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segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24368: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte I: Tempo(s) de Homofobia(s) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

  

Capa do II Volume do documento policopiado "Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), 2008,  inumerado.


1.  O nosso saudoso camarada e amigo Raul Albino (1945-2020), ex-alf mil at inf, MA, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), publicou ainda em vida dois volumes com a história da sua unidade. 

No II Volume, que teve a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro, contou ainda com a participação especial do ex-cmdt da companhia, Vargas Cardoso, e do ex-fur mil SAM, João Bonifácio.  Hoje publicamos um pequeno texto do Vargas Cardoso, ex-cor inf ref, que há dias nos deixou (*). No nosso blogue, o Raul Albino também publicou, no devido tempo, 18 postes com episódios da história da CCAÇ 2402 (**).


O transmissões que era gay...

por Vargas Cardoso 

Durante o período de preparação das unidades que mobilizavam para o Ultramar, quando já tinha conhecimento do teatro de operações do destino, e se preparavam os exercícios finais, que em 1968 se faziam no Continente / Metrópole, apresentavam-se na unidade mobilizadora (no nosso caso, o Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora) os chamados especialistas, ou sejam os elementos do comando da companhia.

De entre os condutores, enferfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, trabsmissões, etc., apresentou-se-me um futuro cabo de transmissões, que durante a habitual entrevista que tive com todos os militares da CCAÇ 2402, me causou alguma preocupação, pois pareceu-me denunciar um comportamento de tipo sexual, à época, bastante anómalo.

Já não me recordo como obtive informações complementares, mas lembro-me que dias depois,  e uma vez confirmadas (em princípio) as minhas suspeitas, falei com o nosso médico, o dr. João Dória (***), manifestando-lhe os meus receios, por estar em vias de embarcar para a Guiné, um militar que iria ter uma actividade muitas vezes sozinho no seu posto de serviço.

Ficou decidido, entre mim e o nosso clínico, conseguir que o rapaz baixasse ao Hospital Militar da Estrela onde foi sujeito ao chamado teste do "prato de farinha" (****). Face às diligências do dr. Dória com os seus colegas do Hospital, chegou-se à conclusão que o rapaz era o que agora se designa por "gay".

Resultado, embarcámos com um militar de transmissões a menos, mas escapámos aos problemas que aquele militar, sendo "doente", nos poderia levantar.

Vargas Cardoso, cor ref 

Excerto de: Parte II - Comando da Companhia, textos de Vargas Cardoso. In: Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), II Volume, 2008, documento em pdf, inumerado.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24363: In Memoriam (478): Mário Vargas Cardoso, cor inf ref (1935-2023), ex-cap inf, CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) e ex-cmdt do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) (João Bonifácio, ex-fur mil SAM, CCAÇ 2402, 1968/70, a viver no Canadá); Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 3547, Contuboel, 1972/74)

(**) Vd. último poste da série > 19  de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) Julgamos tratar-se do dr. João Dória Nóbrega (1934-2021), ginecolista e obstetra.

(****) O "teste da farinha ou  do prato da farinha" era uma prática infamante, homofóbica, que esteve em voga em diversos exércitos, incluindo o brasileiro e, ao que parece, também no português.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18945: Blogues da nossa blogosfera (101): "Dossier de Lutas", de Francisco George: uma pequena grande aventura na pátria de Cabral: Catió, 1983, o avião Dakota, aos comandos do lendário comandante Pombo, que pegou de empurrão...

Francisco Geoge. Foto da
Direção-Geral de Saúde
(Com a devida vénia...)

1. Francisco George é uma figura pública. Durante anos a sua figura carismática entrou pela casa dentro do portugueses, através da televisão, transmitindo segurança, sabedoria, empatia, confiança... 

Foi diretor-geral da Saúde entre 2005 e 2017. Jubilou-se em 31 de outubro de 2017, aos 70 anos, por ter atingido o limite de idade, legal, para exercer funções na administração pública.

É pois da mesma colheita do que eu, ambos nascemos em 1947. Foi meu colega, professor convidado na Escola Nacional de Saúde Pública da NOVA, e colaborador da revista que eu dirigi durante anos, a Revista Portuguesa de Saúde Pública.  Na mesma escola, em 1977, fez o Curso de Saúde Pública , tornando-se especialista em saúde pública. A partir de 1976, foi delegado de saúde, primeiro no concelho da Cuba e depois no concelho de Beja. Foi, de resto, aí que eu o conheci, em finais dos anos 70. A sua casa em Beja era uma verdadeira tertúlia. Tinha (e tem) o gosto de bem receber e era (e é) um notável conversador e contador de histórias. 

