de Buruntuma também abriram fogo. As bazookas e o canhão sem recuo vomitavam granadas ininterruptamente. Os morteiros cuspiam, para o outro lado da fronteira, os seus tenebrosos projécteis. Através das seteiras dos abrigos as metralhadoras consumiam centenas de munições. As armas ligeiras, os canos já aquecidos, disparavam, um pouco ao acaso, contra um inimigo que não tinham capacidade de atingir.
De um e outro lado era ensurdecedor o ruído da fuzilaria e o detonar das granadas.

Anoiteceu.

De ambos os lados começou a abrandar a intensidade do combate.
Lentamente, o silêncio foi caindo sobre a povoação martirizada. Era o fim de uma pequena batalha.

Cautelosamente, os soldados que estávamos fora do aquartelamento, longe da protecção dos abrigos subterrâneos, fomo-nos aproximando do arame farpado e entrámos no quartel.

Dirigi-me ao posto de socorros. Lá dentro, aguardando tratamento, já havia muitos feridos. Outros, brancos e negros, foram depois chegando.
O médico, que na vida civil era cirurgião, trabalhava afanosamente, ajudado pelos enfermeiros, extraindo estilhaços, colocando ligaduras, injectando soro... Só muito tarde deu por findo o seu trabalho.

Contabilizados os prejuízos verificou-se que havia três mortos entre a população e bastantes feridos tanto entre os soldados como entre os civis.
Para além disso o nosso sistema de transmissões estava inutilizado, as instalações danificadas e alguns indígenas tinham perdido as suas casas.

Trabalhava em Buruntuma um agente da PIDE que, através do sistema de transmissões particular, de que dispunha, alertou Bissau para o sucedido e pediu que fossem evacuados para o Hospital Militar os feridos mais graves.

Eram já altas horas da noite quando nós, os oficiais, nos fomos deitar.
No abrigo onde dormíamos comentavam-se os acontecimentos com alguma insensibilidade.

Já deitado, o capitão murmurava:
- Os filhos da puta não nos deixam em paz...

A guerra para ele era algo a que já estava habituado e pouco o impressionava. Quando em conversa se referia a acções de combate transmitia até a ideia de gostar das sensações da guerra.
Eu sentia-me de certo modo aterrorizado com a baptismo de fogo que, sem o desejar fui obrigado a receber.
Foi um baptismo sério e prolongado... E cheio de calor!...


Dia 27

A noite passou-se rapidamente.
Pela manhã, o que já era hábito na localidade, a tropa levantou-se cedo.
De tronco nu, os oficiais abandonaram o abrigo, subiram para o jeep, deram um volta pela tabanca para verificar os estragos causados pelo ataque, contemplaram as cinzas de algumas moranças dos nativos, as ruínas da capelinha da virgem onde os soldados costumavam rezar, as viaturas danificadas, as paredes das casas esburacadas pelos estilhaços das granadas, e dirigiram-se para o edifício da messe.

Enquanto tomavam o pequeno almoço, descontraído, o capitão comentava:
- O pior foi terem-nos causado bastantes feridos e haver mortos entre a população. Os prejuízos materiais podem remediar-se. São transitórios, superáveis. O sangue é que não tem preço. Mas chegará o dia em que eles (os terroristas) receberão o pagamento com os respectivos juros.

Os alferes apoiavam-no e expunham também os seus pontos de vista.
Espíritos calmos e frios, habituados, pela força das circunstâncias, à dureza da guerra, aqueles homens enfrentavam-na com a maior das naturalidades.
Foi no meio deles que a guerra me surpreendeu. Em nenhuma outra parte da Guiné eu teria, por certo, oportunidade de a sentir tão sinistra e tão dura.

*

A manhã ia alta.
O Sol surgia misterioso, quase triste, rompendo, a custo, num céu plúmbeo, carregado de vapores e neblina.

Ao longe, nos ares, sentiu-se um ruído, a princípio quase imperceptível, que foi aumentando de intensidade, até que no céu tristonho de Buruntuma se avistou a “Dornier 27”, a pequena aeronave que vinha proceder à evacuação dos feridos do ataque do entardecer anterior, para o hospital militar de Bissau.
Um pelotão de atiradores deslocara-se já do aquartelamento para a zona da pista de aterragem, que ficava muito perto do arame farpado, para que tudo decorresse com a segurança necessária.

Quando das imediações se transmitiu a ordem para aterrar, o pequeno avião começou a perder a altitude e iniciou a manobra de aterragem.
De repente, a avioneta começou a ser alvejada com rajadas de armas automáticas instaladas do outro lado da fronteira.
Avisado pelas transmissões das tropas terrestres o piloto tomou de novo altitude e manteve-se afastado da localidade.

Entretanto começou uma nova batalha. De ambos os lados os morteiros e as bazookas funcionaram de novo, os canos das espingardas voltaram a vomitar centenas de projécteis, e os tiros do canhão fizeram de novo tremer o céu e a terra.
As explosões sucederam-se por mais de uma hora martirizando, do nosso lado, a população e a tropa de Buruntuma, e do lado deles, República da Guiné-Konácry, a população civil e a tropa estacionada em Kadica, antigo posto fronteiriço.

E o funcionar das armas trouxe de novo a morte e mais sofrimento às povoações martirizadas.

De repente, quando a batalha parecia não ter fim, surgiram no céu dois bombardeiros da FAP, em auxilio das forças terrestres.
Eram os FIAT, aviões a jacto, que pela primeira vez fizeram a sua aparição no teatro de guerra da Guiné.
Os aviões salvadores sobrevoaram, a pequena altitude, a área do combate, e foi o suficiente para que o inimigo calasse as suas armas.

Entretanto, chegavam mais quatro aviões T6, que se mantiveram nos céus de Buruntuma até que os helicópteros e a “Dornier 27 levassem os feridos para o Hospital Militar.
Mais tarde soube que os aviões FIAT que sobrevoaram, naquela manhã, a tropa de Buruntuma, andavam ainda desarmados.
Bastou apenas o efeito psicológico dos seus voos rasantes para que o inimigo se retirasse.

As consequências do ataque foram graves. Tivemos um militar que morreu com os ferimentos causados pelos estilhaços de uma granada, dois alferes feridos, um dos quais com bastante gravidade, e bastantes feridos ligeiros.
Entre a população civil voltou a haver mortos e feridos.

*

Fixei, com dor, aquele corpo quase nu, mutilado e coberto de pó.
E senti pena, medo, tristeza, horror...Quantas coisas mais...
Ajudei a retirar do abrigo, que não abrigou nada, o corpo do soldado morto, e o sangue, ainda quente, tingiu-me as mãos...
E pensei na morte... A morte que todos pressentimos e adivinhamos à nossa volta, mas que não entendemos.
Li algures, ou alguém me disse ou ensinou, que a alma é igual à diferença entre o cadáver e o homem vivo. E que diferença avassaladora e enorme!...

