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segunda-feira, 29 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6065: Não-estórias de guerra (5): O Furriel Dog e o cão Furriel (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971), com data de 17 de Março de 2010:

Caros Editores,
Terminado o período de rigorosa invernia. Agora que regressaram os dias de sol, aqui vai mais uma Não-estória de guerra.

Um Abraço
Manuel Amaro



Não-estórias de guerra – 5

O Furriel “Dog” e o cão “furriel”

O Furriel Dog não se chamava Dog, mas sim Orlando Nunes.


Era Furriel Miliciano Atirador de Infantaria, da CCAÇ 2615. Aliás ele afirmava que os serviços de psicologia do Exército funcionavam na perfeição, pois com a formação obtida na escola comercial do Barreiro, ele só poderia ser atirador de infantaria.

O Dog fez quase toda a comissão com o braço esquerdo engessado, devido a uma fractura (ou luxação?) do escafoide. E aquele gesso, que lhe pesava e lhe reduzia o volume da massa muscular, também lhe era de uma grande utilidade, pois libertava-o da maior parte da actividade operacional.

No entanto, por mero acaso, não o libertou no dia 20 de Março de 1970, em que numa emboscada o seu grupo de combate teve um morto (milícia) e alguns feridos ligeiros.

Nesse dia o Dog disse ter descoberto que, debaixo de fogo, um simples pé de capim, parece ter a dimensão de um imbondeiro e a consistência de um baga-baga.

Mas, à conta do gesso no braço, ainda foi durante largos meses, delegado do Batalhão, em Bissau. E à noite, quase todas as noites, como bom conversador e contador de estórias, era um dos principais protagonistas da famosa 5.ª REP.

Um dia adoptou um cão. Um cão que de imediato baptizou de Furriel. E acertou na escolha do nome, porque agradou a toda a gente. Os furriéis não se incomodaram e chamar furriel a um cão, era um motivo de orgulho dos Primeiros Sargentos e até de alguns Praças.

O Furriel não era propriamente um cão artista, mas conseguia comer à mesa, na Messe de Sargentos e beber cerveja e whisky, este com muita água. E com estas qualidades, tinha algum protagonismo.

Além de ser amigo dos cães e de todos os animais, o Furriel Dog era um exímio cantor. Antes do serviço militar tinha feito parte de um conjunto de música de baile, onde se divertia e ainda conseguia arranjar algum dinheiro de bolso.

Mas era essencialmente um baladeiro.

E possuía uma sólida formação política, a maior parte feita na clandestinidade.

Cantava todo o reportório do Zeca Afonso, do Adriano e de outros cantores aventureiros dos anos sessenta.

Normalmente terminava as suas intervenções, cantado Catarina Eufémia… Por vezes, quase sempre, com as lágrimas a correrem-lhe pela face, o queixo a tremer, mas a voz não vacilava… “ quem viu morrer Catarina, não perdoa a quem matou….”

Um grupo de quatro ou cinco camaradas faziam coro.

Quando ele se entusiasmava e gritava “hip… hip… URSS”, uns acompanhavam-no, outros encolhiam-se.

Depois do regresso, o nosso grupo ainda fez umas noitadas nos restaurantes, bares e discotecas de Lisboa, mas a rotina, as exigências profissionais e também os divórcios, foram reduzindo os contactos.

Até que surgiu a fase da organização de convívios dos ex-combatentes.

E aí estávamos de novo juntos. Mais velhos, mais maduros, mas sempre com a boa disposição que nos levou a apelidar, quase em segredo, a CCAÇ 2615, a nossa Companhia, como a “Companhia de Circo”.

Creio que o último convívio em que participou, foi em 2000, em Campo Maior.

Pouco tempo depois, quando cuidava do pequeno barco de recreio que tinha ancorado no Tejo, o coração traiu-o. Não resistiu.

Nem imbondeiro, nem baga-baga, nem ao menos um simples pé de capim...

Hoje, a propósito de “qualquer coisa”, pareceu-me ouvir aquela frase, que lhe ouvi, tantas vezes, desde o RAL3, em Évora, até aos locais de convívio dos veteranos.

Fazia-se anunciar sempre com a frase “…Aqui o Dog chega sempre cedo”.

Não vai chegar mais... Porque já partiu.

