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sexta-feira, 30 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9683: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (4): De Cobumba para Bissau e regresso à Metrópole

1. Conclusão do trabalho do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), intitulado O tempo que ninguém queria:

O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (4)

DE COBUMBA PARA BISSAU

Chegou o dia do regresso a Bissau, nessa manhã a única viatura que tínhamos operacional avariou, todas as coisas que tínhamos connosco para levar para a LDG que nos foi buscar, tiveram de ser transportadas às costas, mas por essa altura eu estava fisicamente bastante fragilizado, tive que pagar a um homem da população para me levar o caixote com os meus pertences, tendo eu levado apenas a G.3, as cartucheiras, e um pequeno malote onde transportava dois ou três quilos de peso, mesmo assim, ao fim de escassas centenas de metros até chegar ao barco, já não conseguia caminhar mais. Há pouco tempo tinha passado por lá o médico, que creio estava sediado em Bedanda a quem eu me queixei, tive como resposta; de facto estás doente, mas não te posso mandar para Bissau.

Deixamos Cobumba descendo o rio Cumbijã, alguns quilómetros mais abaixo estava outra companhia à espera para seguir connosco para a cidade, vindo de Cafal Balanta. Dessa companhia fazia parte um vizinho nosso, o Victor Santos, da Lagoa do Cão. Se um vizinho deixava aquela zona, um outro que o tinha ido render ficava bastante triste e só; era o José Balbino, sabendo que eu vinha a caminho de Bissau quis vir ver-me, não foi fácil para ele, como não seria para qualquer um, despedir-se de um vizinho com a comissão quase terminada… e ele ainda no inicio e numa zona tão má como era aquela.

Normalmente as companhias quando vinham do mato para a cidade era porque estavam para regressar à Metrópole, ou fazerem trabalhos de menor risco. Sabíamos ir estar mais alguns meses na cidade, o que não sabíamos era que a nossa companhia ia passar a ser cem por cento operacional, só os criptos exerciam a sua especialidade, todos os outros faziam os mesmos serviços. Para além do serviço de segurança à cidade que constava de percursos a pé durante a noite na periferia, em grupos de três ou quatro homens, serviços ao paiol, ao Palácio do Governador, no cais quando chegava algum barco da Metrópole, e também serviço junto ao arame que em alguns sítios circundava a cidade.

Como se tal não chegasse com vinte e seis meses de tropa, fizemos uma coluna a Farim, viagem de alto risco. Por essa altura a minha saúde não era a melhor, pela primeira vez tinha tido paludismo, e dois dias antes de se realizar a coluna fui ao médico tentando que ele me dispensasse de serviços pesados.Tive sorte, fui dispensado de ir a Farim, apenas eu e outro camarada que estava também de baixa não fomos.

No tempo em que estivemos em Bissau, o quartel ficava a poucos quilómetros do centro da cidade, na Combis em Brá, nós de vez em quando íamos até lá. Na cidade havia muito movimento apesar de mesmo por lá as coisas começarem a não ser totalmente seguras. Por essa altura, rebentou um engenho explosivo no café Ronda, sempre muito frequentado por militares, também dentro do QG houve uma explosão, e no Pilão certa noite houve tiroteio durante bastante tempo, estando a nossa companhia pronta para sair. eA tropa esteve mais de uma hora em cima das viaturas à espera de ordem para avançar, era cerca da meia noite os tiros pararam pelo que o estado de prontidão foi suspenso. Nesse dia eu estava de cabo dia, razão pela qual se a companhia tivesse saído eu teria ficado no quartel.

Um dos locais com paragem obrigatória para quase todos que vagueavam pela cidade, era o café Bento, ou a 5ª REP como toda a gente lhe chamava. Assim que nos sentávamos, ainda antes do empregado de mesa, chegavam os engraxadores que se preparavam e insistiam para nos engraxar as botas a troco de dois pesos e meio, ou três. Naquela tarde sentei-me na esplanada e logo apareceu um dos muitos engraxadores, o marreco. Disse-lhe que só lhe dava dois pesos e meio, ele começou a engraxar as botas, quando acabou a primeira disse-me, olha que são três pesos, eu disse-lhe que não, e ele levantou-se e foi embora, deixando-me com uma bota engraxada e outra não, mas o mais caricato é que as minhas botas uma era mais velha que a outra e eu coloquei primeiro a nova a jeito de ser engraxada, e assim a mais velha mais mal ficou a parecer ao pé da engraxada, ainda prometi os dois pesos e meio aos outros engraxadores que estavam por ali para me engraxarem a outra, mas solidários com o marreco nenhum quis. Não me restou outra alternativa a não ser sair pela porta oposta à esplanada e voltar a sujar a bota engraxada, com terra para não parecer tão mal.

Os serviços continuavam na cidade, o tempo normal de comissão já há meses que tinha passado, e nós sem saber quando seria o nosso regresso à Metrópole. Poucos dias antes de virmos embora tivemos uma baixa, o furriel Trindade, o homem que tantas minas tinha levantado, ao ser atropelado pela viatura que lhe ia levar o almoço, quando se encontrava em serviço com alguns homens num dos postos de guarda junto ao arame farpado que existia em alguns sítios em redor da cidade.

Faltavam três dias para o nosso regresso, fomos informados que teríamos de fazer mais uma coluna a Farim p+elo que à tarde fomos levantar as viaturas que íamos levar na madrugada seguinte. Estávamos completamente arrasados, a dois dias de terminar o nosso tempo de Guiné, irmos fazer uma coluna a Farim, para essa também eu já tinha levantado viatura, mas a poucas horas do inicio da viagem alguém teve o bom senso, e decidiu que não seriamos nós a ir na coluna.

Faltavam dois dias mas não tínhamos a certeza que seria assim, só quando nos encontramos dentro do Boeing e já no ar acreditamos que era desta que a nosso regresso ia acontecer. Embarcamos perto do meio dia em Bissau no dia dois de Abril e chegamos ao fim da tarde a Lisboa.

Passados trinta e oito anos da minha chegada à Guiné dando uma volta pela memória encontrei os factos aqui relatados, certamente muitos não terei conseguido lembrar-me, mas fiquei satisfeito com aqueles que consegui lembrar em apenas três semanas.

