Mostrar mensagens com a etiqueta O segredo de.... Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta O segredo de.... Mostrar todas as mensagens

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25155: O(s) segredo(s) que o Amadu Djaló (Bissau, 1940 - Lisboa, 2015) não quis ou não pôde contar no seu livro (1): A revolta da CCAÇ 21, em 16 de agosto de 1974, em Bambadinca, e as suas exigências "milionárias": 300 contos por cabeça (50 mil euros, a preços de hoje), antes de entregar a arma e passar à "história" (isto é, à "peluda")

Guiné > s/l [Bambadinca?] > s/d [c. 1971/73] > A Força Africana... O major inf Carlos Fabião, na altura (1971/73),  comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen António Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.

In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola,  Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335. Autor da foto: desconhecidos. (Reproduzidas com a devida vénia)

1. Há segredos que não se partilham, por uma razão ou outra. Este, que envolve o Amadu Djaló, pode ter sido por uma de quatro razões (especulativas, acrescente-se): 

(i) o Amadu Djaló não estava lá nesse dia, em Bambadinca  (ele vivia em Bafatá, com as suas duas mulheres e restante família, incluindoa a amada mãe): 

(ii) o Amadu Djaló terá achado indigno o comportamento dos seus camaradas e subordinados, e escamoteou, esqueceu ou  branqueou este episódio, grave, que foi a insubordinação da CCAÇ 21 (no seu todo ou em parte)

(iii) o Amadu Djaló já se desligara, disciplinar e afetivamente, dos seus antigos camaradas e subordinados da CCAÇ 21, que era comandado pelo ten graduado 'cmd' Abdulai Jamanca (a companhia seria dissolvida e extinta dois dias deppois, em 18 de agosto de 1974);

(iv) "last but not the least" (isto é: não menos importante...), a ser verdade que cada militar da CCAÇ  21 só aceitava entregar a arma e passar à disponibilidade por 300 contos "per capita", estávamos perante uma exigência "milionária":  na época,  300 contos (da Guiné, 1 escudo a valer 0,90 de 1 escudo da metrópole) seriam qualquer coisa como cerca de 50 mil euros (a precos  atuais); multiplicando por 150 homens (=1 companhia,  só de guineenes) daria qualquer coisa como 7,5 milhões de euros (que não poderiam caber na mala de nenhum governador-geral, ainda para mais na véspera do reconhecimento do independência e da saída do território por parte de Portrugal; o Amadu Djaló não podia deixar de estar a par destas reivindicações, para mais sendo um alferes graduado da companhia; mas será que ele tinha a noção exata ou aproximada dos valores que estavam em jogo ? 

2. Vamos reconstituir o que se passou nesse "dia de todas as emoções" (como escreveu, no seu diário, o senhor cor cav CEM Henrique Manuel Gonçalves Vaz, 1922-2001).

Repete-se aqui a mensagem do nosso leitor (e camarada) Fernando Gaspar, ex-Fur Mil Mec Arm, CCS/BCAÇ 4518/73 (1973/74):


Data: 11 de Maio de 2012 22:30

Assunto: Bambadinca 1974

Boa noite, Luís

Fui furriel miliciano com a especialidade de mecânico de armamento e fui incorporado no Batalhão [de Caçadores] 4518/73 para a Guiné...  

Após o 25 de abril de 1974, fui destacado para Bambadinca para receber material militar, viaturas, armas, etc.


Em agosto de 1974 (não consigo memorizar o dia), os militares presentes no destacamento de Bambadinca (eu incluído), foram surpreendidos com a presença de dezenas de militares do denominados Comandos Africanos (tropas nossas aliadas).

Todos nós (talvez duas dezenas),  ficámos perplexos... Primeiro pensámos que vinham entregar as armas (o que nos facilitava o regresso a Portugal), mas não!... Fomos encostados à parede e deram um prazo de 48 horas para serem pagos da indemnização a que tinham direito, ou então, seríamos fuzilados... 

Cerca de 40 horas após o sequestro, o brigadeiro Carlos Fabião chegou num helicóptero com duas malas carregadas de dinheiro... Terminou o sequestro!

Se através do teu blogue for possível reencontrar esses camaradas de armas, ficarei muito agradecido.

Até sempre, um abraço | 
Fernando Gaspar


2. Comentário de L.G.:

Na altura manifestámos a nossa gratidão e apreço ao Fernand0 Gaspar pela  coragem de vir, a público, num blogue de antigos combatentes, revelar esse segredo, que possivelmente guardava, enterrado  há muito na sua memória... 

De qualquer modo, o  que ele  contava - ao fim de quase 4 anos todos - e que deve ter isso um pesadelo para ti e para os demais camaradas que foram feitos reféns, já não era segredo para mim... Já aqui transcrevi, ao de leve,  uma conversa que tive, em Monte Real, por ocasião do nosso VII Encontro Nacional, com o último comandante do Pel Caç Nat 52, o alf mil Luís Mourato Oliveira [foto à direita].

Ele também estava em Bambadinca, sentado tranquilamente no bar de oficiais, a beber o seu copo, quando ocorreram os graves incidentes aqui  referidos, sem grandes detalhes..  Foi igualmente sequestrado como o Fernando Gaspar  e mantido como refém até à chegada do brigadeiro Carlos Fabião, que, vindo de Bissau,  resolveu o problema (havia um vazio legal, com a CCAç 21 e a CCAÇ 20, que estaria ainda por resolver,  mais de um ano deppois da sua criação).

Isto ter-se-á passado não com os "Comandos Africanos" (que pertenciam ao Batalhão de Comandos da Guiné, com sede em Brá, Bissau)  mas com o pessoal da CCAÇ 21, que era comandada pelo tenente 'cmd' graduado Abdulai Queta Jamanca, e onde havia antigos militares da formação inicial da CCAÇ 12 do nosso tempo (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)...  

Disse-nos o Mourato Oliveira que, depois da negociação com o Carlos Fabião, houve grande ronco...

Semelhantes incidentes (graves) deram-se em Paúnca, pela mesma altura, com a malta da CCAÇ 11 (antiga CART 11), já relatados pelo nosso camarada J. Casimiro Carvalho. (*)

De qualquer modo, esperávamos que tanto o Fernando Gaspar como o Luís Mourato Oliveira nos pudessem, na altura,  fornecer mais pormenores destes tristes acontecimentos que poderiam ter originado um tragédia imensa,  se as ameaças de fuzilamento dos reféns fossem levadas a série pelos militares revoltosos da CCAÇ 21, em caso de falharem as "negociações"!. 

3. O alferes 'cmd' graduado Amadu Bailo Djaló [foto à direita] também pertenceu a essa companhia, que era inteiramente constituída por pessoal do recrutamento local (incluindo os graduados e os especialistas). No entanto, nas suas memórias (Amadu Bailo Djaló - Guineense, comando, português: 1º volume: comandos africanos, 1964-1974. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, 299 pp., il), não são narrados, referidos ou sequer evocados os "incidentes" de Bambadinca (vd. pp. 276 e ss.). 

Talvez o nosso camarada Virgínio Briote [foto à esquerda,] que o ajudou a escrever o livro (como "copy desk") e privou muito com ele, nos seus últimos anos de vida, possa ainda esclarecer o que se passou exatamente nesses dia 16 de agosto de 1974 em que a CCAÇ 21 (ou parte do seu pessoal, possivelmente até à revelia do seu comandante, Abdulai Jamanca) tomou como reféns cerca de duas dezenas de militares metropolitanos que ainda restavam em Bambadinca, a aguardar o fim da comissão.

4. Estes factos já eram conhecidos do nosso blogue, ainda antes do final de 2011. Terminamos este poste,  já longo, com um dos  excertos dos registos pessoais, manuscritos, do cor cav CEM, Henrique Manuel Gonçalves Vaz (1922-2001), no ano de 1974, no TO da Guiné (foto a seguir, à direita).

A recolha e a transcrição são  da responsabilidade do seu filho Luís Gonçalves Vaz que estava, nessa época (1973/74), com a sua família, em Bissau (é hoje  professor de matemática e ciências da natureza numa escola da zona de Braga; é membro da nossa Tabanca Grande). 