E o Dog partiu cedo, muito cedo.

Manuel Amaro

O Furriel Dog dá de beber ao cão furriel

O cão furriel, à mesa...

Manuel Amaro e Orlando Nunes, a bordo do Uíge
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5462: Não-estórias de guerra (4): O Parto, essa grande (a)ventura (Manuel Amaro)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5462: Não-estórias de guerra (4): O Parto, essa grande (a)ventura (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971), com data de 11 de Dezembro de 2009:

Caros Editores,
Antes de entrar no período de férias natalícias, resolvi enviar mais uma não-estória.
Comecei a escrever sobre Guiledje. Mas quando vi que estava a escrever sobre a guerra, desisti.
Depois comecei a escrever sobre o branqueamento daquilo, mas falta-me informação. Não dá.
Acabei por escrever o texto que anexo.

Um Abraço
Manuel Amaro


Não-estórias de guerra IV

O Parto


Creio que quase todos os médicos que estiveram no interior da Guiné (dito mato), tiveram a experiência do parto. Alguns Enfermeiros também.

Quando cheguei a Buba em Junho de 1970, falhei por pouco. O Dr. Sérgio Ribeiro tinha-me deixado uma lista de acções imediatas, entre as quais o apoio específico a um par de gémeos com dois dias de vida. Cheguei atrasado, mas ainda colaborei na recuperação daquela feliz, mas muito debilitada mãe e no desenvolvimento dos dois rebentos.

No final da guerra, em 1974 já estavam com quase quatro anos. Alguém se deve recordar deles.

Em Junho de 1971, em Nhala, quase a chegar ao fim da comissão, faltava-me essa grande aventura. O parto. Assistir? Colaborar? Efectuar? O que fosse, seria!...

Mas em Nhala as mulheres grandes tratavam do assunto, no maior dos silêncios, sem qualquer problema.

Até que um dia… (em tudo há sempre um dia diferente dos outros). Chegou a hora do parto da Binta, mulher do António Baldé.

A mulher do António não era de Nhala. Tinha vindo de Bolama com o António, quando ele lá esteve a fazer a recruta.

O António não era milícia, era mesmo militar. E era ajudante dos enfermeiros.

E essas condições fizeram com que a Binta tivesse sido muito acompanhada por nós durante a gravidez, que era a primeira. Mas sempre pensei que no momento do parto, as mulheres grandes resolvessem a situação.

Qual quê!?

Uma noite (estas coisas acontecem sempre de noite), estava eu na messe, com mais uns camaradas, tentando esvaziar o frigorífico do Ferreira, chega o António, esbaforido, estanca na porta e chama... furriel… furriel…

Levanto-me, saio e ele com dificuldade desabafa…

- Minino não quer sair… vem comigo.

Arrancámos os dois em passo acelerado e pelo caminho fui perguntando pelas mulheres grandes. O que estavam fazendo. O que tinham dito…
O António, não raciocinava… Só dizia que eu tinha que ajudar…

Entrei na morança e lá estava a Binta, na posição de cócoras ou de quatro, sobre uma esteira, gemendo e tremendo, rodeada por três mulheres grandes, as parteiras de Nhala. Creio que estaria despida, porque ainda vi colocarem-lhe um pano por cima, enquanto eu entrava na morança.

As mulheres grandes ficaram sossegadas, não reagiram à minha presença, o que me levou a concluir que podia trabalhar sem empecilhos.

Assim que ouviu a minha voz, a Binta parou de tremer e passou a gemer menos vezes e mais baixinho.

O bebé (não gosto de dizer ou escrever, o feto), estava vivo e cheio de genica.
Os suores não eram frios.

Não houve reacção à mudança da Binta, da posição original para a tradicional posição de parto. Deitada, de costas, com os joelhos levantados…

Até convenci duas mulheres grandes a sentarem-se, uma de cada lado da Binta e darem-lhe as mãos, para ela ter algum apoio onde se agarrar e fazer força.

O toque das minhas mãos na cabeça, na face e na barriga da parturiente, funcionavam como um tranquilizante…
Passada a fase de reinstalação, com alguma acalmia, voltaram as dores intensas.