Se alguém chegar a ler este relato de vida que foi a minha, durante o tempo de tropa que passei em África, e que foi também o de muitos jovens do meu tempo, em particular aos que passaram pela Guiné, verá que as coisas agora não são tão más como parece!

Outubro de 2010
António Eduardo Jerónimo Ferreira
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Nota de CV:

Vd. postes anteriores da série de:

15 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9608: Tabanca Grande (325): António Eduardo Jerónimo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74)

18 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9623: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (2): De Bissau para Mansambo
e
21 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9635: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (3): De Mansambo para Cobumba

quarta-feira, 21 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9635: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (3): De Mansambo para Cobumba

1. Terceiro capítulo do trabalho do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), intitulado O tempo que ninguém queria:

O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (3)

DE MANSAMBO PARA COBUMBA

O pior da nossa comissão estava para vir. No fim de Março, a nossa Companhia foi informada que íamos ser transferidos para Cobumba, nome para nós desconhecido, mas logo nos disseram que ficava na zona sul próximo do Cantanhez, e estava tudo dito, uma das piores zonas de guerra na Guiné.

Deixamos Mansambo, e depois de cerca de uma semana em Fá Mandinga e mais três ou quatro dias em Bissau. Era chegado o dia de rumarmos ao Sul na LDG que nos haveria de levar até Cobumba. Iniciamos a viagem ao começo da tarde do dia 7 de Abril de 1973, sábado, acompanhados daquilo que era indispensável para início da nossa instalação no terreno. Ao anoitecer chegamos algures à foz do rio Cumbijã e ali tivemos de ficar o resto da noite. Ao mesmo tempo que a LDG parava, levantou-se uma trovoada violentíssima ao ponto de ficarmos todos assustados com a agitação do mar que até aí tinha sido de calma absoluta, depois dos marinheiros terem descido as âncoras e a trovoada acalmar, passamos uma noite com a normalidade possível.

No dia seguinte fizemos o resto da viagem rio acima acompanhados por um navio patrulha da Armada até Cobumba, sitio onde nunca tinha estado aquartelada tropa portuguesa. Chegamos ao inicio da tarde, estava na região muita tropa especial (Paraquedistas) mantendo segurança ao nosso desembarque. À medida que as quatro viaturas que levávamos (duas Berliet e dois Unimog 404) iam saindo da LDG, eram carregadas e seguiam fazendo uma pequena viagem de cerca de quatrocentos metros onde eram descarregadas.


Localização de Cobumba no itinerário Bedanda/Estrada de Catió

As viaturas tinham sido dias antes levantadas em Bissau por quatro condutores que para esse efeito tinham saído mais cedo da Companhia. Durante a descarga foram esses condutores a manobrar as viaturas (eu não indo a conduzir fui um dos que foram nas primeiras quatro carradas), à medida que descarregavam voltariam ao rio para novo carregamento. 

Sendo eu o condutor que naquele momento estava mais próximo da primeira que descarregou, o Capitão, Comandante da Companhia, disse-me para eu seguir com ela para o cais, tendo eu perguntado ao condutor que fizera o primeiro trajecto se ele queria que eu fosse ao rio, respondendo-me que não, que ia ele. Com toda aquela confusão nem sequer pensávamos em minas, pois a estrada teria sido supostamente bem picada e já tinham passado as quatro viaturas uma vez.

O condutor Cabral, e o Varela das Transmissões eram os únicos ocupantes que seguiam na viatura de regresso ao rio, percorreram cerca de trinta ou quarenta metros e a viatura accionou uma mina, que pelo estrago feito talvez fosse anti-pessoal, mas mesmo assim ficou alguns dias inutilizada, tendo o Cabral e o Varela ficado feridos, voltado logo para Bissau, rumo ao Hospital Militar num helicóptero que passados poucos momentos chegou ao local. 

O Varela não tendo nada de grave no dia seguinte voltou para a Companhia, o Cabral não mais voltou, foi ferido com gravidade numa vista tendo sido enviado para o Hospital Militar Principal de Lisboa.

O desembarque do resto do pessoal e de carga continuou, mas com atenção redobrada dado as coisas começarem a correr mal logo de início, o resto da operação de desembarque decorreu sem sobressaltos de maior. 

Na primeira noite a Companhia ficou toda no mesmo sitio. Na manhã do dia seguinte quase toda a formação:criptos,  radiotelegrafistas, condutores, padeiros, mecânicos, enfermeiros, alguns elementos de transmissões, uma secção de artilharia tendo a seu cargo o morteiro de 107 milímetros, o Comando da Companhia e mais dois pelotões de atiradores, foram instalar-se a cerca de quatrocentos metros. Os outros dois pelotões ficaram no mesmo sitio, assim como uma secção de especialistas de armas pesadas tendo como função ocupar-se de um canhão sem recuo, a precisar de reforma.

A cerca de trezentos metros do pessoal da nossa Companhia estavam mais dois pelotões que estando connosco pertenciam a outra Companhia, ou seja, estávamos distribuídos em três sítios formando um triângulo separados por poucas centenas de metros, um desses três era como que o equivalente à CCS do Batalhão já que aí se situava o Comando da Companhia, e quase toda a formação.

Depois foi instalarmo-nos o melhor possível o que não foi fácil, estávamos habituados a ter luz, abrigos com alguma segurança e menos guerra, ali tudo era diferente, houve que fazer valas apressadamente, montar tendas, fazer um forno para cozer o pão, tendo sempre como companhia a inseparável G3. 

No primeiro mês o PAIGC não nos incomodou… durante esse tempo foram feitos outros trabalhos, mas aquela calma… deixava antever qualquer coisa que nós não sabíamos muito bem o que seria!

Entretanto conforme estava previsto vim a segunda vez de férias à Metrópole; numa zona sem vias de comunicações viárias, isolada com guerra por todos os lados, restava-nos fazer o trajecto pelo rio ou via aérea «mas pelo ar só em casos especiais», e lá fui numa coluna de pequenos barcos de fibra,  os “Sintex”, até ao aquartelamento de Cufar, onde existia uma pista de aviação, creio ser a melhor do sul da Guiné. 