Recorde-se que a CCAÇ 21, de vida efémera (e que não tem história da unidade) foi dissolvida e extinta dois dias depois, em 18 de agosto de 1974.

(...) 16 de Agosto de 1974

... Este foi um dia tremendo de trabalho e emocionante com as notícias de Bambadinca, em que a Companhia  de Caçadores nº 21 a tomar conta do aquartelamento e a exigirem 300 contos por homem, para entregarem a arma e passarem à disponibilidade!

Foi para lá o Governador Brigadeiro Fabião e ao fim da tarde foi recebida a notícia de que tudo estava resolvido. ..."

Coronel Henrique Gonçalves Vaz (Chefe do Estado-Maior do CTIG) (...)

Este valor (300 contos, 300 mil escudos ultramarinos) era uma exorbitância! Tem de ser confirmado. (Nesta altura, em meados de 1974, já depois do 25 de Abril, um Fiat 127, que era o carro mais vendido em Portugal, custava 95 contos, o litro da gasolina andava nos 7$50, e o salário mínimo nacional acabava de ser fixado em 3300$00 mensais)...

Nunca o pobre do Amadu Djaló ganhou 300 contos  em toda a guerra. Nem sequer um oficial general ganhava isso numa comissão de dois anos!...Pode ter havido um erro de audição e/ou transcrição, se calhar há um zero a mais: vamos ter de pedir ao Luís Gonçalves Vaz que  releia com atenção o "manuscrito" do seu querido pai. 

No nosso tempo, um soldado da CCAÇ 12, do recrutamento local, uma praça de 2ª classe (!) ganhava 600 escudos por mês, mais o "per diem" de 24$50 por ser desarranchado: comia na tabanca e no mato, em operações, não tinha direito a ração de combate (levava um lenço atado com um mão  cheia de arroz cozido) ... Em suma, recebia em média 1300 escudos ("pesos") mensais (em 1969/71).

Os militares da CCAÇ 21 devem ter recebido em 16/8/1974, aliás como o disse o Amadu Djaló (não no livro mas noutra fonte), o dinheiro a que tinham direito até fim do ano de 1974.  O Amadu Djaló foi oficial do Exército Português até essa data. Depois teve que optar por uma das nacionalidados... Recuperaria mais tarde a nacionalidade portuguesa,  mais tarde,; quando vem para Portugal em 1986, juntamente com outros antigos comandos...

Infelizmente estas "pequenas grandes histórias " não vêm nos livros da CECA nem  na historiografia militar oficiosa,  oficial ou académica.   São "anedotas"...
__________



(**) Vd. poste 13 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9190: O último Chefe do Estado-Maior do CTIG, Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (Jan 1973/ Out 74) (Parte II): Agosto de 1974: rebelião da CCAÇ 21 (Bambadinca) e do BCAV 8320/72 (Bula)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25108: O segredo de...(42): Patrício Ribeiro, "filho da escola", fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre... Numa canoa nhominca, em Varela, pelo mar dentro mar, com os útimos 10 portugueses e outros estrangeiros fugidos da guerra civil de 7 de junho de 1998


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul >  A minha cana de pesca


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul > Quilómetros de praia, que continua a ser bela e aprazível, apesar das alterações climáticas e da erosão.


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca de Iale >  Maio de 2021 > A minha casa ao entardecer, às 6h30

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não é fácil arrancar "segredos" aos antigos combatentes que passaram pelo TO da Guiné entre 1961 e 1974. Esta série, "O segredo de..." (*), não pretende ser sensacionalista ou voyeurista. Tem apenas como objetivo facilitar a partilha de memórias, mais recalcadas, mais distantes ou já esquecidas, nalguns casos, ou mais difíceis de contar em público, com receio de censura social ou de grupo, noutros casos... Achamos, por outro lado, que devemos também dar visibilidade e  pu
blicidade a ações relevantes, praticadas por amigos e camaradas nossos, cuja modéstia os inibe de falar delas...

Um dos exemplos é o  Patrício Ribeiro que cultiva o "low profile", é discreto, vivendo há quatro décadas na Guiné-Bissau, onde é empresário e... estrangeiro. 

Na guerra civil de 1998/99 ele  estava lá. E teve um comportamento de grande coragem e nobreza, tendo socorrido e ajudado alguns compatriotas e outros estrangeiros, que lá viviam ou foram apanhados pelos acontecimentos.

Recorde-se que ele nasceu em Águeda, em 1947, foi levado pequeno para Angola, cresceu em Nova Lisboa (hoje Huambo). Aqui casou, viveu e trabalhou. Fez a tropa como fuzileiro (1969/72). 

Veio depois para Portugal na véspera da independência, na 23.ª hora (**); mas nunca gostou da sua condição de "retornado":  em 1984, decidiu ir viver e trabalhar, na Guiné-Bissau, primeiro como cooperante, e depois estabecendo-se como empresário: fundou uma empresa ligada à energia, a Impar Lda...  Agora, aos  76 anos, recusa-se a reformar-se, está cá e lá (sobretudo quando cá faz frio, e chuva, e é inverno). 

Vai dando, por outro lado, uma mãozinha ao filho que lhe sucedeu nos negócios, continua a gostar de viajar pelo interior da Guiné  (e nomeadamente de canoa nhominca, pelos Bijagós)... E, quando cá vem, dedica-se também à sua agricultura em Águeda.   

Membro da nossa Tabanca Grande desde 2/1/2006, é  autor da série "Bom dia desde Bissau" mostrando-nos pontos desconhecidos ou já esquecidos daquela terra verde-rubra...  

É nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau; tem já cerca de 150 referências no blogue...

Ainda não "abriu o livro todo" das memórias de Angola e da Guiné-Bissau. Mas já nos contou aqui um dos seus "segredos" (*). 

De um outro viemos a sabê-lo, há uns largos anos,  por intermédio de um amigo comum, infelizmente já falecido, o eng. agrónomo  Carlos Schwarz da Silva, mais conhecido por "Pepito"  (1949-2012).

Esse "segredo", em boa verdade já não o é, foi divulgado há anos no blogue (***), merece todavia figurar nesta série... para "memória futura"


O segredo de...(41): Patrício Ribeiro, "filho da escola", fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre... Numa canoa nhominca,  em Varela, pelo mar dentro, com os útimos 10 portugueses  e outros estrangeiros fugidos da guerra civil de 7 de junho de 1998, até ao NRP Vasco da Gama

Tenho aqui perto, em Varela, uma pequena palhota para passar alguns fins de semana (vd. fotos acima). Há 20 anos estava a mais de 250 metros do mar, agora o mar já está muito mais perto; dentro de algum tempo, já posso pescar com a cana, a partir da minha varanda…

Neste mesmo local, numa clareira, aterraram os helicópteros da fragata Vasco da Gama, para recolher os Portugueses que aqui estavam encurralados na guerra de 1998.  Foi num destes helis que o nosso saudoso Pepito, saiu.

Eu também aqui estava… Mas tinha por missão ajudar a sair outros Portugueses que se encontravam no interior, em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) e Cacheu. Como não apareceram às horas combinadas, estive em S. Domingos e depois em Ingoré (sem combustível e em situação de guerra),  à procura deles… E de onde, a partir dos rádios da Missão Católica, comuniquei com a fragata a informar que estavam atrasados para a sua evacuação…

Ao fim do dia, também saí desta praia de Varela, numa canoa nhominca, acompanhando os últimos 10 portugueses que quiseram sair, assim como de outras nacionalidades, a quem a fragata autorizou o embarque… 

Como destino, “o pôr do sol”, o poente… Passados 18 milhas, mar adentro, lá encontramos a nossa frota com 3 navios dos “filhos da escola” que na parte final nos vierem cumprimentar nos botes e mandar subir pela escada de corda, para a fragata Vasco da Gama.