Mas agora, a Binta, comodamente (?) instalada, agarrada às duas mulheres, com os joelhos apoiados nos meus braços, podia fazer força à vontade e assim, mais facilmente colocar no mundo, aquele matulão, ensanguentado e chorão.

E cumpriu a missão.
Foi uma festa.

O António Baldé, pai do rebento, que não tinha sido autorizado a entrar durante o parto, aguardava cá fora.
Abraçámo-nos, gritou, chorou de alegria e fez-me soltar uma lágrima.

Finalmente tinha cumprido todos os meus objectivos operacionais

No regresso à messe, onde ainda estavam os resistentes do “Dimple”, fui trauteando: - “Meia-noite é meia vida/Meia vida por viver/Guitarra triste esquecida/Que ninguém sabe entender…”, um poema de Álvaro Duarte Simões, cantado por Amália e outros intérpretes do fado.

Durante o luto que cumpri durante mais de 20 anos, depois daquela guerra, tentei esquecer tudo aquilo, mas os convívios, primeiro ao nível do BCAÇ 2892, depois no ambiente mais familiar da CCAÇ 2615 e agora no âmbito do blogue, tudo isto chega em turbilhão.

E eu funciono como um entreposto de informação. Tudo o que chega, é distribuído, partilhado com a comunidade.

Sophia de Mello Breyner, se estivesse aqui, diria que ao escrever estas não-estórias, estou a fazer a minha catarse. Talvez. Não tenho a certeza. Mas, do que é que eu tenho a certeza?

Hoje, apenas por hoje, estou certo que ao escrever as minhas não-estórias, eu estou a libertar-me. E, tal como Sophia, posso dizer que…: - “bem, eu liberto-me como posso”.

Manuel Amaro
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5346: Não-estórias de guerra (3): A minha Escola (Manuel Amaro)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5346: Não-estórias de guerra (3): A minha Escola (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71), com data de 23 de Novembro de 2009: Caros Editores, Junto envio mais uma Não-estória de guerra, desta vez sobre a Escola. Um Abraço, Manuel Amaro 


  Não-estórias de guerra:A Escola 


 Hoje venho falar sobre sobre a Escola, a minha Escola. Que escrito assim, até pode parecer que é apenas uma. Mas, não. São duas Escolas. Uma em Aldeia Formosa. A outra em Nhala. Nem imaginam como eu gostaria de vos falar de outras Escolas. Do Colégio do Bom Sucesso. Ou do Externato da Princesa Santa Joana. Mas não. A minha Escola, a nossa Escola, é Aldeia Formosa e Nhala, nos anos lectivos de 1969/70 e 1970/71. 

 Eu cumpri estes dois anos lectivos, com um prazer enorme. O primeiro foi incompleto, porque o PAIGC atacou e era preciso travar o inimigo. Claro que o Comandante tinha uma “arma secreta”, para resolver a questão. E lá avançou o professor, mesmo em prejuízo da escola. Em Nhala fiz o ano completo. É certo que, em qualquer terra, por todo o globo, ser o Professor, é ter um estatuto social diferente, para melhor, em relação à maioria da população local. Frequentemente recebia doses de bananas, ananases, mangas, até galinhas e frangos… que o maqueiro da CCS transformava em “grambrinescos” petiscos. Mesmo em tempo de guerra, em Aldeia Formosa e Nhala. 

 No início não foi fácil. O edifício destinado à Escola ainda estava em construção. As aulas começaram numa tenda, com bancos de madeira e os alunos escreviam com o caderno apoiado nas pernas. No primeiro dia de aulas compareceram todos os alunos matriculados. Bem vestidos, lavados, alguns de sandálias, um dos mais crescidos apresentou-se mesmo com sapatos e meias, mas a maior parte “calçados” à moda de Aldeia Formosa. No entanto fiquei bem impressionado. Era quase uma Escola a sério. Passados uns dias comecei a notar algum desleixo na higiene, mas o que mais me impressionava, além da ausência de sapatos, eram os narizes sujos, tão sujos… O meu primeiro impulso foi dizer, ou gritar… não aguento… Mas depois, lembrei-me que na civilizada Metrópole também havia gente assim. Alguns, com honras de figurar em excelentes obras da literatura portuguesa. Vitorino Nemésio escreveu (e falou na RTP), sobre um seu colega de carteira na Escola Primária, na Ilha do Faial, que andava sempre ranhoso e de vez em quando limpava o nariz à manga da camisa, que utilizava meses a fio, sem ser lavada. “O Marcos”, de Miguel Torga, é apresentado de “…penugem arrebitada e com duas torcidas de ranho no nariz”. Ao ser-lhe dito para se assoar, fê-lo, de imediato, à manga do casaco. 