No mesmo dia embarquei num avião Nordatlas até Bissau, foi a aeronave mais barulhenta das sete em que viajei durante o meu tempo de guerra que foram: o DC 6, o Dakota, a avioneta DO 27, o Boeing 727, o Nordatlas, o Helicóptero, e o Boeing 707, que nos trouxe de regresso à metrópole no final da comissão.

Passados dois dias em Bissau, embarquei em Bissalanca rumo a Lisboa onde cheguei ao cair da noite, se da primeira vez que vim de férias o meu pensamento estava quase sempre no dia em que teria de regressar a África, agora a confusão era ainda maior; mesmo junto da minha esposa e do meu filho muitas vezes a minha ausência era quase total, foi um tempo de tal confusão que quase nada me lembro daquilo que por essa altura terá acontecido.

Se da primeira vez conhecia bem o sitio para onde iria voltar; da segunda apenas sabia ir para uma das zonas de maior actividade operacional do IN. Ainda bem que durante as férias não tive qualquer noticia daquilo que por lá se passava, pois se tal tivesse acontecido a partida teria sido ainda mais dolorosa.

Terminadas as férias lá fui uma vez mais rumo a Bissau onde cheguei ao fim da manhã, no mesmo dia tive transporte para Cufar e de novo no barulhento Nordatlas, como os homens por mais que fossem eram sempre poucos naquela zona, à tardinha arranjaram-me boleia para Cobumba, desta vez de helicóptero com uma breve passagem por Bedanda, onde o heli que me levava se manteve no ar enquanto o heli-canhão foi a terra, cheguei a Cobumba ao fim do dia.

Ao chegar, ainda no ar, tive oportunidade de ver que muito havia mudado durante o tempo que eu estivera fora, as muitas árvores que ali existiam tinham sido quase todas derrubadas, muita terra mexida, abrigos subterrâneos que começavam a ser feitos, tudo estava diferente. 

Ao chegar a terra era grande a curiosidade que tinha em saber o que teria por ali acontecido durante a minha ausência, e, não era menor a vontade que os meus camaradas tinham de me pôr ao corrente de tudo que tinha mudado, e que não tinha sido pouco.

E o que tinha acontecido durante a minha ausência, é que, a acalmia dos primeiros dias tinha sido quebrada com enorme violência, quando certo dia pela madrugada o inimigo se infiltrou dentro do triângulo que era formado pela disposição das nossas forças no terreno, onde existiam muitas árvores que lhe serviram de abrigo, e estando eles no meio das nossas tropas e muito perto, a poucos metros, foi necessário ter muito cuidado em particular das nossas armas pesadas para não sermos nós a bombardear as nossas próprias forças, terá durado esse ataque cerca de duas horas junto ao “arame” que nessa altura ainda não havia. 

Mas como em tudo na vida também na guerra havia momentos de sorte, e apesar da violência do ataque, dos nossos apenas um militar que estava na nossa Companhia acidentalmente ficou ligeiramente ferido (pertencia à Engenharia sediada em Bissau e tinha ido acompanhar material), do lado do inimigo segundo informações posteriores, terão tido várias baixas. Isto de estar tanto tempo debaixo de fogo não é coisa que se deseje a ninguém, só quem por lá passou pode fazer ideia do que isso era.

Durante as primeiras semanas foram levantadas várias minas próximo do sitio onde passámos a primeira noite, para sorte nossa estavam uns metros mais ao lado, talvez o sitio onde o inimigo pensasse que íamos acampar, o furriel que levantou essas minas assim como outras que entretanto vieram a ser colocadas, viria a ser uma das baixas da nossa Companhia, vitima dum acidente estúpido como são quase todos os acidentes.

Nessa altura ainda as valas eram de certo modo improvisadas, e abrigos só os destinados às comunicações, era pouca a luz eléctrica que havia, fornecida por um pequeno gerador que quase não iluminava a zona circundante de um dos três sítios em que estávamos sediados. 

Foi a partir desse ataque quase corpo a corpo que tudo se alterou, as árvores que tinham servido de abrigo ao inimigo foram quase todas deitadas abaixo, valas mais organizadas foram feitas, todos passamos a dormir em abrigos que tivemos de ser nós a fazer.

Para que o buraco a abrir tivesse mais segurança tinha de ser pequeno, assim juntaram-se dois ou três e cavavam até que coubessem de pé, depois era coberto com troncos de palmeiras e com cerca de um metro de terra por cima. 

Eu e outro condutor, o meu amigo Cruz, abrimos o nosso abrigo, se não tem sido o incidente do primeiro dia certamente também o Cabral faria parte do nosso grupo de abrigo. Durante a abertura sofri um ataque, não de fogo inimigo mas sim de abelhas, presumo que estivessem na terra entretanto remexida, pois apenas as vi quando começaram a espalhar sobre mim ferrões sem dó nem piedade, a minha primeira reacção foi meter-me debaixo de um chuveiro improvisado que nós tínhamos, três barris em cima de um cajueiro, mas elas não me deixavam, foi então que comecei a correr pelo meio do capim e só assim me vi livre delas.

Mas a tormenta não terminou ai, é que a tenda que servia de enfermaria ficou cheia de abelhas, e o enfermeiro que estava por perto enquanto viu por ali uma abelha não me quis ir tratar, com muita sorte minha não sou alérgico às ferroadas! Quando as abelhas abalaram lá veio o enfermeiro que me retirou cerca de trinta ferrões do rosto, dos quais sete estavam numa orelha, para além das dores que senti que foram muitas, não provocaram qualquer inflamação, mesmo a esta distância no tempo, ainda não esqueci a actuação menos própria do enfermeiro, coisa rara entre camaradas, mas mesmo em situações de guerra há sempre alguém que...

Depois de feito o abrigo era tempo de nos organizarmos, aproveitando alguma madeira que por lá havia fizemos cada um a sua cama onde colocamos o colchão de campanha que tinha sido distribuído a todos os elementos da Companhia, só que, o meu durante o tempo em que dormi no chão rompeu dois dos cinco canos de ar que o compunham, a almofada era independente, como não podia dormir assim, foi necessário vazar os três que ainda tinham ar e ficar só com a almofada. No sitio do colchão estava uma manta dobrada, e assim tive de dormir durante os quase nove meses que lá estivemos, dentro do abrigo tínhamos como companhia a G3,  os cinco carregadores, e mais um cunhete com mil munições.

