Mostrar mensagens com a etiqueta N/M Niassa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta N/M Niassa. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24926: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13): O cruzeiro das nossas vidas

Foto do álbum de Luís Henriques (1920-2012), que foi 1º cabo inf, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1941/43, entretanto integrado no RI 23. Sem legenda no verso. Com toda a probabilidade, a autoria é da famosa Foto Melo.


O N/T Serpa Pinto, com as cores da CCN - Companhia Colonial de Navegação. Fonte:  Blogue Restos de Colecção >  7 de outubro de 2015 > Paquete "Serpa Pinto" (com a devida vénia...)

O N/T Serpa Pinto foi uma das glórias da nossa marinha mercante. Era um navio de passageiros, com  cerca de 142 metros de comprimento e cerca de 8,3 mil toneladas de arqueação bruta,  operado, desde 1940 (e até 1954), pela Companhia Colonial de Navegação na Carreira da América do Norte (Lisboa–Nova Iorque), na Rota do Ouro e Prata (Lisboa–Rio de Janeiro–Buenos Aires) e na Rota das Caraíbas (Lisboa–Havana), entre 1940 e 1955... Era originalmente  um navio inglês, da Royal Mail.  Em 1944 esteve na iminência de ser afundado por um submarino alemão. Foi salvo "in extremis"...

Para mostrar aos beligerantes da II Guerra Mundial, que pertenciam a um país neutral, os  nossos navios (bem como os barcos de pesca, incluindo a "frota branca")  eram pintados de negro,  com o nome de Portugal, bem visível, pintado a branco,  tal o nome do navio. Toda as as tripulações da nossa marinha mercante, bem como da nossa frota bacalhoeira,  sem esquecer a marinha de guerra, foram verdadeiros heróis, naquela época. E não poucos, bravos marinheiros e pescadores, perderam a vida, engrossando a lista de vítimas da nossa história trágico-marítima

De facto, e embora com pavilhão de um país neutral, os nossos navios e barcos da frota pesqueira  eram frequentemente intercetados tanto pelos Aliados como pelas potências do Eixo (e em especial pelos alemães, cujos submarinos "infestavam" o Atlântico...) e alguns foram atacados e afundados. Por exemplo, o  barco de pesca "Exportador primeiro" foi cobardemente atacado a tiro de canhão por um submarino italiano, a sul do Cabo de São Vicente, em 1/6/1941... Ou o navio de carga  e passageiros, da CCN, o "Ganda", afundado, "por engano", por um submarino alemão, ao largo da costa de Marrocos, em 22/6/1941... Estes são apenas 2 dos 11 navios, de pavilhão português,  afundados durante a II Guerra Mundial. 

Diz a Wikipedia a propósito do N/T  Serpa Pinto: 

 "Foi o navio de passageiros que, durante a Segunda Guerra Mundial mais viagens transatlânticas realizou entre Lisboa, Nova Iorque e Rio de Janeiro, transportando refugiados da guerra em geral, e particularmente judeus em fuga do nazismo, trazendo de volta à Europa, cidadãos de origem germânica expulsos dos países americanos. Adquiriu assim popularidade, ficando conhecido pelos epítetos de "Navio da Amizade", "Navio Herói" e "Navio do Destino". (...)

O incidente mais grave ocorreu na noite de 26 de maio de 1944 quando se encontrava 600 milhas a leste das Bermudas, a caminho de Filadélfia. Depois de examinada a documentação e feito refém o primeiro imediato do navio português, um submarino alemão, U-2, ordenou a evacuação total dos 500 passageiros para as baleeiras (em 15 minutos!) e solicitou a Berlim o torpedeamento do Serpa Pinto. Durante toda a noite, a tripulação e os passageiros aguardaram nos escaleres pela decisão do Estado-Maior da Marinha Alemã.

Depois dessa noite de angústia, só pelas 3 horas da tarde do dia seguinte chegou a resposta do almirante Karl Dönitz (1891-1980), a de não autorizar o afundamento... Recorde-se que, na altura, a Marinha Alemã já em estava em pleno declínio. (No final da guerra, a Alemanha terá perdido mais de metade da sua frota de submarinos. )

Na operação de abordagem do N/T Serpa Pinto, faleceram três passageiros, o médico do navio (vítima de um ataque cardíaco), um cozinheiro (que se atirou ao mar), e um bebé polaco de 16 meses de idade (que seguia acompanhado pelos pais judeus).

Fonte: NovoMilénio > Rota de Ouro e Prata, página de José Carlos Rossini > 7 de julho de 2013 > Navios: o Serpa Pinto

O cruzeiro das nossas vidas  

por Luís Graça


"Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia" 
(Eça de Queiroz, A Relíquia, 1887) 


A bordo do Niassa
Quarta feira,  28 de Maio de 1969. 


Eis-te nos tristes trópicos, parafraseando o título brasileiro do livro de viagens e de etnografia do  francês Lévi-Strauss,  que levas na babagem que está no porão. (Trazes uma mala de cartão cheia de livros, convencido de que vais passar umas férias a um país exótico com extensas praias de areia branca e fina, bordejadas de palmeirais, e bar aberto.)

Atravessaste hoje o Trópico de Câncer, com velocíssimos peixes voadores e alguns alegres e endiabrados  golfinhos a acompanhar-nos. Quem sabe se não vieram do estuário do Tejo a "escoltar-te"... Deviam pressentir o nosso destino e queriam consolar-nos e quiçá proteger-nos...

Lembraste-te, por outro lado, do romance escaldante do Henry Miller, também em edição brasileira (não havia edição portuguesa), mais tarde proibida pela ditadura militar. (Ditadura e erotismo parecem que não combinam bem; mas as grandes democracias norte-americana e britânica, para não falar do Vaticano, puseram  também o livro no  Index Librorum Prohibitorum).

Lembraste-te sobretudo do "teu velho", que esteve em Cabo Verde, como "expedicionário" (adoras a palavra!), com o posto de 1º cabo, em plena II Guerra Mundial, mobilizado pelo RI 5, das Caldas da Raínha. (Ironia da história, também foi lá que fizeste a recruta, era o quartel mais perto da tua casa.)

Mas a ti não te chamam "expedicionário", indivíduo que faz parte de uma "expedição", o mesmo é dizer, "enviamento de tropas a determinado ponto e com determinado fim".  Sabes, isso sim,  que vais para a Guiné.  Mas não exatamente para fazer o quê: a tua reduzidíssima companhia (um terço do que seria normal),  leva um capitão, quatro alferes, um primeiro sargento, dois segundos sargentos, "todos chicos", mais 13 furriéis milicianos (5 especialistas e 8 atiradores de infantaria, e umas cinco dezenas de praças, entre cabos e soldados, todos especialistas em qualquer coisa, condutores,  mecânicos, operadores de transmissões, enfermeiros, cozinheiros,  etc.)

Segredo de polichinelo... Alguém, na véspera de desembarcares em Bissau, irá dar com a língua nos dentes, e dizer, numa rodada de uísques, que a malta iria dar formação a uma companhia... da "nova força africana" do Spínola!... Ninguém gostou da "sorte grande"... E ficou a pairar no ar a dúvida sobre o nosso próximo destino...
 