Olhando a corpo inerte e ensanguentado do jovem soldado, assim de forma tão súbita e cruel arrancado ao fulgor da juventude e à vida ainda por viver, pensei:
- O corpo é o nada!... A sombra!... A miragem!... A ilusão!...
A alma é tudo!... Confunde-se com a vida!...
E dizem-nos tantas mentiras sobre a morte!...
Ensinam-nos que é isto... Que é aquilo...
E, afinal, o que será?
Ninguém sabe!...
É uma experiência individual, a última, da qual, que se saiba, ninguém regressa para dizer como é.
Acontece à nossa volta sob as formas mais bizarras
É o passar sereno e imperceptível... E é, também, convulsão e violência...
É suave como o lento apagar de uma ténue luz, e é rápida e fogosa quando chega montada no veloz projéctil cuspido por uma espingarda, ou no estilhaço quente de uma qualquer granada de morteiro...
Mas, é sempre ela... O fim... Ou, talvez, o princípio de uma realidade nova...
De uma realidade que todos desejam que nunca chegue... Que permaneça longe... Muito longe... Para além do tempo.
Mas, que me leva a estar aqui a martirizar-me com estes pensamentos, se não é com este tipo de ideias, ou de ilusões, que a vida se constrói? O mais importante é, efectivamente, pensar em viver... É pensar no hoje... No amanhã...No futuro que é preciso construir...


Dia 28 e seguintes

O major das transmissões, do Quartel-General, veio instalar um novo sistema de rádio.
Mandaram para cá, também, um pelotão de Cavalaria, com as auto-metralhadoras blindadas.
A tropa e os nativos iniciaram a construção de novos abrigos, e a melhoria dos já existentes.
Quem sabe...Talvez estejam para vir dias ainda piores...
Temos que estar preparados para o que der e vier... Buruntuma fica mesmo junto da linha de fronteira e os gajos não têm grandes dificuldades em se aproximar do aquartelamento para nos atacar.
Eles têm a protecção de um santuário.
Nós encontramo-nos em terreno descoberto.

*

Buruntuma esqueceu depressa aqueles dias terríveis e regressou a uma vida pacata e normal, feita do labutar diário dos seus homens, das orações balbuciadas em comum, na pequena mesquita, várias vazes ao dia, e da esperança em Alaah, o Deus que maioritariamente este povo adora.
As populações enterraram os seus mortos, com mágoa e preces, e embora vivendo no receio de um novo ataque, ao verificarem que chegavam mais reforços militares continuaram a confiar na protecção do homem branco.

De além fronteira, quando os ânimos se acalmaram, começaram a chegar algumas informações trazidas pelos nativos que se deslocavam ao nosso território.
Os ataques que sofremos tinham sido concretizados pelas tropas regulares da República da Guiné-Conakry, aquarteladas em Kadica. Mas, o preço que pagaram foi bastante pesado. Grande parte das suas instalações ficaram arrasadas pelo fogo dos nossos morteiros, e a guarnição, devido às pesadas baixas sofridas teve de ser imediatamente substituída.

Por outro lado, vendo quanto era frágil a protecção que o Governo de Conakry lhes garantia, as populações começaram a abandonar a zona fronteiriça, o que para as nossas tropas não deixou de ser negativo.
Com efeito, não havendo tabancas habitadas e movimento de pessoas, deixa de haver fluxo de informações sobre o movimento das forças da guerrilha e sobre a sua localização, o que dificulta a programação das nossas actividades.

A partir do ataque, como nas casernas e messes a protecção contra armas de tiro curvo (morteiros) era quase nula, todos os soldados passaram a dormir em abrigos subterrâneos.
À entrada dos abrigos, que mais não eram do que pequenos antros, improvisaram-se pequenas plataformas cobertas com panos de tenda, e todas as noites permanecíamos ali jogando as cartas e bebendo Whisky. Só mesmo quando os mosquitos se mostravam insuportáveis, ou os últimos cubos de gelo acabavam por derreter-se, ao mesmo tempo que o Whisky desaparecia da garrafa, cheios de sono, íamos dormir.

De noite, quando acordava, sentia os ratos, sem grandes cuidados, mexerem-se por entre os toros da madeira de que era feito o tecto do abrigo.
Pelas seteiras daquela espelunca, durante a noite, entrava uma aragem muito branda, ligeiramente fresca, que enchia de prazer o meu corpo seminu, estendido sobre a cama, que em simultâneo ia ficando coberto pelo pó que os ratos, ao deambular pelo tecto do abrigo, iam soltando do madeirame.

As noites passavam-se depressa e o despertar era sempre muito cedo.
Na messe, ao pequeno almoço, havia sempre café com leite condensado, chá gelado e pão com manteiga.
Ao meio da manhã era sempre costume fazer-se algum petisco.

De quando em quando, de jeep, fazíamos visitas à tabanca.
Era sempre o capitão a conduzir a viatura.
Ele andava sempre em tronco nu, muito à vontade, exibindo sem qualquer complexo os quilos de banha que se lhe escapavam dos calções, superiormente apertados por um cinto de lona.
Ele parava a viatura à porta das palhotas, recebia cumprimentos da população que o estimava, abraçava-se às bajudas que se lhe vinham sentar sobre os joelhos e, sempre a sorrir, o jeep superlotado de criançada, regressávamos ao quartel..

E foi assim que Buruntuma esqueceu os últimos dias de Maio de 1966, o terror e a morte, o sangue e as lágrimas, o desespero e o ódio, regressando a uma existência pacífica, despreocupada e feliz, da qual todos os homens sentem a fome.
Após uns dias de pesadelo, sombrios e sinistros, a gente boa e simples desta terra teve de novo a existência calma que merece.

As preces a Allah, o Deus que este povo adora, e a quem se reza muitas vezes ao dia, puderam de novo, serenamente, sair dos lábios destes muçulmanos bons e generosos, convictamente devotos.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (10): Operação Cernelha

sábado, 21 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (10) - Reportagens da Época (1967): Operação Cernelha

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Braga, 15/03/2015Prezado Luís Graça:
Envio mais alguns dados, de vivências da Guiné, após sobre os mesmos terem passado 47 anos.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

10 - Operação Cernelha

Binta, 17/03/1967

São 15 horas. O Sol queima. A estrada até Guidage vai desfazer-se em pó.
Sinto medo.
A operação é arriscada.
Mesmo assim vou.
Todos vamos.

Em mim o temor e a esperança quase se confundem. Mas vou. Melhor, vamos.

Pouco depois das quatro horas da tarde a coluna partiu rumo a Guidage. O destino final chama-se Sambuiá.
 
Às dezoito horas chegou-se ao destacamento de Guidage.

Às 24, iniciou-se a marcha para o objectivo, seguindo pela estrada que vai por Facã, rumo à base turra de Sambuiá.
 
É a operação “Cernelha” que está em marcha.

Isto, de facto, não passa de uma tourada. De uma tourada que se repete muitas vezes, mas onde não se percebe muito bem quem são os touros, e quem são os toureiros. É que, às vezes, fica-me a sensação de que desempenhamos aqui um duplo papel: conforme as circunstâncias, tanto toureamos, como até somos toureados.


Dia 18

Pelas três da madrugada, entre Facã e a estrada de Bigene, fizemos uma pequena paragem para descansar.

A essa hora a artilharia de Bigene começou de novo a bombardear a zona onde ao amanhecer deveríamos actuar.