O trabalho dos condutores era quase nada, tínhamos pouco mais de um quilómetro de picada para percorrer desde as nossas instalações até ao rio, à medida que o tempo ia passando também as viaturas que tínhamos eram cada vez menos, a primeira a ficar inutilizada definitivamente foi uma Berliet. 

A comida era feita para toda a Companhia no mesmo local e depois transportada para o sitio onde estavam os outros elementos. Certo dia seguiam na viatura o condutor e um cozinheiro levar o café, era madrugada, porque estava previsto uma saída das nossas tropas, o que não viria a acontecer, porque uma mina rebentou fazendo ir pelos ares a viatura e os dois ocupantes, e claro o pequeno almoço que eles iam levar.

Mas uma vez mais a sorte esteve connosco, perdeu-se a viatura mas os ocupantes sofreram apenas o susto e já não foi pouco, o condutor foi o mesmo que em Mansambo conduzia a viatura que accionou a primeira mina das várias com que fomos contemplados, onde o furriel Ferreira perdeu um pé, - de seu nome José de Sousa

A viatura que tinha accionado a primeira mina em Cobumba, se da primeira vez foi possível ser recuperada, à segunda já não; ficou completamente destruída, ao accionar mais uma mina dentro do arame junto a casas que andávamos a construir para a população, por essa altura já o PAIGC possuía os mísseis Strela com que tinha abatido várias aeronaves, era a terceira mina a ser accionada em Cobumba e também a que fez mais estragos, para além da perda da viatura houve três feridos graves. 

Como de costume foi pedido uma evacuação urgente via rádio, ficando nós à espera que não demorasse muito tempo, como normalmente acontecia, mas com a introdução dos Strela na guerra tudo se alterou; os nossos camaradas feridos estiveram no local onde supostamente o helicóptero os ia buscar, cerca de três horas! A mina rebentou por volta das duas horas da tarde, já passava das cinco quando de Bissau informaram que a evacuação tinha que ser feita em Cufar, depois de toda aquela espera foi necessário organizar uma coluna via rio Cumbijã com os nossos três barcos, e com o apoio dos fuzileiros que estavam próximo de nós, no Chugué. 

Era já noite quando a evacuação se efectuou, não de helicóptero como era costume, mas sim de outra aeronave que suponho ter sido um Nordatlas.

Era já tarde quando o pessoal e barcos utilizados na evacuação regressaram, se o nosso moral era já muito baixo, a partir dai ficou de rastos, todos pensávamos que um de nós poderia ser a próxima vitima do novo rumo que a guerra tinha tomado, necessitar de ser evacuado e não ser possível em tempo útil.

Das quatro viaturas que tínhamos, duas já estavam inutilizadas, mais ou menos de oito em oito dias estávamos de serviço de condução, o resto dos dias era esperar que o tempo passasse, quase sempre por perto dos abrigos. Todas as noites tínhamos de fazer reforço, o primeiro turno era apenas feito por um militar, os outros eram feitos a dois, a zona era tão má que não podíamos facilitar em nada, como éramos poucos, até os furriéis tinham de fazer reforços, e, contrariamente ao que estavam habituados, ir como nós à cozinha buscar a comida, pois ali tudo era diferente.

A razão que nos levava a estar sempre perto dos abrigos é que as flagelações à distância de quando em vez aconteciam, e a qualquer hora, mas mais grave ainda é que eram muitos os aquartelamentos ou acampamentos na zona, e no inicio dos bombardeamentos não sabíamos a quem se destinavam, só depois de começarem os rebentamentos, e de informações via rádio ficávamos a saber quem eram os destinatários.

Em Cobumba quase todos usávamos chinelos de plástico, quando começava um ataque e tínhamos de fugir para os abrigos, perdíamos logo os chinelos. A correr sem ser a medo nunca os perdíamos. Era mais um passatempo que tínhamos, depois da “festa” acabar havia que procurar onde estariam os chinelos.

Os ataques do IN por vezes tinham também como objectivo desmoralizar as nossas tropas, pois chegavam a disparar duas ou três vezes o RPG, uma ou duas morteiradas e depois paravam. De realçar que a zona onde nos encontrávamos era terra do PAIGC. Algumas vezes nem sequer respondíamos às provocações ou respondíamos na mesma medida.

Certo dia apareceu uma mulher com uma galinha para vender, coisa rara naquelas paragens, pois por ali o povo não estava connosco. Passado este tempo chego a pensar se a galinha não terá sido um pretexto para fazer algum reconhecimento atendendo ao que a seguir se passou.

Alguns de nós condutores compramos a galinha, e claro, fomos logo tratar de a pôr a jeito de ir para a frigideira. Ainda que funcionasse poucas vezes, tínhamos uma máquina a petróleo que o condutor Cruz logo se prontificou para pôr a trabalhar para fritar a galinha. 

Estava a começar a aquecer o azeite, começam a cair algumas morteiradas, há que deixar a galinha e fugir para o abrigo, mas o fogo foi pouco e sem consequências. O Cruz volta ao trabalho, estava a pôr os primeiros pedaços na frigideira volta a haver mais fogo, uma vez mais tudo para os abrigos, o Cruz começava a ficar impaciente, o fogo inimigo voltou a ser pouco, as nossas armas pesadas respondiam de igual forma, esperamos mais algum tempo tudo se calou e nós pensamos que para aquele dia já chegava,mas bem nos enganamos. 

O cozinheiro voltou ao serviço convencido que desta é que era, mal começa a pôr a máquina a trabalhar nova flagelação, desta vez com um míssil à mistura e mais umas poucas morteiradas, e como sempre todos a fugir para os abrigos, daquela vez as nossa artilharia creio que nem respondeu ao fogo do IN. O Cruz bastante aborrecido com a situação decidiu, agora ataquem mais ou não, eu é que não saio daqui enquanto não fritar a galinha! E desta vez pararam mesmo, mas só naquele dia, que a festa haveria de continuar quando eles entendessem.