E enquanto ainda estavas a bordo do T/T Niassa (que navegava ao largo da costa de Marrocos, sem qualquer escolta visível...),  vieram à tona de água da memória as histórias de tubarões que o "teu velho" te contava, ainda quando criança. Ele gostava de fazer mergulho e nadar, na baía do Mindelo, do Porto Grande, mas tinha medo que se pelava dos tubarões! E dava-te exemplos arrepiantes: de um que ficou com o peito todo marcado pela dentadura de aço de um tubarão: de um outro, abocanhado, que conseguiu escapar mas sem uma perna; de um terceiro tipo, que ele salvou de morrer afogado, tinta-se atirado do cais, desesperado, depois de lhe ter sido amputado o  pilau (por "venéreo", acrescentava pudicamente o teu velho, sem te explicar que raio de doença era essa).

Trazes contigo uma das suas fotos. Lês no verso: "No dia em que fiz 22 anos tirei esta fotografia em Mindelo, celebrando as minhas vinte e duas primaveras felizes.   Em 19/8/942. S. Vicente, C. Verde. Senti neste dia muitas saudades dos meus, dos amigos e também da minha terra (...)".

"Vinte e duas primaveras felizes", com todo o mundo em guerra, em plena II Guerra Mundial!...  E o Atlântico , cemitério de centenas de navios e dezenas e dezenas de milhares de vidas.

Em 28 de maio de 1969 (data aziaga!), na véspera de chegares a Bissau, tu tinhas 22 anos e 4 meses. Do fundo da memória, vêm-te à superfície fotos amareladas de barcos e tubarões. Barcos ingleses, italianos, alemães, portugueses, ancorados na baía do Mindelo, ou ao largo, numa entente cordiale... Grandes navios de cruzeiro italianos transformados em hospitais, e que traziam doentes, refugiados e diplomatas... Acabada a grappa a bordo, bebiam álcool puro, os diplomatas ao serviço do "Duce", contava-te o teu pai...

Lembraste-te de um desses navios da nossa frota da marinha mercante, o Mouzinho de Albuquerque, que tomou o nome de um trágico herói colonial... Dizem que o Mouzinho, o herói de Chaimite, o "carrasco do Gungunhana" (dizia-te a tua professora da 4ª classe) se suicidou por não suportar o boato que corria nos mentideros de Lisboa de que era o amante da rainha Dona Amélia, fidelíssima esposa do seu amado rei D. Carlos... (Ele era o precetor de um dos principes; por outro lado o rei estava longe de ser um exempo de virtudes.)

E o mítico Serpa Pinto (cento e quarenta e tal metros de comprido, um pouco menos que o Niassa), que na Jugoslávia escapara, em 1940, de cair nas garras dos nazis,  para passar a ostentar o pavilhão português... Estará no periscópio  de um U-2 para ser abatido quatro anos depois.

A bordo do Niassa perguntavas-te a ti próprio:

– E se Cabo Verde tivesse sido invadido, em 1941, 42 ou 43, como ao que parece chegou a estar nos planos dos Aliados ou até das potências do Eixo ? 

Muito provavelmente tu nunca terias nascido, ou se tivesses nascido falarias hoje alemão,  e não estarias agora a caminho da Guiné, a bordo do Niassa, um navio da carreira colonial fretado pelo exército… O teu pai só tinha barco (e correio) de três em três meses, mas escrevia todos os dias, compulsivamente (as cartas dele e as dos camaradas que não sabiam ler nem escrever).

Alguém se lembrou, entretanto, de abrir uma garrafa de "champagne" (um espumantezeco nacional, de cabaré) como se a malta tivesse atravessado o Equador ("ali mais abaixo"),  em alegre cruzeiro de meninos ricos de colégio fino pelo Atlântico Sul. Era o sargento Vidigal que também já andara noutros  "cruzeiros", a caminho de Angola e Moçambique.  Com um sorriso verde-amarelo, também participaste estupidamente, a contra-gosto,  nesse ritual de iniciação, erguendo a tua taça:

– Afinal, estamos todos no mesmo barco! – comentaste para o teu parceiro do lado, o furriel miliciano enfermeiro..., a quem desde cedo, desde Santa Margarida, tinham posto a alcunha do Pastilhas... (Todos os enfermeiros eram Pastilhas.)

Não chegaste a saber se ele terá percebido o teu humor negro. Não era tipo para achar piada às tuas piadas, ali deslocadas. Recorda-lo,  ainda hoje, como um homem simples, sensível, tímido, reservado, com ar bonacheirão mas assustado, a par de uma calvície precocemente galopante:

– Estamos todos no mesmo barco, camarada!... Quero eu dizer: estamos fo...didos, quilhados, lixados,  embarcados numa aventura que pode ser sem regresso… –  repetias-lhe tu, em vão.

Tu que te julgavas um tipo bem educado e civilizado, começaste a falar mal, a praguejar como o carroceiro que, na tua terra, fazia o serviço combinado com a CP, e tinha quatro possantes cavalos pretos que puxavam a sua galera.  Rosnavas, entre dentes, desde que soubeste da tua mobilização para a Guiné, em finais de fevereiro de 1969. A falar mal, a beber e a fumar. Falava-se mal, na tropa. Bebia-se e fumava-se, em demasia, no teu tempo de tropa. Como se o Niassa fosse uma extensão marítima do Cais do Sodré e das suas espeluncas. 

O enfermeiro, por seu turno,  era incapaz de dizer uma asneira: constava-se que já era enfermeiro na vida civil… Mas tu sabias pouco ou nada dele. Em boa verdade, sabíamos muito pouco uns dos outros.  Nem valia a pena fazer perguntas: nunca tinhas ido às terras deles, nem eles à tua... Para ti, Freixo de Espada à Cinta era no Cu de Judas... Viajava-se ainda muito pouco nos anos 60...  Portugal, todavia, estava bem representado, de Norte a Sul, na tua minicompanhia: dos alferes e furriéis milicanos, havia gente de todo o lado, do Algarve a Trás-os-Montes, da Estremadura  ao Minho, sem esquecer  a Madeira e o Alentejo. 

Tinha piada, as voltas que o mundo dará: o Pastilhas, que voltarás a encontrar muito mais tarde, em 1991, na Anadia, no 1º encontro do pessoal da companhia, vinte anos após a "peluda", virá  depois a fazer o curso de medicina.   E o ranger Azevedo, transmontano, tinha-se tornado empresário e autarca. 

A bordo comia-se e sobretudo bebia-se o dia todo, pelo menos os privilegiados dos graduados, para matar o tédio, para suportar a angústia da viagem, para fazer lastro e sobretudo para não dar parte de fraco e andar a chamar pelo Gregório pelos cantos do navio. 

Não há gaidjas, queixava-se o Vidigal, o 2º sargento do quadro, também ele transmontano, que à última hora ainda havia desafiado alguns gajos da corda   para ir fazer a despedida ao Bairro Alto. Um safado que, à conta da úlcera no estômago, iria depois arranjar maneira de escapar à dura vida no mato.  Um 1º cabo irá tomar conta da sua secção... Sempre era mais novo, com pelo menos 15 anos de diferença... Aquela guerra só podia ser feita por putos com 20 anos... Pobre do capitão que tinha 38 e estava à bica para ser promovido a major.

