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domingo, 21 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11438: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (9): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XVII / XVIII / Fim): Final da comissão em Empada (set 69 / jan 70)



Guiné-Bissau > Viagem de abril de 2005 > Aklgures em Marrocos, a caminho da Guiné-Bissau. O jipe é do António Camilo.



Guiné-Bissau > 2005 > O Zé Teixeira regressa à sua segunda terra... Um homem é também as suas memórias, a memórias dos lugares e do tempo onde viveu, sofreu, amou... O Zé deixou amigos que ele reencontrou trinta e cinco anos depois... Na foto vê-se o António Camilo e o José Teixeira. A foto deve ter sido tirada Xico Allen.


Guiné-Bissau > Região de Quínara >  Empada > 2005 > Antigo abrigo de morteiro construído pela CCAÇ 2381, na fase final da sua comissão (1969/70)

 Fotos: © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados


1. Publicamos hoje o resto de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/709 (*) [Originalmente publicado, em 18 postes,  na I Série, em 2006]


Empada, 19 de Setembro de 1969

Preciso de desabafar, de me abrir com alguém. Dentro de mim existe uma tremenda confusão. Quero fugir deste ambiente bélico, em que só se pensa na sobrevivência. Em que se mata para não morrer. Em que não se faz nada a não ser estar atento para ouvir uma possível saída de morteiro, que pode ser a nossa desgraça. Em que se parte ao desconhecido numa terra vermelha, estranha, inóspita, que esconde armadilhas fatais.

Sou inocente, nesta guerra que me recuso a fazer. Procuro na solidão e no estudo, melhor na simples leitura, pois não consigo concentrar-me, as forças que me faltam, já que ninguém consegue compreender o meu estado de espírito. Também não encontro ninguém com quem possa conversar estas coisas. Ninharias, dirão.

Em cada dia que passa a confiança em mim mesmo vai-se abaixo enquanto sinto crescer dentro de mim um estado de espírito de revolta contra todos os homens que fomentam as guerras. Queria ir a Bissau fazer história mas não sou capaz.


Empada, 24 de Setembro de 1969

O IN ainda não decidiu deixar-me em paz. No dia 20 à noite apareceram por esta terra. Aliás, no dia dezoito também cá estiveram, mas foi de muito longe. Só notei porque o 81 funcionou, para que não se entusiasmassem. O ataque do dia 20 foi fraco, talvez o mais fraco ataque que sofri até à data e me fez correr para o abrigo. Poucas granadas rebentaram e caíram todas fora do arame. Também utilizaram a costureirinha, mas sem quaisquer efeitos. Também fizeram duas visitas a Buba. Apenas assustaram.

Empada, 16 de Outubro de 1969

Do pelotão que está em Buba chegam novidades. Há dias houve por lá um terrível ataque com tentativa de assalto. Atacaram do sítio habitual do lado do rio com 10 Canhões s/r, enquanto do lado da pista fazia o desenvolvimento do assalto, procurando apanhar a tropa desprevenida.

Segundo dizem os meus colegas eram mais de duzentos, a avançarem em arco para que se as nossas forças saíssem as envolverem. Felizmente estava emboscado um Pelotão que os detectou. Parece que foi um tremendo fogachal, enquanto os Fuzas perseguiam os que atacaram do lado do rio que pretendiam reforçar as forças de assalto.

Ao fazer-se o reconhecimento, foi encontrado um rádio, sinal de que o ataque foi bem comandado e o fogo controlado por sentinelas avançadas. Foram descobertas e desenterradas 180 granadas de canhão s/recuo. Foi também ouvido ruído de viaturas.




Guiné-Bissau > Região de Quínara  > Empada > 2005 > Restos de abrigos construídos nos antigos quartos dos furréis da CCAÇ 2381, aqui aquartelados em 1969.

 Foto: © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados


Quando os Fuzas voltaram ao quartel, foram seguidos pelo IN que os atacou muito perto de Buba. Assim caíram entre dois fogos, o do IN e o de Buba que reagiu a um possível ataque sem saber que o fogo era destinado ao grupo de fuzas..

No dia anterior tinha havido uma coluna a Nhala ,onde apenas foi encontrada uma A/P com dispositivo anti-levantamento eléctrico que felizmente não funcionou por ter as pilhas gastas.

Nesta mina havia uma mensagem escrita: "Esta é para Alferes Gonçalves". Infelizmente este furriel (e não alferes) já está em Lisboa devido a um estilhaço que apanhou noutro ataque a Buba.

Há tempos apareceu aqui por Empada um turra. Deu várias informações e foi para Buba integrado no Grupo de fuzas, para fazer de guia. Parece que conseguiu fugir levando uma G3 (1).

Empada, 26 de Outubro de 1969

Vejo-te, nesta manhã radiosa, em que o sol parece sorrir enamorado. A brisa bate de leve no teu rosto, ciumenta do teu olhar. Os pássaros, nos seus chilreios cantam hinos de louvor à tua beleza. Até as pedras da rua se sentem orgulhosas por te servirem de trono.

Eu vejo-te passar através do meu espírito, do meu coração enamorado. Sinto ciúmes de tudo o que te rodeia, de tudo o que amas, pois é amor que me roubas. Quem me dera ter-te a meu lado e de mãos dadas, cabeça erguida, altivos, felizes e confiantes, palmilharmos o caminho da vida . . .

Ontem procedeu-se à rendição do Pelotão estacionado em Buba. Parece que Sector está em brasa. Durante um mês foram atacados sete vezes. Num ataque de tiro ao alvo, meteram nove canhoadas numa parede de caserna . . sem ninguém. Que sorte.

Empada, 16 Novembro de 1969

O Marinho Caixeiro Conceição morreu (2). Era querido e estimado por todos. Passava o dia a cantar a cantar a morte o surpreendeu, quando no ataque do dia 14 estava na retrete. Talvez porque estivesse a cantar, não ouviu as saídas nem os gritos de avisos dos colegas que iam tomar banho. Quando sentiu o primeiro rebentamento junto à caserna tentou fugir, mas já era tarde, uma das primeiras granadas rebentou no telhado e meteu-lhe alguns estilhaços no corpo - o que lhe perfurou a nuca foi fatal -, e ainda foi projectado contra a parede, aumentando os estragos.

Eram vinte e uma e trinta, quando começou. Utilizaram seis morteiros 82, treze lança roquetes, bazucas, morteiro 60 e, claro, a costureirinhas, algumas com balas tracejantes. Tiveram sorte na pontaria e conseguiram metê-las quase todas dentro do quartel e povoação. Só junto às casernas rebentaram oito granadas. Junto ao arame caíram manga delas.

Além do Conceição,que morreu, ficaram feridos o Açoreano e quatro nativos. Na morança da Fátima (prostituta) caíram duas, mas não houve azar, pois os camaradas que lá estavam já se tinham escapulido.

Foram perseguidos até ao fundo da pista, mas às duas da manhã voltaram, aproximaram-se mesmo do arame junto à pista. Felizmente, desta vez não causaram danos. Se desta vez a pontaria fosse idêntica à do primeiro ataque, teria sido uma catástrofe.

Empada, 21 de Novembro de 1969

É uma família muito simpática. Ela, Bijagó, e ele, Cabo Verdeano. Têm quatro filhos: Marcos, Lucas, Júlia e Victória. Muito trabalhadores, aproveitam o terreno cultivável, na impossibilidade de se dedicarem à pesca, a sua profissão, por medo da guerra.

A Júlia está muito marcada pelo ambiente militar que a rodeia, tem até um filho de branco e creio que foi prostituta, em tempos, em Bissau. Tem três filhos todos de tenra idade e é uma tentação cá para a malta. A sua liberdade de linguagem é um dos factores para que qualquer homem se sinta tentado a persegui-la e receber as suas benesses, por troca de umas moedas. A Victória, essa tem porte digno, alguns de nós já se lançaram ao engate, mas ela troca-lhe as voltas.

Até há pouco tempo, toda esta gente - três homens, três mulheres e cinco crianças - dormiam no mesmo compartimento da morança. Com os ataques seguidos de há dias, o medo aumentou, o que se compreende, pois na mesma noite tiveram de pegar por duas vezes nas crianças e fugir para o abrigo rasgado na terra e coberto com cibes, tendo caído duas granadas muito perto da sua casa.

Na luta pela sobrevivência, decidiram passar a dormir no minúsculo abrigo, pondo lá dois pequenos colchões, tendo como companheiros lagartos, formigas, cobras, etc. Os dois velhos da família, por falta de lugar no abrigo, continuam a dormir na morança.

Um clima muito quente e húmido, a terra muito húmida, uma pequena abertura para entrar, a enorme quantidade de bichos, a urina das crianças, o suor dos corpos... são estas as condições desta família. Quantas famílias, quantas Júlias haverá por esta terra !?



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Emapada > 2005 > O reencontro do Zé Teixeira com o Keba (à esquerda)... À direita, o Xico Allen, com quem o Zé Teixeira viajou em 2005, e que também tinha estado em Empada, embora noutra época (1972/74). De óculos, e vestido de azul, o Braima, que foi ajudante de enfermeiro do Zé Teixeira.

Foto: © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados.


Empada, 20 de Novembro de 1969

O Kebá (3) aparecia todos os dias na Enfermaria. É o nosso ajudante no tratamentos da população. Trata as pequenas feridas. Elas já sabem:
- Kebá põe mercuro ! - e ele põe.
- Kebá, parte quinino! - e ele vai buscar LM. Vão-se embora todos contentes.

Ao Almoço lá lhe trazemos uma cantina cheia de comida. É a nossa paga. Há dias deixou de aparecer. Estranho, mas como tem duas mulheres e vários filhos no mato, admiti que tivesse ido embora.