Por essa altura ainda tínhamos duas viaturas operacionais. Certo dia à tardinha o furriel mecânico, acabado de chegar de férias da Metrópole, foi dar uma voltinha com uma Berliet. Andou cerca de quinhentos metros, estava uma mina na picada que o fez ir pelos ares, mas também desta vez com sorte, a viatura ficou destruída mas ele apanhou apenas um grande susto, o que não foi nada que ele não merecesse. 

Em Mansambo, quando tínhamos muitas viaturas e percorríamos muitos quilómetros, víamos condutores de outras Companhias que debaixo e em volta dos bancos traziam vários sacos com areia, tendo em vista proteger um pouco o possível impacto do rebentamento das minas a que estávamos sempre sujeitos, mais que não fosse do ponto de vista psicológico protegia-nos. Pois o nosso furriel mecânico não autorizava que puséssemos esses sacos!...

A partir dessa altura ficamos apenas com uma viatura operacional, o serviço dos condutores era cada vez menos, em boa verdade também não podíamos ser sujeitos a grandes esforços físicos, pois a alimentação a que estávamos sujeitos não permitia que tal acontecesse. 

À medida que o tempo passava mais difícil se tornava o abastecimento de géneros alimentares. Até parece mentira mas não é, houve um dia em que o almoço foi arroz cozido acompanhado com marmelada, e no local que servia de cantina, não havia nada que pudéssemos comprar.

Não havia bicho que chegasse ao arame que escapasse. Certo dia, um que os nativos diziam ser gato foi atraído à luz durante a noite tendo sido abatido, mais parecia ser um cão na fisionomia, mas pouco importou se era cão ou gato, o destino foi ser assado com batatas no forno dos padeiros. 

De outra vez foram os nativos que mataram uma cobra muito grande para lhe tirarem a pele, mas logo houve alguém que achou por bem não desperdiçar tal manjar, e também a cobra foi parar ao forno. Eu não consegui comer mas lá que o petisco parecia estar bom isso parecia. Outro dia foi a vez de esquilo guisado com batatas, dessa vez também eu quis provar, ainda pus um bocado na boca mas não o consegui comer.

A pouco mais de um mês de abandonarmos Cobumba, num dia em que eu estava de condutor de serviço com a única viatura que tínhamos operacional, os picadores como era costume fizeram a picagem do trajecto que eu depois teria de percorrer onde detectaram uma potente mina anti-carro, que foi levantada pelo Furriel Trindade o homem encarregado de fazer esse trabalho. Ao contrário de outras que foram accionadas no local, essa foi levada para a nossa arrecadação onde estava muito material relacionado com a construção, enxadas, picaretas, pregos e outro material, parte dessa arrecadação servia também de depósito de géneros alimentares, onde se encontravam umas dezenas de sacos de farinha para cozer pão. No que à alimentação diz respeito o pão foi a única coisa sempre boa.

Uma tarde, passados três dias após o levantamento da mina, estavam três militares junto do local onde ela se encontrava. Nunca ninguém soube o que se terá passado, o certo é que ouvimos um estrondo enorme, nos primeiros instantes chegámos a pensar que teria caído por ali algum foguetão, mas não, depressa encontramos a causa, a mina que tinha sido levantada dias antes, tinha explodido e feito desaparecer as instalações, ferindo gravemente os três homens que lá se encontravam, que viriam a ser evacuados para o Hospital Militar em Bissau.

Na manhã do dia seguinte recebemos a noticia que dois tinham falecido, o Furriel Galeano e um soldado do 2.º Pelotão cujo nome já não me recordo, o outro esteve cerca de um mês no hospital, vindo ainda a tempo de regressar à Companhia que passados poucos dias regressava a Bissau. 

Foi terrível o que aconteceu, mas podia ter sido ainda pior, do lado que servia de depósito de géneros, separados apenas por umas chapas, estavam mais quatro homens a jogar as cartas, tiveram a sorte de estar encostados a uma pilha de sacos cheios de farinha, que amorteceu o impacto e só por isso a tragédia não foi maior.

Faltavam poucos dias para sairmos de Cobumba sofremos mais um violento ataque que durou cerca de trinta minutos, que pareceram horas, em que o inimigo utilizou várias armas: o morteiro 82, o canhão sem-recuo, o RPG 7 entre outras, mas uma vez mais a sorte esteve connosco, apesar da precisão do bombardeamento pois caíram várias granadas dentro do aquartelamento, e junto há picada que só por sorte ainda não estávamos a percorrer. 

Apenas tivemos dois feridos ligeiros, vitimas do rebentamento de uma granada de RPG7, eram os apontadores do nosso canhão sem-recuo que ao introduzirem a primeira granada ficaram logo inoperacionais. Houve uma vitima mortal, uma mulher da população.

Nesse dia também eu estava de serviço de condução, já tinha tomado banho, tomava banho normalmente três vezes ao dia , havia pessoal nosso que tinha ido a Cufar, como de costume via rio Cumbijã, e nós tínhamos de os ir levar e buscar ao rio assim como aos barcos. Era fim da tarde, estávamos no cais à espera que eles chegassem, ao mesmo tempo que a aviação bombardeava não muito longe de nós, ainda os Fiat iam a caminho de Bissau, já estávamos a ser bombardeados, o que levou alguns a pensar que seria ainda a nossa aviação a bombardear, mas não, era mesmo Cobumba que estava a ser atacada, o rio naquela altura estava com a maré baixa cerca de três ou quatro metros, muitos de nós tentamos abrir buracos no lodo deixado pelo baixar da maré para nos protegermos, se é que isso ajudava alguma coisa, mas era o que nos restava fazer, mas as granadas mais próximas caíram a cerca de cem metros de nós.