Do seu vasto currículo, destaca-se o seu papel, entre 1980 e 1991,  como funcionário da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para além de Bissau e Harare, foi consultor em missões da OMS nos mais diversos pontos do globo (Pequim, Xangai, Brazzaville, Genebra, Rio de Janeiro, Maputo, Praia, São Tomé, Luanda, Bamako, Antananarivo, Maseru e Lusaka). E é aqui que se passa, na Guiné-Bissau, em 1983,  uma das histórias, deliciosas, que ele nos conta na sua página pessoal, "Dossier de Lutas".

Na qualidade de funcionário da OMS, ele fora designado, em  1980, como chefe do projeto Desenvolvimento dos Serviços de Saúde, na República da Guiné-Bissau.  E em 1986 é nomeado representante da OMS  neste país lusófono. Falou sempre da Guiné-Bissau como um grande amigo. É um poço de energia, incapaz de parar. Está hoje à frente da Cruz Vermelha Internacional, desde novembro de 2017.

Aqui fica, com a devida vénia, uma das suas pequenas grandes aventuras, passadas em África: Dossier de lutas > Memórias de África >  O avião que pegou de empurrão – Quinta Aventura.  A história tem a particularidade se passar, em Catió, em 1983, e de envolver também um conhecido nosso, o saudoso comandante Pombo, membro da nossa Tabanca Grande. 

Aproveito paa desejar ao dr. Francisco George muita saúde e longa vida porque ele merece tudo. Cada um de nós foi à sua vida e eu, lamentavelmente, não o pude homenagear, em devido tempo, quer na Direção-Geral de Saúde quer na Escola Nacional de Saúde Pública da NOVA. Aqui fica também esta pequena manifestação do  nosso apreço e amizade, na qualidade de editores do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 


2. Memórias de África > O avião que pegou de empurrão: quinta aventura

por Francisco George

Em 1983 as dificuldades nas ligações entre as várias regiões da Guiné-Bissau eram, ainda, imensas. Ir de uma localidade a outra impunha, quase sempre, cuidadosa e justificada preparação. O clima ditava escolhas e condicionava a programação, sobretudo no que se referia à estimativa de horas necessárias para as viagens.

Ora, como no início da estação das chuvas daquele ano, estavam previstas iniciativas de avaliação do Programa de Vacinação que decorria no Sul, era preciso planear meticulosamente o trabalho de campo e escolher os transportes mais apropriados.

Na Guiné Independente, o primeiro Governo do PAIGC tinha criado uma pista em Catió para os aviões da companhia aérea guineense poderem aterrar em regime de escala, nos voos regulares entre Bissau e Conacry. A construção do “aeroporto” tinha sido uma espécie de homenagem às populações das tabancas de Tombali que tinham participado na Luta. Era considerada uma medida para reduzir os efeitos do isolamento. A pista, rudimentar, sem torre nem comunicações, não dispunha mesmo de qualquer abrigo a imitar uma aerogare.

O espectáculo era sempre constante: o avião Dakota  aterrava depois de sobrevoar a pista para afastar o gado. Logo a seguir uns passageiros saíam, enquanto outros esperavam junto a uma balança colocada à entrada do porão a fim de pesarem as respetivas bagagens. Mais à frente, alinhava-se a fila de espera para o embarque na aeronave.

Quando acabou a visita de avaliação, acompanhado pela minha Colega pediatra, Clotilde Silva, no final de uma semana fora de casa, fomos ao encontro do voo que em meia-hora ligava Catió a Bissau. Os nossos bilhetes tinham sido previamente adquiridos e os lugares estavam garantidos. Já no local reservado ao embarque, surgiu, à hora prevista, o avião que viria a aterrar sem animais na pista.

aos comandos do seu Cessna  dos TAGP, c. 1972/74 
(Foto de Álvaro Basto, 2008)
Passados os habituais procedimentos, entrei no avião pela escada da frente que dava acesso ao
corredor central. Ao todo seriam cerca de 50 passageiros que completavam a lotação. Ocupei o meu lugar ao lado da minha Colega, ansioso por voltar a casa. Já com a porta fechada, o Comandante Pombo e o co-piloto tentavam, sem sucesso, ligar o motor do Dakota As hélices permaneciam teimosamente paradas. A ignição não funcionava. É então que o Comandante se levanta e pede a alguns passageiros para saírem e empurrarem o avião (tal como se faz aos automóveis quando a bateria falha). Lá fui com mais cinco. Imediatamente depois dos primeiros metros do empurrão, o motor pegou sem outros aparentes problemas.