Era a velha tradição das rotas da navegação colonial, o álcool.  Havia os viciados da lerpa e do king. Como haveria depois, no teatro de operações da Guiné (no TO da Guiné, para utilizar a nossa linguagem de código), os viciados do álcool, da comida, do sexo, da caça, da guerra, da escrita diária de aerogramas (ou "bate-estradas")... 


Os oficiais superiores (eram poucos, e iam em rendição individual), esses, divertiam-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da classe turística escrevia cartas, aos pais, namoradas, noivas, mulheres, madrinhas de guerra..., cartas que tu imaginavas já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades.

As praças, essas, vomitavam nos porões. (Só uma vez tiveste "estômago" para  "ir lá baixo".) Eram a "carne para canhão",  transportada como gado, queixava-se o nosso cripto, o Joselito. Um riacho de água verde-escura, fedorenta,  escorria pelo convés. Todo o navio fedia, tresandava a merda,  e no meio do cheiro nauseabundo havia um desgraçado de um desertor  que ia a ferros, qual gado levado para feira. Diziam que fora apanhado pela Pide na fronteira de Vilar Formoso, e recambiado para Santa Margarida, ainda a tempo de apanhar o comboio-fantasma até ao Cais da Rocha Conde de Óbidos onde o esperava o Niassa. (Enfim, uma história mal contada, como tantas outras, com que nos entretinhamos para aliviar a angústia da incerteza sobre o nosso destino, uma vez desembarcados em Bissau.)

– De mal o menos, ó Peniche , vais como básico, para a Guiné. Melhor do que seres atirador ou ficares a apodrecer no presídio militar de Elvas ou Penamacor…– consolaste-o tu e Oliveira, que estava de sargento de dia.

O pobre do desertor era alvo da chacota da maralha: alguém insinuara que o gajo era maricas e que não teve tomates (sic) para ir para a guerra… Faltosos, refractários e desertores eram a "escória da Nação", opinava o Gravata... Era um velho truque da velha instituição militar que das tripas sabia fazer coração, que da merda fazia nervos de aço, e dos cagarolas heróis... Só para manter o moral das tropas, só para aguentar a guerra, de vitória em vitória até à derrota final…

– Até quando ? – interrogavas-te tu, em silêncio.

– Lembrem-se, seus cabrões, que vocês são a fina flor da nação! – massacrava-te o tenente da tua companhia, na parada em Tavira, no Curso de Sargentos Milicianos…

Dentro de um dia desembarcaríamos na Guiné da qual espantosamente tu não sabias nada a não ser aquilo que te haviam impingido nos bancos da tua velha escola do Conde de Ferreira (onde o teu velho e o teu avô também andaram, e se calhar ainda o avô do teu pai) e que tu terias reproduzido, como um papagaio, no exame da 4ª classe ou da admissão no Liceu Passos Manuel:

– Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem mais do que um terço da superfície de Portugal Continental...

E acrescentavas tu,  de acordo com o livro de leitura:

–  O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, muçulmanos. 

E finalizava com a informação sobre a agricultura da província que dava tudo, era só semear e adubar com sol e chuva... Tão rica que até exportava arroz... para a o faminto arquipélago de Cabo Verde.

Desde que deixáramos as Canárias, que tu não suportavas aquele calor pegajoso, aquela angústia difusa que destilavas através dos poros da pele. Tinhas sintomas de febre e já não sabias distinguir onde acabava a realidade e começava o delírio. O Pastilhas deu-te um LM para baixar a febre. LM, o comprimidinho milagroso , a panaceia do Laboratório Militar, que o nosso Pastilhas  irá distribuir, às centenas, todos os dias, à população indígena , e que sofria de todos os males, do paludismo à lepra, da desnutrição à desinteria, das doenças venéreas à tuberculose...

De facto tudo fora tão brutal: a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco, aonde davas instrução de recruta; a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra, em 28 de fevereiro de 1969; a apresentação no Campo Militar de Santa Margarida; a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO)  com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; os breves dias, tristes, vazios, de licença antes do embarque, em que decidiste não te despedir de ninguém; a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; os capacetes brancos dos polícias militares; os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns, poucos,  de gravata preta; as gaivotas, agoirentas,  estranhamente pousadas nos mastros dos navios; as fragatas do Tejo, silenciosas mas tensas, polvilhando o estuário; os guindastes, o Tejo, a ponte que, de Almada, tu viras elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, arrepiante como o sentimento indefinível de quem em Lisboa partia e de quem em Lisboa ficava; o marinheiro que soltava as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo da costa da África Ocidental, entre o Senegal e Cabo Verde, tu próprio tiveras a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia tu, que fazíamos nós – o Pastilhas, o Vidigal, o Joselito, o Tony, o Ranger Azevedo,  o Zé Neves, o Campanhã, o Meia Leca, o Vagomestre,  o Vat 69, o sacana do Gravata, e tantos outros, que ainda mal conhecias, mais o desgraçado do Peniche, e centenas e centenas de homens, milicianos ou do contigente geral, estes último acondicionados como gado em beliches, nos porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se o Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeitas as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo, e para os eldorados que havia por achar?!...

– Duplamente embarcado, meu velho. Fo...dido, quilhado! – repetias tu, de novo para o Pastilhas ao avistarem ao longe algumas  luzes trémulas 
Ilha do Rei, à entrada do Porto de Bissau, no estuário do Geba,  e ao ouvirem pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

– As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é a linda e moderna Bissau... Blá-blá, blá-blá...

Foi a pensar nas zonas pantanosas e alagadiças da Guiné, nos seus mil e rios e braços de mar, nas suas margens lodosas, nos seus tentáculos traiçoeiras, que tu encomendaste ao teu velho
 um par de botas de cano alto, à cavaleiro... Coitado do teu velho que nunca passará da cepa torta,  pomposamente colectado nas finanças como industrial de sapataria, e dando trabalho a um série de mânfios (sapateiros eram às carradas na tua terra, antes do grande éxodo do país... Julgavas tu, na tua santa ignorância ou ingenuidade, que ficarias melhor protegido contra as temíveis sanguessugas e víboras, crocodilhos e outra bicharada... Felizmente, tiveste  o bom senso de cancelar a encomenda à última hora, com as medidas e a forma do pé já nas mãos de um dos oficiais de sapateiro que trabalhavam para o teu pai...

– Tite, Fulacunda, Jabadá! - alguém alvitrava nomes, como se fosse o cicerone daquele estranho tour by ngiht de aproximação à capital de um país em guerra...


Bissau. 
Quinta feira, 29 de Maio de 1969... 


De manhã, a malta desembarcava numa cidadezinha plana,  desenhada a régua e esquadro no tempo da República (a avenida principal, a única avenida digna desse nome, chamava-se "da República"),  de casas térreas, de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, papaieiras, bananeiras e trepadeiras, e onde em dois ou três quarteirões  se concentrava a administração, o comércio,  a tropa e a religião (católica, apostólica e a romana).

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de fim de maio, putos vendiam mancarra e tu começavas a aprender as minhas primeiras palavras de crioulo. Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejavam bugigangas de contrabando, falando um estranha mistura de francês, crioulo e dialectos locais. Os sons, os sabores e as cores de África baralhavam-te os sentidos e as emoções.