Passados alguns dias chegou a Companhia que nos foi render a Cobumba. Durante o tempo em que estivemos com os “piras”., cerca de dez dias, fomos atacados uma vez, para eles era o baptismo de fogo, mas também desta vez apesar de nos mandarem alguns foguetões à mistura não nos causaram qualquer dano, a não ser algumas pisadelas pois os abrigos onde nos abrigávamos, durante este ataque ficaram com o dobro da lotação.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9623: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (2): De Bissau para Mansambo

domingo, 18 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9623: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (2): De Bissau para Mansambo

1. Segundo capítulo do trabalho do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), intitulado O tempo que ninguém queria:


O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (2)

DE BISSAU PARA MANSAMBO

Lá voltei de novo ao aeroporto de Bissalanca, só que desta vez a viagem era mais curta, apenas até Bafatá. O avião que nos levou era um velho Dakota com bancos de madeira como se fosse uma carroça, à chegada estavam viaturas militares que nos levaram até Bambadinca, onde se encontrava a CCS do meu batalhão, o "3873", depois mais uma mudança de viatura, desta vez até Mansambo, onde já se encontrava a minha companhia, a "3493".

À chegada, para além da nossa Companhia estava a que íamos render. Se a confusão era grande, para mim era ainda maior, pois não conhecia lá ninguém, ao contrário dos meus futuros camaradas que estavam juntos há já alguns meses. A única coisa boa que me aconteceu nesse dia, foi receber a correspondência que entretanto me tinha sido enviada para o SPM, Serviço Postal Militar, que já na metrópole nos tinha sido distribuído.

Mansambo City

Foto: © Torcato Mendonça (2012). Todos os direitos reservados

Estivemos alguns dias com os “velhinhos” para preparar a rendição, ao fim dos quais chegou a vez de assumirmos os cargos que até ali tinham sido deles. Para mim não foi nada fácil, ver aqueles que partiam, e pensar no tempo que ainda faltava para que nos acontecesse o mesmo, se é que viria a acontecer…

Os primeiros dias foram de uma tristeza enorme e difícil de explicar; recordo-me de um dos primeiros serviços que fiz, foi segurança à fonte, onde íamos buscar a água com que abastecíamos o aquartelamento para uso diário, que ficava a cerca de duzentos metros do arame farpado que circundava as nossas instalações, mas para fazer esse trajecto era necessário proceder à picagem do caminho todos os dias pela manhã, tendo em vista detectar alguma mina que a coberto da noite o IN lá pudesse ter colocado.

Ao chegar junto da fonte, cinco ou seis homens ficavam por ali a fazer segurança enquanto outros dois andavam com um unimog, o famoso "burrinho" a transportar água para o aquartelamento. Eu estava triste pensando em quase tudo... e não encontrava nada que me levantasse o ânimo, por momentos ocorreu-me a ideia de escrever qualquer coisa… escrevi a seguinte frase: tem calma, ainda és novo e o tempo há -de passar; frase que sempre me acompanhou, e que eu li vezes sem fim durante o tempo que estive na Guiné.

Na minha Especialidade de Condutor, tinha como função principal o transporte de pessoal, as viagens maiores eram as que fazíamos em coluna a Bafatá, onde íamos com regularidade uma vez por semana, normalmente buscar entre outras coisas, duas vacas que eram consumidas pelo pessoal da Companhia, eram animais de pouco peso, e outra coisa para nós não menos importante, que era o correio, naquele tempo, a única forma de ter noticias da terra, da família e dos amigos. Eu era um dos que recebia muita correspondência. 

Recebi cartas e aerogramas escritos todos os dias em que estive na Guiné, ainda que muitos chegassem no mesmo dia; também eu, durante o tempo que lá estive escrevi todos os dias para a minha esposa, quando recebia correspondência, respondia com uma carta, os outros dias escrevia aerogramas. Para outras pessoas de família e para alguns amigos também escrevia mas só aerogramas. Havia também quem ao longo do tempo de permanência em África raramente recebesse correspondência, quando chegava o momento da distribuição todos se aproximavam, mas para alguns, em vez de alegria era um momento de acrescida tristeza, pois correspondência para eles não havia.

As viagens de transporte de pessoal aconteciam também quando elementos nossos iam participar em operações fora da nossa zona, assim como fazer segurança aos que passavam na picada na zona de Mansambo, em especial às colunas de abastecimento que iam de Bambadinca ao Xitole, e regressavam ao fim do dia, enquanto não regressassem tínhamos de estar algures na picada na missão de segurança que nos era destinada.

Estávamos ainda há poucos meses em Mansambo, fomos fazer segurança a um dos “maiores” que naquele dia ia passar pelo sector leste, a nossa missão foi andar por umas tabancas, para nós desconhecidas, algures entre Bafatá e Nova Lamego. Chegámos já noite à tabanca onde fomos dormir… se no inicio muitas eram as coisas difíceis de suportar, a sede para a maioria de nós era a maior. Quando saíamos do aquartelamento, o cantil ia sempre cheio, mas não era necessário muito tempo para que ficasse vazio. 

Ao chegarmos ao sitio onde passamos a noite já ninguém tinha água, nem sabíamos onde a podíamos encontrar, valeu-nos o chefe da tabanca, que conseguiu um alguidar grande cheio de água onde quem quisesse tinha que beber lá dentro, parecíamos uma manada de animais com a cabeça dentro do alguidar, mas mesmo assim foi a melhor coisa que nos podia ter acontecido naquele momento.

Quando saíamos de Mansambo, durante cinco ou seis quilómetros na frente do pessoal que seguia a pé e das viaturas, iam três ou quatro picadores tentando descobrir alguma mina que pudesse existir na picada, o que nem sempre conseguiam, eram momentos de grande tensão em particular para os condutores, durante esse tempo de picagem, só o condutor seguia na viatura, porque tinha que ser, senão nem ele lá ia… as minas anti-carro eram demolidoras, pobre daquele que tinha o azar de conduzir o veiculo que as accionasse, principalmente se ela rebentasse do lado do motorista.

O aquartelamento de Mansambo, naquele tempo em que a nossa Companhia lá esteve, de Fevereiro de 1972 a fins de Março de 1973, não era considerado muito mau, atendendo ao que acontecia em quase todo o território da Guiné.

Certamente não pensam assim… o Furriel Ferreira, que seguia numa viatura na picada de Candamã que accionou uma mina e ele ficou sem um pé, ou o Silva do 2.º Pelotão que estava para vir de férias dentro poucos dias, e mais outro de quem já me não lembro o nome, que ficaram cada um sem um pé ao accionarem minas anti-pessoal. 