Voltamos a entrar e já de novo com a porta fechada, a minha Colega vira-se para mim e com assinalável espanto perguntou-me:
– Francisco, tu vais? Viajas para Bissau num avião que pegou de empurrão?
– Eu cá não, respondeu ela com firmeza.

Sem a demover, expliquei que eu iria ver a família, uma vez que estavam à minha espera e que uma semana longe de casa era muito tempo. Disse-lhe, também, que por terra a viagem era muito longa e ainda mais arriscada, mesmo em jeep.

Imediatamente depois das minhas palavras, Clotilde saiu do avião. Quando cheguei a casa, relatei, com emoção, a aventura à família. Nessa mesma noite, durante um convívio de cooperantes Portugueses, voltei à mesma história que provocou rasgados risos. Mas, para meu espanto, ninguém acreditou…

Francisco George
Verão, 2013
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Nota do Editor:

Último poste da série > 19 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18937: Blogues da nossa blogosfera (100): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (19): Palavras e poesia

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15631: Blogues da nossa blogosfera (72): Uma aventura em África: em 14 de novembro de 1980, eu estava em Bissau... Depois do jantar, no Hotel 24 de Setembro, fui surpreendido pelo golpe de Estado do 'Nino' Vieira (Francisco George, antigo represente da OMS - Organização Mundial da Saúde na Guiné-Bissau)

1. O dr. Francisco George é uma figura pública, enquanto diretor-geral de saúde (*), e como tal conhecido da generalidade dos portugueses, pelas suas amiudadas intervenções na comunicação social e, em especial, na televisão. 

O que é menos sabido a seu respeito é a sua forte ligação à Guiné-Bissau e o seu grande carinho pelo povo guineense. O Francisco George, meu colega e amigo da saúde pública, é também um grande contador de histórias. Conheci-o em Beja, depois do seu regresso de África, no início da década de 1990. Tem uma página na Net, "Dossier de Lutas", que merece uma visita.  Foi de lá, e esperando contar com a sua compreensão e benevolência, que retirei esta história: acho que os amigos e camaradas da Guiné vão gostar de a ler e comentar... Eu depois peço-lhe a devida autorização... e dou-lhe o nosso "feedback" (**). (LG)




Em 1980 fui colocado em Bissau, no âmbito do recrutamento como novo membro do staff da OMS, depois de terminados os procedimentos administrativos e de informação técnica na Sede Regional em Brazzaville.

A chegada à Guiné-Bissau foi tranquila. O escritório da OMS tinha como Representante o médico de nacionalidade espanhola Garcia Morilla. A correspondência quer com Genebra quer com Brazzaville era assegurada pelo serviço semanal de Mala Diplomática. Para além disso, só telegramas através dos Correios garantiam ligações rápidas, uma vez que, na altura, não se podia contar com telefones.

Garcia Morilla estava muito perto de atingir a idade da aposentação,  que era de 62 anos. O calendário de folhas soltas em cima da sua secretária tinha a enumeração decrescente até ao seu último dia de trabalho. Quando o encontrei pela primeira vez faltavam 421 dias, no dia a seguir diminuiu para 420, depois 419 e assim por diante. Invariavelmente, todos os dias pela manhã, mostrava-me a folha correspondente com assinalável satisfação ao verificar que a distância ia ficando cada vez mais encurtada. Ausentava-se com frequência para se deslocar a Cabo Verde, visto que a Representação assegurava a cobertura dos dois Estados, politicamente ligados desde o tempo da Luta de Libertação conduzida pelo PAIGC.

O dia 14 de Novembro de 1980 foi igual aos anteriores até à hora do jantar. Depois, foi bem diferente como se verá. Julgo que Morilla estaria em Cabo Verde.

Como habitualmente, jantei no “Hotel 24 de Setembro” (antiga messe de oficiais do Quartel General do tempo colonial). Muitos cooperantes, mesmo os que não ficavam nem jantavam no Hotel, concentravam-se na magnífica esplanada a fim de tomarem café ao ar livre e, sobretudo,  para a conversa. Discutiam-se temas sobre o desenvolvimento, sobre política Africana e, naturalmente, sobre Portugal da AD de Sá Carneiro.