Já não foi possível os helis da fragata Vasco da Gama voltarem a aterrar na praia, havia quem os quisesse deitar abaixo… mas fomos acompanhados pelo ar, de onde recebíamos ordens, por vezes mandavam-nos, à nossa canoa, desviar de alguns obstáculos, que havia no mar …

Gosto de falar da minha praia de Varela de que adoro; dos banhos na água quente a 30º, das minhas pescarias diretamente para o grelhador, acompanhadas por umas bacias de ostras, etc…

O que escrevi,  num comentário, é um pequeno resumo dos diversos capítulos vividos naquela época, mas muitos deles ainda os considero 'classificados'.

Quando nos voluntariamos a ajudar os outros, quando pessoas a chorar nos pedem para não os deixar para trás..., a “formação militar não o permite", vem ao de cima...

E, por força das circunstâncias, passamos a ser o elo de ligação entre o resto do mundo e o interior de um país em guerra, de onde não é possível informar os familiares: onde estamos, que estamos vivos…  E, repara, não havia telefones e as fronteiras estavam fechadas, quer internamente, quer com os países vizinhos e estas últimas estavam a ser bombardeadas. Bissau ficava longe e não se sabia o que se passava no interior.

E quando do exterior… nos pedem a colaboração, através do nosso “bombolom”, para encontrar esta e aquela pessoa de quem não se tem notícias há muitas semanas, certamente qualquer um de nós ajudaria, se tivesse condições...

Os restantes capítulos vão saindo, quando alguém tocar na "ferida".

Luís, depois de ter saído na canoa nhominca, que, no regresso, na minha presença, carregou da fragata Vasco da Gama a primeira ajuda humanitária para a Guiné, destinada à Missão Católica de Suzana, eu voltei para Portugal. Não, não fiquei lá...

Mas, passados 2 meses regressei à Guiné, via Dakar e táxi aéreo para Bubaque, dali para Bissau em vedeta de guerra, que foi construída no Alfeite e que estava na mão dos militares senegaleses.

De Bissau por vezes saía para Varela, quando recebia um 'papelinho',  avisando que era melhor ir dar uma volta… Pegava na minha mochila com uma lata de atum, atravessava a pé as bolanhas e lá ia eu para banhos.

O aeroporto de Bissau esteve fechado quase um ano… Quando da morte do 'Nino', tinha ido passar o fim de semana à ilha de  Orango…

Na morte do Ansumane Mané, estava fora de Bissau... Ao reentrar em Bissau encontrei quase uma centena de milhares de pessoas, a saírem a pé. Algumas já iam para lá de Nhacra. Fiz um apelo na rádio RTP África, para mandarem transporte, a fim de apanharem as pessoas que estavam a dormir à beira da estrada, sem quaisquer condições.

Ao mínimo problema, a estrada principal era fechada a viaturas, em Safim.

Assim, como da morte dos restantes altos dirigentes do país..., estava fora, por Varela, Contuboel, etc.  

( Excertos  de vários textos e comentários, revisão / fixação de texto / negritos:  LG)


2. Comentário do nosso editor LG:
 
Patrício Ribeiro, português,
nascido em Águeda, em 1947,
criadoe casado em Angola,
com família no Huambo,
ex-fuzileiro em Angola de 1969
a 1972, a viver na Guiné-Bssau
desde 1984,
fundador, sócio-gerente
e director técnico
da firma Impar, Lda-


Patrício,  não é por acaso que eras conhecido em Bissau, ainda até há pouco tempo, como o "pai dos tugas"... Os jovens, cooperantes, rapazes e raparigas, tinham por ti um enorme respeito e admiração na altura em que o meu filho, João Graça, te conheceu em dezembro de 2009, em Bissau...

Esta história do resgaste de diversos portugueses e 
outros, em plena guerra civil (que começou com o golpe de  Estado de 7 de junho de 1998), perdidos em Varela, Canchungo  e Cacheu, devia merecer honras de título de caixa alta nos jornais da época e nas parangonas dos telejornais... Não me dei conta que isso tenha acontecido... Mas é uma verdadeira história de heroísmo que te honra e nos honra a todos nós, portugueses, teus amigos e camaradas!...

Deixa-me recordar, para os nossos leitores mais recentes, que na sequência daquele conflito, foi  montada pelo Governo Português uma operação de resgaste de cidadãos portugueses e de outras nacionalidades. 

Essa operação, com o nome de código Crocodilo, envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas. A componente naval foi  constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio

A atuação dos dois helicópteros foi fundamental para o êxito da missão. A força naval foi comandada pelo capitão-de-mar e guerra Melo Gomes. 

(Vd. P. Conceição Lopes, CFR: Operação Crocodilo. "Revista da Armada", julho de 2013, pág. 20).

A história do resgate, efectuado por tua conta e risco, em Varela, já a tinha ouvido contar, na tabanca de São Martinho do Porto, há uns largos anos atrás, talvez em 2012, da boca do nosso saudoso Pepito (1949-2012), um dos "encurralados", em junho de 1998, em Varela, onde também tinha casa de praia, já do tempo dos pais, e que era portanto teu vizinho.

Conseguiste metê-lo, a ele e à família, e a mais cidadãos, num dos helis da fragata Vasco da Gama, ancorada ao largo, a 18 milhas, fora das águas territoriais do país, com mais os dois ou três avios de apoio...

Eu já sabia, além disso, que, na impossibilidade de voltar o heli a Varela, tu já te havias metido na tua canoa nhominca, levando mais um grupo (10 pessoas, de nacionalidade portuguesa, e outros estrangerios...) ao fim da tarde, pelo mar fora, até à fragata salvadora!...

Camaradas e amigos, 18 milhas náuticas numa canoa nhominca (embarcação em que tu és perito e que muito admiras!), são mais do que 33 km pelo mar adentro... Não é para todos, é para quem aprendeu a amar e respeitar o mar, como tu, que foste "filho da escola" da Armada... Afinal, fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre!

Volto a escrever o que já repeti aqui: esta tua história incrível merece ser contada uma e outra vez. Sei que és um homem discreto e modesto, mas ainda espero ir ao 10 de junho, se não for longe, para te ver ser condecoradao por este feito de grande coragem, altruísmo e patriotismo!...

Patrício, se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores!

Registo, para mais, este facto: durante o conflito político-militar, sangrento, de 1998/99, tu foste incapaz de estar longe da tua/nossa Guiné mais do que dois meses... Ao fim de dois meses, voltaste a entrar no país via Dacar, Senegal.


Carlos Schwarz da Silva, "Pepito",
 Lisboa, campus
da ENSP/NOVA. 6/9/2007.
Foto de Luís Graça
O Pepito e a família, cuja casa no bairro do Quelélé, em Bissau, foi pilhada e destruída pela 
soldadesca senegalesa, que apoiava o 'Nino' Vieira, estiveram refugiados em Cabo Verde, à volta de um ano (se bem me lembro)... 

O Pepito tinha nacionalidade guineense, e este foi um dos acontecimentos mais marcantes (e traumatizantes) da sua vida (segundo me confidenciou em São Martinho do Porto)... Voltou à Guiné, para recomeçar a sua vida, uma vida nova, nunca escondendo a sua gratidão para contigo. 

Tu, por sua vez, eras/és português, aliás o português mais guineense da Guiné-Bissau que eu conheço... e a Guiné-Bissau está-te grata pelo trabalho que lá tens feito, levando a energia elétrica a muitas tabancas mas também hotéis, escolas, hospitais....

És um homem que sabe muito da história recente da Guiné-Bissau, saberás até demais, pelos círculos em que te moves, o que te torna também um pessoa cautelosa, discreta, diplomática, sem deixares de ser fiável, afável, prestável, solidário e generoso.

Quem está há 40 anos na Guiné-Bissau, não se imaginando já capaz de viver e trabalhar noutro sítio do planeta, é um sobrevivente nato, capaz de enfrentar e resistir a tudo o que apoquenta, chateia e mata naquela terra (a sida, o paludismo, a cólera, as infecções nosocomiais, as canoas inhomincas, as armas, o tráfico de droga, a violência, a droga de vida, os golpes de Estado, a ausência de Estado, as picadas mal alcatroadas, o tempo seco, o tempo das chuvas, a pobreza, etc....).