Mete impressão, durante o silêncio da madrugada, só quebrado pela voz da fauna selvagem, o ruído causado pelo detonar das granadas, que deixa, por breves momentos, um silêncio soturno e breve instalar-se em todo este mundo naturalmente belo, e bom.

Até os habitantes da selva sofrem com a guerra, que não respeita os seus habitats naturais, e o sossego de que deveriam beneficiar.

Após o rebentamento de cada granada, que as peças de artilharia disparam, cai sobre a selva um silêncio soturno, enorme, como que de protesto contra esta agressão, de que a própria natureza é vítima.

Pelas três e meia prosseguimos a marcha. Pelas quatro, atravessámos a estrada de Bigene.
Pelas cinco horas passou-se a ocidente da antiga tabanca de Sambuiá. Às seis horas atacou-se o objectivo.

Posições relativas de Binta / Guidage / Sambuiá

O fogo foi intenso, e prolongado. Durante cerca de meia hora as nossas armas, e as deles, dispararam um pouco ao acaso, orientadas mais pelo ruído dos tiros do adversário, do que pela localização de um objectivo concreto. Foi uma tempestade de tiros de armas ligeiras, de granadas de morteiro, de bazookadas e roketadas.

E não se conseguiu entrar na base do inimigo. Os gajos têm, ao que parece, abrigos subterrâneos, o que lhes permite uma boa defesa. Para além disso, ninguém conhece muito bem a localização da base.
Por certo que o local onde nos barraram a passagem com fogo bem conduzido e certeiro, está ainda a uma considerável distância do local onde pretendíamos chegar.

Só uma coluna de blindados teria condições para avançar no terreno, e conseguir alguns resultados, sem ficar sujeita a sofrer muitas baixas humanas. Porém, aqui, os únicos blindados que temos são feitos de carne e osso. Um material tão precioso quanto vulnerável.

As nossas forças sofreram dois mortos, pertencentes à milícia de Binta, e vários feridos, um dos quais com bastante gravidade. Os feridos pertenciam aos “roncos” de Farim.

Durante a retirada, quando fazíamos com paus, e folhas de palmeira, macas para melhor transportar os feridos e os mortos, detectámos uma emboscada dos gajos. Conseguimos abrir fogo primeiro do que eles, e não tivemos qualquer azar.

Pouco depois das nove horas fomos sobrevoados por uma avioneta. Era o comandante que, como de costume nestas ocasiões, vinha dirigir lá de cima os acontecimentos. Pelas dez horas apareceram os bombardeiros, a escoltar os helicópteros que vinham evacuar os feridos e os mortos.

Chegaram depois de estarmos à volta de quatro horas à espera deles. Se por acaso tivéssemos necessitado de apoio aéreo para sair do local onde se iniciou o ataque, bem tramados estávamos. O apoio aéreo é eficaz e moralizador para as tropas terrestres. Porém, raras vezes aparece a tempo e horas, nos locais onde faz falta.

O regresso a Binta fez-se pela estrada que segue de Bigene para Farim. Atravessou-se, a pé, o rio Sambuiá, dado que a ponte que era de madeira foi queimada, já lá vai muito tempo.
Junto à ponte de Boborim estavam as viaturas à nossa espera.

Esta operação, em que participaram as companhias 1546, 1547, 1585 e os “Roncos” de Farim, apenas deu porrada para a nossa Companhia, e para os “Roncos” que seguiam integrados na nossa unidade.

Logo que cheguei a Binta, apesar de fatigado, ainda fui sobrevoar Sambuiá, de avioneta, em missão de reconhecimento.

Mais uma vez fui e regressei.

Enquanto isto acontecer, todos os sacrifícios, e todos os riscos, serão sempre pequenos.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14361: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (9): Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

sábado, 14 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14361: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (9) - Reportagens da Época (1967): Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 10 de Março de 2015:

Braga,10/03/2015
Prezado Luís Graça:
Votos de boa saúde.
Depois, tomo a liberdade de enviar mais um pequeno têxto, que poderá ser publicado.

Um abraço amigo do
Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

9 - Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

Binta, 13/03/1967

De tarde, por volta das quatro horas, partiu rumo a Guidage uma coluna de viaturas, transportando dois grupos de combate da minha Companhia, sendo um, o meu, a milícia de Binta, e os “Roncos” de Farim. Lentamente, sob um sol maldito, envoltas em nuvens de pó, as viaturas levaram-nos até cerca de dois quilómetros de Guidage. Aí, na margem da estrada, ficámos à espera que a noite chegasse, enquanto as viaturas, escoltadas por um pelotão de morteiros, regressavam a Farim.
A população de Guidage não podia saber, antes do anoitecer, da nossa passagem pela localidade. Quando anoiteceu iniciámos, a pé, a marcha para Guidage.

No destacamento, comeu-se alguma coisa, planeou-se a operação, interrogou-se o guia e, pouco depois das 23 horas, iniciou-se a marcha para o objectivo, constituído pela casa de mato de Mampatás, situada a sul de Jeribâ, dentro do nosso território, a cerca de 200 metros da fronteira com o Senegal.

Dia 14

A marcha para o objectivo fez-se sem problemas, sempre pelo território senegalês,

Cerca das cinco horas e meia, a vanguarda da nossa força atingiu o objectivo. Abriu-se violento fogo sobre o mesmo e queimou-se tudo quanto havia para queimar. Capturaram-se três armas, entre as quais uma FBP portuguesa, bastantes munições, granadas de mão, fardas, livros de instrução do PAIGC, etc.
Estou convencido de que não se destruiu Mampatás, mas apenas uma pequena parte do acampamento inimigo, na periferia do mesmo.

Houve mortos confirmados, sem contar com duas mulheres, que terão morrido queimadas.
Por certo que havia lá, também, crianças (?) inocentes, que não têm nada a ver com isto, e que terão morrido queimadas.
É complicado, e difícil viver no meio desta guerra, onde muitas vezes a guerrilha se mistura com a população, ou se confunde com ela.

A retirada do local iniciou-se no meio de alguma confusão, como acontece quase sempre nestas situações.

A cerca de 500 metros esperava-nos uma emboscada dos gajos, que entretanto se tinham reorganizado. Eles fizeram algumas rajadas de armas ligeiras sobre a nossa força, mas sem consequências graves.

Quando já estávamos a uma distância razoável do objectivo, ele começou a ser bombardeado pela artilharia, a partir de Bigene. No ataque sofremos dois feridos, entre os quais o guia, um prisioneiro, que levou um tiro nas costas, e um Cabo da Companhia 1546.

O regresso a Guidage fez-se, também, por território do Senegal.

Pelas onze horas atingimos Guidage, onde se deslocaram dois helicópteros, para transportar os feridos para Bissau.

Depois iniciou-se a viagem de regresso a Binta.

Pelas oito horas da noite a artilharia de Bigene começou a bombardear a área de Sambuiá.