Ora, pelas nove da noite, repentinamente, ouvem-se uns ruídos, percebem-se correrias, pessoas espantadas, muito assustadas e, de forma inesperada, surgem grupos de militares rebeldes que montam uma metralhadora pesada no centro da esplanada. Logo de seguida, o Comandante dá ordem para todos levantarem as mãos. Momentos depois estavam todos os guineenses e cooperantes, incluindo eu, com mãos ao alto, surpreendidos, sem sabermos o que se seguia.

Todos nós compreendemos, rapidamente, que eram manobras integradas num golpe para derrubar o Presidente Luís Cabral. No meio deste cenário, surge o gerente do hotel a pedir ao chefe dos revoltosos para os clientes pagarem as respectivas contas. É então que é dada nova ordem: “Todos pagam primeiro as dívidas do café e logo depois voltam a levantar as mãos”…

A situação, apesar de caricata, foi apagada pelo medo generalizado. Medo misturado com a esperança de um futuro melhor.

Era o Movimento de Nino Vieira. Afinal, o grande herói da Luta que todos admiravam e respeitavam. A confiança era imensa. Julgavam que a pobreza podia ser combatida como Nino fizera contra o exército de Spínola. Era agora que o País iria para a frente, pensaram muitos.

Voltando à esplanada. Depois das contas pagas, todos ergueram de novo os braços. Cerca de meia hora depois, os soldados rebeldes às ordens de Nino Vieira mandam todos para os quartos. Acontece que muitos dos que ali estavam não tinham alojamento no hotel. Era essa, aliás, a minha situação. Olhei em redor para ver se conhecia alguém. Resolvi, então, pedir a um cooperante português que me deixasse ficar no quarto dele. Nada levava comigo. Já no quarto do António Manuel Reis, que eu acabara de conhecer, resolvemos proteger as janelas com almofadas. Durante a noite os sons de tiros de canhão que tudo faziam estremecer, aumentavam a nossa ansiedade.

A manhã seguinte foi, pelo contrário, de alegria generalizada perante a confirmação do sucesso da operação rebelde. Luís Cabral, deposto e expulso, deu lugar a um Conselho da Revolução. O próprio Nino Vieira apresentou os membros do Conselho num grande comício que promoveu na Praça do Império cinco dias depois. Assisti a esta manifestação, genuinamente popular, a lembrar-me do nosso Primeiro de Maio em 1974.

Hoje, trinta anos passados, temos que reconhecer, a construção de um Estado de Direito, regido por princípios democráticos, é um processo ainda inacabado.

Francisco George
Verão de 2011


Guiné-Bissau > Bissau  > 2010 > Hotel Azalai > "Foi piscina dos oficiais, dos hóspedes do Hotel 24 de Setembro, aparece agora retocada para a inauguração do Hotel Azalai. Tem beleza e quem organizou este espaço foi feliz com o traçado do meio envolvente." (Foto e legenda de Mário Beja Santos, aqui).


Foto (e legenda); © Mário Beja Santos (2010). Todos os direitos reservados

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Notas do editor:



Francisco George. Foto: Cortesia
de Direção Geral de Saúde

(i) nasceu em Lisboa, em 1947;

(ii) licenciado em Medicina (1973);

(iii) diplomado com  o Curso de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (Lisboa) (1977);

(iv) especialista em saúde pública, foi delegado de saúde a partir de 1976 (em Cuba e depois Beja);
 (v) funcionário da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 1980 e 1991;

(vi) para além de Bissau e Harare, foi consultor em missões da OMS nas mais diversas partes do mundo (Pequim, Xangai, Brazzaville, Genebra, Rio de Janeiro, Maputo, Praia, São Tomé, Luanda, Bamako, Antananarivo, Maseru e Lusaka);

(vii) ainda no âmbito da OMS, foi designado: chefe do projecto da OMS para o desenvolvimento dos serviços de saúde, na República da Guiné-Bissau (1980); representante da OMS na República da Guiné-Bissau (1986); epidemiologista do Programa Mundial de Luta Contra a SIDA da OMS (coordenador deste programa na África Austral) (1990):

(viii) tendo regressado à carreira nacional de saúde púiblica,   é chefe de serviço de saúde pública desde 1992;

(ix) nomeado subdirector-geral da saúde em 2001 e reconduzido em 2004;

(x) nomeado director-Geral da Saúde, em 2005, cargo que mantém até hoje;   

(xi) é professor auxiliar convidado da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL);

(xii)  foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique, Grande-Oficial, pelo Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio (2006).