Felizmente Águeda não está longe: tu também sabes que tens aqui uma retaguarda segura, à entrada da velha Europa, onde podes 'carregar baterias', revisitar família e amigos, fazer as teus exames de saúde, as tuas consultas médicas... É bom ter uma retaguarda segura, é bom ter uma Pátria, senão mesmo 
duas ou três... 

Tiro-te chapéu pela tua longevidade na Guiné, pela tua história de vida, pela tua sabedoria de verdadeiro africanista. 

Que Deus, Alá e os bons irãs te continuem a proteger  sempre!...
LG

PS1- Espero que no relatório da Op Crocodilo também apareça o teu nome e as tuas boas ações. Nunca chegarás a almirante, mas foste um bravo fuzileiro. 

PS2 - A RPT1, na"Sociedade Civil", ainda recentemente, dedicou a esta operação dois programas num total de cerca de 2 horas e meia. Os vídeos estão disponíves em RTP Play:

24 de julho de 2023 > Operação Crocodilo / Falcão (Parte 1) (1h 12m 08s)
25 de julho de 2023 > Operação Crocodilo / Falcão (Parte 2) (1h 20m 31s)

  

NRP Vasco da Gama (F330) na sua visita a Tallinn, capital da Estónia, entre 27 e 31 de março de 2008. Pormenor, imagem editada pelo nosso Blogue, da autoria de Ivo Kruusamägi da Wikipedia estoniana (2008) (Com a devia vénia ao autor e à Wikimedia Commons)
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 18 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25083: O segredo de... (41): António Rosinha (ex-fur mil, Angola, 1961/62; topógrafo da TECNIL, Bissau, 1987/1993): Luís Cabral, a camarada Milanka, eu e o 'mau agoiro' do meu patrão

(***) Vd. poste de 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)

Ver ainda postes de:

31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)




18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23088: (In)citações (197): Mais recordações do conflito político-militar de 1998-1999, por parte de quem o viveu por perto, o Cherno Baldé e o Patrício Ribeiro

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25083: O segredo de... (41): António Rosinha (ex-fur mil, Angola, 1961/62; topógrafo da TECNIL, Bissau, 1987/1993): Luís Cabral, a camarada Milanka, eu e o 'mau agoiro' do meu patrão

Angola > Luanda > 1961 > Desfile de tropas > O António Rosinha, beirão,  vivia já em Angola há uns anos (foi para lá adolescente e fez lá a tropa)... Vemo-lo aqui a desfilar com o seu pelotão, que parece ser composto apenas por militares do recrutamento local (ele nunca nos disse a que unidade ou subunidade pertenceu, e por onde andou, em concreto; sabemos que teve uma "guerra" relativamente tranquila, apesar dos acontecimentos de 1961...). Era furriel miliciano aparece aqui em primeiro plano, depois do alferes, cmdt do pelotão, na segunda fila, a dos comandantes de secção: é o primeiro a contar da direita para a esquerda, está de óculos escuros e empunha, durante o desfile, pistola-metralhadora FBP, tal como os restantes graduados; as praças usavam, evidentemente, a velha espingarda Mauser 7,9 mm m/937 ... A farda, em 1961, era o do "caqui amarelo"... E, em plenos trópicos, os combatentes da época usavam capacete de aço.

Angola > s/l > c. 1961/62 > O então fur mil António Rosinha

Fotos (e legendas): © António Rosinha  (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O António Rosinha não queria entrar para a nossa Tabanca Grande (em 2006, chamava-se apenas "tertúlia"), não obstante a estima que lhe logo lhe manifestaram alguns dos nossos camaradas como o Amílcar Mendes, o Vítor Junqueira e eu próprio, que fiz questão de o "apadrinhar". E ainda bem que ele acabou por aceitar sentar-se à sombra do nosso poilão em 29/11/2006 (nessa altura ainda não havia poilão nem tabanca, tratávamo-nos uns aos outros como "tertulianos", membros da "Tertúlia dos Amigos & Camaradas da Guiné").

E em boa hora ele começou a colaborar connosco, desfiando as suas memórias do império: além de Angola (onde diz que foi "colón até 1974"), fez a diáspora dos "retornados",  passou pelo Brasil e pela Guiné-Bissau, onde depois da independência, de 1979 a 1993, trabalhou como "cooperante", exercendo a sua profissão, como topógrafo,  na empresa de construção e obras públicas TECNIL (que fez muitas das infraestruturas daquele país, antes e depois da independência; foi herdada do "colonialismo" tanto por Luís Cabral como pelo seu carrasco, 'Nino' Vieira, o mesmo aconteceu com o comandante Pombo, que ficou a pilotar o avião a jato privado Falcon da presidência).

O Rosinha é autor de uma notável série, a que demos o nome de "Cadernos de Notas de Um Mais Velho", em geral alimentada com pequenas notas e comentários que ele vai deixando no blogue. Já se publicaram uma meia centena de postes.  Além disso, é um caso notável de longevidade, vida ativa saudável, proatividade... A brincar, a brincar, ele deve chegar aos 90 para o ano se as minhas contas não falham! (Tinha 77 anos em 2012)... É, pois, um grande exemplo para todos nós!... (Não tenho ideia de ter alguém , com a sua idade, ainda tão ativo como ele, no nosso blogue, neste momento!)

Num desses postes (P16701) (*), deparámos com uma saborosa pequena história que mete o Luís Cabral, primeiro presidente da República da Guiné-Bissau, mais dois arquitetos (e pessoas gradas do regime, o casal Lima Gomes) e a empresa portuguesa TECNIL,  na pessoa do topógrafo António Rosinha e do patrão Ramiro Sobral.

Ao reler o poste, demos conta que uma das personagens era a arquiteta Milanka Lima Gomes, uma jugoslava casada com o então Ministro das Obras Públicas, 'Tino' Lima Gomes, e também a autora do projeto  (1976/78) da casa de férias de Luís Cabral em Bubaque (em parceria com outro arquiteto, jugoslavo, cooperante, Nikola Arsenic). A casa, dizem os entendidos, é uma referência da arquitetura pós-colonial: infelizmente, ficou amaldiçoada, com a queda política, a prisão e o exílio do seu dono. Hoje é uma confrangedora ruína, engolida pelo mato, na "ilha paradisíaca" de Bubaque que já teve muitos "donos e senhores"...

Pelo  seu bom senso, sensibilidade, perspicácia, inteligência emocional, história de vida, cultura e memória de "africanista", o Rosinha, um dos nossos veteranos, é merecedor do apreço e  elogio de muitos camaradas nossos, é profundamente estimado e respeitado na nossa Tabanca Grande, mesmo quando as nossas opiniões podem divergir.

A ele poderá aplicar-se  inteiramente o provérbio africano, há tempos aqui citado pelo Cherno Baldé, o "menino e moço de Fajonquito": "Aquilo que uma criança consegue ver de longe, empoleirado em cima de um poilão, o velho já o sabia, sentado em baixo da árvore a fumar o seu cachimbo".    

Esse provérbio veio mesmo a propósito desta pequena história "pícara", que não é "nenhum segredo de Estado", mas queremos "repescar" e preservar, agora na série "O segredo de...".  (**). 

É uma história com piada, com chiste, com humor, típico dos velhos africanistas, e é também uma lição sob o "sic transit gloria mundi", a vaidade e a transitoriedade do poder e da glória...

Que fique claro: não é intenção do Rosinha  (nem dos editores do blogue) achincalhar ninguém nem muito menos bater nos mortos ou ajustar contas. Simplesmente o picaresco, o burlesco, a ironia, o riso, o humor, etc., fazem parte da nossa "caserna" de velhos combatentes. Uma boa piada, uma boa história sobre os "nossos homens grandes", seja o Spínola ou seja o  Amílcar Cabral, são a prova de que aqui somos plurais e defendemos  a todo o custo a liberdade de expressão, pedra basilar da democracia que recuperámos há 50 anos.

Guiné > Bissau > s/d [meados dos anos 60] > Aspecto parcial do centro histórico, Câmara Municipal à direita, Palácio do Governador ao fundo à esquerda, Praça do Império, monumento "Ao Esforço da Raça", telhados de outros edifícios públicos, etc... Bilhete postal, nº 133, Edição "Foto Serra" (Colecção Guiné Portuguesa")...