Nunca esquecerás aquela baforada de ar quente quando, nos primeiros dias, saímos dos Adidos e púnhamos o pé em cima da terra vermelha escaldante ou do asfalto quase líquido... E dos primeiros pesos gastos em bebidas em lata  bem geladinhas... Foi em Bissau que tu pela primeira vez viste bebidas em lata que se bebiam dum sorvo, à sombra de uma mangueira ou debaixo de uma ronceira ventoínha... E quanto nais bebias, mais a sede aumentava, devido o teor de açúcar... Foi em Bissau que descobriste a Seven-Up, a Orange ou a Coca-Cola, em lata...

Em relação à Cola-Cola, confessarias mais tarde que não te tornaste fã, talvez por uma razão tão estúpida como  político-ideológico: partilhavas dos preconceitos da época segundo a qual a Coca-Cola era a água suja do imperialismo norte-americano... O ódio ao imperialismo estava na moda, por causa da guerra do Vietname  e da velha doutrina Monroe segunda qual a América era dos americanos, explicava-te o Zé Neves, que era jornalista,  o mais politizado de todos nós.

As imagens que tu tens de Bissau, entre 30 de maio e 2 de junho de 1969, são fugidias, impressionistas, estereotipadas... Logo de manhãzinha, já as esplanadas estavam cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutuava uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze e aos poilões pintados com uma barra branca, uma mulher passava com o filho às costas e um balaio à cabeça. Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partiam do lodoso cais do Pijiguiti, sulcando as águas lamacentas da ria, em busca de mafé...

Tinhas uma vaga ideia do que se passara naquele cais, 10 anos atrás, em 3 de agosto de 1959, pelo que leras ou escutaras da pouca propaganda clandestina do PAIGC que  chegava à capital do império, ou que era difundida pelas emissões que se ouviam, às tantas da noite, das rádios afetas aos forças oposicionistas: a Rádio Portugal Livre, a emissora clandestina dos comunistas, e a Rádio Voz da Liberdade, que emitia partir de Argel, ligada à Frente Patriótica de Libertação Nacional.

Ronceiros aviões levantavam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, frente ao mamarracho do monumento "Ao Esforço da Raça", há um sacana que exclama, histriónico (seria o Azevedo, o Ranger, que ia no UNimog da frente):

– Camaradas, cinco séculos de honra e glória vos contemplam! 

E toda a gente teve de gramar a formatura de boas vindas, no dia seguinte em Brá, e o discurso do "ventríloquo" do  general Spínola:

– Bem vindos à Spinolândia! – ironizava o Zé Neves, que não ia à bola com o com-chefe. 

Estragado com o calendário do fim-de.semana ficara o Vidigal que, não tendo arranjado transporte nem guarda-costas, desistira da ideia de ir ao Pilão... "mudar o óleo" (sic). 

Nos Adidos, três ou quatro topónimos eram pronunciados com um misto de temor e de respeito:  Gandembel, Madina do Boé, Guileje... Os dois primeiros aquartelamentos tinham sido "retirados" no princípio do ano de 1969...


Pelo Geba acima, na LDG 101 Alfange... 
Segunda feira, 2 de junho de 1969. 

Três dias depois iriam dar-te uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida te porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma equipa de fuzileiros navais que, à medida que o rio estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime, em Ponta Varela… Uma ração de combate e dois cantis de água mais ou menos potável:

– Seus sacanas – vociferava  o Ranger, ao lado do capitão, de lencinho preto ao pescoço, era o seu "amuleto"  – aprendam desde hoje a gerir a auguinha. E ficam a saber que neste barco de cruzeiro, rio Geba acima, não há bar aberto a estas horas...

Íam dois, tu e o Pastilhas, sentados em cima de uns colchões de espuma, empilhados numa Berliet, à mistura com centenas de malas de viagem, algumas já rebentadas e atadas por cordões… O fogo de morteirete dos fuzileiros apanhou-te de surpresa… E qual não é o teu espanto quando o enfermeiro, à saída da primeira granada se lançara de cabeça para o fundo da LDG!… 

Tu, que era de armas pesadas de infantaria, não tiveste felizmente reflexos tão rápidos como os dele que, na queda, acabou por ser a  primeira vítima da Companhia na Guiné.

– Vítima do fogo amigo! – comentaste, entre a risota, a compaixão e a  apreensão, ao vê-lo de olho inchado, e o sobrolho a sangrar.

Com um olho-à-Belenenses e com contusões no rosto, o pobre do Pastilhas, por ironia enfermeiro, foi o primeiro de nós a testar a competência dos nossos cabos auxiliares de enfermagem, seus subordinados dos serviços de saúde militar, que, noutras circunstâncias bem mais dramáticas, irão salvar a vida a alguns de nós: pelo menos sabiam aplicar um garrote e administrar o soro... a um desgraçado, atingido por tiro ou estilhaço n0 mato ou na picada.

 Como um cão apanhado na rede! –  resmungavas tu sentado na capota da Berliet, prescrutando a linha do horizonte, a bordo da LDG Alfange...

Pobre do Olho-à-Belenenses, pobre do Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. 

Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, pensas que ele foi o o teu  primeiro herói, ou melhor, o teu primeiro anti-herói: nunca o viste  a pegar uma arma, nunca deu um tiro (nem sequer contra um jagudi),  nunca matou ninguém, duvidas até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhara com a malta em operações, mesmo nas grandes operações; recorda-lo sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem (alguns seguramente gente de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Fá Balanta, etc.,  quiçá até vivendo no mato, sob controlo do PAIGC, ou do IN, como se dizia eufemisticamente)...

Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos  esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo, ou pintar o cu com uma estranha poção à base de tintura de iodo quando chegávamos lá, de pernas arqueadas, com a flor do Congo estampada no cu...

Ele foi o talvez o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local... Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto, gratuitas e até perigosas: recordas-te de um dia, às tantas da noite, no regresso de um patrulhamento ofensivo com emboscada até à meia-noite,  dois ou très chanfrados, "apanhados do clima", o terem acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da companhia (qwue até era um homem bonacheirão), já na parte final da comissão, a vestir o camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... 

Simularam uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido temíveis nomes como Ponta Varela, Poindom, Ponta do Inglês, Baio, Burunbtoni, Fiofioli, Curobal... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo... 

Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Pastilhas teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico...

No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas e a dar as suas picas e os co,primidos LM, os "mezinhos",  aos doentes africanos da tabancas em redor... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

Voltarás a encontrá-lo, muitos anos mais tarde, vinte anos depois, na Anadia no "Zé dos Leitões": era o dr. Andrade, médico de clínica geral em Aveiro, e médico do trabalho, numa fábrica de automóveis em Cacia.

Voltaste a encontrá-lo mais tarde e lembras-te de ele me ter falado, sem ressentimentos, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, dos seus dois filhos, um deles médico e professor na NOVA e outro engenheiro aeroespacaial, a trabalhar em Montepellier, França
.. 