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13807: A propósito de paludismo... Ou melhor, do sezonismo, que era o termo que tradicionalmente se usava entre nós, na metrópole, até finais dos anos 60 (Parte II) (Luís Graça)... Relembrando aqui o papel do Instituto de Malariologia e do prof Francisco Cambournac (1903-1994), um português do mundo, que foi diretor da OMS - África, entre 1954 e 1964










Reprodução de um precioso folheto da DGS - Direção Geral de Saúide, do ínício dos anos 70, guardado pelo nosso camarada António Tavares [ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912,Galomaro, 1970/72]... 


Repare-se no averbamento, na capa, do nº do processo individual (155/4/72) do António Tavares,  na subdelegação de saúde de Gondomar, nos Serviços de Higiene Rural e Defesa Anti-Sezonática (sic), criados em 1938...

Em março de 1972, o Tavares regressou da Guiné e em abril terá tido uma crise aguda de paludismo, o que o levou a consultar aqueles serviços de saúde (*). Vou mandar uma cópia para o Museu da Saúde do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, que são meus vizinhos e amigos.

Um outro pormenor interessante é a correspondência em língua francesa, a vermelho, das expressões "Defesa anti-sezonática" ("Servives antipaludiques", serviços antipalúdicos) e "Assistência aos Imigrantes" ("Vigilance antiparasitaire",  vigilância antiparasitária). (LG).

Fotos ©: António Tavares (2014). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


1. Regiões onde se produz arroz, em particular na  bacia hidrográfica do Sado e do Tejo, como o vale do Sado (Alcácer do Sal), no Alentejo, ou o Vale do Sorraio (Corucbe), já no Ribatejo,  sempre foram muito palúdicas, e como tal pouco propícias  à fixação de populações. Daí o recurso à mão de obra escrava, africana, que se adaptava melhor melhor às águas estagnadas, à dureza das condições  do trabalho nos campos de arroz, e que sobretudo resistia melhor às picadas da Anapholes e às temíveis sezões.

O que é feito destes africanos ? Misturaram-se na população, sendo o fenótipo africano ainda hoje visível nas populações sobretudo da Ribeira do Sado. Atente-se na letra  de uma canção, do cancioneiro popular de Alcácer do Sal, que é também uma homenagem, inesperada, às... bajudas da Guiné que por cá ficaram na leva dos escravos...

(...) Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta.
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.

Quem quiser ver moças
Da cor do carvão
Vá dar um passeio
Até São Romão. (..:)


Serve este preâmbulo para se falar do paludismo (ou , melhor, sezonismo) (*), endémico em Portugal, até tarde (para lá de meados do séc. XX) e fazer aqui uma homenagem à saúde pública e a um homem que foi o primeiro diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (, morreu em 1994, mas não o cheguei a conhecer pessoalmente). E, além disso, diretor da OMS- África (1954-1964)... Quem já tinha ouvido falar dele ? É um português ilustre que merece ser aqui recordado, sobretudo pelo seu contributo para a erradicação da malária em Portugal e em África.

2. O Instituto de Malariologia e o papel pioneiro do prof Francisco Cambournac (Sintra, Rio de Mouro, 26/12/1903 - Lisboa, 8/6/1994)

Eis um bre ve resumo do seu currículo profissional:

(i) Médico epidemiologista e tropicalista, Francisco José Carrasqueiro Cambournac (1903-1994) destacou-se sobretudo no campo da malariologia, área em que deu um grande contributo à medicina portuguesa e á saúde pública; formou-se em medicina em 1929;

(ii) foi membro-fundador e diretor do Instituto de Malariologia de Águas de Moura (1939-1954), sito do concelho de Palmela;

(iii) esteve nas colónias portugueses nos anos 40 em várias missões médicas; foi também  director da OMS África  (Organização Mundial da Saúde para a região africana),  durante dez anos, entre 1954 e 1964;

(iv) recebeu, em 1978, o Prémio Léon Bernard (, prémio esse que foi criada, em 1937, pela antiga Sociedade das Nações Unidas para premiar trabalhos no domínio da Saúde Pública); em reconhecimento pela sua vida e obra dedicada à medicina tropical, com mais de 170 ensaios sobre epidemiologia, parasitologia, entomologia, saúde pública, nutrição, saúde educacional, malária, doença do sono, febre amarela, entre outras áreas;