À noite, os furriéis, e bastantes soldados, andaram pelos domínios de Baco. Foi uma noite de bebedeiras. No fim de uma operação como a de hoje, talvez não haja nada melhor do que uma bebedeira para retemperar as forças, e esquecer o que se viu, e o que se ajudou a fazer. Directamente, os homens da Companhia até não fizeram nada de especial.
O grupo de assalto era, como quase sempre, constituído por tropa nativa. Eles são duros, aguerridos e destemidos. Mas, às vezes, também são demasiado selvagens.
Eles actuam sob as nossas ordens. Cumprem os objectivos que lhes traçamos. Vão onde os mandamos. E quando se chega a um local como o de Mampatás, ou qualquer outro do género, apenas há duas hipóteses: ou se incendeia, se mata, e se foge, ou se cai, e se fica no local, na trajectória dos tiros que o inimigo dispara, ou de qualquer estilhaço de granada, que o acaso faça explodir perto de nós.
Mas, os comandos nativos também são motivados, muitas vezes, pela ideia de saque.

Eles transportam com eles tudo quanto conseguem apanhar. O interesse nos bens abandonados pelos guerrilheiros mortos, ou em fuga, não deixa de ser para eles, e quase sempre, uma forte motivação.
Trata-se, geralmente, de despojos de guerra sem grande interesse material, pelo menos para nós, europeus. Mas para esta gente, habituada a um nível de vida muito baixo, sem padrões de consumo mínimos, as coisas mais insignificantes revestem-se de importância significativa.
Apressadamente, no fim do assalto aos acampamentos, ou bases terroristas, eles passam revista ao campo de batalha e transportam tudo o que podem.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14239: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (8): Guidaje 1967 - 10 de Fevereiro, ataque a Guidaje

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14239: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (8) - Reportagens da Época (1967): 10 de Fevereiro, ataque a Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 8 de Fevereiro de 2015:

Amigo dr. Graça:
Saúde para si, e familiares.
Tomo a liberdade de enviar mais um pequeno cadeado feito de palavras, que poderá publicar .

Um abraço amigo.
Domingos gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

8 - ATAQUE A GUIDAJE

Binta, 10 de Fevereiro de 1967

Às quatro horas e meia da madrugada o cifra bateu à porta do capitão. Tinha chegado uma mensagem tipo relâmpago.

Desde as quatro horas da madrugada que o destacamento de Guidage estava a ser atacado

Quase de seguida o capitão chamou-me.

Embora já me tivesse apercebido do que se estava a passar, levantei-me e fui perguntar-lhe o que havia de novo.
Ele disse-me:
- Os gajos estão a bombardear Guidage, com bastante intensidade. Apesar da distância escutam-se aqui os rebentamentos.

Efectivamente, o silêncio da noite estava a ser quebrado, lá muito ao longe, pelo detonar das granadas, que as armas, nossas e deles, iam vomitando.
Era uma espécie de trovoada, muito surda, que a aragem branda, que soprava, ajudada pelo silêncio da madrugada, trazia até aos nossos ouvidos.

O capitão continuou:
- Prepare o seu grupo de combate para levar reforço ao destacamento, logo ao alvorecer.

Ainda durante a noite mandei acordar os soldados, e os furriéis, os condutores e os mecânicos, mandei carregar nas viaturas as munições necessárias para o que desse, e viesse, durante a viagem, e para repor o “stock” do destacamento.

Ao alvorecer tudo estava em condições de iniciar o movimento para Guidage.

Ao alvorecer iniciei a caminhada para Guidage, onde cheguei (chegámos) pelas nove horas.
Foi desolador o quadro que nos esperava.

Destacamento de Guidaje
Foto: © Albano Costa

A tabanca da população estava totalmente destruída pelo incêndio causado pelo bombardeamento. Era um panorama dantesco, que estava à nossa espera.

A população perdeu as casas, as roupas, algum dinheiro, que possuía, as reservas alimentares, e tudo quanto necessitava para levar uma vida pacata, despreocupada, e quase feliz.

Homens e mulheres, velhos, novos e crianças, todos estavam profundamente tristes.
Tudo a guerra lhes tinha levado, no escasso período de algumas horas.
Esta guerra, que é feita em nome do povo, e para garantir a liberdade, e o bem-estar desse mesmo povo, vai pouco a pouco destruindo os bens, as fazendas, e as próprias vidas, que a guerrilha diz representar e defender.

A ideia pode mesmo ser bonita.
Mas nada justifica que se destruam pessoas, ou se martirizem populações, em nome de uma ideia, que nunca poderá valer tanto como uma vida.

No rosto de toda aquela gente apenas aflorava um sentimento de revolta, e desespero, e uma tristeza muito grande.
Em escassos minutos, numa noite que nunca chegarão a esquecer, aquelas famílias perderam tudo! E perder tudo, mesmo para quem não tem poucas coisas para perder, é perder sempre muito.
Restou-lhes, pelo menos, a vida.
A vida para poderem continuar a sofrer, e a lutar por um mundo melhor.

Para além dos prejuízos materiais havia ainda a lamentar a morte de duas pessoas, e vários feridos com alguma gravidade.
A tropa que, por cúmulo da sorte, nem um beliscão sofrera, apresentava-se com um aspecto louco.
A guarnição não passava de um conjunto de homens desvairados, cheios de pavor, a deambular entre destroços.

Naquele dia, e àquela hora, apenas o desespero, e o desalento, afloravam no rosto melancólico de cada soldado.
O comandante do destacamento, sem me dizer uma palavra, levou-me ao edifício do comando, uma casa já meio arruinada, cujas portas e paredes estavam esburacadas pelos estilhaços, e mostrou-me um monte de invólucros de granadas de canhão, de morteiro, de munições de metralhadoras pesadas, e de armas ligeiras, que os soldados já tinham recolhido, nos locais de onde tinha sido desencadeado o bombardeamento, e disse-me:
- O ataque foi só isto, que estás a ver. Os tipos estiveram mesmo junto do arame farpado. Isto poderia ter sido um desastre enorme. Apesar de tudo, ainda tivemos muita sorte. Se eles tivessem melhor pontaria tinham arrasado não só a tabanca, mas também o aquartelamento. Assim, limitaram-se a destruir a tabanca, através do fogo que as explosões atearam ao capim dos telhados. Nas nossas instalações apenas acertaram com os primeiros tiros, causando-nos os estragos que estás a ver.

Enquanto se procedia à descarga das munições, que deviam ficar em Guidage, fui com ele dar uma volta pelo meio da tabanca destruída.

- A única palavra que encontro para descrever aquilo que vi chama-se: Desolação.

Depois de, através do sistema de transmissões, que não fora afectado, ter contactado o comando da companhia, e do batalhão, colocando-os ao corrente de tudo o que se passara, mandei a população preparar-se para abandonar Guidage, onde não tinha mais condições de alojamento, nem de subsistência.
Ainda antes do meio-dia, com a tropa a caminhar a pé, e com as viaturas superlotadas de crianças, mulheres e velhos, pus-me a caminho de Binta.
Se toda aquela gente caminhasse a pé, estaríamos perante a imagem um novo êxodo bíblico.
Assim, aquilo era uma caravana de pessoas apavoradas, cobertas de pó, escoltadas por um grupo de soldados receosos e cansados, pessoas que fugiam do inferno, e iam a caminho, talvez, de um purgatório temporário.

Em Guidage ficaram apenas alguns voluntários que, mesmo tendo perdido tudo, preferiram ficar com a tropa, na terra que, afinal, é a deles.