Perdeste-lhe entretanto o rasto,   mas confessaste ao Zé Neves que gostaria de voltar a encontrá-lo,  para lhe dizer que ele agora fazia parte da tua "galeria de heróis", a ele que tinha sido vítima  de  algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas, praxes de mau gosto, que ele suportou com a sua proverbial bonomia... Na realidade, sermpre houve "bullying" na caserna, e não apenas na esccola, na catequese, no liceu, ou no local de trabalho.

– A guerra é estúpida e cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem, 
 primata social, territorial e predador,  tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade... – comentataste tu para o Zé Neves, agora jornalista reformado, profundo conhecedor do Bairro Alto, em Lisboa, e que tu reencontravas com alguma frequência na Cervejaria Trindade, nos idos anos de 1975.

O Pastilhas tivera o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança  sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O enfermeiro era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses na Guiné: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque...  

Por outro lado, ele cometera, ainda a bordo do Niassa, um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º sargento Gravata, com quem de resto tinha mais afinidades ... Os furriéis milicianos, sobretudo os operacionais, em conflito com Gravata, marcaram o Pastilhas e às vezes faziam-lhe a vida negra...

 Não tens qualquer esperança que ele te leia este "conto com mural ao fundo"... Há uma conversa que tu e ele começaram  no Niassa e  se prolongou  pela LDG Alfange, mas que ficou por terminar... Nunca gostaste de conversas interrompidas a meio... De qualquer modo,  vais ter de lhe perguntar: 

–  Afinal, em que ponto é que a gente ia, depois daquele incidente na LDG quando  seguíamos rio acima até ao Xime ?... Ainda te lembras, em 2 de junho de 1969?"... 

Claro que ele não se vai lembrar de coisa nenhuma: terá sido o primeiro de todos nós a esquecer a Guiné... para sempre! 

– Guiné ?!, um pesadelo de um noite de verão!... Esquece, não sejas masoquista!... – arrematava-te o Zé Neves, entre duas imperiais e um bife à Trindade, no verão quente de 75 .

© Luís Graça (2006). Nova versão, revista e melhorada, em 1/12/2023. 
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 31 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24808: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (12): de Montemuro a Montmartre ou uma história de vida "casapiana"

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24191 Imgens das nossas vidas: CART 3494 (1971/74) (Jorge Araújo / Luciano Jesus) - Parte I: De Lisboa a Bolama


Foto 3 >  Porto-cais de Bissau, visto cais do Pidjiguiti; ali nos esperava uma LDG para nos transportar 
até ao CIM (Centro de Instrução Militar) em Bolama, para a conclusão da última parte da instrução geral. [Foto do álbum do Luciano de Jesus, fur mil da CART 3494].

Foto (e legendas): © Luciano Jesus (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

O que resta do Palácio do Governador e da Câmara Municipal de Bolama (in: https://www.almadeviajante.com/visitar-bolama-guine-bissau/ - Blog de Viagens de Filipe Morato Gomes, com a devida vénia.


IMAGENS DAS NOSSAS VIDAS: CART 3494 (1971-1974) - Parte I: De Lisboa a Bolama 
 


1. – INTRODUÇÃO

Passam hoje quarenta e nove anos – 1974.04.03/2023.04.03 – que a Companhia deArtilharia 3494, do Batalhão de Artilharia 3873, completou a sua missão militar em território da, então, Província Ultramarina da Guiné, regressando de Bissau a Lisboa, ao Aeroporto de Figo Maduro, em avião dos TAM.

O recordar esta efeméride, nos termos em que o estamos a fazer, aqui e agora, foi uma incrível coincidência, e resulta de um acto de grande generosidade do nosso camarada Luciano de Jesus, pois, ao tomar a iniciativa de me oferecer uma cópia do seu álbum de imagens que foi construindo ao longo dos mais de vinte e sete meses de permanência no CTIG, concedeu-me a premissa de escolher o tempo e o espaço de o partilhar para memória futura.

Considerando que a grande maioria das suas fotos ainda não foram editadas, e são algumas dezenas, ficou acordado entre nós que as mesmas seriam organizadas segundo uma cronologia de eventos e de factos observados nos diferentes contextos que constituem o portefólio operacional da sua missão como miliciano.

Uma vez que tenho, também, algumas fotos ainda não editadas, e porque os itinerários e contextos foram, a maioria, comuns, as “imagens são das nossas vidas”, título dado a esta série.

Esta PARTE I percorre o itinerário náutico desde Lisboa a Bissau e, depois, a estadia na Ilha de Bolama, no C.I.M (Centro de Inmstruçáo Militar=)  para conclusão do processo de instrução global para a “guerra de guerrilha”, denominado de I.A.O. (Instrução de Aperfeiçoamento Operacionla).

Recordamos, neste âmbito, que a Companhia de Artilharia 3494 [CART 3494], a terceira Unidade de Quadrícula do Batalhão de Artilharia 3873 [BART 3873], do TCor António Tiago Martins [1919-1992], foi mobilizada pelo Regimento de Artilharia Pesada [RAP 2], da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, tendo embarcado em Lisboa, no Cais da Rocha, a 22 de Dezembro de 1971, 4.ª feira, a bordo do N/M «NIASSA», rumo ao TO do Comando Territorial Independente da Guiné [CTIG], numa altura em que o conflito armado contabilizava nove anos (Foto 1).




Foto 1  > Rio Tejo > Cais da Rocha > Lisboa >  22 de Dezembro de 1971 > N/M«NIASSA». Mais um contingente de cerca de mil e quinhentos jovens milicianos rumo ao TO do CTIG. [Foto do álbum do António Bonito, fur mil da CART 3494].


A chegada do contingente metropolitano a Bissau, onde ficou fundeado em frente ao Cais do Pidjiguiti, ocorreu a 29 de Dezembro, 4.ª feira, tendo este sido transferido para uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) que o transportou até Bolama, com o propósito de concluir, no C.I.M. (Centro de Instrução Militar), a instrução geral com a realização do I.A.O. (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), a qual decorreu até 27 de Janeiro de 1972, 5.ª feira (foto 2).

Segundo consta na História do Unidade [BART 3873], “os resultados obtidos na instrução geral e I.A.O. foram animadores. O esforço do Comando e instrutores visou não apenas consciencializar o Soldado do tipo «sui generis» de luta a enfrentar, como também ministrar-lhe o adequado endurecimento físico e destreza operacional, de maneira a evitar surpresas fatais no teatro da guerra.

Ensinou-se, exemplificou-se e corrigiu-se: são as três palavras sintetizadoras daactividade preparatória” (op. cit. p 4).

Após a conclusão deste período final de instrução, o Contingente foi conduzido, de novo em LDG, até ao Xime, localidade onde aportou a 28 de Janeiro de 1972, 6.ª feira, tendo ali ficado instalada a CART 3494, e as restantes Companhias seguido, em coluna-auto, para os Aquartelamentos que lhes estavam destinados, isto é: Companhia de Comando e Serviços (CCS), em Bambadinca; CART 3492, no Xitole, e CART 3493, em Mansambo (op. cit. p 20).


Foto 2 > Bissau >  29 de Dezembro de 1971 >  O N/M «NIASSA» fundeado em frente ao 
Cais do Pidjiguiti, seguido do desembarque do contingente metropolitano da foto 1. Foto do álbum do António Bonito, fur mil da CART 3494].