 Mas aquela turma, a minha turma, cheia de ranho, nem sequer tinha mangas, nem de camisa, nem de casaco. No máximo tinham fraldas de camisa. Sim, isso eles tinham. Então adoptei o sistema de, sempre que necessário, fazia o gesto na direcção do nariz, o aluno saía da aula e voltava com o nariz limpo, ou pelo menos sem ranho. Não sei como faziam e jamais tive essa curiosidade. A surpresa agradável é que aquelas crianças eram muito inteligentes. E apesar de terem entre sete e 12 anos, tinham uma boa capacidade de aprendizagem e de raciocínio. Todos? Não, mas a maioria deles, sim. 

 Um dia contei-lhes a história do aluno madeirense (que me desculpem todos os madeirenses), que, perante a imagem do tubérculo, soletrava b+a=ba… t+a=ta… t+a=ta… e depois dizia… Semelha. Perceberam perfeitamente. Riram e prometeram que não iriam cometer esse tipo de erros. Para o ensino da aritmética, comecei por requisitar, no depósito de géneros, um saco de grão de bico, de forma a que todas as operações enunciadas no quadro fossem representadas fisicamente por grãos. Aos grãos de bico, umas vezes chamávamos soldados, outras vezes ananases, outras vezes pães… 

 E apesar das condições precárias nunca deixei de completar o programa com aulas de educação física, música/canto e jogos infantis. Passados mais de 38 anos, ainda tenho saudades da minha Escola. As fotos anexas constituem prova. Nunca foram destruídas. Jamais serão arquivadas. 

  Em tempo: Porque falamos de memórias não quero deixar de referir que, enquanto Professor, eu dependia de uma hierarquia constituída por Pedro Pezzarat Correia, (major), no BCAÇ 2892 e Otelo Saraiva de Carvalho (capitão) e António Ramalho Eanes (major), ambos na REP ACAP, em Bissau. 

 Manuel Amaro


 
Posto Escolar Militar de Aldeia Formosa, Dez 1969

Aldeia Formosa, 1970 - Recreio (visita de um furriel da CArt 2521)
Nhala, 1971 - Educação Física no Campo de Futebol
Nhala, 1971 - Os melhores em acção Fotos e legendas: © Manuel Amaro (2009). Direitos reservados

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Nota de CV: 

sábado, 24 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5148: Não-estórias de guerra (2): A Lavadeira de Aldeia Formosa (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71, com data de 20 de Outubro de 2009: 

 Caro Luís, Como reduziram para cerca de metade aquilo que recebia por ter estado na guerra, com menos dinheiro para gastar, fiquei com mais tempo para escrever. Resultado: aqui vai mais não estória. Um Abraço Manuel Amaro 


  Uma não-estória de guerra: A Lavadeira 

Por Manuel Amaro 


 Tenho lido, com agrado, as estórias relacionadas com as lavadeiras, contadas aqui no blogue. Concluí que, na verdade, para quem esteve naquela guerra, a existência das lavadeiras era um importante factor, com nítida influência na nossa qualidade de vida. 

 Mesmo que alguns aspectos tenham sido vividos inconscientemente, mesmo que algumas estórias tenham uma grande dose de imaginação, o facto é que aquelas dezenas de milhar de militares, na sua maioria ainda quase meninos, alguns saídos pela primeira vez da esfera familiar, viam na lavadeira, fornecedora de roupa limpinha, a continuação da família. 

 Eu também tive as minhas lavadeiras. Uma lavadeira em cada terra. Quando a CCAÇ 2615 chegou a Aldeia Formosa, porque fomos os últimos a chegar, as melhores lavadeiras já tinham a lotação esgotada. Eu bem levava uma recomendação para falar com a Farma ou a Maimuna. E falei. Mas nem uma cunha do Gilberto Campos, Fur Enf da CCS, me valeu. Tive que me contentar com uma sobrinha das ditas, de nome Saida Baldé, creio que familiar do Régulo de Colibuia, tabanca abandonada, que ali vivia na condição de refugiado. 