Para além do cansaço provocado por uma longa viagem feita quase sempre a pé, e sob um sol ardente, chegou-se a Binta sem mais problemas.
A população de Guidage, logo que chegou a Binta foi recolhida pelos familiares da mesma etnia.
Esta gente é toda muito solidária.
Enquanto há comida, comem todos.
Quando a comida falta, todos passam fome.

Depois, informei o capitão sobre tudo o que vi em Guidage, e sobre as condições em que a tabanca ficou, e dei por findo o meu trabalha de hoje.

Ao fim da tarde o capitão deslocou-se a Farim, em LDM para falar com o comandante do batalhão sobre as condições em que ficou Guidage, após o ataque.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14033: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (7): Guidaje 1967 - Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14033: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (7) - Reportagens da Época (1967): Guidaje - Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 9 de Dezembro de 2014:

Prezado Dr. Luís Graça:
Tomo a liberdade de remeter mais um pequeno contributo, que poderá publicar, se o entender conveniente.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves




MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

7 - GUIDAJE 1967

Mês de Dezembro
Dia 10

Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

Picou-se a estrada até ao Cufeu para facilitar a passagem da coluna de abastecimento.

À tarde, pelas vinte horas, chegou uma coluna com cerca de 140 homens. Afinal, não vieram por causa do reabastecimento, mas com a finalidade de efectuar uma operação. O reabastecimento foi só uma consequência...
Comeram no destacamento.

Pouco antes da meia-noite, reforçada por uma secção do destacamento e pelos caçadores nativos, a força que chegou de Binta, comandada pelo capitão da Companhia 1546, partiu rumo à casa de mato de Cumbamory, atravessando a fronteira e fazendo a aproximação por território do Senegal. Aliás, há entre nós algumas dúvidas quanto à situação real dessa base terrorista, que estará situada mesmo sobre a linha de fronteira, ou mesmo em território senegalês.

É a operação “Chibata” que está a iniciar-se. Uma operação que envolve riscos consideráveis para as nossas tropas. Qualquer ataque a uma base dos turras envolve sempre riscos. O ataque a Cumbamory, dado tratar-se de uma base bastante grande, através da qual passa grande parte do pessoal e do equipamento que o PAIGC infiltra no território, é arriscado e perigoso. Amanhã saberemos mais alguma coisa sobre tudo isto. Mas não me parece que os altos comandos tenham medido e calculado todos os riscos que esta operação envolve. A única coisa que pode ser favorável aos nossos homens é o efeito surpresa, se for possível atingir o objectivo e atacá-lo sem que os gajos se apercebam da aproximação dos nossos soldados.

A força que partiu para a operação, cerca de 170 homens, é constituída por dois grupos de combate da minha Companhia, pelos Roncos de Farim, por um grupo de combate pertencente à Companhia de Intervenção estacionada em Farim, por uma Secção do Destacamento, e pelos Caçadores Nativos de Guidage. Aparentemente 170 homens poderá parecer uma força considerável, mas de facto não é. Todos os homens estão fisicamente debilitados, vão chegar à base do inimigo muito cansados, e apenas vão poder contar com eles próprios. Ao alvorecer, quando atacarem a base, não podem contar com apoio aéreo, por ser muito cedo e porque os aviões, mesmo sobre a linha de fronteira, não costumam actuar.
Ou se conseguem desenrascar sozinhos, com os próprios e escassos meios, ou então estará tudo perdido.


Dia 11

Levantei-me muito cedo e fui para o Posto de Transmissões à espera dos resultados da operação, mas aos operadores de rádio não tinha chegado, ainda, nenhuma notícia.

Pelas sete horas e meia as forças de Bigene, que também actuavam na zona, na área de Jambacunda, mas que não chegaram a ter contacto com os gajos, ligaram para Guidage e disseram que, pelas seis horas da manhã, e durante cerca de meia hora, escutaram muitos rebentamentos. Em Guidage, dada a distância, não se tinha escutado nada. Fiquei por isso a saber que tinha havido contacto com o inimigo, e que esse contacto apenas poderia ter acontecido com a Companhia 1546.

Da força que partira de Guidage, e que tinha por missão actuar sobre o objectivo, não havia notícias. Sabíamos, no entanto, que a fogachada que os de Bigene tinham escutado, apenas poderia ter acontecido durante o ataque das nossas tropas a Cumbamory, ou em resposta a alguma emboscada que os tipos lhes tivessem preparado.

Pelas oito horas chegou a avioneta, que fez em Guidage o lançamento do correio e se dirigiu para o local das operações.

Pelas oito horas e meia, as forças que partiram de Guidage, e que tinham atacado Cumbamory, entraram em contacto com a avioneta.
Disseram que estavam já a regressar, mas que se deslocavam com muita dificuldade, ainda em território do Senegal, e que transportavam bastantes feridos e muito material apreendido aos turras durante o assalto a Cumbamory.

A avioneta deslocou-se a Guidage e mandou que enviássemos viaturas à fronteira para recolher, logo que possível, homens e material, o que rapidamente se fez.

Fui com as viaturas até onde me foi possível e, depois, atravessei a fronteira com um pequeno grupo de soldados, e orientado pela avioneta progredi em território senegalês, ao encontro da nossa força, para a auxiliar na retirada.

Quando se chegou a Guidage já se encontravam lá estacionados dois helicópteros prontos a transportar os feridos para o hospital militar.
Logo após a chegada ao destacamento de Guidage os feridos foram devidamente tratados por duas enfermeiras pertencentes à tripulação dos helicópteros e seguiram para Bissau. Nenhum dos feridos se encontra em estado muito grave.

Durante o voo para Bissau, só a presença daquelas duas raparigas bonitas, deve ter sido suficiente para restituir aos feridos a saúde e a integridade psíquica, tão afectadas pelos ferimentos provocados pelos tiros e pelas granadas que tiveram que enfrentar.

A operação teve certo êxito mas não correu bem.

As nossas forças aprisionaram 5 turras, terão causado ao inimigo bastantes mortos e feridos. No relatório da operação mencionaram-se 34 mortos confirmados, para além de um número indeterminado de feridos. De qualquer modo talvez estejamos perante um número demasiado elavado. As nossas forças capturaram, para além dos prisioneiros, o seguinte material:

2 morteiros de 82mm,
12 granadas para esses morteiros,
1 pistola metralhadora,
1 espingarda semi-automática,
1 aparelho de pontaria de morteiro 82mm,
1 estojo de cirurgia,
3 cantis,
Material diverso para montagem de tendas,
2 bolsas de enfermagem,
1 granada de mão,
2 auscultadores de telefone,
2 pastas com documentos,
Diverso material de instrução,
Livros cubanos,
Cadernos e revistas,
Medicamentos.

Mas, para que tudo isso fosse possível, as nossas forças sofreram quatro mortos, ( 2 europeus e 2 africanos ) cujos cadáveres não puderam ser recuperados, um desaparecido e bastantes feridos com alguma gravidade. Foi um preço muito elevado, demasiado grande, mesmo tendo em vista os resultados conseguidos. A vida de um soldado, ou o sofrimento e as mutilações, têm um preço que não pode ser comparado com o valor de umas armas capturadas, por mais sofisticadas que elas sejam. Mas há por aqui quem pense o contrário... Quem olhe quase com adoração para as armas capturadas e se esqueça que foram pagas com muito sangue e com muita dor... Isto chama-se trocar o que não presta, o que não vale nada, por aquilo que não tem preço...