Ontem vi-o a carregar barricas de água, da fonte para o jardim do chefe de posto. Perguntei-lhe porque deixou de aparecer e fiquei horrorizado. Estava preso por não pagar o Imposto de Pé Descalço (4).

Vim para o Quartel e a minha revolta fez-me agir. Um quarto de hora depois estava a casa do Chefe de Posto cercada por militares armados de G3 a exigirem a libertação do Kebá.

Safou a situação o nosso capitão que, apercebendo-se dos acontecimentos, dirigiu-se ao local e conseguiu a libertação do homem. Como não desarmámos, pois queríamos que o bandido fosse castigado, foi-nos prometido pela capitão que ia fazer uma exposição a Bissau para que fosse retirado de Empada (5).

Acalmada a situação fiquei à espera do castigo, mas parece que me foi dada razão.


Empada, 26 de Novembro de 1969

Na semana passada os Paras fizeram ronco em Gandembel, no “carreiro da morte” , matando 10 e aprisionando um capitão cubano, ferido com uma rajada no braço.

Este confessou ser de origem cubana e estar na Guiné há cinco anos, mobilizado por Fidel Castro (6). Dirigia-se a Conakry para uma reunião com o comando turra. Cerca de duas horas antes tinha passado no mesmo local o Nino com as rampas de lançamento de mísseis.

Já no Hospital em Bissau, foi visitado e reconhecido pelas senhoras do MNF – Movimento Nacional Feminino. Vivia no Bairro da Ajuda, quase em frente do hospital, com a esposa e três filhos. Foi apanhado na sexta feira e tinha no bolso um bilhete do UDIB da terça feira anterior.

A febre e o fim da Comissão atingiu completamente toda a malta da companhia... Nota-se um grande nervosismo, por sentirem que ainda faltam dois meses (7).

Dizem que é costume o IN atacarem nos últimos tempos de comissão. A nós já nos deram recentemente um morto. Por isso a preocupação é enorme.


Empada, 24 de Dezembro de 1969


É Natal. No ar uma camada de cacimbo que nos dificulta a visão. Ao longe o troar das armas, o ribombar dos canhões, lembram os sinos da paz e, pela sua insistência, recordam-nos que é Natal.

Então, o espírito, o coração, todo o nosso ser, sente o Natal. Não o Natal que vivemos na hora presente, preocupados com a morte que nos espreita pela boca de um canhão, atentos ao menos sinal de perigo, para de arma em posição de rajada fazermos frente ao Inimigo.

Sente-se o Natal de nossas casas, a paz dos nossos lares e sofre-se não propriamente por estarmos em guerra, mas porque nos lembramos dos nossos. O seu Natal, não é Natal, porque falta alguém querido, alguém que sente e vive o Natal e outra maneira, em circunstâncias muito difíceis. Eles nem sonham !


Empada, Ano Novo de 1970


A felicidade é o supremo desejo de todos os homens. A História não é mais que uma longa e louca aventura dos homens à busca da felicidade.

O homem, na ânsia de atingir a felicidade, esmaga o seu irmão. A moral diz-nos que a felicidade se constrói com a vida na medida em que nos mentalizamos da nossa missão como seres humanos, viver a vida em comunidade e agir em conformidade. No entanto esquecem-se rapidamente estes princípios morais. Os governantes, responsáveis pelo bem estar do seu povo, guerreiam, ensanguentam, matam. Destroem para atingiram os seus fins. Alegam que buscam a felicidade para o povo, que é preciso sacrificar uns para que outros vivam felizes, enquanto eles vivem nos seus palácios de egoísmo.

Ah ! esses que se arvoram em condutores do povo, que conduzem as guerras dos seus palácios de vidro, se vivessem no seu sangue, no seu corpo, no seu espírito o que se passa nas frentes de batalha !

Se sentissem o sofrimento de tantos que, num último esforço, se tentam agarrar à vida, no meio de atrozes dores. Se sentissem a dor dos que têm de abandonar tudo o que é seu e fugir, na esperança de escaparem à morte.

Se sentissem a dor daqueles que vêm os seus entes queridos, os seus amigos, ali à sua frente, mortos por uma granada traiçoeira, quando ainda há escassos segundos viviam felizes.

Se sentissem o que é ficar sem uma perna, um braço, ficar inutilizado para a vida e quantas vezes rejeitado pelos seus, como quem deita fora o que já não presta.

Se sentissem o que sente o jovem a quem lhe roubaram os melhores anos da sua vida, a quem atrasaram a sua construção como homem.

O ingrato de tudo isto, é que alegam que se trata de uma causa justa. O Inimigo também afirma que luta por uma causa justa e que esta justifica ao vida e o esforço de todos. De que lado estará Deus, se ambas as frentes lutam por uma causa justa ?

Dizem que estão dentro da razão e mandam os outros para a frente. Eles não vão. Lá longe traçam os planos, jogam com as vidas, indiferentes ao sofrimento. . .

A eterna busca da felicidade . . . Pobre homem cego, que procuras a felicidade e julgas que a consegues, esmagando os outros, servindo-te do teu poder. Esqueces-te que a felicidade, não é mais que a construção de ti mesmo, procurando atingir o HOMEM perfeito.

O Grande drama do homem, é o ser limitado nos seus meios naturais e infinitos nos seus desejos. Procura então, por meios anti-humanos, conseguir os seus desejos. Pobre bocado de terra que esqueceu a sua origem e o final que o espera . . .

Empada, 11 de Janeiro de 1970

Ainda cá estamos e eles continuam por perto. No dia 9 nove, as 22.30 h. vieram dar-nos as boas festas. Roquetes, bazucas e costureirinhas e um quarto de hora debaixo de fogo. Só atingiram a tabanca, queimando algumas moranças. Além do susto houve um ferido nativo que teve de ser evacuado.

[Foi a minha despedida da guerra. Poucos dias depois dei baixa ao hospital e fiquei em Bissau a aguardar o embarque que se concretizou em fins de Abril ].

Brá, 20 de Março de 1970

Continuo em Bissau a aguardar o transporte para junto dos meus. Desde Dezembro que o embarque em sido adiado sucessivamente. Agora dizem-nos, mais uma vez ,que está por dias. Será o retorno à sociedade, o retorno a vida: dentro de mim continua a revolta pelo que vi e vivi, mas também há uma grande vontade de reagir.

  



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 1970 > Um militar da CCAÇ 2381, Os Maiorais,  na fase final da sua comissão.

Foto: © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados.


Leça do Balio, 17 de Fevereiro de 2006

Ao reler o Meu Dário (que não era diário) onde apontei algumas das situações mais marcantes da minha guerra, apetecia-me queimar tudo e recomeçar de novo. Tudo o que escrevi, não foram historinhas para depois (agora) de velho, contar aos netinhos. São factos verdadeiros escritos a quente, para não perderem o “sal” da realidade que o tempo teima em dissolver

Hoje, com as feridas saradas, talvez romanceasse um pouco. Talvez lhe juntasse outros pormenores, que com o calor dos acontecimentos foram posto em secundário. Talvez lhe juntasse outras situações que vivi e não escrevi, umas por desleixo, falta de motivação de momento, ou até por não encontra razões de história. Outras por medos “pidescos” de poder ser apanhado.

Com o tempo e com a ajuda provocatória do Luís Graça e dos camaradas tertulianos as estórias irão surgindo. Mas eu, na Guiné, não vivi e presenciei só e apenas cenas de guerra. Vivi bons e felizes momentos com os camaradas. O termo camarada reflecte amizade criada em tempos de luta, em tempos difíceis, daí o seu valor e a sua aplicação que devemos usar. Geramos amizades inesquecíveis.

Vivi bons e felizes momentos, em sadio convívio com as populações locais e muito aprendi com elas. Costumo dizer que aprendi ali, na Guiné, as primeiras noções do que é viver em democracia.

Mas... As injustiças por essa Guiné que presenciei foram imensas:

(i) Vi Chefes de Posto, a fazerem justiça pelas suas próprias mãos, julgando e condenando ao chicote homens sem direito a defesa, sem processo, sem inquirição, sem confronto;

(ii) Vi Africanos a serem empurrados pela força da baioneta, obrigados a irem viver para sítios que não queriam ( Antotinha), alegando que ali nasceram, ali queriam morrer, sobretudo os mais velhos; quantos fugiram para o IN !?;

(iii) Vi Africanos a serem condenados a prisão por não terem dinheiro para pagar o Imposto do Pé Descalço;

(iv) Vi Gente carregada de frutos que iam vender à loja do branco e saíam desta bêbados e sem tostão, graças à estratégia montada, para deixar lá os miseráveis pesos que lhe davam pelo sacos de coconote;

(v) Vi gente a vender o saco de mancarra a um peso e depois o homem branco da loja vender o mesmo saco por 15 moedas, tendo ainda o desgraçado do produtor de o carregar até ao barco; ele que teve de rasgar a terra, semear, tirar as ervas daninhas, proteger dos animais selvagens e dos pássaros, proteger das investidas do Inimigo;

(vi) Vi e senti quão tão grande era o desprezo que a Mãe Pátria votava aqueles que dizia serem seus filhos iguais aos que do Minho ao Algarve se orgulhavam de serem Portugueses; onde estavam as escolas, a assistência mínima à saúde, o desenvolvimento ?

(vii) Vivi uma guerra que em consciência não queria.

Mas estou aquiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

Zé Teixeira

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 Notas do autor:

(1) A história foi muito mal contada na altura pelos Fuzas. No meu regresso em fim de Comissão vinha também no Niassa um fuza que tinha sofrido um castigo e foi expulso da Guiné. Contou-me este, que o tal Turra não fugiu. Um dos Fuzas tinha perdido a G3 e era preciso justificá-la. Por outro lado as suas informações eram a causa para eventuais futuras acções de combate, com assaltos a bases do IN, o que era sempre arriscado. A solução foi amarrar o gajo e atirá-lo ao rio fazendo-o desaparecer e passando a informação que tinha conseguido fugir.