Durante o tempo em que lá estive, só uma vez fomos flagelados à distancia, onde o IN utilizou o morteiro 82, eu e mais cinco condutores estávamos nesse momento com o carro dentro dum grande buraco, que terá sido feito a quando da construção dos abrigos pelas companhias que nos antecederam, a carregar terra para levarmos para a oficina, estávamos a fazer uma pausa e todos a beber uma cerveja, a popular bazuca que era uma cerveja grande, creio ser de seis decilitros, quando ouvimos o som de disparo de um morteiro, uma saída. 

Fizemos alguns segundos de silêncio, e logo ouvimos mais três saídas, estávamos dentro do buraco mas este era demasiado grande, e como tal menos protegidos, saímos em direcção ao abrigo do nosso morteiro 81, que ficava ali próximo, que logo respondeu ao fogo inimigo. Eu fui o ultimo a sair do sitio onde nos encontrávamos, pelo tempo passado depois de termos ouvido a primeira saída, tive um pressentimento que não teria tempo de chegar ao abrigo, voltei para traz e deitei-me dentro do buraco de onde estávamos a tirar a terra, talvez tenha sido essa decisão que me permite estar agora aqui a escrever; uma das primeiras granada a rebentar, foi precisamente no local que nós tínhamos de passar, e eu era o ultimo, provavelmente não teria tempo para alcançar o abrigo, o espaldão do morteiro. Acabado o bombardeamento, ficou apenas o susto, pois não provocou quaisquer danos, a não ser os psicológicos. Quando as coisas acalmaram e fomos ver o local dos rebentamento de algumas granadas que caíram dentro do arame, ficamos assustados com os cortes feitos no chão pelos estilhaços.

No dia seguinte na rádio do PAIGC divulgaram a noticia da flagelação, informando que para além de vários danos provocados nos terem terem destruído um abrigo… Depois desse ataque não mais nos foram visitar, a não ser colocar as terríveis minas… os atiradores faziam saídas apeadas, patrulhamentos, quase todos os dias, nós os condutores, só saíamos quando o serviço de condutor assim o exigia. Para além do nosso serviço de Especialidade, no aquartelamento fazíamos também reforços durante a noite. Até ao fim de Março de 1973, foi assim a minha vida.

Antes no verão de 1972 vim de férias à Metrópole. A viagem de Mansambo até Bissau foi demorada, de coluna até Bambadinca onde estive três dias à espera de transporte, até que tive boleia numa avioneta que me levou até Bissau, de todas as viagens que fiz por via aérea foi a que menos gostei, onde estive mais três dias à espera do voo TAP que me trouxe até à Metrópole, onde passei um mês de férias. Férias… não sei se será a definição correcta, pois mesmo estando cá, o pensamento estava sempre no dia do regresso, que em breve aconteceria a terras de África.

No abrigo dos condutores tínhamos um faxina, era um miúdo da tabanca, que a troco de uns pesos nos ia buscar a comida à cozinha lavava a loiça e varria o abrigo, a quem eu prometi levar uns sapatos quando fosse de férias; durante o tempo em que estive na Metrópole, os meus camaradas mandaram o Serifo embora, para ele a chatice maior não era ir embora, o pior é que o Fireira, como ele me chamava, provavelmente já não lhe dava os sapatos; mas não, assim que cheguei, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos novos, coisa que ele com treze ou catorze anos de idade nunca tinha tido.

No dia seguinte, o Serifo na companhia de mais três meninos da tabanca, com alegria e a felicidade estampada no rosto, vieram levar-me uma galinha, momento que jamais esquecerei, e certamente o Serifo também não, dentro do possível sempre procurei respeitar os nativos como pessoas iguais a todos os demais. Recordo-me de certo dia um grupo de condutores ter tirado um cabrito, que era de alguém de uma tabanca por onde passaram. Fui convidado para ajudar a comer o petisco mas recusei-me a participar. Era para mim uma forma de protestar ainda que em silencio contra um acto com que eu não concordava. Passados alguns dias, o dono do animal queixou-se ao Comandante da Companhia, tendo este ordenado o pagamento do valor do animal a quantos o tinham comido.

Em Mansambo todos os militares tinham uma lavadeira, que a troco de alguns pesos, moeda da Guiné, lavavam-nos a roupa e passavam-na a ferro. A Califa era a menina que me lavava a roupa, tinha só catorze anos, mas já estava vendida a um homem com cerca de quarenta.

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. primeiro poste de 15 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9608: Tabanca Grande (325): António Eduardo Jerónimo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74)

quinta-feira, 15 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9608: Tabanca Grande (325): António Eduardo Jerónimo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano António Eduardo Jerónimo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74:

Sou: António Eduardo Jerónimo Ferreira

Natural e residente em Moleanos, aldeia do concelho de Alcobaça onde nasci a 15 de Maio de 1950. Assentei praça no GCTA (Trem Auto) em Lisboa.

Fui mobilizado no RAP 3 Figueira da Foz para a CART 3493/BART 3873, para a Guiné.

Embarquei no dia 24 de Janeiro de 1972, (fui de avião) e regressei com a minha Companhia a 2 de Abril de 1974.

A minha Especialidade era Condutor (o 1.º Cabo Jerónimo)

Locais por onde andei: Mansambo, breves dias de passagem em Fá Mandinga, Cobumba, e por último Bissau, no Combis.

A primeira coisa que fiz mal comecei a mexer no computador ainda que timidamente, (ainda hoje) foi escrever o que foi o meu tempo de Guiné tendo em vista deixar para memória futura. Por essa altura ainda não conhecia o vosso blogue. Tudo que me lembrei escrevi pelo que te envio esse trabalho de onde podes retirar alguns excertos se assim o entenderes. Não será muito o tempo que tens para ver todo o trabalho, verás se, e quando for possível.

Dentro de poucos dias enviarei as fotos para poder (com muito gosto) fazer parte do vosso grupo.


2. comentário de CV:

Caro camarada António Ferreira, para o Blogue, António Eduardo Ferreira, para não confundir com um marcador já existente, António Ferreira, um camarada que morreu em combate na emboscada de Quirafo de má memória, sê bem-vindo à Tabanca Grande.