Estupidez humana! A loucura de tudo isto é cada vez mais evidente e já nem se lhe vislumbram os limites.

As nossas forças deixaram ainda no local as armas e outro equipamento militar pertencente aos soldados mortos.

Esta operação não falhou porque a tropa é decidida, é dura e sabe combater. Muitos destes homens, brancos e negros, têm um grande desprezo pela vida e são bravos a valer.

Se assim não fosse este assalto a Cumbamory poderia ter sido um desastre. Planeou-se a operação pensando encontrar no objectivo um inimigo composto por 20 ou 30 homens armados (ou então quem faz os planos engana deliberadamente quem os deve concretizar) talvez com um morteiro e algumas armas ligeiras, e Cumbamory é uma verdadeira cidadela militar do PAIGC.

Os nossos 170 homens encontraram pela frente perto de 300 (?) elementos, dispondo de armas ligeiras, várias bazookas, morteiros de 60mm, lança rokets, morteiros 82mm, e outro armamento diverso.

Os prisioneiros disseram que em Cumbamory havia também 4 canhões que não chegaram a fazer fogo.

Em face da força que encontraram pela frente os nossos homens portaram-se bem e foram corajosos para progredir até ao local onde se encontravam os morteiros, dos quais o inimigo ainda se terá servido.

Segundo os prisioneiros, encontrava-se em Cumbamory, no momento do assalto, Luís Cabral, que terá fugido imediatamente numa viatura para o interior do território do Senegal. Segundo o mesmo relato, ontem terá havido uma festa no acampamento, encontrando-se no mesmo um grupo de Comandos do PAIGC, deslocado da área de S. Domingos. Durante a noite de hoje para amanhã viriam atacar Guidage.

Se o relato for verdadeiro esta operação teve pelo menos o mérito de evitar um ataque a este meu reino. De qualquer modo, o melhor é a gente continuar à espera deles. Segundo dizem os prisioneiros, em Cumbamory o pessoal passa fome. Apenas os soldados comem alguma carne e batatas, e ganham algum dinheiro. Para os carregadores há apenas arroz que se esgota muitas vezes. O acampamento dispõe de uma escola onde se ensina a língua portuguesa, de uma enfermaria razoável, verificando-se de quando em quando a visita de um médico, que deve ser cubano. Os cubanos do acampamento deslocam-se muitas vezes para fora do mesmo, a fim de se encontrarem com Amilcar Cabral, que não lhes paga na presença dos africanos. Em Farim, ao que me parece, não se presta grande atenção às informações recolhidas em Guidage, o mesmo acontecendo em Bissau. Desde há muito que mandamos dizer que em Cumbamory existe muito pessoal armado e muitas armas pesadas, mas não acreditaram em nós. O resultado poderia ser um desastre para as nossas forças. As forças que participaram na operação seguiram para Binta pelas dezasseis horas, mas só lá conseguiram chegar perto das vinte e uma. Iam todos muito cansados, quer física, quer psiquicamente. Depois de uma viagem de cinco horas até Binta todos os soldados devem ter lá chegado cansadíssimos, autênticos farrapos humanos.

Afigura-se-me que este foi o último trabalho sério que os homens da Companhia de Caçadores n.º 1546 foram incumbidos de realizar. Foi uma despedida terrível, que teve tanto de doloroso como de heróico. Foi, de longe, a missão mais arriscada e perigosa que nos foi confiada ao longo de todos estes largos meses de Guiné, que já temos. Mas foi uma missão que se levou até ao fim com bastante êxito.
E agora, já é mais que tempo para nos deixarem descansar em definitivo.

Já todos temos mais do que direito ao repouso dos guerreiros... Que ele nos seja finalmente concedido.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13560: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (6): Guidaje 1967

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13560: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (6) - Reportagens da Época (1967): Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 4 de Agosto de 2014:

Prezado Luís Graça
Envio mais alimento para o Blogue.
Trata-se de mais algumas dicas sobre o dia a dia de um destacamento militar, concretamente, Guidage.

Um grande abraço, extensivo a todos os navegantes do Blogue.
Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

6 - GUIDAJE 1967

Setembro
Dia 1

Pedi a evacuação da mulher de um soldado nativo que se encontra bastante doente. Antes consultei o médico via rádio.

Como o problema não tinha solução aqui, a doente foi enviada para Bissau, onde ficou internada.

Pelo meio-dia chegou o helicóptero. Em vez de uma mulher, levou duas.

Doentes para tratar é, infelizmente, o que mais temos aqui. Só os casos muito graves é que se enviam para Bissau, quando, como desta vez, surge a possibilidade de transporte.

O homem que veio do Senegal para se curar de uma doença venérea já regressou a casa.
A medicação que o enfermeiro lhe aplicou, produziu bom resultado. Curou-se relativamente depressa.
Se tiver juízo pode continuar a ser uma pessoa perfeitamente normal e cheia de saúde.

De tarde fui activar diversas armadilhas que estavam desactivadas para permitir a passagem das nossas tropas.

Informações vindas do outro lado da fronteira confirmam que os turras levaram para Ierã 8 mortos, tendo procedido ao enterramento de 4 na referida localidade, e de outros 4 na tabanca de Corumbo.
Pela mesma altura apareceram na referida localidade bastantes feridos.


Dia 2

Às oito e meia saí para o Cufeu a picar a estrada, mas a coluna não conseguiu passar.
Algumas viaturas ficaram atoladas na bolanha. Naquele sítio apenas se pode passar de barco, ou, então, em viaturas anfíbias!
Se tudo assim continuar, no fim da época das chuvas o transporte ideal para as nossas tropas passarem por ali deve ser o submarino.
Vou pensar em requisitar um!

Um grupo de 120 turras, desarmados, uns vestindo à civil e outros fardados, foram do Dungal para Corumbo.
Caminhavam ordeiramente, em formação, mas muito à vontade. O informador acompanhou-os.
O comandante dos tipos, suspeitando dele, quis prendê-lo. No entanto, como se tratava de um cidadão senegalês deixou-o ir em paz.

Os tipos movimentam-se em território do Senegal com a mesma liberdade que têm os cidadãos desse país.


Dia 3

Pela manhã fui ao Cufeu com o nosso Unimog. Fomos levar vinho, pão e marmelada ao pessoal que ficou durante a noite a guardar as viaturas.
Na coluna vinha a Companhia de Cavalaria nº 1747, que deverá permanecer em Guidage com a finalidade de efectuar uma operação. Todavia, o pessoal está muito cansado e aqui não têm condições para descansar.
A noite que passaram a guardar as viaturas atoladas na bolanha deixou-os demasiado cansados.
O trabalho que vinham realizar vai ter de ficar adiado no mínimo por alguns dias.
O comandante dessa companhia é um bom homem, inteligente e sensível, mas é também um revoltado.
Ele tem já bastante idade e foi de novo mobilizado. Tem mulher. Tem filhos. Tinha uma vida profissional organizada, construída com sacrifício e dedicação. E a tudo a mobilização veio, inesperadamente, colocar um ponto final.
Este é mais um dos horrores desta guerra sem fim e sem o mínimo de sentido.
Este capitão é mais um dos sacrificados neste altar da guerra.
Mais um, de entre tantos.
Dez anos depois de ter cumprido o serviço militar foi de novo convocado para cumprir uma comissão, aqui, na Guiné.
Desiludido com a vida, confessa com tristeza:
- Para mim tudo acabou.