(2) Vd I Série, poste de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca

(3) O Kebá passava o dia na Enfermaria. Não quis ser milícia, o que suponho se devia ao facto de ter 2 mulheres e vários filhos com o IN.

Conversámos várias vezes sobre este assunto. Disse-me que em tempos tinha deixado Empada e ido para o mato, localizou as mulheres e tentou convencê-las a virem com ele, mas estas não quiseram ou não as deixaram vir. Vivia este drama. Quando éramos atacados, ele mesmo dizia que não sabia se as suas mulheres estavam do outro lado.

Quando em 2005 tive o prazer de voltar a Empada, senti uma mão nas costas e alguém a perguntar-me se me lembrava dele. Olhei, o rosto dizia-me alguma coisa, mas o nome, esse, fora-se.
- Sou o Kebá.
Quantas histórias ali foram revividas. Imaginem o resto.

(4) Pelo que vim a saber era um pequeno (grande) imposto que toda a gente tinha de pagar, quer trabalhasse quer não, por isso lhe puseram o nome do Imposto do Pé Descalço.

(5) Tal veio a acontecer uns dias depois, ficando o Capitão na função de Chefe de Posto até à substituição.

(6) Esta não será, com certeza, a verdade (verdadeira) dos factos, mas foi assim que ma contaram. Estou apenas a transcrever o que escrevi na altura. Isso permitirá ajuizar como as mensagens eram passadas e eventualmente os factos deturpados por conveniência ou não.

(7) Na realidade, tivemos que esperar mais cinco meses...
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11398: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (8): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XV/ XVI): Setembro de 1969... (i) Tragédia (para a 15ª CCmds)... (ii) Condição feminina ('Fermero, ká na tem patacão pra paga, fica ku minha mudjer')

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11398: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (8): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XV/ XVI): Setembro de 1969... (i) Tragédia (para a 15ª CCmds)... (ii) Condição feminina ('Fermero, ká na tem patacão pra paga, fica ku minha mudjer')



Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > 1969 > Viatura destruída por mina anticarro. Resultado: dois mortos.



1.  Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70), Partes XV e XVI (*) [Originalmente publicado na I Série, em 2006]



Buba, 1 de Setembro de 1969

Empada continua a ser a preferida do IN para brincar às guerrinhas. Ontem, pelas 4.30 h da madrugada, sofreu novo ataque. Foi chamada a aviação que não chegou a intervir.

Empada, 9 de Setembro de 1969

Desde ontem que estou por estas bandas, após dois meses em Buba sem novidade de maior. O ataque do dia 31 não foi tão perigoso como constou em Buba. Atacaram de Morteiro 60, LGFog e bazuka  sem causarem prejuízo. Não caiu nenhuma dentro do quartel.

Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anticarro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência...

A Companhia de Comandos tinha vinda a fazer uma série de operações no Setor e dirigia-se para o Cais no Rio Grande, perto de S.João, para se retirar para Bissau.

Tem tido muito azar esta Companhia de Comandos. O Zé João sempre que sai com a Companhia faz ronco, mas no regresso tem tido sempre problemas graves. Ainda há pouco tempo, quando estavam em Buba comigo, saíram para uma operação em Saredivane, fizeram um ronco de 15 mortos, apanharam 21 armas, apenas com dois feridos ligeiros, mas no regresso cairam num campo de minas e uma bailarina matou um Furriel e um soldado ficou sem uma perna...

Nesse dia o Zé João foi buscar o morto e ferido ao campo de minas tendo recebido o prémio Governador, que não chegou a gozar devido a este brutal acidente que o afastou da guerra definitivamente.





Guiné-Bissau > Refgião de Bafatá > Saltinho > 2005 > O Zé Teixeira com um antigo milícia, o Braima de Mampatá, e uma bajuda, num antigo aquartelamento das NT, agora transformado em unidade  hoteleira.


Empada, 11 de Setembro de 1969

Conheci a Mariama no primeiro dia que aqui cheguei. A sua alegria contagiante, as suas brincadeiras e a maneira como sabia fazer-se respeitada, tudo isso fez com que simpatizasse logo com ela. De manhã vinha acordar-me:
- Tissera, corpo stá bom ?

Ao fim da tarde de hoje, passou pela enfermaria, como sempre, mas vinha diferente; olhos inchados, cabelo muito arranjado, a alegria habitual tinha desaparecido.
- Mariama, corpo di bó ?
- Ká stá bom, hodje manga di chátisse.
- Porquê? Qui passa ?
- Meu pai diz a minha Mãe: 'Põe Mariama bonito. Hodje ela vai cása cum alfaiate'. Mim ká na sibi qui vai cása. Mim ká miste alfaiate.
E acrescentou:
- Eu fui trabalhar na bolanha , manhã cedo, muito trabalho. Vem, lava roupa de Catarino [, o Jorge Catarin, meu companheiro nas artes de seringa e grande amigo,] e passo tua roupa a ferro. Chega a minha mãe e conta a verdade. Eu não sabia que ia casar...

As lágrimas escorriam-lhe para o regaço. Não gosta do Sanhá e parece que nem sabia que o pai a tinha vendido como se faz com os animais. Sabia o que a esperava mais dia menos dia, mas nunca com um velho.

Nos Beafadas a cerimónia de casamento é diferente dos Fulas. Ao fim da tarde a bajuda segue para a morança do futuro marido, acompanhada por outras bajudas em festa: aí espera-a um jantar.





Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2005 > O Zé deixou amigos que ele reencontrou trinta e cinco anos depois... Como, por exemplo, a mulher do filho do Régulo Shambel, de Contabane.


Fotos (e legendas): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: L.G.]


Em tempos apreciei um casamento fula em Mampatá. O casamento foi programado com antecedência. A festa durou dois dias com muita animação e até batuque. Este foi controlado pelo Sargento da Milícia, que a determinada altura mandou parar a batucada e vingou o silêncio. A noiva seguiu para casa do noivo às costas de um ancião coberto com um lençol de modo a ficar escondida dos olhares dos curiosos e, segundo me disseram, no dia seguinte tinha de pôr à porta o lençol com manchas de sangue para demonstrar que estava virgem.

A conversa com Mariama prolongou-se. Apresentou-me a Fanta, minha nova lavandera e deixou-me a dar largas aos meus pensamentos… Vieram-me à memória os jovens de Nápoles, e os da Ribeira . . . A Fármara de Mampatá que gostava do Amadu e era feliz; da Jubae, e da Yeró.

Esta última casada à força, presa fácil da tropa, que o marido me ofereceu como pagamento por lhe ter salvo o pai de uma doença (#), da Fatinha (siriana), cujo marido não se cansava de lhe bater. . . e era tão bonita !... Da Suade … das suas lágrimas, quando à sua volta toda agente dançava ao som do batuque.

Pergunto a mim mesmo, como é possível em pleno século XX, ainda haver este tipo de escravidão. Como é possível um pai vender sua filha por uma vaca e três carneiros !

(Continua)

_____________

Nota de JT:

(#) Quando cheguei a Mampatá, veio ter comigo pedir quinino para o pai que estava com muitas dores. O Furriel enfermeiro que fui substituir disse-me:
- Este gajo tem o pai a morrer, eu estou a dar-lhe um comprimido por dia de X medicamento. Não lhe dês mais que um por dia, pois só tens esta caixa e em Aldeia Formosa não há.

Assim fiz e no dia seguinte, já sozinho, fui ver o doente. Velho de cabelos brancos, amarelo como cera, há mais de um mês de cama, sem forças etc,etc.

Reuni com o Alferes comandante do Destacamento e decidimos pedir a evacuação, à revelia das ordens que havia, o que gerou ameaças solenes para o Alferes do Comandante de Quebo, o qual teve como resposta:
- Sr. Major, eu não sou médico nem enfermeiro, o meu enfermeiro diz-me que não se responsabiliza pela saúde do homem. O Sr. Major responsabiliza-se ?

Assim o velho, foi evacuado. Esteve cerca de dois meses internado, fez uma operação ao intestino e regressou, para alegria dos familiares, muito melhor. Quando deixei Mampatá estava vivinho da costa.

Como prémio ou pagamento do meu trabalho, o filho, disse-me:
- Fermero, ká na tem patacão pra paga. Fica ku minha mudjer.

Este gesto gerou outra conversa que, como esta história,  não coube no meu diário
.
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11363: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (7): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XIII / XIV): Julho / agosto de 1969: a angústia do cristão ante a dúvida "De que lado estará Deus ?"

terça-feira, 9 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11363: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (7): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XIII / XIV): Julho / agosto de 1969: a angústia do cristão ante a dúvida "De que lado estará Deus ?"



Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > O Zé Teixeira, no regresso de mais uma operação.


Guiné-Bissau  > Região de Quínara > Buba > 2005 > "Que diferença!"...


Guiné-Bissau  > Região de Quínara > Buba > 2005 > "Estrada da pista de aviação"...


Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2005 > "Estrada da pista de aviação... ao domingo"... [ Segundo o nosso inestimável e sempre atento e oportuno amigo Cherno Baldé, esta não é uma rua de Buba, como erradamente foi legendada pelo Zé Teixeira, mas sim "a rua de Bissau, alto Bandim, no local onde foi construído o Palácio Colinas de Boé e funciona a ANP - Assembleia Nacional Popular (do lado direito), podendo ver-se ao fundo o depósito central de água"]


Guiné-Bissau  > Região de Quínara > Buba > 2005 > "Estrada de Buba - Fulacunda"...