O António Rosinha pede-nos para "enriquecer o poste com esta  lindíssima foto  onde se vê a casa que o Luís Cabral queria que a Tecnil lhe adaptasse, antes de ser deposto em 1980 (...). Essa foto (tirada de helicóptero, penso eu) é das mais bonitas sobre Bissau (...): uma lindíssima residência, r/c  e 1º andar com um Jeep Willys da nossa tropa junto à entrada de casa (...).  Foi essa casa que o Luís Cabral queria adaptar para sua residência, e que o Ramiro Sobral, o patrão da Tecnil (***), lhe agoirou o destino."

Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalizações e edição: Bogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010)


 O segredo de... (41): António Rosinha (ex-fur ml, Angola, 1961/62; topógrafo da TECNIL, Bissau, 1987/1993): 

Luís Cabral, a camarada Milanka, eu e o "mau agoiro" do meu patrão


Luís Cabral pretendia reformular uma residência bastante moderna que foi propriedade de um antigo 'colón',  que eu não conheci, para sua residência, penso eu. Essa residência ficava atrás do gabinete do primeiro ministro, e tinha uma portaria que era preciso adaptar, na cabeça de Luís Cabral, para receber o Volvo presidencial, bem junto à porta da casa.

Só que havia um pedaço de jardim e duas colunas à entrada do edifício que era preciso derrubar, construir noutra disposição, e isso Luís Cabral não queria.

E, agora,  vou falar em nomes de gente muito simpática e não quero de maneira nenhuma fazer «politiquice» nem com as pessoas nem com a atitude das mesmas nem do momento. O ministro das Obras Públicas era 'Tino' Lima Gomes que era arquitecto e ainda chegou a dar uma vista de olhos na portaria mas sem adiantar qualquer solução.

A esposa dele, a camarada Milanka, de nacionalidade jugoslava, arquitecta nas Obras Públicas,  é que foi encarregue de descalçar a bota, e eu no campo 
[como topógrafo] para executar o impossível. 

Só que a camarada Milanka não tinha coragem de dizer ao presidente que era impossível executar como ele queria, e eu descarreguei o meu fardo para o meu patrão Ramiro Sobral [engenheiro, dono da TECNIL], velho "africanista que se encontrava em Bissau, onde ia,  mês sim, mês não.

E o velho,  de 75 anos, e muitos anos de África, habituado a resolver casos bicudos, analisou e solucionou:
– Senhora Dona Milanka (toda a gente dizia "camarada Milanka"), sabe porque ando nesta vida com esta saúde aos 75 anos? Porque a porta da minha casa em Viseu tem 3 degraus. E subir e descer esses 3 degraus dão-me imensa saúde. Convença o senhor presidente que com 3 degraus resolve o problema e dá-lhe imensa saúde para daqui a muitos anos continuar com o meu dinamismo.

Passados uns instantes,  já só comigo no automóvel, Ramiro Sobral, como que a falar para os próprios botões, previa:

Com degraus ou sem degraus,  não vais envelhecer aqui, não.

Talvez uns 15 dias depois, dá-se o golpe a 14 de Novembro de 1980 que derruba Luís Cabral.

Adenda:

Pessoalmente conheci um desertor guineense, ou que ficou para a história da Guiné como desertor, e que levou com ele uma avioneta de Bissau para Conacri.

Tinha o seguinte currículo popularmente conhecido na sociedade de Bissau:

(i) era furriel da Força Aérea, guineense, da minha idade, portanto foi para a Força aérea antes da Guerra do Ultramar;

(ii) era guineense de uma família antiga,  "colonialista", que se foi "amestiçando";

(iii) como era menino bonito e inteligente, era um desperdício ir lutar para o mato como os indígenas. (Isto o povo pensava em crioulo, mas eu traduzo.)

Foi de armas e bagagens estudar com bolsa para a Jugoslávia e regressou com bagagem pesada, canudo de engenheiro/arquitecto, após a independência.

O PAIGC, reconhecido, atribui-lhe mais que uma pasta governamental, e também agradecido o governo português concedeu-lhe bolsas de estudo para os filhos nos Pupilos do Exército em Lisboa.

Já faleceu. em acidente com arma de caça.

Chamava-se 'Tino', Alberto 'Tino' Lima Gomes, foi ministro das obras públicas de Luís Cabral. Era um português como milhares de transmontanos, açorianos, angolanos, etc., nunca foi indígena, nasceu «assimilado». (*)

António Rosinha 

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)



Guiné-Bissau > Arquipélagos dos Bijagós > Ilha de Bubaque > 2013 > A antiga casa de Luís Cabral, projeto dos arquitetos de origem jugoslava (1976/1978) Milanka Lima Gomes e Nicola Arsenic. Foto do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72) (****)


Guiné-Bissau > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bubaque > 2016 > Casa de Luís Cabral. Construída com financiamento público, projeto dos arquitetos Milanka Lima Gomes (1976) e Nikola Arsenic (1978). Fotograma do filme "The Vanished Dream" (2016),  reproduzida no artigo de Lucas Rehnman (2023), a seguir citado. (Com a devida vénia...)


Curiosamente, o poste do Rosinha, P16701 (*), tem honras de citação num artigo sobre a arquitetura pós-colonial da Guiné-Bissau, da autoria do brasileiro Lucas Rehnman (n. 1988, S. Paulo), investigador, artista e curador (vive em Berlim), e donde extraímos com a devida vénia esta outra imagem da casa, em ruínas, do Luís Cabral. O título do artigo, em inglês, pode ser traduzido por: "Acabado de construir, e logo em ruinas: descolonização e dis-conectividade na Guiné-Bissau pós-colonial, 1973-1983":

Bibliografia (...): 

Tabanca Graca Luís, Graça. ‘Caderno de Notas de Um Mais Velho’. Blog. Luís Graça & Camaradas Da Guiné (blog), 9 November 2016. https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2016/11/guine-6374-p16700-caderno-de-notas-de.html.

Diz o autor, Lucas Rehnman,  sobre a casa de Luís Cabral em Bubaque (Vd. imagem acima):

(...) Seguramente mais ambiciosa e formalmente inventiva é a antiga residência presidencial, que se situa na ilha de Bubaque, no arquipélago dos Bijagós, e que está agora em ruínas (...) . Apesar da sua aparência enganadoramente brutalista, a estrutura de betão foi originalmente pintada de branco e coberta por placas betuminosas. Este corpo de trabalho arquitectónico aqui apresentado pode ser visto como uma ingestão criativa e digestão de arquitectura estrangeira, o que significa que não apenas ocorreu um mero empréstimo de formas e soluções modernistas brancas, mas que também se deu  uma apropriação, interpretação e transformação local do vocabulário modernista. constituindo por isso uma arquitetura original e híbrida que vale a pena documentar e preservar." (...) (tr. livre, Google / LG)
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16701: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (49): quatro apontamenmtos: (i) Angola, as boas famílias e os seus desertores; (ii) o nosso presidente em Havana; (iii) o desertor guineense da Força Aérea; e (iv) o ministro das obras públicas de Luís Cabral, Tino Lima Gomes, a camarada Milanka e o meu velho patrão Ramiro Sobral, que não precisava de subir ao alto do poilão para ver ao longe...

(**) Último poste da série > 8 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25048: O segredo de...(40): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo

(***) Sobre a TECNIL, vd. postes de;

3 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9555: Caderno de notas de um Mais Velho (19): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte I)

5 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9561: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (20): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte II)

25 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9655: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (21): TECNIL, importante empresa de obras públicas, que desaparece do mapa (Parte III)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25048: O segredo de...(40): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo


Patrício Ribeiro, ex-grumete fuzileiro, Angola, 1969/72


1. Afinal, todos temos pequenos/grande segredos da tropa, da guerra e da Guiné (e de outros lugares do planeta) que em vida ainda não partilhámos, ou só contámos a alguma ou outra pessoa das nossas relações mais íntimas: o pai, a esposa, o filho mais velho, o amigo do peito, o camarada de armas que ficou nosso amigo para sempre... Ou às vezes nem isso... 