Fotos (e legendas): © António Bonito (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Foto 3A >  Porto-cais de Bissau, visto cais do Pidjiguiti; ali nos esperava uma LDG para nos transportar 
até ao CIM (Centro de Instrução Militar) em Bolama, para a conclusão da última parte da instrução geral.


Foto 4 >  Bolama >  Jan 1972 > Da esquerda para a direita: os furriéis milicianos da CART 3494, Abílio Oliveira (Alimentação); José Peixoto (Artilharia); Luciano de Jesus (Art); Carvalhido da Ponte (Enfermeiro) e Luís Domingues (Transmissões).

Os intervalos da citada instrução permitiram, ainda, registar alguns momentos dedescontração, como comprovam as imagens abaixo, do álbum do camarada Luciano de Jesus ainda não editadas, e que fazem parte das nossas vidas na Guiné (1971-1974).


Foto 5 >  Bolama > Jan 1972 >  Da esquerda para a direita;  o fur mil  Sousa Pinto [1950-2012]; o alf mil op esp Manuel Carneiro; o fur mil art  Luciano de Jesus e o fur mil enf  Carvalhido da Ponte, todos da CART 3494.


Foto 6 >  Bolama >  Jan 1972 >  Da esquerda para a direita: o fur mil inf Sousa Pinto [1950-2012]; o alf mil op esp Manuel Carneiro; o fur mil enf Carvalhido da Ponte e o fur mil art  Luciano de Jesus, todos da CART 3494.


Foto 7 > Bolama > Jan 1972 >  Da esquerda para a direita: o fur art  Luciano de Jesus; o fur mil enf  
Carvalhido da Ponte; o fur art José Peixoto e o alf mil op espe Manuel Carneiro, todos da CART 3494.


Foto 8 >  Bolama > Jan 1972 >; O camarada Luciano de Jesus a fazer contas à vida e ao calendário… faltavam, ainda, mais vinte e sete meses para o regresso…
 

Foto 9 > 28Jan’1972 >  Algures no Rio Geba a caminho do Xime. Os camaradas Luciano de Jesus e Luís Domingues a bordo de uma LDG….

Fotos (e legendas): © Luciano Jesus (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Continua…

Terminamos agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita Saúde.

Jorge Araújo e Luciano de Jesus

03ABR2023

terça-feira, 28 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23391: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - II (e última) Parte (Luís Graça)



Guiné > Região de Bissau > Brá > Depósito de Adidos > Junho de 1969 > O Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), na sua função de Oficial de Dia. "Normalmente fazia as minhas rondas na minha própria motorizada, quando não tinha jipe disponível, uma vez que a área a percorrer era grande. Tinha uma extensão à volta de 1000 metros, de frente para a estrada, e uma quantidade indeterminada de instalações militares. A minha motorizada era uma Honda Azul, de 50 cc, que depois, quando regressei, deixei por lá abandonada. Pode observar-se a existência de valas abertas fundas, para escoamento das chuvadas diluvianas, quando apareciam. Em finais dos anos 40, havia aqui um campo de aviação."

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné, região de Bafatá. Contuboel,
junho de 1969: o autor



A galeria dos meus
heróis: uma história
pícara de três
“a(r)didos” - II 
(e última) Parte 

por Luís Graça (*)


7. Tirando eventualmente um ou outro serviço, que eu não sei se chegaram a fazer (como “sargento de dia” ou “polícia de unidade”) e o facto de dormirem mal e comerem ainda pior, no Depósito Geral de Adidos (DGA), na Calçada da Ajuda  (só o termo “depósito” era um “achado”!), os nossos três “a(r)didos”, o Parente, o "Matosinhos" e o "Algarvio"  não se podiam queixar: afinal tiveram um prolongamento inesperado das férias (se bem que curtas, de duas ou três semanas), em Lisboa, enquanto aguardavam o embarque no “cruzeiro para a África de todos os sonhos” (de acordo com o prospeto da “agência de viagens” da tropa…).

Podiam ter ficado em casa de família ou numa pensão, mas por razão ou outra (e sobretudo "financeira"), optaram pela incomodidade dos Adidos, para mais tratando de um quartel que, naquele tempo,  ficava um bocado "fora de mão", na Ajuda.
 
Como compensação pelo sacrifício, "deu para beber uns copos” bem como para uma ou outra escapadela aos cinemas da Baixa e aos bares do Cais do Sodré, que estavam então na moda (e continuaram a estar até hoje, sobretudo com a criação da rua pedonal, a Rua Cor de Rosa, há cerca de anos atrás). Ficara  até prometida uma “visita secreta” ao Bairro Alto, que o “Matosinhos” e o “Algarvio” mostraram alguma curiosidade em conhecer… Por uma razão ou outra, o Parente ainda não os tinha levado lá, mas a surpresa ficaria guardada para a véspera do dia do embarque.

No regresso ao DGA, apanhavam o elétrico, o autocarro ou, às vezes, o comboio até Belém,  e subiam depois a Calçada da Ajuda, a pé… Tinham que entrar até à meia-noite, naquele tempo o “Matosinhos” e o “Algarvio” ainda eram 1ºs cabos milicianos mas já alinhavam nas escalas de serviço dos sargentos. Com a guerra, havia falta de sargentos e oficiais, o que era colmatado com o recurso aos milicianos. Mão de obra “escrava”, diga-se de passagen, paga a 90 escudos por mês (o valor do pré de então…), equivalente hoje a 28 euros…

− Mas também se ganha mal e porcamente na vida civil – contemporizava o Parente. – Agora, quando voltarem da Guiné, vivos e inteiros, vocês já poderão comprar carro, montar casa e casar!

− Não me f…! – interrompeu o “Matosinhos”. – Não haverá dinheiro que pague o sacrifício da nossa juventude… A madrasta da Pátria paga-nos para matar e para morrer…

− Não sejas tão panfletário, já pareces o Manuel Alegre aos microfones da rádio Argel… A maior parte da malta vai ter as férias que nunca sonhou ter!... Férias, ainda por cima, pagas!... – ironizou o sargento.

− Férias ?!...

− Olha, eu não quero outra vida. Já vou na 3ª comissão… É verdade que também não sei...  fazer mais nada!

− Grande malandro, tinhas dado um belo padre – ouviu-se a voz do “Algarvio”, do fundo do cadeirão.

− Pois era, mas o sacana do falangista f… o nosso Parente! − comentou o “Matosinhos”.

− Ele é que foi ingénuo. Nunca ouviste dizer: “Em Roma sê romano” ?!... Tinha obrigação de conhecer as regras da casa, foi pobre e mal agradecido − arrematou o "Algarvio", seco e contundente.


8. A cena mais pícara destes três “a(r)didos” foi quando o Parente convidou os outros dois para “irem às meninas” (sic) na véspera do embarque no “Niassa”. O “Matosinhos” e o “Algarvio” entreolharam-se, com um certo olhar de espanto, e terão respondido ao desafio, com uma pitada de humor negro:

− E porque não ?!...  Só Deus sabe se voltaremos a casa, vivos e inteiros!
 
− Sobretudo inteiros, com os ditos cujos “en su situ”! – atalhou, malicioso, o sargento.