Fotos (e legendas): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]


1. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf,  CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70), Partes XIII e XIV (*) [Originalmente publicado na I Série, em 2006]


Buba, 31 de Julho de 1969

Vi a morte à minha frente. Saí de manhã até à bolanha de Beafada, a montar segurança à coluna que ia para Aldeia Formosa. Tinha como missão assistir os picadores que iam à frente a tentar detetar as possíveis minas que o IN costuma colocar. Coloquei a bolsa na 1ª viatura e segui à frente da mesma.

Como havia muitas poças de água, instalei-me ao lado do condutor. Em determinado momento tive um pressentimento e saltei da viatura seguindo à sua frente. Não andei 50 metros e senti um rebentamento, fui projetado pela deslocação do ar e senti algo a cair em cima de mim, deduzindo que eram estilhaços. Pensei:
- Desta não escapo.

Logo a seguir cai à minha frente um africano que ia em cima da viatura e que deve ficar cego. Verifico então que a viatura de onde tinha saltado há momentos e do lado em que eu vinha, tinha pisado uma anticarro. Apanhei apenas com lama e pedras, e um grande susto. O condutor, sentado em sacos de areia, foi ao ar, mas apenas sofreu um grande susto, também. Os africanos que vinham em cima foram projetados e um perfurou o olho esquerdo, ficando este ao dependuro. Desnorteado, não sabia o que fazer. A bolsa estava na viatura sinistrada. Havia o ferido para tratar, mas também havia o perigo de minas antipessoais.

Andava de um lado para outro, sem saber o que fazer, sujeito a cair numa mina perdida. Lentamente fui acalmando, entretanto chegaram os outros enfermeiros, fui buscar a minha bolsa à viatura destruída e tratei dos feridos

Tal como os outros companheiros, pensei em aproveitar-me das bebidas da viatura destruída e mesmo das outras, já que ao dar-se baixa da viatura descarrega-se tudo e o que ficou em condições de ser aproveitado desaparece. Deu-se um autêntico assalto às viaturas e foi um fartar de roubar, ou melhor, aproveitar a ocasião.

Pouco depois aparece-me o Franklim com uma perna ferida por ter ficado debaixo de um atrelado, com bidões cheios de combustível, pois o condutor da viatura, na confusão gerada deixou-a destravada e esta.  ao deslizar, fez passar por cima da perna do Franklim o atrelado que arrastava.

Os feridos voltaram para Buba depois de assistidos, para serem evacuados para Bissau. Restabelecida a calma,  retomamos a marcha, para de seguida rebentar uma antipessoal que estava colocada no local, mesmo no centro da picada onde eu tratei os feridos, possivelmente pisada várias vezes, mas que só rebentou quando foi pisada pelo rodado de um atrelado de viatura, para sorte de algum de nós, talvez por estar um pouco funda. Continuei na coluna até Beafada, onde encontramos o pelotão de picadores que tinha partido de Aldeia Formosa, tendo regressado a Buba com mais esta história para contar.

O meu sistema nervoso que andava abalado,  foi-se de vez. Fui ao Dr. [Azevedo] Franco que me receitou um calmante, pois preciso de reagir. Tenho 15 meses de guerra e ainda falta muito tempo para o regresso. A guerra ainda não acabou para mim.


Buba, 4 de Agosto de 1969

Ao comemorar o 6º aniversário da implantação do terrorismo na Guiné (#), o Sr. Amílcar Cabral queria fazer umgrande festival em toda a Guiné. Ameaçou fazer uma grande surpresa, nomeadamente em Buba. Afinal limitou-se a vir cá às 17.45 h e fazer uma pequena serenata de canhão s/r, morteiro 120 e costureirinhas. Apenas uma granada rebentou dentro do quartel, causando danos ligeiros. De noite ouviram-se rebentamentos por todo o lado. Empada parece que também foi atacada. Nhala sofreu três ataques: à uma da manhã, às dez e novamente à noite. Mampatá também sofreu a visita do IN.

Buba, 7 de Agosto de 1969

As colunas de abastecimento a Aldeia Formosa e povoações limítrofes continuam a dar que falar. Ontem, seguiu mais uma e,  ao chegar ao Pontão de Uane, uma mina anticarro rebentou debaixo da 14ª viatura, projetando os seus ocupantes a grande altura, pois a viatura seguia sem carga. Três mortes instantâneas, todas de africanos e nove feridos graves, entre os quais dois colegas meus. Foi este o resultado.

Eu não fui esperar a coluna porque estou com baixa médica. Sinto-me muito fraco e abatido psicologicamente.

Ainda não sei quando regresso a Empada, talvez, lá para o fim do mês. Dá que pensar porque é que a viatura atingida foi a 14ª, portanto já no meio da coluna que seguia o trilho das outras treze anteriores, carregadas e bem pesadas.


Buba, 9 de Agosto de 1969

Estou doente, sem forças, as pernas parece que não podem com o corpo. O apetite é pouco. Fui ao médico que, além de me receitar medicamentos reconstituintes, deu-me dispensa por uns dias.

Estou sozinho em Buba com metade da Companhia. Insisti desde sempre que não aguentava a carga e que devia ser chamado outro enfermeiro de Empada. Fui-me abaixo das canetas e estão a sair Enfermeiros da Companhia 2382 com os meus companheiros, o que nunca devia acontecer e está-se a gerar um mal estar, entre colegas e amigos, desnecessário. Segunda feira termina a minha dispensa, mas eu ainda não me sinto bem. Vejamos que me vai dizer o médico.


Buba, 13 de Agosto de 1969


Está por cá o Padre Manuel Capitão, coordenador dos capelães na Guiné, grande amigo, e que encontrei há tempos em Bissau, quando regressei da Metrópole de férias. Desde alguns dias que anda de visita ao Setor. Hoje foi acompanhar a coluna para Aldeia Formosa até Nhala e regressou no héli que foi fazer uma evacuação de um ferido na sequência de um contacto com o IN.

A minha saúde continua abalada, felizmente com tendência para melhorar. Ontem, devido a uma grande caminhada de patrulhamento com o fim de preparar o terreno para a Coluna de hoje, não aguentei e os meus colegas tiveram de me transportar, até ao quartel. Depois de descansar fiquei melhor. Hoje sinto-me bem e tenho a esperança que em breve ficarei no lugar.

Quando estive com o padre capitão em Bissau, tentei aprofundar esta e outras questões sobre a assistência religiosa em tempo de guerra e a posição da Igreja Portuguesa colaboracionista com o poder político que manda matar em nome dos princípios cristãos, e a actuação dos capelães, passiva e nada evangélica, para não desagradar aos comandantes, aos fazedores da guerra.

Eu já sentia dentro de mim a revolta. De que lado estaria Deus? Com os Portugueses que teimavam em dominar um povo pelas armas ou com esse povo que queria seguir o seu destino, ou não estaria com ninguém e apenas apelava aos homens para darem as mãos para construirem um país novo? Qual devia ser a missão do sacerdote ? Como falar ao soldado que tinha deixado forçadamente a sua família, o seu emprego para matar ou ser morto?

Nesse encontro pôs-me fora do gabinete, mas em Buba, ele que nunca tinha saído de Bissau, e quis vir ver como as coisas se passavam no terreno, deu-me razão. Chorou por não poder fazer nada. Sentia-se amarrado. O sistema militar condicionava-o e os capelães que os bispos lhe mandavam, na sua maioria,  eram sacerdotes com problemas e nada preparados para este tipo de missões.

Buba, 16 de Agosto de 1969

Mais 24 toneladas de material apanhado ao IN no Norte, perto de Ingoré (2). As nossas tropas destruiram cinco destacamentos do IN, entre os quais Canchungo, Mâmpatas e Sane, todos perto de Ingorei, por onde andei nos primeiros três meses de guerra. O IN fugiu e os nossos tiveram 6 feridos. Parece que o exército senegalês auxiliou a fuga a pretexto de assistência médica.

_______________

(#) Referência mais provável ao 3 de agosto de 1959 (repressão da greve dos estivadores do cais do Pidjiguiti, ou "massacre do Pindjiguiti", segundo a propaganda do PAIGC),  e não ao 1º ataque do PAIGC a um aquartelamento português (Tite, 23 de janeiro de 1963 ), efeméride que é apontada, em geral, pelos historiógrafos, como a do início da luta armada na Guiné. (LG)

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11338: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (6): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes XI / XII): Das peripécias da licença de férias à morte do Cantiflas, por eletrocução (junho-julho de 1969)



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 2005 >  A antiga (e atual) rua principal de Empada




Guiné-Bissau >  Região de Quínara > Empada > 2005 >  A antiga casa do chefe de posto



Guiné-Bissau >  Região de Quínara > Empada > 2005 >  A minha antiga enfermaria


Fotos (e legendas): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]





O Zé Teixeira em Farosadjuma, Cantenhez, Região de Tombali, em 2011


1. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (*)

Recorde-se do percurso do Zé, em terras da Guiné:

(...) "Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional. Seguimos depois para Buba [, na região de Quínara, no sul] e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968]. Aí a CCAÇ 2381 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra. Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construíram a estrada Buba / Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico e emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".(...)




 Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 2381 >  1969  >  O Zé Teixeira tinha (e continua a ter) um trato fácil e afável com a população local. Aqui vemo-lo "muçulmano por um dia" ou "por empréstimo", vestido à maneira tradicional da população islamizada...








Guiné > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > O 1º cabo aux enf  Teixeira, para além da sua intensa actividade operacional, estava sempre disponível para os outros e arranjava maneira de se divertir e divertir os seus camaradas. Aqui, nas duas fotos de cima,  caricaturando o festival da Eurovisão.

Fotos: © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados


Bissau, 19 de Junho de 1969

Regressei a Bissau depois de um mês de férias na Metrópole onde pude participar no casamento do meu irmão Joaquim.