(v) começou, em 1931,  a sua carreira no campo da medicina tropical, em geral, e da mariologia, em particular,  médico auxiliar da Estação Experimental de Combate ao Sezonismo de Benavente; posteriormente daria seguimento aos seus trabalhos na Estação Anti-sezonática de Alcácer do Sal;

(vi) Em 1933, como director do laboratório instalado na Estação de Benavente, Cambournac participou no Inquérito para determinação das zonas de endemia sezonática, suas características e estabelecimento de um plano de combate que a Direcção-Geral da Saúde (DGS)  em colaboração com a Fundação Rockefeller realizou em todo o continente português;

(vii)  e convidado a  ingressar na Fundação como dirtor de campo de uma unidade de investigação sobre sezonismo que se previa criar em Portugal, tendo a partir de Março de 1934 iniciado os seus estudos na «Estação para o Estudo do Sezonismo», acabada de fundar pela Fundação Rockeller   em Águas de Moura;

(viii) em 1937, é responsável pela fiscalização sanitária das obras a cargo da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola; a  sua actividade fica ligada sobretudo à defesa e profilaxia anti-malárica;

(ix) integra, ainda em 1937,  a comissão responsável pela elaboração das bases para a nova Lei sobre a cultura do arroz, onde colaborou no estudo de todas as regiões orizícolas de Portugal numa perspectiva higiénico-sanitário e agrícola;

(x) presentou as bases para a organização dos Serviços Anti-Sezonáticos (posteriormente criados sob a direcção de Fausto Landeiro) e pronuncia-se sobre o diploma que regulava a cultura do arroz sob o aspecto higiénico-sanitário;

(xi) em 1938 representa Portugal no III Congresso de Medicina Tropical e Malária, que teve lugar em Amesterdão;

(xii) ainda em 1938,  a Fundação Rockefeller (, a conhecida ONG norte-americana, criada em 193 pelo magnata do petróleo John Rockefeller),  em colaboração com a DGS,  constroi em Águas de Moura o Instituto de Malariologia, para substituição da Estação para o Estudo do Sezonismo; a nova institituição dedicada à investigação e ao ensino da malariologia, é dirigida por Roll Hill, tendo Cambournac como  diretor adjunto;

(xiii) em dezembro de 1939, é nomeado diretor do Instituto de Malariologia, pela Fundação e por despacho do Ministro do Interior (que tutelava a área da saúde), alcançando assim um lugar de prestígio no âmbito da investigação e do ensino da malariologia.

(xiv) é no novo Instituto que se realizam numerosos estudos sobre a distribuição dos Anopheles (, os mosquitos vectores da malária, ) e da endemia sezonática em todo o país, bem como estudos sobre a epidemiologia da malária, os quais contribuíram para a erradicação da malária em Portugal;

(xv) é sobretudo a a partir do trabalho de Francisco Cambournac publicado em 1942, sobre a epidemiologia no sezonismo em Portugal, que se desenhou o plano da campanha anti-malárica que levou à erradicação da doença;

(xvi) o seu  nome está  igualmente ligado à erradicação do paludismo em Cabo Verde; (também, ia comn frequência à Guiné-Bissau, segundo o testemunho de Francisco George que com ele privou);

(xvii) ainda no campo das doenças infecciosas, Cambournac efectuou estudos sobre a epidemiologia da febre amarela, da oncocercose, da cólera, e de uma maneira geral das grandes endemias tropicais (de que é exemplo a criação e direção da Missão de Prospecção de Endemias em Angola, posteriormente transformada em Instituto de Investigação Médica);

(xviii) é nomeado, por convite, como primeiro consultor da OMS para o continente africano, tendo sido responsável pela primeira conferência que a OMS realizou em África, em 1950;

(xix) nessa qualidade, prepara o primeiro relatório da OMS sobre o paludismo no continente africano (" Le Paludisme en Afrique Equatoriale") [, versão em inglês, disponível aqui];

(xx) em 1946, representa Portugal na Conferência Internacional de Saúde realizada em Nova Iorque pela Organização das Nações Unidas (ONU);

(xxi) é o o primeiro português a participar numa reunião da ONU e tem um papel ativo na criação da OMS (1948);

(xxii) a partir de 1954, e durante 10 anos, exerceu o cargo de diretor regional da OMS para África;

(xxiii) em 1942, iniciou funções no Instituto de Medicina Tropical, como professor auxiliar da cadeira Higiene, Climatologia e Geografia Médica; passa a ser professor titular da cadeira em 1944;

(xxiv) em 1964, é nomeado director do Instituto de Medicina Tropical;

(xxv) presidiu à comissão responsável pela organização da Escola Nacional de Saúde Pública e de Medicina Tropical, que dirigiu entre 1967 e 1972.