O trabalho que nos enviaste está bem desenvolvido e irá ser publicado por capítulos. Era óptimo se pudesses enviar algumas fotos para ilustrar as diversas etapas e acontecimentos que relatas Se puderes, envia porque estamos sempre a tempo de as publicar.

Já que estamos a falar de fotografias, não te esqueças das à civil e militar para encimar os teus postes. Se não as tiveres em tipo passe, manda outras em qualquer formato com tamanho suficiente para eu editar.

O trabalho que temos em mão não invalida o envio de outras histórias de que te venhas a recordar. O nosso espólio é essencialmente composto por narrativas de experiências vividas na primeira pessoa e constituirá um manancial de informação para memória futura.

Antes de publicar a primeira parte do teu trabalho, envio-te em nome da tertúlia e dos editores o tradicional abraço de boas-vindas.

Carlos Vinhal

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O TEMPO QUE NINGUÉM QUERIA (1)

Mobilização e partida para a Guiné

Por António Eduardo Ferreira

Depois de doze meses de tropa na Metrópole, era chegada a minha vez de partir para a guerra, a juntar aos doze já passados foram mais vinte seis e alguns dias na Guiné.

Ao iniciar a descrição do meu tempo de Guiné, espero que a minha memória me ajude, pois passados cerca de 38 anos, é quase certo que algumas coisas tenham caído no esquecimento.

Dia 22 de Janeiro de 1972, pela madrugada fui levar a minha esposa ao hospital do Sitio da Nazaré, (ao tempo a maternidade que dava apoio às parturientes da nossa terra) onde poucas horas depois viria a nascer o nosso primeiro filho, o Paulo.

Ao fim da tarde fui à visita, mesmo sabendo não os voltar a ver nos tempos mais próximos… na hora da despedida disse apenas até amanhã! Embora soubesse que na manhã do dia seguinte haveria de tomar o autocarro até Lisboa a fim de embarcar para a Guiné.

E assim aconteceu, cheguei a Lisboa por volta das 14 horas. Apresentei-me no Depósito Geral de Adidos, onde me foi dito que a nossa partida estava prevista para as cinco horas da madrugada. Como não havia transportes rápidos, como acontece agora, nada mais me restava que não fosse passar esse tempo divagando pela cidade de Lisboa, tentando esquecer, esquecer tudo… creio que por momentos cheguei a esquecer-me que existia!

Fui até à rua Gama Barros, onde tinha umas pessoas de família, estive por lá até próximo da meia noite, como a viagem ia ser feita de avião foi-me pedido por um familiar, para levar dois frangos assados para o irmão que estava a prestar serviço no Hospital Militar de Bissau, estava muito frio, (à hora da partida estavam quatro graus em Lisboa), fiz o trajecto da rua Gama Barros até ao quartel na Calçada da Ajuda a pé, levando comigo apenas os frangos que me tinha comprometido a entregar quando chegasse a Bissau. 

Era meia-noite, mais ou menos a meio da avenida João XXI, estava uma porta aberta de onde saiu um cão «pastor alemão» investindo contra mim, não sei se ele teria vontade de me fazer mal, mas o medo que tive foi muito, quando chegava perto de mim eu parava, ele parava também mas não deixava de ladrar, eu começava a andar ele investia de novo, eu já não sabia que fazer, pensei… e a única maneira que via de me ver livre dele talvez fosse dar-lhe os frangos, mas será que a pessoa com quem me havia comprometido a levá-los ia acreditar nesta verdade que cheirava a mentira?... 

Era natural que deixasse dúvidas, mas à medida que me ia afastando da porta de onde o cão tinha saído, ele voltou para casa, para meu grande alívio e os frangos lá chegaram ao destino.

Cerca das cinco horas da manhã embarquei no avião (creio ter sido um DC6) que me levou até Bissau, tendo antes feito escala em Cabo Verde no então aeroporto dos Espargos na ilha do Sal, viajou no mesmo avião uma enfermeira pára-quedista que eu desconhecia existirem, ignorância minha.

Foi para mim o primeiro grande choque de temperaturas, em Lisboa estavam quatro graus, ao chegar a Cabo Verde estavam trinta, o primeiro aviso que a partir dali tudo ia ser diferente, passado uma hora voltamos a voar até Bissau, onde à tardinha aterramos no aeroporto de Bissalanca.

Ao desembarcar foi para mim a confusão total, uma temperatura elevadíssima para quem horas antes partira de um sítio muito frio, ver os nativos das mais variadas etnias trajando de forma impensável para mim, carregados de amuletos, brincos nas orelhas, arames no nariz, nos braços, outros com a cara pintada… coisa por mim nunca antes vista, e a que eu e alguns menos esclarecidos, atribuíamos a povos primitivos (que dizer agora da nossa juventude!?). Quando saímos do aeroporto estavam à nossa espera viaturas militares que nos levaram para o Depósito Geral de Adidos em Brá, onde eu viria a estar cerca de um mês.

Depois de me ter apresentado no quartel, fui levar os frangos que horas antes tivera na iminência de dar ao cão, a cada minuto que passava, a confusão na minha mente era ainda maior… para além da temperatura, os muitos negros que eu não estava habituado a ver, todo aquele movimento militar que eu também não fazia ideia que fosse assim. Viaturas carregadas de homens com o respectivo material de guerra, entrando e saindo da cidade, os helicópteros subindo e descendo junto ao Hospital Militar, soldados por todo lado, uns, prestando serviço em Bissau, outros que vinham de férias para a cidade, outros ainda para a metrópole, e alguns que se encontravam à espera de embarque para regressar ao mato. E os que tinham a comissão cumprida, e esperavam o dia mais desejado… o do regresso à Metrópole.

Durante cerca de um mês estive neste ambiente sem ter qualquer noticia da terra, com a agravante de não saber nada da minha mulher e do meu filho, que tinham ficado na maternidade e eu apenas tinha visto durante alguns minutos. Depois chegou o dia de partir para o mato onde me fui juntar à minha Companhia, que tinha seguido alguns dias antes por via marítima tendo ido tirar a I.A.O (instrução de adaptação operacional) nos subúrbios de Bissau.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9603: Tabanca Grande (324): Alberto Sardinha, ex-Desempanador Auto da CCS/BCAÇ 1877 (Teixeira Pinto e Bafatá, 1966/67)