A minha licença de férias foi cheia de aventura. O comandante não assinou o passaporte, pelo que não podia ir, apesar de ter a viagem comprada. Mandei um rádio para Bissau a anular a viagem e entretanto o comandante foi para uma operação.

Como tinha a papelada toda pronta apresentei-a ao capitão mais antigo que ficara a exercer o comando, e que era um bolas, estava ali de castigo. Este assinou e logo enviei novo rádio a Bissau a reservar a viagem, só que a avioneta do correio não veio no dia habitual e o risco de perder o avião e o dinheiro da viagem era grande.

Entretanto aparecem dois bombardeiros no ar e o lugar do atirador vago. Ao pressentir que iam aterrar, fardei-me, peguei na mala e dirigi-me à pista com intenções de pedir ao comandante da esquadrilha para me levar, só que vejo sair do outro bombardeiro nada menos que o meu comandante que regressava da operação. Olhou para mim, muito espantado, e regressámos ao quartel na mesma viatura, isto porque o meu passaporte perdera de imediato o valor, e anulei novamente a viagem. No entanto pedi ao alferes Barbosa para o guardar.

Nessa noite veio a Buba uma lancha trazer uma peça necessária para uma máquina, um caterpillar, que estava parado por ter pisado uma mina e era utilizado na construção da estrada para Aldeia Formosa. Alguém me veio avisar e eu rompi a barreira, fui ter com o Barbosa que estava a jogar cartas com o comandante, fiz-lhe sinal para vir cá fora, pedi-lhe o passaporte falso e, à revelia do comandante, fui para a Praia. Um colega pegou em mim e atirou-me para dentro da lancha e lá fui eu rumo a Bissau.

No dia seguinte de manhã cheguei a Bissau, corri à Agência, consegui ainda reservar a viagem e esperei 24 horas pela partida para Lisboa via Ilha do Sal.

  Empada, 5 de Julho de 1969

Empada parece ser o que os meus colegas diziam. A partir de l de Julho é a minha nova morada. A população é um misto de todas as raças onde predomina a Manjaca e a Bijagó. É trabalhadora e parece fiel. Recebe a tropa com muita simpatia e, pelo seu proceder, confirma mais ainda que a população da Guiné quer viver em paz no amanho das suas terras.

A região é bastante rica, tem muitas bolanhas e os africanos aproveitam para semear milho, mancarra, malagueta e batata doce. Também se dedicam à plantação de arroz na bolanha da Punderosa.

Porque o IN vem, destrói e mata, sinto que existe um ódio tremendo e uma insegurança na população, que no entanto se arrisca a trabalhar nas bolanhas para seu ganha pão.

Esta população, de raças diferentes da de Buba e Aldeia Formosa (Mandingas e Fulas), é muito mais trabalhadeira.

Não gosto da posição estratégica do Quartel, mas como já fizemos um grande desbaste na vegetação, eles não tem condições para se aproximarem muito. Há que estar atento e continuar a confiar. As instalações são boas, superiores às de qualquer quartel na Metróple. A alimentação, porque as refeições são bem feitas, pode-se dizer-se que são do melhor. Se assim continuar, teremos um fim de comissão em beleza.

A situação moral é caótica. O sexo avança em toda a linha. Quase todas as jovens lavadeiras se prostituem por dinheiro.

Buba, 10 de Julho de 1969

Em Buba novamente desde o dia sete, por um mês, segundo diz quem tem os livros, no entanto eu duvido um pouco. Recordo-me do ano passado, quando vim para este Sector, por um mês e ainda cá ando...

Presentemente Buba está calmo, já não mete, até certo ponto, o medo que metia nos tempos em que se andava a rasgar a nova estrada para Quebo (Aldeia Formosa). Mas é de temer , pois mesmo sem o terrror de há meses atrás, o trabalho ainda é muito, as saídas para o mato são constantes e o tempo não ajuda.

Tem chovido muito. Ainda ontem, fui impossibilitado de passar a noite emboscado pela chuva que caíu torrencialmente durante todo o dia. Saí de manhã cedo em patrulha de reconhecimento e ao fim da tarde estávamos ensopados de tal maneira que um colega caíu sem forças e cheio de frio e angustiado por o Comandante não autorizar o regresso a quartéis. Viemos traz-lo e fomos autorizados a ficar.

Não sei o tempo que vou estar por Buba. Parece que querem arranjar a velha estrada de Nhala e tenho medo de lá cair. As recordações que touxe de lá e de Samba-Sábali não foram as melhores e estrada está toda alagada pelas chuvas da época.

A estrada nova Buba/Aldeia Formosa (Quebo) está feita e pretende substituir a velha estrada de Nhala com as suas bolanhas lamacentas, mas ninguém se atreve a passar na dita, pois na primeira e única coluna que se fez, houve três terríveis emboscadas que provocaram três mortos e nove feridos.

Empada está a tornar-se uma zona perigosa. Desde que saí de lá já sofreram dois ataques cujos resultados desconheço. É certo que está lá pouca tropa. Talvez seja essa a razão que faz o turra. ir até lá chatear mas... qual será melhor ? Buba, um pouco calma, com muitas saídas, fraca comida, más instalações, ou Empada que tem melhores condições, com o terrorismo a aparecer ?!

Buba, 12 de Julho de 1969

Há qualquer coisa que me falta. Sinto isso mais forte em mim desde que vim de férias. Pego num livro, porque de momento sinto vontade de ler para em seguida o fechar e pensar em qualquer coisa. Procurei na leitura qualquer coisa que precisava e não encontrei.

Sinto-me vazio. Por vezes sonho acordado, imagino a felicidade. Quero mais, quero ir mais além. Creio ser esta a razão do meu vazio. A sede de ir mais longe abrasa-me.

Comecei a sentir medo. Tenho medo de tudo, da vida e da morte, da guerra e do ódio, tenho medo. Tenho medo de mim mesmo, da minha fraqueza. Sinto-me um pouco fraco espiritualmente, mesmo com tudo o que as férias me deram. As forças do lado oposto também são mais fortes.

Será o meu querer forte o suficiente para vencer ? Tenho medo...

... Depois de deixar a pena correr, sinto o mesmo vazio que me persegue, que me atormenta. Que quero eu afinal ? Ir mais além, dar mais, continuar firme na minha construção como HOMEM...

Empada voltou a ser atacada hoje, enquanto por Buba não se nota o mais pequeno sinal do IN, aliás parece-me que as acções do bandido diminuiram em toda a Guiné.

Buba, 18 de Julho de 1969

Para morrer basta estar vivo, não interessa o local ou meio. De paz ou de guerra. A morte aparece em qualquer sítio e a qualquer hora. O Cantinflas estava na guerra.. Caíu debaixo de fogo várias vezes, sofreu os efeitos de uma guerra traiçoeira, sem o mais pequeno ferimento, mas a morte espreitava-o impiedosamente e há dias, através de um choque eléctrico, veio ter com ele.

Mulher e uma filha, os pais e familiares, os amigos, todos o esperavam. Que choque sentirá aquela esposa ao receber a notícia que o marido morreu electrocutado ?! Aquela criança... os pais que o adoravam!...

Veio para os Maiorais [, CCAÇ 2381,] em substituição do Alzira que se encontra na Metróple com uma perna artificial depois de pisar uma mina na estrada de Buba. Duas figuras típicas e muito queridas. O Alzira (cujo verdadeiro nome não sei) , um infeliz sem pais, que nos deliciava com os seus fados. O Cantinflas,  pela sua boa disposição permanente que deixava transparecer através de comiquices e lhe valeram o nome.

Empada voltou a ser atacada. Hoje emboscaram no Rio Grande duas Lanchas de Desembarque e o Barco Patrulha que transportavam uma companhia para Gadamael. Creio que não houve problemas.

Buba, 22 de Julho de 1969


Domingo (20) saí para o mato pela tarde a patrulhar a estrada nova e emboscar o IN em seguida. De certeza que fomos seguidos pelo IN que nos deixou montar a emboscada e abriu fogo de seguida. A nossa reacção foi rápida e os indivíduos calaram-se. Uma granada caíu bem perto de mim mas não feriu, aliás, nenhum dos meus camaradas foi ferido pelo IN. Apenas o homem do morteiro 60 se feriu na mão com o morteiro.

Retirámos silenciosamente sem mais novidades e chegámos a Buba pelas 20 horas onde toda a gente esperava ordens para avançar em nosso auxílio. Este pequeno ataque não foi pera doce para mim. Quando notei que o camarada do morteiro estava ferido - tinha a mão rasgada por não ter utilizado o prato e o morteiro ao disparar enterrou-se na terra escorregando-lhe pela mão - , passei mensagem que não havia feridos graves e dispus-me a tratá-lo para evitar a hemorragia.

O comandante, na sua pressa de se afastar da zona de perigo, mandou retirar e quando nos apercebemos estávamos a 300/400 metros dos companheiros de luta com o IN, na retaguarda que também não se tinha apercebido da situação. Iniciamos uma fuga a alta velocidade. Valeu-os o colega do lança-rockets [, bazuca,]  que se apercebeu e fez passar algumas granadas por cima de nós obrigando o IN a manter-se em defesa.

 (Continua)
___________

Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 24 de março de 2013 >Guiné 63/74 - P11304: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (5): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes IX / X): Buba, fevereiro / maio 1969

domingo, 24 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11304: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (5): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes IX / X): Buba, fevereiro / maio 1969



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O José Teixeira com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. "Um feliz reencontro. Regresso às origens em 2005. Encontro com um Português da Guiné, antigo paraquedista,  que tem uma linda história para ser contada, pelo que sofreu e como consegui iludir o PAIGC para sobreviver à chacina de antigos combatentes portugueses".