Fonte: Adapt com a devida vénia de INSA > Quem somos > Francisco Cambournac


Francisco Cambournac (1903-1994)
3. Ver aqui o testemunho do Francisco George (n. 1947, atual diretor.geral de saúde,  ele próprio funcionário da OMS, entre 1980 e 1991, tendo estado na Guiné em 1986 em representação da OMS), sobre este médico português que conseguiu ser, por mérito próprio,  diretor da OMS - África, numa época (1954-1964) de grande hostilidade para com Portugal e a sua "política ultramarina":

(...) Infelizmente, Francisco Cambournac não era muito conhecido em Portugal. Fenómeno quase incompreensível quando comparado com a notoriedade que outros colegas seus adquiriram na mesma época. Um dia, a título de justificação, sua Filha, Graça Cambournac, explicou-me que Salazar não gostava dele porque os princípios que guiaram a sua acção como Director em África eram distantes da política colonial do regime. Aliás, a segunda vez que Cambournac foi eleito para director regional da OMS (sublinho eleito pelos países africanos) recebeu os votos dos novos Estados que recentemente tinham conquistado a independência. (..,)

(...) "Uma outra altura, ao jantar, também em Bissau, Cambournac contou-me que a seguir à II Grande Guerra, logo depois da Organização Mundial da Saúde ter sido criada em 1948, foi incumbido de preparar um relatório para propor uma capital Africana para acolher a instalação da sede regional da OMS. Descrevia com detalhe e com visível orgulho esta sua missão. No final das visitas efectuadas, apontou Brazzaville, no antigo Congo Francês, porque concluiu que era a cidade com padrão de vida mais humanista onde não existiam sinais chocantes de apartheid, ao contrário, por exemplo, de outras grandes cidades anglófonas como Nairobi. O seu relatório foi decisivo na opção de Brazzaville. A Sede foi, então, instalada no alto de uma colina nos arredores da cidade, no Haut de Joué. As antigas casas que tinham sido projectadas para residência dos engenheiros da barragem que ali os franceses construíram, foram adequadamente adaptadas e aproveitadas. Ainda bem que assim aconteceu, não só pelas boas infra-estruturas, mas, sobretudo, pela vista panorâmica deslumbrante sobre os rápidos do imenso rio Congo".(...)

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Nota do editor:

(*) Vd. I Parte do psote > 27 de outubro de  2014 > Guiné 63/74 . P13804: A propósito de paludismo... Ou melhor, do sezonismo, que era o termo que tradicionalmente se usava entre nós, na metrópole, até finais dos anos 60 (Parte I) (Luís Graça)

Vd. também Mónica Saavedra, « Malária, mosquitos e ruralidade no Portugal do século XX », Etnográfica [Online], vol. 17 (1) | 2013, posto online no dia 13 Março 2013, consultado no dia 27 Outubro 2014. URL : http://etnografica.revues.org/2545 ; DOI : 10.4000/etnografica.2545

(...) Este artigo centra-se nas memórias de antigos trabalhadores rurais sobre “ter malária”. Parte-se das descrições da experiência física da doença e sua relação com as práticas quotidianas, particularmente as relacionadas com o trabalho, para uma análise sobre multiplicidade e complexidade das definições da malária. Pretende-se realçar a dimensão sociopolítica desta doença, subjacente às memórias recolhidas, bem como o caráter circunstancial, adaptável e pragmático das práticas envolvidas.(...)

(...) Este artigo é parte de uma tese de doutoramento (Saavedra 2010).

(...) O termo “sezões” era, até ao desaparecimento da malária em Portugal, na segunda metade do século XX, a designação popular para esta doença.

(...) A designação “antissezonáticos”, oficialmente atribuída aos serviços dedicados ao tratamento e controlo da malária, resultou da palavra “sezonismo”, adotada por Ricardo Jorge, cerca de 1903, como a melhor para nomear a malária (IGSS 1903) (...)