Há coisas que decidimos não contar à família nem aos amigos do peito... Há coisas que nem às paredes se confessa, como diz a cohecida letra de fado. São coisas "muito nossas" que até preferimos, nalguns casos, levar connosco para o caixão... Todos temos esse direito. 

Outras há que, com o passar dos anos, achamos que podem entrar "no domínio público", sem consrangimento, sem mágoa, sem ferir ninguém... Pode até ser um forma de fazer o luto (em caso de perda de alguém ou de alguma coisa muito preciosa para nós)..

Já aqui publicámos, no blogue, cerca de quatro de dezenas de postes na série "O segredo de...". Em 20 anos, dá uma média de 2 por ano. Mas o "confessionário" continua de portas abertas... 

Já aqui o dissemos, a propósito de segredos partilhados por (e segundo a ordem cronológica, com alguns a partilharme mas do que um segredo):

  • Mário Dias, 
  • Santos Oliveira, 
  • Luís Faria (1948-2103),
  • Virgínio Briote, 
  • Amílcar Ventura, 
  • Joaquim Luís Mendes Gomes, 
  • António Medina,
  • Ovídio Moreira,
  • António Carvalho,
  • Sílvio Fagundes Abrantes,
  • Amadu Djaló (1940-2015),
  • Antóno Graça de Abreu,
  • Augusto Silva Santos,
  • Ricardo Almeida,
  • Fernando Gouveia,
  • Vasco Pires (1948-2016),
  • Cláudio Brito,
  • Ribeiro Agostinho,
  • Mário Gaspar,
  • Domingos Gonçalves,
  • João Crisóstomo,
  • Victor Garcia,
  • António Ramalho
  • Manuel Oliveira Pereira,
  • Alcídio Marinho (1940-1921),
  • João (Candeias da) Silva (1950-2022)
  • Dionísio Cunha, 
  • José Ferraz de Carvalho, 
  • Jorge Araújo,
  • Demburri Seidi/Cherno Baldé, 
  • António Branquinho (1947-2023)

Seria uma pena que estes e outros camaradas levassem  para a cova os pequenos/grandes segredos contaram no nosso "cofessionário"... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos que as protagonizam, e que nos tocam, fundo... 

Claro que algunas são como abrur a caixinha de Pandora... (Foi o caso, por exemplo, do Amílcar Ventura que teve  comentários... agrestes).

Este, que hoje trazemos a público, já foi dito em comentário ao poste P25035 (*). Mas merece ser recuperado e publicado, na montra grande do nosso blogue, nesta série...

Sobre o Patrício Ribeiro, convém lembrar:  nascido em Águeda, em 1947, cresceu em Angola, em Nova Lisboa (hoje Huambo), onde casou, viveu e trabalhou; ali fez a tropa como fuzileiro (1969/72). 

Ficámos a saber que veio para Portugal na véspera da independência; mas deu-se mal com a sua condição de "retornado": "africanista", decidiu ir viver e trabalhar, em 1984, na Guiné-Bissau; empresário, fundou uma empresa ligada à energia; agora, aos  76 anos está cá e lá, dedicando-se ao neto e à sua agricultura em Águeda mas também dando uma mãozinha ao filho que lhe sucedeu nos negócios... Aqui, em Águeda, sente-me mais confortável para falar do seu passado, como foi o caso há dias (*).

É autor da série "Bom dia desde Bissau", é um histórico do nosso blogue, para onde entrou formalmente em 2/1/2006: é nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau; mais de 130 referências no blogue..

 
O segredo de...(39): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo (**)

Assisti e ouvi perto a artilharia durante muitos dias, da batalha do Quifangondo.

Ia trabalhar todos os dias a poucos quilómetros do Cacuaco.

Todos os dias a caminho do trabalho, passava junto de diversos guerrilheiros mortos, que durante a noite ali eram abatidos e recolhidos, durante o dia, pela tropa Portuguesa para a morgue, que eu visitava quase diariamente, a fim de ver quem chegava, pois poderia ser um amigo.

Havia ex-tropa portuguesa de ambos os lados da batalha, alguns vieram mais tarde para Portugal, onde constituíram família.

Nos últimos dias do fim do mês de outubro de 1975, passavam por mim os carros blindados com cubanos para a linha da frente, que saíam dos navios às escondidas, ou não, da tropa portuguesa. A saída era pela linha do comboio, do porto de Luanda.

Até que no dia 30 de outubro de 1975, resolvi não morrer naquela estrada e naquela guerra, já que por vezes disparavam para todos os lados, até para o meu carro, quando diariamente lá passava e tinha que mostrar um cartão de filiado em qualquer movimento, o que eu não queria.

Esta foi uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo.




Angola > Luanda > Cacuaco > Quifangondo  (o Kifangondo) 

"Esta obra é de autoria do museu nacional de história Marco Histórico do Quifangondo, fotografada por Abraão Fernando Figueira, 01:02, 5 September 2015, numa exposição escolar realizada pela escola Flor viva. Mostra os heróis que lutaram para libertação nacional de Angola." Fonte (e legenda): Wikimedia Commons (imagem editada, com a devida vénia, pelo Blogue Luís Greaça & Camaradas da Guiné...)

(...) No local da batalha, uma colina com vista para o rio Bengo, foi construído o Memorial da Batalha de Quifangondo, como um tributo a todos aqueles que participaram na luta de libertação nacional. O memorial foi projectado pelo escultor Rui de Matos e inaugurado em 2004 pelo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos" (...) (Fonte: Wikipedia > Quifangondo)

 _____________

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24725: O segredo de... (39): António Medina: O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC



Foto nº 1



Foto nº 2

Lisboa > Antiga sede do BNU,  na Rua Augusta, que hoje aloja o Museu do Design e da Moda (MUDE). Esculturas de Leopoldo de Almeida (1964), que representam a expansão do BNU como banco emissor pelos antigos territórios ultramarinos portugueses (Foto nº 2), e os respetivos escudos (Foto nº1), incluindo a Guiné (cujo escudo é o da direita, a contar de baixo para cima, inspirado no original, a seguir descrito

"Escudo composto tendo a dextra em campo de prata, cinco escudetes de azul, cada um com cinco besantes de prata em aspa e a ponta, de prata com cinco ondas de verde - pretendiam simbolizar a ligação à metrópole; a sinistra em campo de negro, um ceptro de ouro com uma cabeça de africano, alusão ao ceptro utilizado por D. Afonso V, rei de Portugal à época da exploração da região. Brasão de armas simplificado, de 8 de maio de 1935 a 24 de setembro de 1973."

Fonte: BNU. (Reproduzido com a devida vénia...)




1. O António Medina (ex-fur mil op esp, CART 527, 1963/65) (foto acima)  não é homem para levar segredos para o outro mundo (*)... Desde que aderiu ao nosso blogue, em 15/2/2014, já partilhou aqui connosco alguns, a começar pelo seu "desenfianço" em Bissau, quando estava destacado no Cacheu, e que lhe poderia ter valido uma dura pena de prisão... por "deserção" (**).

Recorde-se que o nosso veteraníssimo António Medina, hoje com 84 anos feitos, já aqui nos contou como é que andou três dias "desenfiado" em Bissau, por causa de uns primos que tocavam no conjunto "Ritmos Caboverdianos"... (Ah! A saudade, quando dá num ilhéu! )

Estávamos em meados de 1964 e o que valeu ao Medina, que já não era "pira", mas já andava "apanhado do clima", foi um taxista, seu patrício, cabo-verdiano, que aceitou o risco de o levar de volta, de Bissau até Teixeira Pinto, por mil pesos, sem qualquer escolta (!)...

A única arma que o Medina levava debaixo do assento da viatura, e0ra a sua pistola-metralhadora FBP (de que pouco lhe valeria em caso de mina A/C ou de emboscada)...

Em João Landim, na travessia do Rio Mansoa, deu boleia a uma mulher que vendia ostras, e que ele já conhecia do Cacheu (onde estava destacado)... E lá seguiu a "coluna solitária" até ao Canchungo: o Medina, a mulher, o taxista... A história, completa, desta "pequena loucura" já foi reproduzida no poste P14945 (**)

Talvez o facto de viver nos EUA há mais de 40 anos, facilite a apetência do Medina para "ir ao confessionário" mais vezes do que outros camaradas, mais contidos.