Foto (e legenda): © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados


1. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):


[ Foto à direita: José Teixeira, em Farosadjuma, Cantanhez, Região de Tombali, 2001]


Buba, 20 de Fevereiro de 1968

Estou em Buba desde 7 de Fevereiro e as perspectivas não são muito boas. Gandembel foi abandonada [, em 28 de janeiro de 1969,]  e o IN entretinha-se por lá. Agora, talvez porque se está a construir uma estrada nova para ligar Buba a Aldeia Formosa, esta linda terra está a ser a preferida pelo IN para as suas brincadeiras.

A estrada nova já causou um morto, o primeiro da minha Companhia quando eu ainda estava em Chamarra. O IN estava emboscado com dois fornilhos montados e, ao fazer rebentar a emboscada, provocou a explosão das armadilhas e um homem, o velho, foi pelos ares. Mais uma vida roubada...

Buba foi atacada no dia 9 às 22.15 h. Valeu-se como sempre da surpresa e causou-nos um bom susto. Feridos graves só houve um embora houvesse muitos feridos ligeiros, pés cortados, unhas arrancadas, cabeças partidas, tal foi a confusão que se instalou nas duas Companhias operacionais, nos Comandos e nos Fuzileiros que aqui estão aquartelados.

 Voltaram novamente a 14 pelas 5 horas da matina. Desta vez era para arrasar Buba se quisessem, ou então foram nabos, o que não me parece.

Treze canhões sem recuo chineses, 4 morteiros, LGFog, armas pesadas e ligeiras e sobretudo a uma hora que ninguém contava. Meteram bastante chocolate cá dentro mas só feriram um soldado. A Tabanca foi bastante atingida. Nove casas foram destruídas pelo fogo e com a precipitação da fuga para os abrigos ficou abandonada na Tabanca uma criancinha que morreu queimada.


Uma granada,
Vinda não sei de onde,
Lançada não sei por que,
Rebentou...
E aquela criança,
Que brincava além,
A morte, a levou...

Na areia brincava...
E sua mãe,
Que seus paninhos lavava,
Estremeceu.
Num triste pressentimento
Seu olhar volveu...

Um grito ! ( desmaiou)
No preciso momento
Que seu filho morreu...



Tive muito que fazer na Enfermaria. Um dos feridos da população mais graves foi a mãe da menina que morreu. Tinha o corpo cheio de estilhaços, felizmente não foi atingida nos orgãos vitais e deve recuperar.



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2005 > "A minha antiga caserna"...

Foto: © José Teixeira (2005): Todos os direitos reservados



O seu sofrimento interior impressionou-me. É seu hábito dormir com a criança amarrada às costas para poder levá-la para o abrigo subterrâneo quando o IN ataca. Como já era de manhã desamarrou-a pouco antes do ataque se dar. Quando ouviu o fogo correu para o abrigo e só nessa altura é que se apercebeu que a bebé estava a dormir na tabanca. Saíu a correr, mas foi atirada ao chão pelo rebentamento da granada de canhão que caiu em cima da sua casa e lhe matou a menina.


Samba Sabali, 9 de Março de 1968


Depois de uns dias em Buba, segui para Nhala onde estive quatro dias e fixei-me em Samba Sabali, em tendas de campanha.

Ontem saí para o mato a dar protecção ao pessoal de Engenharia que está a abrir uma passagem de ligação à estrada nova. Dentro de dias volto para Buba e espero que se acabe para mim a protecção aos homens de Engenharia que estão a construir a estrada.


Buba, 18 de Março de 1968

Segundo me informaram na Secretaria da Companhia, o Comandante não autorizou a minha ida de férias à Metrópole. A Companhia está com muitas baixas por feridos e doenças pelo que as licenças foram cortadas. Custa-me imenso esta situação. Depois de um ano de guerra estou saturado, os nervos não obedecem e o cansaço é grande, e que saudades ...

Como a minha Companhia está saturada e com muitas baixas, talvez mude para uma zona melhor a curto prazo. É esta a minha esperança.


Buba, 26 de Março de 1969


Mais uma grande aventura na Guiné. A maior até hoje. Integrei um Pelotão que partiu de manhã para um patrulhamento e emboscámos ao fim da tarde num sítio propício para descansar um pouco, longe do lugar onde devíamos estar emboscados, ou seja, perto da Bolanha dos Passarinhos, local de passagem do IN e por tal razão perigoso.




Guiné > Carta de Xitole (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Buba, Nhala e Samba Sabali.  

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné



Anoitecia, quando o IN atacou a Companhia que nos foi substituir a Samba Sábali e com tal fúria que provocou nuns escassos minutos um morto e nove feridos graves. Como não havia condições para o héli aterrar, quer por o local não se propiciar, quer por ser noite e perigoso e porque o estado dos feridos era grave, foi necessário ir buscá-los para Buba.

A bolanha dos Passarinhos, local onde devíamos estar emboscados, fica entre Buba e Samba Sabali e o Comandante, convencido que estávamos perto, solicitou via rádio que fossemos reconhecer o terreno e montar segurança às viaturas que iam recolher os feridos. Como estávamos longe e porque os camaradas precisavam de apoio partimos a correr pela estrada fora sem nos preocuparmos com a segurança.

Que medo, andar de noite pela mata cerrada, em zona de contacto com o IN, com este por perto, com colegas a pedir socorro. Emboscámos a montar segurança na Bolanha e as viaturas passaram, sem perigo. Sentimos movimentos atrás de nós, supomos que era o IN, a tentar ocupar o local para atacar a coluna no regresso, mas deve-nos ter pressentido e retirou. Ainda ouvimos alguns tiros perto, mas como não reagimos, tudo se manteve calmo e eu no regresso apanhei uma viatura que trazia três feridos a quem dei apoio.

Eu tinha abandonado Samba Sabali dois dias antes. O Enfermeiro que me substituiu foi ocupar o lugar que eu deveria ocupar na defesa do acampamento. Teve azar. Uma bala perfurou-lhe a cabeça e não resistiu aos ferimentos. Um outro foi para a Metrópole inutilizado.

No dia 14 houve um ataque a Buba. Um estilhaço de granada alojou-se no pericárdio de um colega meu, que também não resistiu aos ferimentos.


Buba, 10 de Abril de 1969

Há coisas na guerra que parecem impossíveis. Os Comandos saíram de Buba, andaram cerca de 15 Km em patrulhamento e depararam de frente com o IN. Meteram-se rapidamente na mata, deixaram que o bigrupo IN se aproximasse e atacaram, provocando 11 mortos, apreendendo 21 armas e ficando apenas com dois feridos ligeiros.

Pedida a evacuação, marcham para o regresso a Buba e caem num campo de minas, tendo rebentado uma bailarina que rouba a vida a um furriel. Foi cortado pela cintura. Outra arranca um pé de um soldado. Sai-se de uma, para se cair noutra...


Buba, 19 de Abril de 1969

Pela primeira vez, num ano de guerra com diversos casos graves e mortais, vi camaradas meus serem varados por balas de armas manejadas por companheiros só porque já não se ouve a voz da razão.




Guiné > Buba > Maio de 1969 > Entrada principal da povoação e do aquartelamento

Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados


Um pequeno incidente de palavras entre um soldado da minha Companhia [CCAÇ 2381] e um Comando Africano, quando tomavam banho, originou uma luta entre Fuzileiros e Comandos com consequências graves. Parece estar tudo louco.

Um Comando branco defendeu o Africano e alguns Fuzos intrometeram-se. A coisa azedou e surgiu uma cena de pancadaria de que resultou, algumas cabeças partidas e olhos negros. Aparece uma G 3 a vomitar uma rajada e quatro meros espectadores ficam gravemente feridos. Uma perna desfeita, um braço cortado e o mais grave veio a falecer com uma bala na cabeça. Foi este o resultado de uma simples discussão.

Eu estava de saída para o mato e mal vi os feridos. Pela primeira vez na minha vida de guerra, chorei. Lágrimas de raiva ... e de sangue.


Buba, 21 de Abril de 1969

Mais um encontro com o IN para o meu palmarés. Pelas 21 h do dia 19 e quando tomava um cafezinho, os nossos amigos apareceram por Buba e lá de longe enviaram-nos 45 canhoadas, utilizando cinco canhões e três morteiros. Acertaram numa tabanca e mataram um civil. Outra granada de grande potência e perfurante rebentou na parede da caserna a dois metros da minha cama, onde felizmente não estava. Dois colegas que se meteram debaixo da cama ainda sentiram, embora ligeiramente, os efeitos da sua estúpida decisão. Uma outra caíu na Enfermaria, no sítio onde costumo escrever à noite para a Metrópole. Um colega meu, enfermeiro de outra Companhia, estava nesse lugar quando rebentou o ataque.

No dia seguinte fomos fazer o reconhecimento e pude verificar a excelente pontaria dos nossos homens. Meteram uma granada do 81 a dois metros de um dos canhões provocando pelo menos feridos graves e notava-se que muitas outras granadas cairam perto.

Hoje fui ao médico. Apareceu-me um hematoma num testículo que parece ser um hidrocelo. É natural que tenha de baixar ao Hospital para ser operado.

Buba, 5 de Maio 1969


Outro domingo inesquecível. Foi o Miguel como poderia ter sido outro. Pisou uma antipessoal e ficou sem o pé esquerdo e com a perna toda esfacelada.

Saíram de madrugada, com destio a Nhala, levar mantimentos. Depois da curva do Vilaça detectaram três minas A/P. Os nossos homens puseram-se em posição de defesa e o Sapador preparou-se para as levantar, quando o Miguel se decide avançar um pouco e pisa uma terceira que estava dissimulada junto a um tronco de palmeira. O IN que estava emboscado no local a assistir ao levantamento abriu fogo de imediato, mas nada mais aconteceu de grave.