Dia 5

Esperávamos que chegasse, de helicóptero, o Comandante de Batalhão, acompanhado pelo médico. Devido, talvez, ao mau tempo, não apareceram cá. Entretanto a Companhia 1747 vai descansando. É o que interessa.

O capitão Y, falou bastante comigo. Ele odeia tudo isto. Não se resigna a esta triste sorte. Estragaram-lhe a vida.
Tinha família constituída, bons clientes, tudo o que um homem de trinta e poucos anos pode desejar.
E quase tudo foi pela água abaixo. É uma tristeza...

À noite comeu-se uma magnífica frangalhada e fez-se festa rija. É a nossa homenagem aos homens desta Companhia de cavaleiros que nos vieram visitar.

Aplica-se perfeitamente a nós, oficiais, este pequeno texto retirado de um livro de J. Lateguy:

“A existência do oficial divide-se muito irregularmente entre alguns momentos de esforço e de fadiga, de perigos, e longos períodos de inacção e tranquilidade. Nesses momentos de esforço, o oficial pode ser levado a realizar, apesar do medo, da fome, do cansaço, actos extraordinários, que farão dele, mas apenas por um instante, um ser superior, mais desinteressado, mais resistente que os outros homens.
Nos períodos de repouso, move-se com a lentidão do urso entorpecido pelo Inverno, através de um pequeno mundo fechado.
O esforço é banido, ou pelo menos extremamente limitado por leis, ritos, hábitos.
Nele os gracejos são tradicionais, e a própria maldade codificada.”

A existência do oficial, aqui na Guiné, apesar da especificidade da guerra que fazemos, e da pequena dimensão das guarnições, é tudo isso e ainda muito mais.
Os momentos de heroísmo e de grandeza são quase nulos, e os de estupidez preenchem a quase totalidade da vida.
E tudo quanto nos rodeia contribui de forma mais ou menos acentuada para que não se possa fugir desse fatalismo.
Parece que o oficial existe para se mover num mundo feito de mediocridade. Todos nós sentimos de forma muito nítida a tentação de viver na trivialidade. É este o nosso mundo. O mundo que nós vamos dia a dia construindo e no qual vivemos, sem qualquer possibilidade de lhe fugirmos.
Somos prisioneiros da mediocridade que dia a dia vamos criando para nós próprios, tantas vezes com esforço e sacrifício enormes.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13469: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (5): Guidaje 1967

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13469: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (5) - Reportagens da Época (1967): Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 4 de Agosto de 2014:

Prezado Luís Graça:
Em primeiro lugar, votos de boas férias, e de bom repouso, no sossego da Lourinhã.
Depois, procedo ao envio de mais umas dicas, - relato do que aconteceu em Guidage, à distância de, precisamente, 47 anos -, que se o entender conveniente, poderá publicitar.

Um abraço amigo para todos os navegantes do blogue,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA


5 - GUIDAJE 1967

Mês de Agosto
Dia 5

O tempo continua muito chuvoso. O destacamento não passa de um autêntico lamaçal.
Os abrigos transformaram-se em verdadeiras covas escuras, húmidas e insalubres.
As valas que fazem a ligação entre esses abrigos são verdadeiros pântanos. A água aparece em todos os lados e coloca em perigo todas as construções que por aqui se foram fazendo... Os tipos que substituíram a Engenharia Militar para fazer isto, ou que orientaram quem aqui trabalhou, estão todos chumbados... Não passam de uns incompetentes... Autênticos nabos.


Dia 6

Às seis horas e meia da manhã levantei-me. Às sete, como aliás quase todos os dias, peguei na caçadeira e fui às rolas.
Pelas oito, o Patron (nosso interprete) foi procurar-me nas imediações do arame farpado, para me dizer que durante a noite Guidage esteve cercada por mais de duzentos turras.

Fiquei incrédulo. Custou-me a acreditar. Como é que isso podia ser! O pessoal do destacamento nunca os tinha incomodado! Depois, como podia ser possível que um grupo tão numeroso, carregado de armas e munições, tivesse cercado Guidage, instalado as armas e, de seguida, sem disparar um tiro, tivesse ido embora? Não. Aquilo não podia ser verdade. Mas, como o Patron insistiu, ainda cheio de muitas dúvidas, entrei no aquartelamento, troquei a caçadeira pela G3, e acompanhado por dois soldados fui confirmar o que se tinha passado.

Efectivamente, verifiquei-o com os meus próprios olhos, a informação era verdadeira. Durante a noite, três grupos de turras, provenientes da área do Dungal, de Cumbamory e de Samboyá, tinham cercado Guidage. Pelos vestígios que deixaram calculei que, efectivamente, deveria tratar-se de um grupo constituído por cerca de 150 a 200 homens. A aproximação que fizeram tinha sido perfeita. Pelos vestígios que deixaram no terreno, capim e culturas calcadas, verifiquei que nos tinham feito um cerco perfeito, em meia lua, com o intuito de dirigir o fogo directamente sobre o aquartelamento, no sentido da linha de fronteira.

Regressei ao aquartelamento, e com mais pessoal e armamento, fui seguir-lhes o rasto. Confirmei que retiraram pela estrada que leva a Samoje e Facã, por onde, parte deles, tinham feito a aproximação a Guidage. O grupo que veio do Dungal retirou também para o mesmo lado.
O território do Senegal foi o destino que escolheram após terem desistido de nos atacar.
A cerca de dois quilómetros, já do outro lado da bolanha, na estrada que segue para Bigene, encontrei uma granada de morteiro 82mm, abandonada pelos gajos durante a retirada.

Todos os vestígios que recolhi indicavam que eles retiraram calmamente, sem qualquer precipitação. Em rigor, não efectuaram um ataque em força porque não quiseram. Poderiam, se tivessem atacado, ter destruído outra vez Guidage, ter queimado tudo e, quem sabe, ter mandado alguns de nós para o outro lado da vida. Mas não o fizeram. Não nos atacaram. Retiraram ordeiramente, sem quaisquer problemas, quando quiseram e como quiseram. E tudo isto aconteceu ali mesmo, a cerca de 400 metros do arame farpado, precisamente no local onde os holofotes da iluminação externa já não iluminam nada. Estiveram ali, nas nossas barbas, sem que as sentinelas se apercebessem do que se estava a passar. Tudo tinha sido feito discretamente, com todo o rigor táctico, dentro do cumprimento quase perfeito dos ensinamentos que a gente estudou nos manuais da guerrilha. Estes turras estudaram mesmo numa boa escola!

Apenas há uma coisa que não consigo entender:
- Qual a razão que os terá levado a retirar, sem terem disparado um único tiro sobre o meu reino?