Mas nem todos os seus segredos, já aqui contados, constam da competente série, "O segredo de...", que já tem 4 dezenas de postes.(*)

Alguns dos segredos aqui partilhados são "segredos de... Polichinelo", que poderiam também ser contados por qualquer um de nós... Todos tivemos, afinal, durante o serviço militar (de pelo menos 3 anos), alguns "pecados e pecadilhos", que nunca confessámos a ninguém, nem às paredes do nosso quarto... Às vezes apenas por falta de interlocutor ou "confessor", ou de ocasião ou de ambiente, e não tanto por autocensura ou receio da censura dos outros...

 Noutros casos nem se trata propriamente de "pecados ou pecadilhos", mas de situações que implicam alguma reserva, pudor, acanhamento,  constrangimento,  medo de ser julgado pelos antigos camaradas de armas, etc.

Mas já se ouviram aqui histórias espantosas que seria uma pena ficarem para sempre no "segredo dos deuses", o mesmo é dizer, perderem-se na voragem do tempo... São histórias que seguramente nunca chegaram (nem chegarão) ao Arquivo Histórico-Militar, ou outr0s arquivos públicos, mas que não sobreviverão ao "guardião da memória", que é cada um de nós, se não forem contadas...

Claro que nenhuma destas histórias vem "alterar" a visão final da História com H grande... Mas essa será sempre mais pobre, e mais descolorida, sem as nossas histórias com h pequeno...

É o caso desta, passada em Bissau, em junho de 1974, já com o PAIGC a preparar-se para se instalar nas cadeiras do poder, ainda dois meses antes da assinatura do acordo de Argel (25 de agosto de 1974) e três meses antes  da partida do "último soldado do império". 

Muitos dos nossos leitores não conhecem ainda este episódio, aqui contado no já  longínquo ano de  2014 (***).

Como está aceite, tacitamente, entre nós, não há críticas negativas ou depreciativas (por parte dos nossos comentadores) em relação a estes "segredos de confessionário". Tal como não há penitèncias...




Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Jolmete > CART 527 (1963/65) > O António Medina à esquerda, de perfil.

Foto (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradasas da Guiné]


O segredo de António Medina > O surpreendente reencontro, em Bissau, em junho de 1974, com o meu primo Agnelo Medina Dantas Pereira, comandante do PAIGC


Ano de 1974, da revolução de cravos em Portugal. A voz da liberdade e a derrota do fascismo soaram aos residentes civis em Bissau, Guiné, bastante cedo, na manhã do dia 26 de Abril.

Era eu empregado do BNU desde 1967 e vivia como é obvio em Bissau com a minha mulher e três filhos pequenos, os dois primeiros já quase em idade escolar.

Não me vou alongar nesta estória mas julgo ser um facto bastante interessante que merece ser mencionado, até porque os protagonistas são relacionados com a guerra e tem laços de família.

Depressa reinou uma grande euforia em toda a cidade de Bissau. A caça ao homem e o saneamento começaram, alguns que por qualquer divisionismo familiar eram falsamente acusados, outros por terem sido informadores da PIDE, perseguição e prisão para aqueles que exerciam cargos de chefia nas repartições públicas ou privadas e que não mais mereciam confiança, aqueles que supostamente apoiaram o regime fascista, etc. Arruaças, espancamentos, ofensas, fuzilamentos (o mais notório foi do respeitado Régulo Batican Ferreira, de Teixeira Pinto, que foi do meu conhecimento pessoal quando estive no chão manjaco em 1963/65).

Tempos difíceis vividos sob a pressão constante de ser perseguido, espancado ou aprisionado, aliado à falta de géneros alimentícios que se fazia sentir em todos os aspectos.

Entretanto, chegam as forças do PAIGC a Bissau depois de parte das tropas Portuguesas começarem já a regressar a Lisboa, instalando-se em quartéis e ocupando outras instalações. O Banco Nacional Ultramarino (BNU), esse, lá continuava fazendo as suas operações diárias sem qualquer inconveniente.

Num daqueles dias de calor e humidade, já típico da época das chuvas, depois das 10:00 da manhã, fui chamado para atender um cliente que me procurava - era um militar natural da Guiné, das forças do PAIGC, armado com uma Kalashnikov.

Senti um calafrio pela espinha abaixo quando me aproximei dele que, sem qualquer preâmbulo, apenas me comunicou que eu teria de estar ao meio dia na sede do Partido, ao lado do Palácio. Esperando o pior, prontifiquei-me a estar presente, não perguntando de quem ou de onde vinha tal ordem, o militar mais não disse, retirando-se apressadamente.

Comuniquei imediatamente à minha mulher o assunto, pedindo-lhe que se mantivesse calma, que se me pusessem sob custódia ela deveria seguir quanto antes para Cabo Verde, Ilha do Fogo, onde tinha familiares. Aliás, ia sendo este o procedimento com quantos prontos para embarcarem foram proibidos de seguir viagem, sem justa causa.

Imaginem o meu sofrimento durante aquele tempo de espera, contando os minutos e segundos no meu relógio Cortebert. Foram os piores momentos da minha vida, os nervos e o medo não me deixaram mais trabalhar. Irrequieto e preocupado, sem qualquer concentração, andava de um lado para outro sem saber o que se me adivinhava. Na hora certa, saí correndo em direcção à sede do PAIGC para me apresentar a quem (?), no edifício da antiga messe dos Oficiais da Força Aérea Portuguesa.

Quando chego ao pé do sentinela, deparo-me com um sujeito, a uma curta distância, de meia estatura, barba cerrada, com a farda dos revolucionários mas desarmado, sorrindo para mim. Era o meu primo Agnelo Dantas, filho de uma tia, irmã do meu pai. Fiquei deveras surpreendido quando vi a realidade à minha frente, meu primo, um dos combatentes do PAIGC (#)

Ponderei surpreso por alguns momentos, me aproximei sem qualquer relutância e demo-nos então um caloroso e prolongado abraço fraterno. A convite dele entrámos no edifício e depois de um trago de whisky John Walker Black que me ofereceu, senti-me mais relaxado para se conversar.

O ambiente era confuso e barulhento, alguns deles sentados cavaqueando com outros das mesas ao lado, à espera que o almoço lhes fosse servido, outros de pé, encostados ao balcão do Bar conversando em alta voz, pessoas entrando e saindo, mostrando falta de preconceitos e princípios pela maneira como se sentavam e se comportavam à mesa, fruto de terem andado longe da civilização na floresta da Guiné, durante aqueles anos todos.

Sentamo-nos os dois numa mesa mesmo no canto da sala, foi ele pessoalmente ao balcão, pediu duas cervejas fresquinhas. Falamos da nossa infância e dos familiares que se queixavam da falta de notícias dele desde que seguiu para estudar em França. Atentamente ia eu ouvindo o tecer da sua experiência no mato, satisfazendo a minha curiosidade com as perguntas que lhe fazia.

Fiquei sabendo que não desconhecia a minha presença na Guiné, não só do tempo militar assim como de empregado bancário. Que tinha sido aliciado e recrutado com a idade de 20 anos por Amílcar Cabral, para a luta de Libertação da Guiné e Cabo Verde. Que embarcou para Cuba e se formou na Escola Militar em Havana. Que no tempo do general Spínola foi ele quem numa das noites bombardeou Bissau com três misseis teleguiados disparados da Ponta de Cumeré. Carregava com ele um diário repleto de informações recebidas dos colaboradores do Partido.

Chegam mais elementos, identifiquei-os como cabo-verdianos e reconhecemo-nos como amigos de infância, alguns ex-colegas do Liceu Gil Eanes em S. Vicente, Cabo Verde:

  • Honório Chantre,
  • Silvino da Luz,
  • Júlio de Carvalho,
  • Osvaldo Lopes da Silva, etc.

Era um grupo que também queria exteriorizar a sua alegria pelo fim da guerra e a independência da Guiné, reconhecida por Portugal, aguardando a vez de também lhes ser servido o almoço logo após haver mesas desocupadas.