Rapidamente assistido pelo Catarino debaixo de fogo, o Miguel foi transportado em seguida para Buba, de onde o heli o levou até Bissau, enquanto a coluna seguia o seu destino, detectando-se mais duas minas e uma armadilha de tropeçar e um cemitério (em cenário) com pedidos para voltarmos para a Metrópole, deixando o povo da Guiné gerir o seu destino e ameaças de morte em que o falso cemitério era o exemplo do que nos esperava se continuássemos a fazer guerra. A CCAÇ 2317 ficou no local a levantar um campo de 38 minas antipessoais.


Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2005 > Depósito de água e antigas casernas da tropa...

 Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados


No dia sete contava partir para a Metrópole em gozo de férias, pois tinha arranjado maneira de ludibriar o Comandante com a ajuda do Alferes Barbosa e também não era a minha vez de sair, pois tinha regressado no dia anterior à noite de uma patrulha de um dia, pela área onde se deu a emboscada.

Como o Catarino ia ficar sozinho no Destacamento, ofereci-me para fazer esta coluna. Preparei-me, mas à última da hora lembrei-me que "voluntário na tropa, só para comer ". Pedi desculpa ao Catarino e ele teve de avançar, compreendendo como sempre a minha posição.

Uma hora depois da sua partida sentimos o chocolate a cair e pensei: Escapei de boa! Acompanhámos via rádio a situação e pouco depois chega a viatura com o ferido que assisti, até chegar o heli.

A situação do Miguel e a sua reacção chocou-me muito. Parece que não tinha dores, apesar de estar sem um pé e garrotado abaixo do joelho. Só gritava agarrado à fotografia da namorada:
– Já não posso casar – pegou numa estampa de Nossa Senhora e disse:
–  Nem Tu me salvaste.

No regresso da coluna os colegas contaram que quando se detectaram as minas, houve ordem, como de costume para se baixarem e ficarem em posição de fogo. O Miguel levantou-se e disse que ia ver o que se passava, começando a caminhar em cima do tronco de palmeira. Quando chegou ao topo e pôs o pé em terra, tinha a mina à sua espera. Um descuido que ficou caro.

O Catarino portou-se como um herói, secundado pelo Valente, pois arrancaram debaixo de fogo para junto do Miguel, correndo o risco duplo de serem atingidos pelas balas inimigas ou por alguma mina que pudesse lá estar. Foram encontradas no local 41 minas.

Disseram os meus colegas que o IN formou., com terra, campas de mortos, no local da armadilha para os intimidar com frases do género Branco vai para a tua terra.

(Continua)

domingo, 17 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11267: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (4): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Partes VII/VIII): Mampatá, nov / dez 1968, e Chamarra, jan 1969



Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CCAÇ 2381 (1968/70) > Rescaldo do ataque á tabanca, à hora do almoço, no dia 3/11/1968. A utilizaçºão de balas incendiárias provocou a destruição de 11 moranças



Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CCAÇ 2381 (1968/70) > O José Teixeira, à direita com a  "Maimuna, companheira de todos os momentos".


Fotos (e legendas): © José Teixeira (2005). Todo os direitos reservados .


1. Continuação da (re)publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo aux enf José Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (*):

Mampatá, 1 de Novembro de 1968

Comemoro seis meses que saí da Mãe Pátria. O "Bandido" quis entrar na festa e veio fazer uma visita a Mampatá. Ontem cerca das 20 horas, com seis canhões sem recuo e um morteiro, fez um belo festival nocturno enviando-nos 112 canhoadas que não causaram danos físicos nem materiais. Ripostamos com o 81 e, mal o inimigo cessou o fogo, os meus colegas e alguns soldados da Milícia saíram na sua perseguição, sem resultado porque o IN pôs- se de imediato em fuga.

Note-se a diferença de capacidade bélica. Eles trazem todo este material às costas. Isto é demais…

Fui procurado pela irmã mais velha da Fámara Baldé. Trazia-me a sua filha com oito meses que estava doente. Tinha Paludismo e estava a entrar na fase crónica, de que quase todos os adultos de raça africana sofrem. Os que conseguem escapar na sua fase mais aguda. A criança apresentava-se muito magra, com 42 graus de temperatura, diarreia e vomitava tudo o que mamava, nem forças tinha para chorar. Acabava de chegar do Hospital de Bissau, segundo me disse a mãe a chorar, sem esperança.
Todos os dias de manhã tinha sua visita.
─  Fermero parti-me mézinho para minina, na tem febre e bariga ramassa

Que fazer? Eu que apenas tinha aprendido a tratar feridos da guerra! Estes poucos meses de Guiné ensinaram-me a lutar contra o paludismo nos meus colegas e nos adultos africanos com bons resultados, mas nunca tinha deparado com uma situação tão delicada.

Pedi-lhe para voltar mais tarde que ia pensar o que fazer para salvar a bébé. Para combater o paludismo nos adultos servia-me de um antipalúdico injectável misturado com outro injectável para prever a reacção negativa do coração. Então pensei que, injectando na bebé umas milésimas destes dois produtos, talvez salvasse a criança.

Ontem assim fiz, com todo o cuidado, no posto de socorros ao ar livre, no coberto da casa da Answar. A reacção só se fez sentir cerca de um quarto de hora depois com um pulsar acelerado do coração e um avermelhamento da face. Depois a aceleração aumentou, os olhos dilataram-se e a menina ficou estática por duas ou três horas. Que momentos de ansiedade para mim e para aquela mãe que me confiou a sua filha. Esta chorava e dizia:
─  Tu mataste minina! ─ . Eu pedia-lhe para ter calma e apelava para todos os Santos. Por fim a aceleração do coração começou a baixar e temperatura registou 39 graus. Estava ganha a vida da criança. Abraçamo-nos a chorar um ao outro e a mãe ofereceu-me a menina para minha mulher quando fosse grande.

Ao fim do dia deixei-a levar a menina para a tabanca e chorei sozinho de alegria. Hoje voltou para me dizer que a minina ká na tem xoro, já não vomitou a mamada .[A recuperação foi de cerca de oito dias. Daí em diante, todos os dias a mãe trazia-me a menina: - Tua mudjer vem parte mantanhas (cumprimentar)].

Trazia-me água fresca numa cabaça, que ia buscar à bolanha a uma nascente de que se servia também o IN. (Que riscos por minha causa). Trazia-me cachos de bananas e eu tinha de todas as noites ao passar para o meu abrigo ir parte mantanhas ... à minha mulher. Se não o fizesse, a mãe chamava:
─  Fermero tu não vens ver tua mudjer e parte mantanhas a ela !

Dizia-me muitas vezes que quando eu viesse para a Metrópole tinha de trazer a minha mudjer.

Assim foi até sair de Mampatá. Tornei-me um visitante da família Baldé. Fámara, Binta Auá e Answar. A mãe era uma velhinha que só falava o seu dialeto e o pai tinha-as abandonado suponho que era gila ( contrabandista) ou IN.

[Foto à esquerda: o Zé Teixeira, em 2011, no Cantanhez]

Mampatá, 3 de Novembro de 1968

O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos "Amarelos de Mampatá" pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa para buscar na cozinha alimentação, para tentar entrar em Mampatá.

De algum modo eu fui o responsável pela situação criada, pois incentivei um sentinela durante a noite a mandar um tiro na direcção de uma vaca que estava entre as duas faixas de arame farpado e tocava neste, provocando o tilintar das garrafas que lá tínhamos colocado para não sermos surpreendidos pelo IN a tentar entrar pela calada da noite cortando o arame. Esta minha atitude passou-se durante a minha hora de ronda e o sentinela assim fez pouco depois, aparecendo de manhã uma vaca com um buraco numa coxa. Claro que o proprietário, o Régulo Alfero Aliu (Alferes da Milícia) vendeu a vaca à tropa.

Há mais de um mês que não comemos carne, porque os Africanos se recusam a vender qualquer animal. Assim foi fácil convencer o proprietário a vender a vaca ferida, mas ficou-nos cara.

Praticamente todos os postos de sentinela ficaram abandonados à hora do almoço o que não é habitual, mas o estranho foi o turra saber exactamente o que se estava a passar e atacou.

Quase todos os soldados tiveram de correr para as suas posições debaixo de fogo e durante quinze minutos a luta foi terrível com "eles" junto ao arame com fogo cerrado. Chegamos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa capacidade de resistência e por sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva Algarvio que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar. Aliás foi ele que deu o sinal. Ao ver um grupo de africanos com armas que não eram a velha mausers a tentarem forçar a porta em rede de arame farpado, estranhou e abriu fogo, depois… foi, cantinas de comida pelo ar e umas loucas correrias para os abrigos de protecção. Segui-se o “chocolate” do costume. Os assaltantes recuaram para selva e o fogo continuou.

Onze moranças ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN contava ter muito que fazer com os feridos,  talvez mortos, atendendo a que ninguém contava com tal surpresa e os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro (apenas 2 sacos de soro).

Ainda debaixo de fogo saí do abrigo onde me protegera e corri pela tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista, susto e prejuízos materiais. Graças a Deus.

Pergunto-me como que a população não foi atingida e as suas casas foram queimadas ? Ataque combinado ? Notámos que o “catequista” muçulmano saiu de manhã cedo para a bolanha, o que é estranho pois costuma estar sempre na tabanca a ensinar os putos e só voltou muito depois do ataque. Temos de o trazer debaixo de olho, como disse o Alferes [José] Belo depois de saber a sua ausência.

Novo ataque de. . . formigas. Dormia a bom dormir depois de uma ronda de duas horas pelos postos de sentinela. Um colega dá um grito: Aiiiiiiiii. Logo de seguida, eu, e os outros dois colegas saltamos da cama pensando que era mais uma visita do IN. Aconteceu-nos exactamente o mesmo que aos colegas do posto do morteiro. Estávamos todos cravados de formigas e o chão era um autêntico tapete preto. Iniciamos logo o combate dirigido por mim pois já tinha experiência da sessão anterior com o Rio Maior.