É um mistério que me vai acompanhar para sempre. Efectivamente, só uma razão muito forte pode estar na origem desta desistência de última hora, e desta retirada ordeira sem uma razão aparente. Mas, felizes de nós pela decisão acertada que eles tomaram. Que nos cerquem quando muito bem entenderem, desde que, depois, calmamente, se retirem.

Antes de regressar ao aquartelamento, na área da referida estrada, mas do outro lado da bolanha, coloquei, por precaução, três potentes armadilhas (minas). Tanto podiam ser úteis, como não servir para nada. Que eles voltariam, não me restavam dúvidas. O local por onde iriam fazer a aproximação é que eu não poderia adivinhar. Como, regra geral, a partir do entardecer ficamos quase sempre confinados aos limites estreitos do arame farpado, eles podem aproximar-se sem qualquer receio, escolhendo o local que lhes parecer mais seguro. A noite é praticamente deles. Quando nos atacam dentro dos aquartelamentos fazem-no quase sempre de madrugada, para lhes restar tempo para se retirarem ainda a coberto da noite.

Ao fim da manhã, vindo do Senegal, chegou um informador a dizer que os tipos, durante a retirada, tinham passado por Secunaya e Corumbo, e que não concretizaram o ataque pelo facto de não ter chegado um outro grupo que também deveria participar na festa que desejavam fazer em Guidage.
É uma razão.
Mas eles já dispunham de tanta gente à nossa volta! Tinham da parte deles o efeito surpresa e a escuridão da noite, um grupo numeroso de combatentes e sei lá quantas armas. E não quiseram aproveitar nada disso...

Durante o dia nada mais aconteceu de anormal. A população trabalhou serenamente a terra, e a tropa permaneceu mergulhada na doce estupidez de cada dia.
À noite recomendei a todos, soldados e população, que se mantivessem junto dos abrigos e que ficassem atentos. O perigo não tinha passado. Tínhamos de ser prudentes e cautelosos.

Pelas dez horas da noite, sensivelmente, explodiu uma das armadilhas que deixei do outro lado da bolanha, precisamente a que tinha mais potência. A explosão teve lugar a cerca de dois quilómetros, mas pareceu-nos que aconteceu mesmo ao lado do arame farpado. Efectivamente, para além da carga normal, eu coloquei ao lado da armadilha bastantes granadas velhas e garrafas de cerveja cheias de munições de G3, já fora de uso. Daí que o rebentamento, de todos aqueles explosivos, tenha causado um barulho terrível Mesmo brutal...
As casas dos nativos estremeceram e as paredes largaram caliça. Foi um barulho enorme. Medonho...
Depois, disparei para o local algumas granadas de morteiro 81mm, os soldados e a população mantiveram-se nos abrigos, armas em punho, tudo pronto a abrir fogo ao mais pequeno sinal, à espera que o pior acontecesse.

E um silêncio profundo dominou a tabanca e o aquartelamento durante algumas longas horas, feitas de stress e angustiosa expectativa. Aquela foi para todos uma longa noite, em que o tempo dava a sensação de estar parado. Mas nada de anormal aconteceu. Mesmo nada. Foi mais uma noite igual a tantas outras. Mantivemo-nos é certo, mais atentos, à espera, mas não fomos minimamente incomodados. Apenas o medo nos incomodou... O medo que obriga as pessoas a estar despertas, sempre à espera, o medo que nos rouba o sono e que faz todos os homens corajosos e heróis.
Heróis que só desejam vivamente que não aconteça nada daquilo que se é obrigado a esperar indefinidamente ao longo destas intermináveis noites.
Heróis que apenas desejam que permaneça sempre longe a oportunidade de praticar actos irracionais, capazes de fazer deles esses homens invulgares que as páginas da história vão registando.
É que, ninguém deseja ser herói, nem mesmo aqueles que de facto o foram. O herói é um produto do acaso, ou talvez da irracionalidade da vida.

Já de madrugada, antes de adormecer, eu apenas me interrogava:
- Será que foi um bicho a detonar a armadilha? Será que foram os tipos que vinham de novo com a boa intenção de fazer uma festa nas imediações de Guidage?

E o meu pensamento, ou a minha imaginação, ficaram-se por esta dúvida, na expectativa, aguardando que algo de pior pudesse ainda acontecer.
E, apesar de tudo, ainda dormi um sono, não muito longo, mas suficientemente repousante.


Dia 7

Pela manhã, levando comigo mais de metade dos homens de que dispunha, bem armados e municiados, fui verificar a causa do rebentamento da armadilha. Efectivamente tinha sido accionada pelos turras que, outra vez, e por certo a sério, se dirigiam para Guidage, no intuito de efectuar um ataque.

A explosão da armadilha deixou no chão um buraco enorme. Ao lado, por entre o capim calcado, havia muito sangue, pedaços de vestuário e vestígios da presença de muitos feridos, ou mortos. Perto do local da explosão, encontrámos um ferido abandonado. Tratava-se de um rapaz novo, que não teria mais de 15 anos. Encontrava-se totalmente nu. Era, por certo, um dos muitos carregadores utilizados no transporte das armas e das munições. Pensando que estava mesmo morto, deixaram-no abandonado entre o capim, absolutamente despido, sem qualquer elemento que o pudesse identificar.

No meio de todo aquele ambiente pesado, ouviu-se a voz de um soldado que, mesmo a meu lado, satisfeito, dizia:
- “Os filhos da puta vinham cá para nos foder, mas eles é que foram pró caralho.”

E, mais baixinho, outros soldados foram murmurando:
- Sim... desta vez eles é que foram pró caralho. Esses caragos, bem que nos podiam deixar em paz. Mas, desta vez quem lerpou foram eles.

Levámos para o aquartelamento o rapaz que os tipos abandonaram e tratámo-lo o melhor possível. Depois, pediu-se uma evacuação para o Hospital Militar, que não chegou a concretizar-se porque, entretanto, ele morreu.
Aparentemente ele tinha apenas algumas escoriações. Devia, no entanto, ter algum traumatismo interno a cujas consequências não resistiu. Deve ter sido projectado pelo sopro causado pela explosão da armadilha e, ao embater no chão, os órgãos internos devem ter ficado muito afectados.
A população quando nos viu chegar com o prisioneiro ficou satisfeitíssima.
Fizeram festa. Bateram palmas. Afinal, ele era dos que vinham atacar e destruir as suas casas, matar pessoas e destruir bens.

Enterraram-no.
Verifiquei com tristeza que a população efectuou o funeral sem qualquer cerimónia, com desprezo e ódio, como que se de um simples animal se tratasse. Intimamente senti-me chocado com toda aquela frieza.
O que ali estava era o cadáver de um homem ainda muito jovem, obrigado, por certo, a colaborar com a guerrilha. Um jovem a quem a guerra acabava de destruir...

De tarde voltei à estrada de Samoje e coloquei novas armadilhas. Na estrada de Binta fiz a mesma coisa. Eu sei que mais dia menos dia os tipos vão tentar de novo... Temos que estar sempre atentos...

O objectivo deles, é dar cabo de nós.
O nosso objetivo, é dar cabo deles.
Somos todos loucos.
Era preferível acabar de vez com isto, com esta guerra que não vai levar a lado nenhum.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13444: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (4): A morte do Furriel Moreira