 A Saida era muito jovem, elegante, muito bonita, rosto com traços caucasianos, mas negra, muito negra. Muito competente e muito organizada. Naquele tempo, em Aldeia Formosa, a determinada hora, talvez 16h00, 16h30, as lavadeiras juntavam-se na porta de armas e aguardavam ordem da sentinela para entrar. Depois, aquele bando, em correria desenfreada, contactava todos os clientes, entregava a roupa lavada, recebia a roupa suja e regressava à tabanca. E todos os militares estavam atentos à chegada das lavadeiras. 

 Um dia, em todas as coisas há sempre um dia diferente, atrasei-me no duche e lá apareceu o Campos a gritar: 
 - Está aqui a lavadeira… 
 - Vou já, é só vestir-me. - Respondi. 
 - Eh pá, coloca a toalha à volta da cintura e chega aqui, rápido. – Ordenou o Campos. Cumpri. 

Coloquei a toalha e fui a correr. Lá estava a Saida com a minha roupa para entregar, mas só a mim. Pedi desculpa pelo atraso e fui recebendo a roupa, peça a peça. E ela, que nunca me tinha visto naquela indumentária, olhava, surpreendida, curiosa, expectante… Acontece que quando dei por mim estava com uma erecção, que não conseguia controlar e a toalha avançava na direcção da lavadeira… 

 A Saida, quando acabou a entrega, curvou-se para agarrar o cesto da roupa, confrontou-se com aquela torre Eiffel, abriu os olhos, apontou o indicador direito e gritou:
 - Eh furriel… eh furriel… virou-se e desatou a correr. 

 No dia seguinte e nos dias que se seguiram, tudo correu normalmente. Mas passado um tempinho, assim que a minha lavadeira teve oportunidade, perguntou-me, com um sorriso maroto e um olhar reluzente, quando é que eu vinha outra vez de toalha. Disse-lhe que se ela queria que eu viesse de toalha, então na próxima vez eu viria receber a roupa com a toalha à volta da cintura. 

 No dia seguinte tomei duche, coloquei a toalha, sentei-me à mesa e fiquei ali à espera, lendo mais um capítulo de ”Os Lobos”, de Hans Hellmut Kirst. Assim passei uma boa meia hora. O Torres, da CART 2521, ainda perguntou se eu estava na sauna, mas eu nem respondi. 

 Finalmente chegou a Saida. Eu apareci à porta com a toalha. Ela entregou a roupa. Eu recebi. Tudo em silêncio… a mesma toalha, o mesmo cesto da roupa, a mesma torre, o mesmo olhar… Mas quando partiu, a Saida limitou-se a dizer, baixinho: 
 - Obrigada, furriel… 

 Dois dias depois, eu parti para Buba, numa viagem (peregrinação), de três meses, que me levaria a Buba, Aldeia, Bissau, Lisboa, Bissau, Aldeia e Nhala. Em Nhala voltei a ter lavadeira. Sem estória. Tal como em Nhacra e Buba. Mas tenho, sempre tive, guardo na memória, o maior apreço e consideração, pelo importante papel desempenhado pelas lavadeiras (as mulheres que lavam roupa, à mão), qualquer que fosse a sua relação com os militares. 

 Manuel Amaro 

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 Nota de CV:

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5075: Não-Estórias de Guerra (1): O Furriel Enfermeiro de Quebo (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro *, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 que esteve em Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala nos anos de 1969 a 1971, com data de 26 de Setembro de 2009:

Caros Editores,
Há muito, muito tempo que não colaboro activamente no blogue.
Este regresso de férias permitiu-me descobrir umas coisas congeladas, que vou enviar, assim, aos bocadinhos.
Hoje é esta não-estória.

Com um pedido de desculpas pelo incómodo.
Um Abraço
Manuel Amaro


2. Uma não-estória de guerra > O Furriel Enfermeiro de Quebo
por Manuel Amaro

Eu delicio-me a ler e ver estórias de guerra. Em livros, em filmes e, mais recentemente, aqui no blogue.

Mas eu não tenho estórias de guerra para contar porque, apesar de ter estado em zona de guerra, de 28 de Outubro de 1969 a 6 de Setembro de 1971, durante todo esse tempo nunca disparei um único tiro. Logo, não fiz a guerra.

Mas eu gosto de participar. Então, decidi contar a minha não-estória de guerra, na Guiné-Bissau.

Quando cheguei a Aldeia Formosa (Quebo) no final de 1969, aquilo era assim quase um paraíso.

Tínhamos feito um mês de estágio em Nhacra (englobando Safim, João Landim, Cumeré e Dugal). Aqui no Dugal, o Pelotão do Alferes Caçador ainda foi presenteado com uma rocketada que levantou as chapas da cobertura.

A viagem em LDG, via Bolama, até Buba, foi desagradável. A coluna Buba/Aldeia de uma qualidade indescritível.

Mas em Aldeia Formosa não havia guerra. Diziam os mais velhos que isso se devia à acção de alguns Comandantes que por lá passaram, nomeadamente o major Azeredo e o major Fabião. E também devido à existência do Cherno Rachid Djaló. Mas… como não há bem que sempre dure…

Entre 20 de Março e 30 de Abril de 1970, Aldeia Formosa foi duramente castigada pelo inimigo. Tanto com emboscadas no mato, de que resultaram três mortos, como ataques ao quartel.

Os ataques do PAIGC a Aldeia Formosa incomodaram tanto o General Spínola que este tomou a decisão de substituir o Comandante do BCAÇ 2892, nomeando para o cargo, o Ten Cor Manuel Agostinho Ferreira.

O novo Comandante, mal tomou posse reuniu com o 2.º Comandante, o Oficial de Operações, Comandantes de Companhia, Oficiais e Sargentos. Falou muito e ouviu pouco. De seguida, sentou-se naquela mesa enorme, na Sala de Operações, e, olhando para os mapas, questionava o oficial de operações:
- A CART 2521 tem o pessoal todo operacional?
- Sim, tem, meu Comandante.
- E a CCAÇ 2615 tem o pessoal todo operacional?
- Sim, tem, meu Comandante - repetiu o Major... Mas hesitou e corrigiu…
- Bem, quer dizer… o Furriel Enfermeiro está destacado no Posto Escolar.

O Comandante deu um salto e gritou:
- É isso… não pode ser. O pessoal de saúde tem que estar integrado nas suas Unidades Operacionais. Esse Furriel cessa funções hoje. Amanhã já está integrado na Companhia. Nomeia-se outro Furriel, Amanuense ou de Transmissões, para a Escola.

O Tenente Lopes, que dava os últimos retoques no stencil da Ordem de Serviço, ainda conseguiu incluir o texto do Despacho, que foi publicado e distribuído, nesse dia, já noite dentro.

Esta foi a grande decisão do novo Comandante. E a decisão foi cumprida

No dia 6 de Maio de 1970, quando o Pelotão (aqui apetece-me chamar-lhe Grupo de Combate) saiu para a Operação de rotina, já integrava o Furriel Enfermeiro, de camuflado, carregando uma bolsa tradicional, mas de G3 a tiracolo. Esta cena teve assistência, mirones, assim uma coisa semelhante à apresentação do Cristiano Ronaldo, em Madrid…

Saliente-se que esta decisão e a sua imediata implementação, foi tão importante que, quando o Pelotão que fazia a segurança nocturna, no exterior do quartel, regressava a casa, já se cruzou com o gila, informador do PAIGC, que ia a caminho da fronteira, para transmitir a novidade.

Nino recebeu o mensageiro que chegou com ar cansado da viagem, mas feliz por cumprir tão importante missão informativa:
- O novo Comandante de Quebo já tomou uma decisão. O Furriel Enfermeiro que estava na Escola passou a operacional. A partir de hoje, cerca de 15% das operações na área de Quebo terão a sua participação.

Nino, que de início parecia tranquilo, começou a dar sinais de impaciência e algum nervosismo. Para disfarçar, começou por acariciar a sua kalash com a mão direita, mas a esquerda, mais difícil de controlar, começou a coçar a cabeça. Quando o Nino coçava a cabeça já se sabia que alguma coisa estava a correr muito mal.
- Isso é mau. E logo agora que tínhamos algum controlo na zona.

Nino pensou, pensou… mas não demorou mais de cinco minutos para ordenar aos seus adjuntos o que fazer de imediato:
- As armas pesadas cumprem o plano até esgotar as munições... O grupo do GB, até ordem em contrário, não faz as emboscadas previstas na zona de Quebo.

E a ordem foi cumprida. E a vida continuou. Até que uns dias depois, ainda em Maio, o gila aparece de novo e informa:
- Camarada Comandante Nino, o Furriel Enfermeiro deixou a zona operacional. Agora só faz colunas de reabastecimento Quebo/Buba/Quebo. É que os outros enfermeiros não gostam de fazer colunas e ele gosta de ir a Buba comer peixe grelhado e cumprimentar os amigos que tem em Buba e Nhala.

Nino pareceu não dar muita importância à informação, mas logo que o gila se afastou, ordenou, até ordem em contrário, a paragem da colocação de minas na estrada e/ou ataques às ditas colunas. E a ordem foi cumprida.

Mas a vida no teatro de guerra é muito agitada, mesmo para quem não faz a dita. Ainda decorria o mês de Junho e já o gila estava a solicitar nova audiência.
- Camarada Comandante Nino´, lembra-se do Furriel Enfermeiro de Buba, que foi ferido e não foi substituído? Está no Hospital em Lisboa, com uns centímetros de intestino a menos…

Nino não entendeu a razão desta conversa, mas replicou:
- Em Buba os colonialistas têm um médico.
- Pois - concordou o gila -, mas o médico vai de férias a Portugal. O Camarada Nino imagina quem vai substituir o médico durante esse tempo?... O Furriel Enfermeiro do Quebo.

Nino soltou um palavrão. (Que eu não repito, porque eu não escrevo palavrões, mesmo quando são ditos por outros). E depois ordenou:
- Até ordem em contrário, o Grupo do MS não executa ataques na zona de Buba.

E a ordem foi cumprida.... Em Outubro lá estava de novo o gila informador, o que era um incómodo para Nino, porque estas informações eram pagas, mas ao mesmo tempo eram informações válidas e sempre credíveis, portanto úteis, para a operação do PAIGC.
- Então que notícias temos de Quebo? - perguntou Nino.
- Coisa grande, Camarada. A Companhia de Nhala vai para Quebo e a de Quebo vai para Nhala.

Nino não entendeu a razão da importância desta informação e argumentou:
- Mas isso é uma simples troca, não altera nada.
- Altera, sim, camarada Comandante. É que o Furriel Enfermeiro, agora, vai ficar em Nhala, até ao fim da comissão, em Setembro do ano que vem. – sentenciou o gila.

Nino, que até ali estivera de pé, durante toda a conversa, sentou-se, baixou a cabeça, colocou-a entre as mãos e, em vez do tradicional palavrão, disse baixinho:
- … Dasse… dasse… dasse…

Passados uns minutos levantou-se, passou as mãos pelo rosto, alisou o cabelo e ordenou a todos os seus comandantes:
- Até Setembro de 1971, não haverá qualquer acção contra os militares colonialistas instalados em Nhala, incluindo o quartel, a estrada e os carreiros.

E a ordem foi cumprida.... Em Setembro de 1971, o Furriel Enfermeiro do Quebo e Nhala regressou à Metrópole. O gila emigrou e é estivador no porto de Marselha. O Nino… bem, sobre o Nino toda a gente sabe tudo.

A maior parte dos protagonistas desta não-estória já faleceram e não poderão confirmar o que aqui está escrito. Mas o nosso Camarada José Martins, recorrendo a todas as suas fontes de informação, poderá confirmar que todas as ordens de Nino, aqui referidas, foram cumpridas.

A bem de uma situação de guerra, que se queria de paz.

Um Abraço
Manuel Amaro
CCAÇ 2615


2. Comentário de CV:

E assim, com esta fantástica não-estória de guerra do nosso camarada Manuel Amaro, a quem aproveito para pedir desculpa pelo tempo que demorei a publicá-la, demos início a uma série que pode servir para guardar as vossas ficções ou histórias verdadeiras, mas colaterais a acções de guerra propriamente dito.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4840: Parabéns a você (20): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Os Editores)