Quem não gostou foi Djaló, pois a palhota dele sofreu um ataque di branco e ficou sem palha. Foi a única maneira de matarmos as formigas e podermos continuar a dormir descansados.

Foi aqui que pude apreciar a sua capacidade organizativa. Com a bota esmagava um grupo delas e logo as mais fortes se dirigiam para o local fazendo como que um cerco de protecção. Mais tarde nas minhas experiências pude verificar que,  ao interromper uma a fila de formigas, todo o grupo parava até vinte / trinta metros à frente e rectaguarda e iniciavam de imediato o envolvimento à zona afectada seguindo à frente as mais fortes.


[Foto à direita: O regresso do Zé Teixeira, em 2005... Estrada Quebo-Mampatá]



Mampatá, 5 de Novembro de 1968

Atacaram Gandembel com o Morteiro 120 e,  às 3 horas da matina, Ponte Balana acordou debaixo de manga de chocolate (fogo intenso). Não sabemos se houve acidentes pessoais.

Parece incrível que a zona do Corubal que, segundo dizem é das mais lindas e mais ricas da Guiné, se encontre mal defendida. Há lá uma tabanca onde só existem três armas antigas, canhangulos. Da última vez que o IN a visitou, a população fugiu para o mato e eles entraram à vontade, roubaram o gado e incendiaram as tabancas.

Mampatá , 29 de Dezembro de 1968

Há uns tempos que não pego no Diário. Senti-me por uns tempos desorientado, mas agora estou melhor. Habituei-me ao ambiente e às situações que tenho de viver  ─ estou em guerra ─ e tudo se tornou mais fácil, apesar de começar a não entender a razão desta guerra. A população quer paz para viver e nós, ao estarmos cá, trazemos-lhe a guerra. E de facto a guerra continua, mas a situação nesta área está mais calma e a relação com os povos locais  ─ Fulas Mandingas, Fula Futas e Balantas  ─ é excelente. Estou a gostar de viver aqui.

A bajuda Jobo Ansato (Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras bajudas. Com a Fámara, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida. Eu, embora notasse essa mudança, não conseguia compreender a sua razão de ser.

Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua tabanca e a conversa virou para os feridos de guerra as doenças da população e a acção dos enfermeiros e fiquei espantado ao ouvi-la dizer dizer:
─  No último taque di bandido eu ver Tixera ir por Tabanca, baixo di fogo perguntá tudo dgente si ká na firido. A mim nesse dia ficá manga di contente com Tixera. Tixera i amigo di Africano.

Para meu espanto verifico que foi a partir da data do último ataque que sofremos que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa !



[Foto à esquerda: Bajudas de Empada, 2005. Foto do José Teixeira] 


A minha fama de curandeiro depois da recuperação da Binta, assim se chama a bebé que curei, fez-me passar por outra aventura do género. Apareceu-me na Enfermaria improvisada, ao ar livre, uma mulher que não era da localidade a pedir-me para ir ver o seu minino que ramassa (vomita) e tem corpo quente, manga d'ele (temperatura).

O menino estava numa cubata perto da Enfermaria, deitado numa esteira no chão e apresentava os mesmos sintomas da Binta, muito magro, alta temperatura, sem forças nos braços. Era um pouco mais velho, mas estava esquelético

Hesitei, tal fora o susto que tinha passado e insisti para o levar a Aldeia Formosa e daí para Bissau na avioneta que viria dois dias depois trazer o correio para os militares, dado que não havia médico nesta localidade.

Numa mistura de Português, crioulo e dialecto da etnia, a mãe só me pedia:
─  Cura minino. Dá quinino para minino ficar bom.

Preparei o medicamento,  servindo-me do mesmo sistema que utilizei na Binta, apenas em menor quantidade e dei a injecção ao miúdo, cujo nome não cheguei a saber. As reacções foram as mesmas, só que desta vez a recuperação foi mais lenta. O coração parecia um cavalo, embora o corpo estivesse como que paralisado, apenas mexia os olhos dilatados.

Para meu azar, a mãe e a proprietária da cubata entraram em pânico, mais que eu próprio e começaram a ameaçar-me que,  se o menino morresse, o marido me matava a mim, cortava-me o pescoço. Faziam o gesto com uma catana que sempre usam.

Eu só pedia calma e acompanhava o estado do bébé. Tal como da outra vez, ao fim de umas horas a temperatura baixou, a face deixou de estar avermelhada e os olhos perderam a dilatação.

Deixei a criança entregue à mãe, recomendando que lhe desse uma pequena mamada e fosse aumentando a dose conforme ele fosse reagindo. Se a temperatura subisse ou vomitasse devia chamar-me de imediato. Se não houvesse nenhuma situação anormal, eu voltaria no dia seguinte para ver o menino.

À noite rondei a casa para ver se havia alguma anormalidade e no dia seguinte dirigi-me para lá, ainda cedo, para ver o estado do bébé, mas não consegui voltar a vê-lo porque a mãe, de manhã cedo abandonou Mampatá, pelos vistos, feliz porque o seu minino já comia e não tinha o corpo quente.

De onde veio, quem era, nunca chegarei a saber, pois a dona da tabanca diz que não conhece a mudjer que esteve lá em casa com o menino, apenas lhe deu hospedagem por uma noite.

Mampatá, 5 de Janeiro de 1969

Estou de volta a Mampatá, depois de uma coluna a Buba. Se todas as colunas de abastecimento fossem como esta, não me importava de fazer colunas. Estiveram cerca de 400 homens em movimento e cerca de 30 Km de marcha (60 km em dois dias) por picada e bolanha sem que o IN desse sinal de vida. Tive assim oportunidade de conhecer mais uma tabanca, ou seja Nhala, onde encontrei amigos da CCAÇ 2382.

Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.

A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).

A Maimuna tinha oito luas [, meses,] quando cheguei a Mampatá (1)...







Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > "Chamarra, o guineense, menino no tempo da guerra colonial, entre o Albano (à direita) e o Camilo (à esquerda) levou-nos ao local onde era o posto avançado de Chamarra e havia esta placa guardada religiosamente: indicava Gatos Negros, CART 1612 / BART 18...  Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612, "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné"... 

[A CART 1612 era um das três companhias operacionais do BART 1896 (As outras duas eram a 1613 e a 1614). A CART 1612 seguiu em 13 de Dezembro de 1966 para Bissorã, actuando em Insumeté, Insantaque e Iusse. Em 27 de Julho de 1967, deslocou-se para Buba, e actuou em Nhala, Darsalame e Buba Tombo. bEm 18 de Novembro de 1967, estacionou em Aldeia Formosa, tendo actuado em Colibuia, Chamarra e Porto Balana.Finalmente em 13 de Julho de 1968, recolheu a Bissau, de onde regressou ao Continente] .


Fotos (e legendas): © Albano Costa (2006). Todos os direiitos reservados


Chamarra, 10 de Janeiro de 1969

Chamarra é o meu novo habitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste, chocante mesmo. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o Africano, sendo compreendido e ajudado, torna-se um amigo sincero. Alguns membros da comunidade foram pedir ao Chefe de Tabanca, Alferes Aliu Baldé, para eu ficar. Este foi a Aldeia Formosa pedir ao Capitão, mas como o meu Pelotão segui para Buba e apenas ficou o 1º Pelotão em Chamarra, o Capitão autorizou que eu ficasse na Chamarra e viesse uma vez por semana a Mampatá dar apoio ao Enfermeiro da Milícia que me vai substituir, dado que a defesa de Mampatá ficou entregue a um Pelotão de milicia.  A festa de despedida foi mais uma vez chocante para mim.

Chamarra é pequenina. Só meia dúzia de moranças e os habitantes parecem que também são boas pessoas.

Chamarra, 16 de Janeiro de 1969

Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1ª vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA [Força Aérea] para bater a zona.

Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quádrupla antiaérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os T 6 (Bombardeiros) apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.

Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra,  impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...

Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impor a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar ?

Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos ? Que os faz lutar ? Que faço eu no meio disto tudo ?

Chamarra, 23 de Janeiro de 1969

É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrem.

Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas  [, da CCAÇ 1792 / BCAÇ 1933:, o Manuel da Silva Carrola, natural da Covilhã; e José Pereira da Costa, de Viana do Csstelo, ] .tiveram morte imediata e houve ainda dez furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer.

Chamarra, 25 de Janeiro de 1969 

A minha Companhia está de luto. Tantas colunas de abastecimento de Aldeia Formosa para Buba e vice versa, de Aldeia para Gandembel e na última que fazia, quando se retirava para Buba, um soldado que nunca saíra para o mato por estar impedido à Secretaria [, o Russo,] morreu. Dizem que foi por descuido, pois parece que ia em cima de uma viatura quando rebentou a primeira emboscada, saltou, reagiu com os outros ao IN e saltou novamente para o Matador. Alguns metros à frente rebentou uma mina e foi projectado a grande altura, morrendo segundo consta, algumas horas mais tarde no Hospital de Bissau. Fim de Janeiro triste...

Chamarra, 30 de Janeir de 1969

Já seguiu para Bissau, sob prisão, um soldado branco suspeito de ser o causador dos mortos em Aldeia Formosa no dia 22. Afinal o Russo, impedido à Secretaria, que foi ferido na mina anticarro que destruiu o Matador, não morreu, nem ficou sem pernas. De qualquer modo segui para Bissau bastante ferido num braço. A guerra para ele acabou.

(Continua)

28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11168: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (2): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Parte II): Buba-Aldeia Formosa, 39 horas dolorosas para fazer uma picada, de 35 km, em 24/25 de julho de 1968

[Originalmente publicado na I Série, vd. poste de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi ]