Mostrar mensagens com a etiqueta Op Lança Afiada. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Op Lança Afiada. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23979: Notas de leitura (1542): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Muito se tem discutido os resultados da Operação Tridente, os ensinamentos que trouxe para responder em termos de contra-guerrilha, etc. É facto que Spínola entendeu que o destacamento do Cachil para nada servia, mas observando a evolução da guerra, a região do Como tinha perdido pertinência, através da República da Guiné encontraram-se corredores e, mais tarde, o Senegal passou a autorizar a passagem de pessoas e bens por toda a fronteira norte, o PAIGC sabia de antemão que não se podia implantar nos Bijagós. Aqui se descreve o papel da FAP na Operação Tridente, os elementos indicados pelos autores comprovam que os dados historiográficos já existentes são sólidos, o que verdadeiramente permanece na penumbra é como Louro de Sousa, e depois Schulz e mais tarde Spínola entendiam o uso de grandes meios e durante um lapso apreciável de tempo. Recordo que houve uma operação que demorou 12 dias, a Lança Afiada (1969), que visava entrar nas bases criadas pelo PAIGC desde 1963 nas margens do Corubal, abaixo da Ponta do Inglês. Foi um fiasco completo, o uso de tantos meios deu tempo a que o PAIGC transferisse o seu potencial armamentista para a outra margem do rio, levaram a população e os alimentos, as nossas tropas encontraram uns velhinhos e canhangulos. Enfim, tanto barulho para nada.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Percorremos já um longo percurso (esta recensão já abrangeu mais de metade da obra), os investigadores socorrem-se de um processo diacrónico, atravessam toda a cronologia de acontecimentos internacionais e nacionais que se prendem com o fenómeno da descolonização africana e como este afetou a Guiné; depois dão-nos o quadro dos meios aéreos existentes, no início da década de 1960 e a sua evolução até ao desencadear da guerra, a adaptação de infraestruturas (nomeadamente Bissalanca, Cufar e Gabu), o aperfeiçoamento na formação dos pilotos, etc. Estamos exatamente num momento em que os autores abordam os comportamentos militares dos primeiros comandantes-chefes e as aquisições efetuadas, designadamente na Europa Ocidental. E vamos imergir na Operação Tridente e avançar para o primeiro período da governação Schulz.

No que toca à Operação Tridente, a atividade aérea iniciou-se, tal como acordado, em 14 de janeiro, um Auster lançou folhetos sobre a ilha de Como e Caiar, mais tarde, no mesmo dia, os T-6 dispararam foguetes de 37 mm contra canoas perto de Curco, no Como, e em Poilão de Cinza, uma ilha costeira próxima, enquanto os P2V-5 bombardeavam embarcações e a aldeia de Catabão Segundo, destruindo estruturas do PAIGC. Na sequência destas atividades aéreas, iniciou-se a intervenção por grupos, tropa do BCAV n.º 490 e fuzileiros que desembarcaram em Caiar e Como, não encontraram resistência e iniciaram a sua marcha para norte, os desembarques foram progredindo, as forças portuguesas chegaram às aldeias de Caiar e Cauane, estamos já a 16 de janeiro, começou a resistência do PAIGC procurando retardar a progressão das forças portuguesas, um terreno difícil, com uma floresta quase impenetrável, pântanos e tarrafe. Para apoiar esta progressão, entraram em ação os F-86, isto já em 18 de janeiro, metralhando e bombardeando a floresta e a povoação de Cachil no norte do Como; seguiram-se ataques de P2V-5 na noite de 25 de janeiro; a FAP usou napalm pela primeira vez em 29 de janeiro durante um ataque de F-86 contra a Mara de Cassacá e a povoação de S. Nicolau, mas rapidamente se descobriu que o napalm era uma arma inapropriada contra alvos em áreas densamente florestadas, como veio a reconhecer o comandante da ZACVG, Coronel Francisco Delgado, no relatório que elaborou.

Havia uma necessidade imperiosa de continuar a progressão e usar material bélico apropriado. O governador da Guiné, Comandante Vasco Rodrigues, ex-aviador naval, ajudou a conceber uma solução inovadora, os C-47 lançaram cargas de profundidade antissubmarinas, depois dos técnicos terem substituídos os detonadores por cargas de demolição subaquáticas. Em 1 de fevereiro, um C-47 lançou duas bombas de profundidade de 350 quilos sobre o Como e no dia 21, houve novo ataque descarregando bombas em Curco e na mata adjacente. Durante esta segunda missão, o bombardeiro improvisado foi atingido por fogo de superfície, mas regressou a Bissalanca com danos mínimos. O uso destas bombas improvisadas teria causado poucas baixas no PAIGC, mas as suas detonações massivas terão tido certamente um efeito psicológico desmoralizador no inimigo. O mesmo foi dito sobre os P2V-5, que voltaram à ação na noite de 28 de fevereiro bombardeando a Mata de Cassacá e a povoação de Catabão Segundo, seguido de uma incursão de Neptune à luz do dia no dia seguinte. Foram detonações tão fortes que tremeu o chão onde estávamos, como explicou o então comandante de fuzileiros. Apertou-se o cerco ao redor do produto da guerrilha, combinado com o assédio aéreo implacável, e daí a carta escrita por Nino a pedir reforços em termos frenéticos a outros comandantes da guerrilha. Finalmente, a resistência da guerrilha quebrou; à medida que se avançava em março, as forças portuguesas verificavam que havia menos contactos hostis. Quando a Operação Tridente terminou, em 24 de março, o PAIGC tinha retirado a sua última organização, deixando atrás as suas bases destruídas, tinham abandonado a sua estrutura de apoio militar e logístico para aquela região. Os pilotos da FAP registaram 1105 horas de voo em apoio à Operação Tridente. O ritmo das operações aéreas foi mais intenso durantes as fases iniciais da ofensiva. Durante os 71 dias da operação, houve 781 surtidas, transportaram-se cerda 1500 militares, dispararam-se 710 foguetes, lançaram-se 356 bombas e 40 mil cartuchos.

Obviamente que ocorreram importantes gastos, sobretudo nos helicópteros, registaram-se faltas de pneus e munição, a disponibilidade dos F-86 caiu para metade, dois Sabre ficaram parados por falta de peças sobressalentes. A operacionalidade dos meios aéreos foi crucial para apoiar a ofensiva terrestre, não se podiam usar viaturas no terreno e inicialmente o PAIGC tinha controlo nas vias navegáveis dos canais. O abastecimento das nossas tropas teve momentos críticos, houve mesmo aconselhamento de colher arroz nas ilhas e abater o gado local; as tropas também foram obrigadas a cavar poços para beber água, uma água salobra que levou a bastantes militares ficarem incapaz de combater, tiveram de ser evacuados quase um quinto das tropas terrestres. Na hora do balanço, as nossas tropas tiveram 47 feridos, 9 mortos, um total de 6 aeronaves foram atingidas pelo fogo do PAIGC. Embora a propaganda do PAIGC declarasse que tinha abatido 3 aviões portugueses, a única perda ocorreu no dia 23 de janeiro quando um T-6 pilotado pelo Alferes João Manuel Pité foi abatido perto de Cauane; os seus restos mortais carbonizados foram recuperados pelo mesmo pessoal que ele tinha estado a apoiar. Um outro piloto da FAP, Frederico Manuel de Machado Vidal morreu em 24 de fevereiro atingido na cabeça. O seu observador, o Sargento Pinto da Rocha – felizmente ele também aviador – teve que retirar o cadáver do piloto para operar a aeronave até aterrar em Bissalanca.

Apesar das perdas, a Operação Tridente foi inicialmente considerada um sucesso. O PAIGC teve que se retirar de uma das suas regiões onde estava mais ativo, perdeu 76 combatentes, teve 15 feridos e 9 prisioneiros; a captura de um guerrilheiro permitiu informações valiosas. No longo prazo, a Operação Tridente foi classificada a mais ingrata em toda a guerra colonial, um sacrifício inútil. Instalou-se um destacamento em Cachil, e a partir do verão de 1964, o PAIGC retomou as flagelações. O novo Governador e Comandante-Chefe, Spínola, ordenou a retirada da guarnição portuguesa, deixando aquela região abandonada, e o PAIGC propagandeou-a como zona libertada – transformou uma derrota tática em vitória estratégica.

No auge da batalha do Como, Amílcar Cabral reuniu 60 dos seus dirigentes militares e políticos para uma reunião que rapidamente se transformou em congresso, isto em território continental, em Cassacá, a poucos quilómetros do teatro de operações. Cabral e os outros dirigentes de topo estavam plenamente informados de graves irregularidades cometidas por alguns comandantes militares, havia mesmo fenómenos de tribalismo, foram denunciados crimes abomináveis e fugas de pessoas das zonas libertadas que viviam em estado de terror.

A reunião-congresso de Cassacá durou 7 dias, começou a 13 de fevereiro; foram adotadas medidas de longo alcance para procurar restaurar a unidade e a disciplina do partido; os dissidentes foram drasticamente punidos, entregues a tribunais populares, alguns deles foram executados, assim como aqueles que resistiram à prisão. Cabral impôs a primazia da política sobre as considerações militares, deu-se início à reorganização das Forças Armadas Revolucionárias do Povo – FARP, assente em três pilares, o Exército Popular, a Guerrilha Popular e a Milícia Popular. Criaram-se quadros militares especiais a pensar nas armas pesadas e nos canhões antiaéreos. Para garantir a disciplina política, Cabral fez aprovar uma estrutura de comando duplo, um oficial sénior das FARP exercia o controlo geral das operações de combate enquanto um oficial político assegurava que as atividades militares estavam em concordância com a estratégia delineada pela liderança do PAIGC.

Com a atenção concentrada nas operações do Como, naqueles primeiros três meses de 1965, o PAIGC aproveitou para se implantar no Morés, o que iria complicar as atividades operacionais portuguesas, a área controlava o tráfego rodoviário e fluvial no norte e oeste da Guiné. Não se deu pausa a esta implantação no Morés, a FAP teve presente, houve danos num Alouette II. De 22 a 26 de abril, decorreu a Operação Alvor, uma operação anfíbia na Península de Gampará, a FAP interveio, a operação foi bem-sucedida, limpou-se provisoriamente a península, fizeram-se 13 prisioneiros e estimaram-se 50 baixas. Alvor seria a última operação sob o comando do brigadeiro Louro de Sousa. No dia 21 de maio, o brigadeiro Arnaldo Schulz assumiu as funções de governador e comandante-chefe, considerado a quintessência da linha dura, chegou à Guiné proclamando que vinha vencer a guerra em seis meses, trazia a convicção de que seriam suficientes para tal tarefa mais homens e mais poder de fogo.

Um helicóptero da FAP operando num barco durante a Operação Tridente (Arquivo Histórico da Marinha)
Meios anfíbios usados na Ilha do Como (Arquivo Histórico da Marinha)
Aproximação da Ilha do Como, 15 de janeiro (Arquivo Histórico da Marinha)
Forças portuguesas preparam assalto à tabanca de S. Nicolau (janeiro (Arquivo Histórico da Marinha)
Uma imagem que mostra as dificuldades sentidas na Operação Tridente (Coleção Armor Pires Mota)
Uma imagem do Congresso de Cassacá, à esquerda de Amílcar Cabral está Nino Vieira, o comandante da frente Sul (Coleção Albert Grandolini)
Um destacamento das FARP, equipado com morteiros 60 mm chineses (Coleção Albert Grandolini)
Operações do PAIGC na região do Morés, janeiro-fevereiro de 1964 (Matthew M. Hurley)

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23965: Notas de leitura (1541): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23609: (D)o outro lado do combate (68): os "Armazéns do Povo", mito ou realidade ?


Guiné ou Guiné-Conacri > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça ou mais provavelmente já em teritório da Guiné-Conacri > Visita de uma delegação escandinava às "áreas libertadas" > Novembro de 1970 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné- Conacri, de cerca de 40 camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de retirada de Guileje, por parte das NT, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá da fronteira, utilizando o corredor de Guileje... 

O "grande celeiro do sul" abastecia de arroz as populações sob controlo do PAIGC; os excedentes eram exportados, nomeadamente para a região norte. Havia uma rede de "Armazéns do Povo" que ia de Conacri até ao interior das "áreas libertadas" (o seu número não ultrapassaria as escassas duas dezenas, desde 1964 a 1974). Essa rede, mal ou bem, funcionava e terá permitido o desenvolvimento de uma "economia de guerra"  de que muitos de nós, antigos combatentes portugueses, não fazia a mínima ideia...

Até ao fim da guerra, e pelos dados disponíveis (*), provenientes do próprio rgime, não haveria mais do que duas dezenas de "armazéns do povo" nas "áreas libertadas" (desconhece-se a sua locaização), para por volta de 1978 atingirem já um total de  de 129...


Fonte: Nordic Africa Institute (NAI)  / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (As fotografias, em formato jpg,  tem numeração, esta é a nº 28, mas não trazem legenda. Legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


1. No livro de memórias do ex-cap inf Aurélio Manuel Trindade, ex-cmdt da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, jul 65 / jul 67)  ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, 339 pp), a palavra "arroz" aparece, obsessivamente, ao longo dos cerca de 70 capítulos ou histórias. 

Em Bedanda, em 1965/67, a população, maioritariamente fula, refugiada da guerra,  não cultivava arroz e passava fome, segundo o cap Cristo. O  arroz que se lá se consumia, vinha de barco,  de Bissau, ou então era o que era lavrado nas bolanhas em redor pela "população do mato" (maioritariamente balanta) controlada pelo PAIGC ou sob duplo controlo, e comprado pelos comerciantes locais às "mulheres do mato" que vinham à "povoação comercial" vender o que lhes sobrava (arroz, mandioca, mancarra, óleo)  e comprar o que lhes faltava (cana, tabaco, panos). Isto queria dizer que pelo menos no setor S3 (Bedanda), não havia "Armazéns do Povo" ou, se existiam, funcionava muito mal. Realidade ou mito,  os "armazéns do povo" foram um elemento importante da propaganda do PAIGC, nomeadamente para consumo externo. 

Em termos de segurança alimentar, e nomeadamente, no pós-guerra, no tempo do Luís Cabral, a continuação da experiência dos "armazéns do povo" terá sido mais um dos "elefantes brancos" da economia planificada. A tal ponto que acabaram por ser "privatizados" (em 1992) e hoje definitivamente extintos (segundo notícia da agência Lusa, de 1 de abfril de 2022)...

Do lado das NT ("nossas tropas"), na época, ao tempo dp governador e comandante-chefe  gen Arnaldo Schulz, a missão era (e iria continuaria  a ser no início do consulado de Spínola) "aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo". O arroz, muito em especial, era destruído: era a base da alimentação da guerrilha e da população sob o seu controlo. O mesmo se passava com o gado e demais animais domésticos: às vezes salvavam-se as vacas, desde que fosse possível transportá-las para o aquartelamento mais próximo. (Spínola percebeu, tardiamente, que o terror não se combatia com o contra-terror...).

Leia-se estes excertos, retirados do livro acima citado, de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do hoje ten gen ref Aurélio Manuel Trindade):

(...) Logo os pelotões do Carvalho e do Oliveira dispersaram e se espalharam pela bolanha. Alguém tinha fósforos, fizeram-se tochas e com um rapidez incrível os homens iam de monte em monte e destruíam o arroz. A bolanha ficou em chamas. Os homens libertavam-se da tensão com que estiveram toda a noite e manhã. O arroz era a principal fonte de rendimento. Destruir o arroz era como destruir as fábricas no tempo da segunda grande guerra mundial. A companhia destruía sempre todo o arroz que encontrava na sua passagem. O capitão dizia que era mais importante destruir o arroz do que as casas. Estas podiam ser facilmente reconstruídas, mas o arroz representava o trabalho perdido de um ano e era preciso esperar pela nova colheita (...) (pág. 144) (Negritos nossos).

(...) "Muito preto e pouco branco, é tropa de Bedanda e é preciso ter cuidado. Muito branco e pouco preto é outra tropa. Outra tropa não mete tanto medo à população do mato nem aos guerrilheiros (...) (pág. 146) (Negritos nossos).

(...) O Capitão Cristo nem teve tempo de dizer mais nada. O Cordeiro e os seus homens
já iam a meio da bolanha, em direcção às LDM, com as vacas. Foi debaixo de fogo que
a tropa teve que embarcar, mas os guerrilheiros tiveram que assistir à coragem da tropa
de Bedanda que, nas suas barbas, lhes surripiou 14 vacas

A Marinha, depois de muita insistência, lá embarcou as vacas, ficando onze para a companhia de Bedanda e três para os marinheiros. Tudo negócio feito pelo Cordeiro. Iriam ter carne para alguns dias. 

A nossa vacaria ficava na área controlada pelos guerrilheiros, mas nós íamo-nos
abastecendo desta forma pouco ortodoxa, não tínhamos alternativa. Ou vacas
roubadas ou nada. Chegados à Companhia, cansados física e psicologicamente, o mais
difícil de acalmar era o capitão Cristo que dizia mal da companhia de Cufar e do
Comando do Batalhão. (...) (pág. 56).

Curiosamente, não aparece, nas 4 centenas do livro, qualquer referência aos famosos "armazéns do povo" de que o PAIGC se gabava de ter, em funcionamento,   nas "áreas libertadas",e em particular no sul do território... Se eles existiam, o cap Cristo e os seus homens da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 nunca os viram ou lhe prestaram a mais pequena atenção...

Vale a pena reproduzir aqui um excerto do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971 (**), documento classificado na época como reservado, e de que nos foi facultada uma cópia,   pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, na situação de reforma. 

O documento teve ampla divulgação no blogue, sob a série " PAIGC: Instrução, táctica e logística: Supintrep, nº 32, Junho de 1971".

Na altura, e por causa de alguns melindres de alguns dos nossos camaradas,  fizemos questão de sublinhar que a divulgação deste e doutros documentos sobre a organização e o funcionamento do PAIGC era meramente informativa, não implicando, da nossa parte, qualquer juízo de valor. 

Por outro lado, tivemos o cuidado de lembrar que  não se tratava  de um documento de PAIGC, mas sim das NT,  embora utilizasse fontes escritas e orais ligadas à guerrilha contra a qual  então combatíamos. A sua origem era o próprio Com-Chefe da então província portuguesa da Guiné. Tratava-se de um subintrep distribuído aos comandos das unidades do CTIG em junho de 1971 (Supintrep: Do inglês, Supplementary Intelligence Report, ou seja, Relatório de Informação Suplementar).

No Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares, há diversa documentação fotográfica sobre os "armazéns do povo". 


2. Subintrep nº 32, junho de 1971 > AGRICULTURA, PECUÁRIA E INSTALAÇÕES COMERCIAIS (*)

(1) Produção agrícola e pecuária nas “áreas libertadas”

Em todas as “áreas libertadas” do sul da província a produção das culturas alimentares tem registado elevado crescimento, tanto como resultado do aumento das superfícies cultiváveis com ainda em consequência de melhores cuidados atribuídos a essas culturas.

Efectivamente, apesar da redução do tempo útil de trabalho motivado pela crescente actividade das NT, muitas bolanhas têm sido aproveitadas, o que se traduz num aumento de produção de arroz em percentagens que chegam a atingir de ano para ano os 20%. 

As “áreas libertadas” do sul são mesmo já autosuficientes para satisfação das suas necessidades alimentares, sendo os excedentes da sua produção de arroz enviadas para o exterior, para distribuição a outros locais onde a produção não atinge os níveis necessários.

O mesmo não acontece no norte da província. Aqui a população, tradicionalmente mais ligada a outras culturas, não produz arroz em quantidades suficientes para se abastecer, pelo que são enviadas regularmente colunas à fronteira para transporte desse produto para o interior.

Outras culturas alimentícias, tais como mandioca, batata doce, milho e legumes, subsidiárias na ração alimentar da população, têm tido também apreciáveis aumentos de produção. O desenvolvimento da cultura de féculas e legumes abre novas perspectivas para a utilização de um sistema alimentar novo, reduzindo o uso do arroz, quer na frequência quer na proporção.

Ainda nas “áreas libertadas” do sul, nomeadamente nas regiões de Catió e Cacine, as populações têm-se dedicado ainda ao desenvolvimento das culturas frutíferas, tendo os cuidados prodigalizados no tratamento permitido a obtenção de uma abundante produção de anazes, bananas, papaias, laranjas, etc.

Igualmente se refere, dada a importância de que se reveste, a especial atenção que tem sido dada ao tratamento de gado e animais de criação.

Como factores decisivos no desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que se verifica especialmente nas “áreas libertadas” do sul, refere-se, por um lado, a existência de agrónomos especializados na Rússia e Cuba e, por outro, o intenso trabalho político levado a efeito no seio das massas rurais, convencendo-as da importância que representa o desenvolvimento agrícola das “áreas libertadas”.

A fim de recompensar os que mais se esforçam no trabalho dos campos, o Partido institui prémios para os melhores produtores.


(2) Empresa de comércio geral (Armazéns do Povo)

Em fins de 1965 afirmava Amilcar Cabral:

“Na Guiné, em dois anos e meio de luta armada, libertámos cerca de metade do país. Nas regiões libertadas estamos a construir uma vida nova, temos várias dezenas de escolas, instalámos comércio para abastecer as populações em artigos de primeira necessidade através dos Armazéns do Povo, criámos serviços de assistência sanitária e vários outros organismos que definem o novo Estado em formação”.

O objectivo do PAIGC, ao levar a cabo estas iniciativas, foi o de criar condições que estabelecessem bases de uma sociedade nova. No que diz respeito aos Armazéns do Povo teve-se em vista a sua criação satisfazer as necessidades de abastecimento das populações, fornecendo-lhes artigos de uso corrente para seu consumo em troca de produtos agrícolas que, por sua vez, são trazidos para o exterior onde são vendidos, revertendo os lucros dessas transacções para os cofres do Partido.

Verifica-se, assim, que os Armazéns do Povo permitiram a valorização do trabalho do povo, na medida em que trouxeram uma solução ao problema da comercialização, da agricultura e artesanato, já que, como se referiu, os produtos agrícolas (arroz) e, provavelmente, os artigos de artesanato funcionam como moeda de troca.

Estes Armazéns não são contudo, em princípio, destinados a auferir lucros. Dando para já uma experiência útil na futura organização do comércio, os Armazéns do Povo têm como objectivo, na hora actual, servir como elo e ligação com as massas, representando por si só uma arma poderosa ao serviço dos interesse do povo e do Partido, não só do ponto de vista económico mas também, e especialmente, do ponto de vista político.

Através deles, na medida em que evita as transacções comerciais nos nossos estabelecimentos, o PAIGC procura o nosso "isolamento" ao mesmo tempo que garante a segurança das suas "áreas libertadas"

Dum modo sumário e face aos elementos disponíveis, é a seguinte organização e funcionamento da Empresa de Comércio Geral do PAIGC, a qual depende, para efeitos de organização do Departamento da Organização e Questões Internas e para efeitos da prestação de contas do Departamento de Economia e Finanças.

Esta tem em Conacri o órgão de abastecimento central – os Armazéns Centrais – e “antenas” em todas as “regiões libertadas” – Armazéns do Povo -, designados também por Depósitos, os quais são numerados, encontrando-se à frente deles um responsável, possuidor de conhecimentos genéricos de contabilidade.

Como se referiu, os Armazéns Centrais abastecem estes Depósitos com artigos de consumo corrente nomeadamente açúcar, sal, conservas, roupas e calçado, enviando à data da expedição dos artigos uma "factura" na qual constam discriminadas as quantidades e valor da mercadoria.

Muito embora seja utilizado o dinheiro, o mais vulgar é o sistema de permuta em que os podutos agrícolas, especialmente o arroz, ou mesmo o gado, funciona como "moeda" de troca, sendo os produtos obtidos na troca enviados aos Aramazéns Centrais com nota de remessa, local onde essa distribuição é devidamente escriturada em mapas dos quais se junta o Mapa de Distribuição de arroz.

Admite-se, para facilidade de transporte, que parte desses produtos sejam enviados directamente às bases logísticas sem passar pelos Armazéns Centrais, embora estes movimentos em mapa sejam sempre feitos nestes armazéns creditando-se às Bases que directamente receberam os produtos.

Todos estes movimentos são contabilizados, sendo feitas periodicamente inspecções tendentes a verificar a “situação” em que se encontram os depósitos.

Nestes, diariamente, é elaborado um mapa relativo às receitas diárias, no qual são escrituradas as mercadorias saídas e a entrada de produtos.

Ainda se conhece, nos movimentos dos Depósitos, um documento nota de crédito. (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos: LG] (***)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca > Rio Udunduma, afluente do rio Geba Estreito  > 1970 >  A  economia guineense dependia também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... 

As manadas de gado dos fulas, povo originalmente de pastores nómadas, eram um sinal exterior de riqueza e de status social do seu dono. Por essa razão, os fulas tinham tradicionalmente relutância em alienar esse património... Por morte do dono, os animais eram abatidos para alimentar o choro, uma festa que se prolongava por vários dias, dependendo da posição hierárquica do defunto na sociedade fula... 

Com a guerra, a entrada de dinheiro nas tabancas fulas fazia-se fundamentalmente por duas vias: (i) o pré dos soldados africanos e das milícias (a par do dinheiro que as lavadeiras recebiam); e (ii)  e as vendas de gado vacum aos militares portuguesas, compensando a quebra da produção da mancarra, devido à guerra... 

O porco era criado pelos povos animistas e ribeirinhos: balantas, manjacos, papéis... Havia por vezes conflitos com a população local, devido a abusos dos militares (que roubavam ou matavam vacas, porcos, cabritos ou galinhas)... Durante a Operação Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969), as populações sob controlo do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, sofreram grandes perdas de gado, para além da destruição de toneladas de arroz... Muitos animais foram abatidos a tiro, nalguns casos foram, inclusive, levados até ao aquartelamento do Xitole onde foram abatidos e consumidos.

Também não há referências, no relatório da Op Lança Afiada, a "armazéns do povo" no Sector L1,  nas áreas controladas pela guerrilha. A existirem, deveriam estar muito bem escondidos ou camuflados, em zonas de floresta-galeria, de difícil observação tanto aérea como terrestre.

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
__________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 
15 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): "Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional", fotografias de Michel Renaudeau, Éditions Delroisse, Paris, 1978 (Mário Beja Santos)

(...) Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados: “Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”. (...)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22886: Notas de leitura (1406): CCAÇ 1550 - Quando a história de uma unidade militar ajuda a perceber a evolução da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Relendo este terno memorial da CCAÇ 1550, surgiu a reflexão de que toda a descrição feita da chamada região Xime-Bambadinca entre 1967 e 1968, e a própria área de atuação desta unidade veio a conhecer bastantes alterações. Naquele período as tabancas em autodefesa conheciam o reforço pelas tropas do Xime, o destacamento do Enxalé fazia parte de uma outra unidade militar, Bambadinca vivia em paz, e temos por hábito esquecer que o PAIGC e as populações em que se apoiava tinham posições relativamente consolidadas desde o segundo semestre de 1963. A região Xime-Bambadinca em que vivi e combati, tornou-se mais agressiva, retirámo-nos de algumas posições, gerando vazios favoráveis à guerrilha. Em suma, o nosso dever de memória, temos que aceitar com humildade, está profundamente marcado por uma dinâmica que ultrapassa grandemente o tempo em que permanecemos neste ou naquele espaço, não se pode confundir a árvore com a floresta.

Um abraço do
Mário.



Quando a história de uma unidade militar ajuda a perceber a evolução da guerra da Guiné

Mário Beja Santos

Não é primeira vez que aqui se refere este singelo memorial referente à CCAÇ 1550, que esteve na Guiné entre 1966 e 1968, edição de José Marques de Valente e de DG Edições, 2018[1]. Para o coordenador, que nos recorda que este livro tem 170 autores, o essencial é que não se perca a memória destes combatentes, partiram de Santa Margarida em 20 de abril de 1966 e chegaram a Bissau cinco dias depois; no dia seguinte foram até Farim, escoltados por dois grupos de combate reforçados; dias depois seguiram para Binta e Guidage. Binta não lhes pareceu pior do que outros lugares como Jumbembem, Cuntima ou Bigene, toda esta área tinha quatro companhias do batalhão de Farim, a principal base do PAIGC nas proximidades situava-se no corredor da Sambuiá, numa região entre Binta e Bigene. A CCAÇ 1550 ficou em Binta com um pelotão de caçadores nativos, um grupo de combate reforçado foi para Guidage.
Curiosa é a descrição de Binta:
“Era um conjunto de quatro ou cinco grandes armazéns que serviram para recolha de mancarra, caju, madeiras e outras matérias-primas, três ou quatro casas coloniais de um só piso e uma tabanca com duas ou três dezenas de habitações da população civil e milícias. Os armazéns, ocupados pela tropa ficavam encostados à área de atracagem dos barcos, junto de um pequeno cais de madeira. As casas de alvenaria, uns trinta metros retiradas e a tabanca mais uns cinquenta metros para o interior, junto da pista de terra onde aterravam avionetas militares e civis”. Descreve a organização da defesa e lembra-nos que durante os oito meses que permaneceram em Binta não se verificaram ataques violentos ao aquartelamento. Procurou-se saber junto da população a razão de não serem atacados e a explicação encontrada era de que tratavam bem a população civil e havia armadilhas à volta do quartel. E o autor refere não só os cuidados sanitários pela população portuguesa como senegalesa, o funcionamento das escolas, a diversidade dos patrulhamentos. A CCAÇ 1550 pertencia organicamente ao BCAÇ 1888 e daí, passados oito meses, terem sido transferidos para a região do Xime, constituído pelo destacamento do mesmo nome, o de Ponta do Inglês, e o apoio a Taibatá e Demba Taco, havendo ainda um destacamento em Samba Silate e um outro destacamento em Galomaro. Na tabanca de Taibatá estava a sede do regulado de Bambadinca e o destacamento da Ponta do Inglês sofria inúmeras flagelações, o itinerário Xime-Ponta do Inglês era evitado por terra, o abastecimento da Ponta do Inglês fazia-se por via marítima. As emboscadas na estrada Xime-Bambadinca eram também frequentes. Descreve as instalações do Xime, a composição da população e como se processava a segurança do aquartelamento, desde o arame farpado aos abrigos, procuraram-se corrigir debilidades introduzindo paliçadas com três metros de altura. Presta-se homenagem aos picadores do Xime pela ajuda crucial que deram ao pessoal de minas e armadilhas para detetar e destruir minas antipessoal e anticarro, como igualmente o esforço do pessoal civil de Amedalai que picava o último troço da estrada até à ponte do rio de Undunduma – estes picadores do Xime era um grupo de militares da CCAÇ 1550, do Pel Caç Nat 53 e milícias do Xime, Taibatá e Amedalai".


O autor lembra a vida difícil do destacamento da Ponta do Inglês, referencia Taibatá, Samba Silate e Galomaro. É minucioso a descrever o armamento, as melhorias introduzidas em abrigos, ninhos de morteiro, postes de vigia, manutenção do arame farpado, o Memorial é profundamente ilustrado, ficamos a conhecer a capela, o interior da messe de oficiais, esta composta de quatro caravanas que terão vindo da equipa técnica agronómica que trabalhara em Fá Mandiga. Há dados curiosos neste relato, veja-se um deles: “Na zona mais alta, para além do arame farpado, onde se situava o nosso posto de vigia norte, havia uma zona que fora cemitério, pois ainda havia restos de lápides funerárias e de campas de um pequeno cemitério, com lápides ainda visíveis cuja inscrições se liam nomes e referências de alemães, flamengos e holandeses. Pelas datas deduzia-se ocupação dos séculos XVIII/XIX”. Nesta época o Corubal já não era navegável, uma das lanchas que se aventurou até às imediações do Saltinho regressou com umas dezenas de impactos de projéteis.

Comenta a natureza dos abastecimentos, fala de prémios, louvores e condecorações; e segue-se um repositório muito terno de fotografias de todos os militares, fotografias do tempo da campanha e atuais, não faltam mesmo fotografias das tabancas em autodefesa como Taibatá ou Demba Taco, havia no Xime padrões da CCAÇ 1550 e do Pel Caç Nat 53, e dá-se a lista de todos os falecidos, contam-se histórias, seguem-se os encontros posteriormente realizados.

A que título se retoma a leitura deste Memorial? Circunscrevendo as observações à região do Xime-Bambadinca, e como se vê estamos num período entre 1967 e 1968, e tendo eu chegado à região de Bambadinca em agosto de 1968, que aconteceu, entretanto? Indo um pouco atrás, o combatente do PAIGC, Domingos Ramos, em meados de 1963, atravessou o Corubal e sublevou toda a região norte do Xime, populações, milícias e depois bi-grupos irão ficar instalados na Ponta Luís Dias, Tabacutá, Mina, Galo Corubal, com pleno acesso a bolanhas no Poidom, fertilíssimo, um pouco mais abaixo, também se instalaram em dois locais, Baio e Burontoni. Todas as operações feitas pelas tropas portuguesas não conseguiram desalojar as populações e os grupos armados destes locais, ao longo de toda a guerra. O Coronel Hélio Felgas concebeu uma operação de envergadura, Lança Afiada, cerca de 12 dias, um fortíssimo contingente, resultados praticamente nulos, os guerrilheiros e populações limitaram-se atravessar o Corubal e aguardar a retirada das nossas tropas. Samba Silate perdeu população, tornou-se terra de ninguém, faziam-se patrulhamentos, era inequívoca a passagem de guerrilheiros de um lado para o outro do rio Geba, ou mesmo das bases no interior do regulado do Xime; Bambadinca viveu na paz do Senhor até 28 de maio de 1969, nesta data sofreu a primeira flagelação, montaram-se novos dispositivos de defesa, um deles a segurança em torno da ponte do rio de Undunduma; a presença da guerrilha em Ponta Varela, a escassos quilómetros do Xime, era reconhecida, tentavam impedir a circulação das embarcações civis, nalguns casos tiveram êxito; e a partir de 1970 tornaram-se cada vez mais agressivas as flagelações e as práticas terroristas nas populações de Demba Taco, Taibatá e Moricanhe. Decidiu-se abandonar a Ponta do Inglês, em 1968, Moricanhe foi abandonada em 1970, as infiltrações do PAIGC cresceram para a região do Xitole. Galomaro mudou de sector. Quando cheguei à Guiné ia-se calmamente de jipe de Bambadinca a Galomaro, em finais de 1969 houve necessidade de fazer colunas, com a retirada de Madina de Boé a presença subversiva acentuou-se. Muito mais aqui se podia dizer para lembrar a todos que o vimos numa comissão podia alterar-se substancialmente nos anos longo a seguir, como aqui se mostra na região de Xime-Bambadinca. É uma simples chamada de atenção que qualquer uma das nossas comissões não passou de uma minúscula parte (mesmo que muito dolorosa) de um todo (que nos obriga à sequência cronológica e a descrever factos e feitos, em que o mais relevante terá sido o desequilíbrio do nosso armamento comparativamente ao do PAIGC, que veio permitir, já bastante perto do final da guerra que este se tivesse preparado para um quadro ofensivo onde era maleável a utilização da guerrilha com métodos de guerra convencional).
Para que conste, e não tenhamos a ilusão do que a nossa árvore é mais do que a floresta.


____________

Notas do editor

[1] - Vd. poste de 8 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P21983: Notas de leitura (1345): "Memorial, O livro dos 172 autores", da CCAÇ 1550 (Binta e Xime, 1966/68), DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22872: Notas de leitura (1405): "Descobrimento Primeiro da Guiné", por Diogo Gomes; Edições Colibri, Junho de 2002 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20554: Questões politicamente (in)correctas (50): as grandes desmatações à volta de aquartelamentos construídos de raiz como Mansambo, e ao longo da rede viária, com o apoio das populações às NT (Torcato Mendonça, ex-alf mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca( > Mansambo > CART 2339 > Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada > Concentração de pessoal e viaturas no quartel de Mansambo. Não sabemos que são os tipos de chapéu colonial, assinalados com um círculo a vermelho: os da direita, junto a militar de Mansambo em tronco nu, podem ser ser cipaios, da polícia administrativa ou até adjuntos do régulo de Badora... Junto à viatura, de calção, pode ser o condutor... Foto do álbum de Torcato Mendonça (ex-alf mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca( > Mansambo > CART 2339 > Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada >  Tropas, a montar segurança,  e civis, capinadores, na estrada Mansambo - Bambadinc. À esquerda, um homem, ocm cabeça colonal, que pode estar a enquadrar os civis e que poderia ser um "cipaio" (polícia administrativa).

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Zona Leste >  Região de Bafatá Sector L1 (Bmabadinca) > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento, que foi construído de raíz pela CART 2339 (Mansambo, 1968/69).  À volta foi tudo desmatado. Ao fundo, da esquerda para a direita, a estrada Bambadinca-Xitole. Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

"Quanto à foto de Mansambo, a vista aérea – que é espectacular e que pessoalmente agradeço - gostava de saber de que ano é, se o Humberto tiver esses dados. A zona está totalmente nua, só com uma grande árvore ao fundo que se encontra à entrada do aquartelamento, pois vê-se a bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole (esquerda-direita. Falta ali uma árvore, a tal de referência para o IN, e que os nossos soldados chamavam a árvore dos 17 passarinhos, tal era a quantidade deles, que se situava na parte mais afastada da entrada. A mancha branca de maior dimensão seria o heliporto. 

"Faltam os obuses, um de cada lado à esquerda e à direita. Ao lado dessa árvore ficava o depósito, que era uma palhota, de géneros e munições, que ardeu a 20 de Janeiro de 1969 (nesse dia chegaram os 2 Obuses 105 mm). Era véspera do aniversário da CART 2339. Ao fundo vê-se uma mancha à esquerda do trilho de entrada que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a nossa horta. A fonte ficava à direita da foto onde se vêem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo. Se confrontares com um mapa da zona vê-se aí uma linha de água" ( Carlos Marques dos Santos, 1943-2019)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]© 



1. Excerto do poste P9541 (*), da autoria do nosso colaborador permanente Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69), que participou tanto na Op Lança Afiada como na Cabeça Rapada. e que infelizmente por razões de saúde tem estado afastado do nosso blogue e do nosso convívio:


Não é de assuntos de barbearia que venho falar. Não. Vou tentar contar-vos, sem grandes pormenores, a maior operação de Acção Psico Social – chamemos-lhe assim – a que assisti. Bem planeada e meticulosamente preparada por quem sabia.

Tudo com o aval do Comandante-chefe e teve o nome de “Operação Cabeça Rapada”. Desenrolou-se de finais de Março a meados de Maio de 69, talvez por seis fases ou seis operações [, na realidade, quatro.]

O objectivo era capinar – cortar e desmatar – toda a vegetação numa faixa de trinta ou quarenta metros, talvez mais, para lá do arame que delimitava o perímetro de Mansambo e igualmente, em largura, uma faixa similar para lá das bermas das estradas (picadas) de Mansambo a Bambadinca e daqui até ao Xime. Só nas zonas mais propícias a emboscadas.

Outras desmatações menores,  à volta de algumas Tabancas, por exemplo Amedalai e outros locais, sofreram igual corte.

Estas Operações queriam vincar três pontos:

(i) dizer que o IN tinha sido derrotado na Operação Lança Afiada [, 8.19 de março de 1969];

(ii) mostrar que as populações estavam com as NT;

(iii) fortalecer o slogan “Por uma Guiné Melhor”.

Análise despretensiosa e sem petulância minha. É uma não análise… talvez.

As populações envolveram-se fortemente depois do excelente planeamento. Muitas centenas, talvez um ou dois milhares de civis, muitos militares  [na realidade, 7 mil, na Op Cabeça Rapada I], e uma logística enorme: viaturas civis e militares, alimentação e uma bem montada segurança, próxima e afastada, para dissuadir ou minimizar o efeito de qualquer ataque e, também, colaborar activamente com apoio rápido à resolução de algum acidente e incidente.

Não seria difícil ao IN disparar umas morteiradas e provocar o pânico. Uma ou duas granadas eram suficientes. Não o fez e nós não sabíamos, quantos daqueles homens eram simpatizantes deles e trabalhavam naquela desmatação para obterem informações. Havia certamente.

Lembro-me da enorme confusão da manhã do primeiro dia. Eram muitas centenas e centenas de homens e suas catanas a chegarem a Mansambo. Organizar tudo seria tarefa difícil mas foi conseguido.

A nossa missão, a do meu Grupo, era outra e rapidamente saímos do aquartelamento para a segurança. No fim de toda esta Operação, faseada e por tanto tempo, quando acabou uma dúvida, em mim, se levantou: 
- Aquela desmatação não iria abrir o campo de tiro ao IN?

Caí, em meados de Maio, numa forte emboscada no Pontão do Almami e, em inicio de Abril, já tinha havido outra no mesmo local. Felizmente as árvores que ladeavam a estrada foram poupadas.

No dia 28 de Maio de 1969 a sede do Batalhão, em Bambadinca, foi atacada pela primeira vez. As tabancas de Taibatá, Moricanhe e Amedalai, sofreram igualmente ataques.

Era a represália do IN. Teve auxílio vindo do Sul e do Norte? Certamente. Mas provava que estava vivo e não fora aniquilado na Lança Afiada e esta não respeitara certas regras básicas de contra guerrilha. O IN não foi aniquilado. Tanto assim que começou a bater forte, a tentar infiltrar-se e a exigir um esforço maior de contenção das NT. 

Só em meados de Agosto. o IN veio a sofrer um forte revés e ficou decapitado - como sinónimo de sem comando [, o comandante Mamadu Indjai, gravememte ferido em emboscada montada por forças da CART 2339].

Nada de relevante ou muito grave aconteceu até ao fim da nossa Comissão, em finais de Novembro de 1969. Emboscadas, ataques a tabancas e aquartelamento, umas baixas sempre lastimáveis e uma ou outra operação igual a tantas outras. A rotina habitual com ou sem desmatações.

Embarcamos em 4 de Dezembro de 1969 [, de regresso a casa].

2. Em comentário ao poste P9541 (*) , o nosso amigo e camarada Henrique Cerqueira [, ex-fur mil, 3.ª CCAÇ/BCAÇ4610/72, e CCAÇ 13, Biambe  e Bissorã, 1972/74; vive no Porto] disse o seguinte:

Camarada Torcato:

A simplicidade do tema é na realidade um grande aglutinador das nossas lembranças.

Tambem participei em proteções a grandes grupos de capinadores na região de Bissorã. E apareciam civis aos magotes, pois pudera, o dia era pago pelo Estado Português.embora que em géneros (arroz).