Reinou grande alegria entre todos nós pelo reencontro e amizade, rejuvenescida no momento. Foi bebida à vontade para quem quisesse, cerveja Sagres bem geladinha, goles de whisky Johny Walker com gelo, eram sobras da velha senhora deixadas aí a custo zero por aqueles que partiram.

Como petisco, ostras e camarões cozidos e temperados com molho de piri-piri forte, mancarra torrada sem casca, tudo para matar a sede e o suor que trazia aquele calor asfixiante. De Jure, não sabia absolutamente nada que fossem filiados no Partido como combatentes. Apenas se ouvia dizer que tinhajm saído à procura de trabalho no estrangeiro.

Quando regresso a casa para o meu almoço, encontro a minha esposa bastante preocupada, com os nervos à flor da pele, sem ainda saber do que se tratava. Teve ela um grande alívio quando pela primeira vez conheceu o primo Agnelo mas discretamente me consciencializou e me convenceu que devíamos deixar a Guiné para outras paragens onde pudéssemos cuidar da educação dos nossos filhos e viver com mais tranquilidade.

Durante algum tempo o primo Agnelo esteve em Bissau e mantivemos ótimas relações. A minha mulher passou a cuidar das roupas dele, com frequência se juntava-se a nós para o nosso rancho.

Depois seguiu para Cabo Verde e ocupou o cargo de Chefe das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP). Mais tarde foi Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.

Hoje é reformado como Coronel do Exército cabo-verdiano e vive na cidade da Praia. Comunicamo-nos com frequência através da Net mas nunca voltámos a falar da guerra, águas passadas nao movem moinhos.

Antonio Cândido Medina


(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)



(#) Nota biográfica baseada em A Semana, [Em Linha], 27 de janeiro de 2007. "Retratos: Agnelo Dantas, soldado de Cabo Verde", por Gláucia Nogueira



Agnelo Medina Dantas Pereira (foto acima)
Fonte: Casa Comum / Arquivo Amílcar Cabral, com a devida vénia)


(i) o pai é da Brava e a mãe de Santo Antão, nasceu nesta ilha em 1945;

(ii) em 1965, ainda com 19 anos, encontrava-se em Paris quando foi contactado por Pedro Pires, e depois por Cabral, e convidado a integrar "o grupo de estudantes e operários" que iria fazer um treino militar em Cuba;

(iii) chegou à ilha, depois de uma passagem pela Argélia, onde já se encontrava uma parte do grupo, formado por 30 homens e uma mulher; o chamado "grupo de Cuba” durante dois dois anos recebeu treino militar, com o objectivo de fazer "um desembarque armado em Cabo Verde";

(iv) “foram cerca de dois anos, isolados nas montanhas, ou em quartéis formados ad hoc, para nós. Foi muito exercício táctico, físico, até o dia do juramento - 15 de Janeiro de 1967 - quando Cabral se desloca a Cuba para se reunir connosco”, conta Agnelo Dantas, que diz, estarem, na altura, todos “prontos para o desembarque”;

(v) pouco tempo depois, com a morte de Che Guevara (em outubro de 1967), os cubanos têm a noção de que os seus serviços de informação estavam infiltrados, já que o próprio cerco a Che terá resultado desse facto; foi então adiada "sine die" a ida para Cabo Verde, e os militantes partiram para a União Soviética para complementar a formação;

(vi) ao longo de 1968, Dantas especializa-se em artilharia e explosivos; a ida para Cabo Verde ia ficando cada vez mais longínqua; para não ficarem indefinidamente inactivos é-lhes proposta, pela direcção do Partido, a ideia de ir para a Guiné;

(vi) tem o seu baptismo de fogo no início de 1969, quando foi aberta a Frente Leste; daí em diante e até 1974, ora ao lado de Nino Vieira, ora de Pedro Pires, participou em todas as frentes de combate, sempre no mato: primeiro, foi chefe de pelotão, depois chefe de bateria; e em 1973 já tinha o seu posto de comando, na Frente Norte;

(vii) depois do 25 de Abril e durante o período de transição para a independência de Cabo Verde, altura de intensa luta política e diplomática, foram trazidas armas da Guiné, "para qualquer eventualidade", sendo nessa altura que se começaram a formar as Forças Armadas cabo-verdianas: a 5 de Julho, de 1975, data da independência de Cabo Verde, "já tínhamos exército";

(viii) em 200, à data da entrevista, era coronel reformado das Forças Armadas de Cabo Verde, foi condecorado a 15 de janeiro de 2007 com a medalha da Estrela de Honra pelo chefe do Estado-Maior das FA (cargo que também ocupou);

(ix) tem página no Facebook: Agnelo Dantas.

2. Comentário do editor LG:

Esta é uma realidade, ignorada ou esquecida por muitos de nós... Na Guiné, no teatro de operações da Guiné, houve familiares e parentes que se combateram de armas na mão, em campos opostos, quer guineenses, quer cabo-verdianos...

Não chegou a ser o caso do nosso camarada António Medina, já que o primo Agnelo era mais novo (cerca de seis anos) e ainda devia estar em Paris (ou já a caminho de Cuba) (#), quando o primo António terminou a sua comissão em 1965 e regressou à vida civil, acabando por se fixar em Bissau e ingressar, como bancário, em 1967, no BNU...

Não temos (eu não tenho...) estatísticas sobre os cabo-verdianos que combateram de um lado e do outro... De qualquer modo, é interessante a referência do António à presença, nesse encontro com o primo Agnelo, em Bissau, em junho de 1974, de outros combatentes do PAIGC, de origem cabo-verdiano, ex-colegas do Liceu Gil Eanes, no Mindelo, em São Vicente... (Nomes sonantes ou pesos pesados do PAIGC como Honório Chantre, Silvino da Luz, Júlio de Carvalho, ou Osvaldo Lopes da Silva.)

No Liceu Gil Eanes, fundado no tempo da I Repúblcia, em 1917, com a designação de Infante Dom Henrique (que manteve até 1938), estudou Amílcar Cabral bem como a "elite portuguesa-cabo-verdiana". Até 1961 era o único estabelecimento de ensino secundário do arquipélago, e por lá passou praticamente toda a elite local...

Os mais afortunados, os filhos das famílias com posses, seguiam depois para a metrópole para prosseguir os estudos superiores na universidade, ou até para o estrangeiro (como fpoi o caso do Agnelo, que em 1965 era estudante em Paris). Eram os/as "m'ninos/as de São V'cente"...

(Fonte: Luís Batalha, investigador do ISCPS, autor do capº 6º ("A elite portuguesa cabo-verdiana: ascensão e queda de um grupo social intermediário") do livro coordenado por Clara Carvalho e João Pina Cabral, "A persistência da história. Passado e contemporaneidade em África" (Lisboa, ICS, 2004, pp. 191-225).


____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 12 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24390: O segredo de... (38): António Branquinho (1947-2023): Passei-me dos carretos... Perante a recusa dos helis em levaram os nossos dois mortos, puxei a culatra atrás da G3 e gritei: 'Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!' (Acção Galhito, 22/6/1971, regulado do Cuor, sector L1)

(**) Vd. poste de 29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14945: O segredo de... (19): António Medina (ex-fur mil, CART 527, 1963/65, natural de Cabo Verde, mais tarde empregado do BNU, e hoje cidadão norte-americano): Desenfiado em Bissau por três dias, por causa dos primos Marques da Silva, fundadores do conjunto musical "Ritmos Caboverdeanos"... Teve de se meter num táxi, até Teixeira Pinto, que lhe custou mil pesos, escapando de levar uma porrada por "deserção"!

(***) Vd. poste de 21 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12753: (De)caras (15): O meu primo Agnelo Dantas, e meu conterrâneo da ilha de Santo Antão, comandante do PAIGC, com quem me reencontrei no pós-25 de abril, em Bissau, era eu empregado bancário, no BNU - Banco Nacional Ultramarino (António Medina, ex-fur mil op esp, CART 527, Teixeira Pinto, 1963/65, a viver nos EUA, desde 1980)