Quase instintivamente, o "Matosinhos"  levou as mãos ao baixo ventre para se certificar que ainda lá estavam, inteiros, os “tintins”…

O Parente não conseguiu deixar de soltar uma sonora gargalhada:

− Façam de conta que é uma despedida de solteiro!... Mas primeiro vamos beber uns copos. E eu pago a primeira rodada!

Como estava previsto o navio largar amarras às 11h00 da manhã, do dia 24 de maio de 1969, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o Parente não quis arriscar deixar a surpresa para o próprio dia do embarque, o que teria tido muito mais "pica"... 

No fim da tarde do dia anterior, sexta-feira meteram-se num táxi, e “ala, moço, que se faz tarde”, a caminho do Bairro Alto. (As malas já haviam seguido, entretanto numa viatura dos Adidos, e, mais importante, haviam conseguido  dispensa de pernoita, seguindo na manhã do  outro dia diretamente para o "Niassa", como eu, de resto, que vim, durante toda a noite, em comboio, do Campo Militar de Santa Margarida para o Cais da Rocha Conde de Óbidos.)

Tinham, pois,  a noite toda por conta deles,  suspirava, feliz, o safado do sargento. Mas antes haveria que celebrar o evento com uma mariscada, na cervejaria "Trindade". No dia seguinte era sábado e nessa altura ainda se trabalhava aos sábados, e o Bairro Alto deveria estar animado de gente laboriosa. (É bom lembrar que a chamada semana inglesa, as 45 horas de trabalho semanal, com um dia e meio de descanso em cada sete, é uma conquista dos trabalhadores do comércio portugueses, só conseguida justamemte nesse ano, em 1969.)

A “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha” foram as três mulheres com quem os nossos “a(r)didos” passaram essa noite  de 23 para 24 de maio de 1969. Na cama, como eles depois me contaram. Ou melhor, quem me 
contou essa cena, digna de figurar no melhor livro do nosso humor de caserna, foi o “Algarvio”, que era, dos três, o mais sensato, o mais discreto, o mais sóbrio, o melhor observador e quiçá o  melhor contador de histórias que eu conheci …

Os nomes de guerra das três mulheres podem não ser estes, mas para o caso também não  é  relevante. A “Sissi” era a patroa, tinha uma “casa de bonecas”,  perto da “Princesa da Atalaia” (uma tasca que eu virei a conhecer mais tarde, dez anos depois. em 1979)... Com a  extinção das casas de passe, em 1963, fora a maneira da "Sissi" de contornar a lei e manter o negócio: alugava quartos a raparigas ("que vinham da província").  Com ela trabalhavam a “Rita Pavone” e a “Mudinha” (assim conhecida por ser muda) e, ocasionalmente, mais algumas que ali faziam o seu "biscate".

Como era habitual terem clientes na sexta feira à noite, o Parente tratou de tudo, previamente e reservou três quartos... Imagine o leitor o que era o Bairro Alto de há mais de 50 anos atrás, ainda com prostituição de rua (tolerada, se bem que ilegal).

A “Sissi”, como velha conhecida do Parente, combinou com as outras duas raparigas e facilitou as apresentações. O prédio  compunha-se de rés-de-chão (ainda com os famosos “aventais de pau”, as "meias-portas" onde no passado as mulheres se mostravam, debruçadas para a rua), primeiro andar e águas furtadas. 

 Era uma construção ou reconstrução oitocentista, de pé direito alto. As divisões eram minúsculas, mal cabendo nos quartos uma cama, uma mesinha de cabeceira e um pechiché, com um espelho (onde as raparigas tinham a tralha para a maquilhagem, os cosméticos, os pós de arroz, os batons, os vernizes). O rés-de-chão, compunha-se de um pequeno vestíbulo, com um reprodução  do quadro a óleo do José Malhoa, " O Fado" (1910), na parede;  uma  pequeno  cozinha, a casa de banho (reduzida a um retrete, lavatório e pouco mais), um roupeiro e ainda um saleta de costura. (Oficialmente, a "Sissi" era costureira, e tinha os impostos em dia.)

Havia ainda umas águas furtadas, acrescentava o "Algarvio", meticuloso na reconstituição da cena e do cenário que fez para mim a bordo do "Niassa"... Ali a “Sissi” tinha a sua “suite” (sic)  e um pequeno salão onde recebia os “hóspedes” mais íntimos… (O Parente achava que ela beneficiava de alguma proteção da gente do poder.)

− O teu gajo hoje está por aí ?! – interrogou, cauteloso, o Parente.

− Já não preciso de “guarda-costas” e muito menos de “Júlios” – respondeu, seca mas orgulhosa, a “Sissi”. 

O sargento ficou a “matar saudades” com a sua antiga “chavala” de há uns atrás. O “Matosinhos” e o “Algarvio” tiraram à sorte quem ficava com as outras duas: é que uma era mesmo “muda”…

− Muda, mas felizmente, não é cega nem é surda – encolheu os ombros, o “Matosinhos”, resignado com a sua (má) sorte, ele que logo simpatizara com a “Rita Pavone”, que falava pelos cotovelos, e tinha umas lindas sardas, que lhe fazia lembrar a sua primeira namorada do tempo de escola.

Fiquei depois a saber, pelo relato do “Algarvio”, que a “Mudinha” fora adotada pela “Sissi” como “afilhada”… Tinha sido violado, ao que se dizia,  pelo padrasto, em Setúbal, onde vivia e estudava no liceu. O gajo era uma granjola da máfia da estiva. A rapariga acabou por cair na “má vida” e veio para Lisboa, "por portas e travessas". A ”Sissi” acolheu-a.

Mas, afinal, quem mais se divertiu, dos três “a(r)didos”, nesse sexta feira à noite  inesquecível, foi o “Matosinhos”. A “Mudinha” era uma verdadeira figura dos contos das Mil e Uma Noites, capaz de satisfazer as mais exigentes fantasias eróticas dos “clientes”. A sua “especialidade” era exemplificar, ao vivo, algumas das mais ousadas e acrobáticas  posições do Kama Sutra…

E tinha um inusitado sentido de humor negro. Quando convidou o “Matosinhos” a fazer o “69”, este recusou, com alguma brusquidão e irritação, típica do macho latino… Ela então “rogou-lhe a sua famigerada maldição” (sic), um delicioso aforismo que é uma obra-prima do linguajar do "bas-fond":

− Quem não faz sessenta e nove, não chega… aos cem!

 Mesmo assim o tempo foi curto para tantas “lições”... O "Matosinhos" fez questão de mandar vir "champagne de Sacavém" e 
o par trocou de galhardetes e de endereços postais. A rapariga, sabendo que ele, “tadinho", ia para o "ultramar”, fez-lhe até um desconto e não lhe levou nada pelas “aulas extras”. O “Matosinhos” prometeu-lhe que escreveria da Guiné, e que, nas férias, lhe traria um colar de missangas, conforme pedido expresso da rapariga… Ela comunicava através de notas, a lápis, num caderno escolar, a par da linguagem gestual.

Não sei se o “Matosinhos” chegou a vir de férias. E se, muito menos, cumpriu o prometido,    voltar à Rua da Atalaia com o colar de missangas  e acabar o resto das aulas... enquanto a sua namorada o esperava, ansiosa, a 300 km mais a norte... (Nem nunca mais poderei saber se ele chegou a casar com ela, a menos que me dê sinais de vida, o que me parece pouco provável.)


 9.  Ainda foram, para a despedida,  ao cacau da Ribeira, no Cais do Sodré,  antes de rumarem diretos ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, a pé. Já estavam os três com um grãozinho na asa, ou pelo menos eufóricos, quando passaram pelas senhoras do Movimento Nacional Feminino, e receberam o maço de cigarros “Três Vintes” e a medalhinha de Nossa Senhora de Fátima a que tinham direito.

Mas, logo à entrada do “Niassa”, junto às escadas que levavam ao portaló, ia havendo uma “bronca de todo o tamanho" (sic), com o “Matosinhos” e uma das “meninas da Cilinha”. Ele depois explicou-se, já mais calmo, no bar do navio: o que mais o irritara, fora o sorriso piedoso, cínico, amarelo, de uma delas, por sinal a que parecia mais nova, mas já "trintona, balzaquiana, com ar de solteirona" (sic)...

− A fulana estava a pedi-las! − desculpou-se ele.

O “Matosinhos” vinha eufórico, mas ali, no cais, ao cair na realidade e ao ser confrontado com o seu imperioso dever como militar, que era embarcar,  rumar  à Guiné, pegar na G3, ir para o mato e  defender a Pátria…, teve de repente uma “tirada infeliz” (reconheceria mais tarde), quando a senhora do MNF lhe “desejou boa sorte e a bênção de Nossa Senhora de Fátima” (sic)…

Ele não sabe o que é que  lhe deu na veneta..., mas  "passou-se dos carretos” (sic) e respondeu-lhe ao ouvido, para que as outras, ali à volta,  não dessem conta e armassem um escarcéu:

− Em matéria de santas, gosto mais da minha mãe e da senhora de Matosinhos, a nossa padroeira… E a si, minha querida senhora, que não deve ser santa mas ainda tem um lindo palminho de cara, e um belo par de marmelos,  eu dava-lhe mas era uma valente trancada patriótica!… Mas venho do Bairro Alto, de papo cheio, e agora a Pátria chama-me, e outros valores mais altos se 'alevantam'…

Não sei se a senhora percebeu patavinha do palavreado, já meio empastelado,  do “Matosinhos”… Só deve ter reagido à referência ao mal afamado Bairro Alto… Corou, Ficou afogueada,  e mal teve tempo de balbuciar:

− Ai, senhor furriel!... Mas que pessoa tão inconveniente e mal educada!…

E terá feito um gesto de pedido de socorro ao piquete da Polícia Militar que estava à entrada do cais, controlando os civis, de costas para o navio, pelo que os PM não terão sequer assistido à cena…

O Parente, felino,  é que não teve com meias medidas… À cautela, dei logo um valente puxão ao colarinho do "Matosinhos", arrastando-o pelas escadas acima até ao portaló!... Entraram os três, de roldão,  no navio, e só pararam no bar...Pediram três uísques duplos,  e comentaram, aliviados e bem dispostos, as peripécias daquele "dia inesquecível"…

Crachá do Depósito de Adidos, Brá.
Cortesia de Augusto Silva Santos (2013)

10. No dia 30 de maio de 1969, logo pela manhã, cerca das 8h00, desembarcámos em Bissau. E fomos levados para o Depósito de Adidos, em Brá. E cada um foi para o seu lado, eu fiquei com a malta da minha companhia, num dos pré-fabricados.  Sei que ficámos numa camarata, em camas sem lençóis, com um cheiro insuportável, agravado pelo calor e humidade de Bissau.  Foi um horror, durante três dias, até acertar com a bebiba que matava a sede.

 No dia 2 de junho, eu segui em LGD pelo rio Geba acima até ao Xime, a caminho de Contuboel (via Bambadinca e Bafatá).  

Os três “a(r)didos” ainda lá ficaram, coitados, em Brá,  à espera de transporte, cada um para o seu destino. Ainda nos encontrámos no "Pelicano", se a memória não me atraiçoa. ... Mas mal tivemos tempo de nos despedirmo-nos. Nunca mais os vi, mas espero que tenham conseguido regressar a casa, sãos e salvos, "vivos e inteiros"… Eu, por mim,  regressei, vivo, em março de 1971,  mas com a morte na alma...


11. Tem piada, durante anos não me lembrei mais desta(s) história(s) picara(s) dos três “a(r)didos"... Como tantas outras que me fariam correr o risco de "voltar à Guiné", tentação essa a que fui resistindo durante os primeiros anos da "peluda",  fechando as memórias da guerra com um cadeado a sete chaves. 

Para mim a Guiné, "c'est fini", dizia eu... Até que, uma década depois, no 2º trimestre de 1979, dei de caras com a placa com o nome da rua, a Rua da Atalaia… Foi um choque. Aprendiz de etnógrafo, a acabar o curso de sociologia, andei dias e dias, semanas e semanas, ao fim da  tarde, a caminho daquela rua, com o meu grupo de trabalho,  para apanhar histórias de vida, e registar letras e músicas dos velhos e velhas frequentadores da “Princesa da Atalaia”, uma tasca, uma das poucas, onde ainda se cantava o “fado vadio”… 

Então estas recordações vieram à tona de água, em catadupa... Tive que as registar. Pensei, como etnógrafo, que um dia alguém se iria interessar pelas "memórias da guerra colonial" (ou do ultramar), um objeto de estudo  que se calhar deveria merecer a mesma atenção  que o fado, "canção popular urbana", lisboeta,  em risco de extinção no pós-25 de Abril... 

Peguei no meu caderno de notas  e escrevi um primeiro esboço desta história... que ficou entretanto em banho maria e depois esquecida até agora... Mas hoje pergunto-me: se calhar ainda me cruzei,  sem o saber, em 1979, com a “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha”,  as três "meninas" com quem os meus companheiros  do "cruzeiro do Niassa" passaram as primeiras horas do dia 24 de maio de 1969. Na cama,  no bem-bom, a acreditar na história, bem pícara e hilariante, que me foi contada por um deles, o "Algarvio"... (Claro que com dez anos a mais estariam precocemente envelhecidas, e quiçá irreconhecíveis.)

Se resgato, hoje, esta história, ao fim de mais de meio século no limbo da memória, é porque afinal ela pode ter algum interesse para se conhecer um pouco melhor... a "idiossincrasia" da geração dos últimos soldados do império,   os que fecharam um ciclo de 500 anos... Não eram santos nem heróis, muito menos gigantes, daqueles talhados no bronze e na pedra ou imortalizados nos versos épicos do Camões... Eram apenas  "arraia-miúda", gente vulgar,  de quem nunca reza a História...

O Parente, o "Matosinhos", o "Algarvio", os três "a(r)didos", tal como a "Cilinha" e as suas senhoras,  ou a "Sissi" e as suas meninas, também faziam parte, afinal, da pequena história da História (com H grande)... 

Luís Graça

Lourinhã, 24 de maio de 2022, 
53 anos depois do embarque no T/T Niassa com destino à Guiné.
_________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 27 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23389: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - Parte I (Luís Graça)