Na realidade a capinagem dava segurança quando estavámos no quartel e quando regressavamos. Mas, quando tínhamos que sair em patrulhamentos,  que era quase sempre ao caír da noite, eu só me achava seguro depois de nos embrenharmos no mato.

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9541: Nós da memória (Torcato Mendonça) (12): Cabeça Rapada - Fotos falantes IV

(**)  Último poste da série > 12 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20551: Questões politicamente (in)corretas (49): no 1º ano do consulado de Spínola, ainda havia ou não indícios da prática de trabalho forçado (, extinto por decreto, em 1961), por parte da administração e até do exército ?

domingo, 12 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20551: Questões politicamente (in)corretas (49): no 1º ano do consulado de Spínola, ainda havia ou não indícios da prática de trabalho forçado (, extinto por decreto, em 1961), por parte da administração e até do exército ?


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca( > Mansambo > CART 2339 > Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada > Concentração de pessoal e viaturas no quartel de Mansambo. Foto do álbum de Torcato Mendonça (ex-alf mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca( > Mansambo > CART 2339> Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada- Foto do álbum do Albano Gomes, que vive em Chaves, e que foi 1º cabo op cripto, CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

Foto (e legenda): © Albano Gomes (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

I. Seleção de comentários ao poste P20541 (*)

1. Fernando Gouveia:

Em março/abril de 69 estive de férias e não me recordo destas operações de desmatamento, no entanto assisti várias vezes a pequenas capinagens organizadas pelo Administrador da altura. As coisas eram sempre feitas da mesma forma: o Administrador recrutava à força, sem violência, os nativos de que precisava e levava-os para os locais a capinar, como junto à pista de Bafata e onde precisava.

Sempre foi do meu conhecimento, disso lembro-me bem, que pagava a cada elemento 15 escudos por dia, o que me faz pensar que alguns não gostariam da situação mas outros sim.

 2. Luís Graça:

Fernando, esse elemento informativo é importante:

"o Administrador recrutava à força, sem violência, os nativos de que precisava e levava-os para os locais a capinar, como junto à pista de Bafata e onde precisava. Sempre foi do meu conhecimento, disso lembro-me bem, que pagava a cada elemento 15 escudos por dia."

Neste caso foi um operação que envolveu quase toda a população masculina, válida, do regulado de Badora... Estamos a falar 7 mil homens, só na Op Cabeça Rapada I...

Aqui foi preciso seguramente a colaboração ativa do régulo de Badora, o poderoso Mamadu Bonco Sanhá, tenente de 2ª linha, comandante da companhia de milícia do Cuor.Vogal do conselho logístico da Província (, ao lado, por exemplo, de outro grande aliado dos portugueses, o régulo manjaco Joaquim Baticã Ferreira.)

Talvez o Torcato Mendonça, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)., que não tem dado, há muito, "sinais de vida", nos pudesse explicar algo mais sobre o planeamento e a execução da Op Cabeça Rapada...

3. Valdemar Queiroz:

Da minha CART11 'Os Lacraus' esteve um Pelotão (revezando-se),  destacado na segurança da construção de várias pequenas pontes na estrada/picada entre Nova Lamego-Cabuca, que em vários locais do percurso ficava intransponível no tempo das chuvas. 

Os pedreiros e ajudantes, talvez um total de cinco, eram todos indígenas contratados em Nova Lamego. Não me lembro se os próprios pedreiros eram os 'arquitectos a olho' ou traziam algum croqui de como deveriam fazer as pontes.

4. António J. Pereira da Costa:

Quanto à operação, parece-me que seria necessária para negar ao IN locais onde se acoitar.

Aqui põe-se a questão de saber se a Pop. estava ou não do lado das NT. Se assim fosse não se poria a questão de se saber se se tratava de "voluntários da corda" ou de trabalhadores indígenas assalariados gratuitamente.

Se não estavam francamente do lado das NT iriam voluntariamente obrigados, o que é difícil de provar. Uns iriam outros não, como sempre sucede em casos idênticos. Os que não quisessem ir, se fossem poucos, não poderiam manifestar-se; se fossem muitos, já estaríamos na 5.ª fase da subversão ou próximo dela...

Sei que houve múltiplas operações deste tipo, visando criar espaços para as passagens das estradas, criando "espaços de segurança" que impedissem o In de se aproximar a curta distância das colunas.

As desmatações para os trabalhos agrícolas eram levadas a cabo pela Pop e normalmente com a respectiva protecção.

5. Cherno Baldé:

Sobre este tema de trabalhos forçados, porque é disto mesmo que se trata, eu desafio ao Fernando Gouveia, a mostrar provas ou evidências que os trabalhadores recrutados a força e com violência sim, porque havia a violência psicológica e o medo, as pessoas eram coagidas e ninguém o fazia de livre vontade. De pagamentos nunca ouvi falar, talvez aos Régulos, não sei, não posso confirmar. O território de alto Casamansa que era quase despovoado até principios do séc. XIX, acabou por ser povoado por populações que fugiam em massa dos trabalhos forçados da parte portuguesa. Ainda hoje aquelas populações se identificam como fulas e mandingas de Gabu (Gaabunkés).

E nesses recrutamentos forçados feitos junto das familias, nem as crianças escapavam, pois cada familia tinha que indicar uma ou duas pessoas conforme o numero solicitado pelas autoridades coloniais. Uma vez, aconteceu comigo, entre 1973/74 no tempo da CCaç.3549, ser listado para a limpeza da estrada que ligava Fajonquito a Canhamina (3km), por falta de adultos disponíveis na familia, teria 13/14 anos. Já sabia da violência dos trabalhos de genero e recusei-me a ir e fui esconder-me no quartel junto dos meus amigos condutores. Depois, o Agente (Sipaio), foi lá a minha procura, tentando mostrar autoridade, mas foi corrido quase a pontapé pelo Dias o mais agressivo dos meus patrões e nunca mais me chateou. A partir desse acontecimento eu percebi que os soldados portugueses, obrigados a fazer a guerra na Guiné, não conheciam e não colaboravam com o sistema colonial de opressão contra as nossas populações o que por si constituia um grande paradoxo, pois em condições normais deveria ser ao contrário pelo facto de que estariam ali para defender o sistema de dominação colonial de Portugal sobre as populações nativas.

Das poucas vezes que conseguiram arrastar-me, por indicação do meu pai que não tinha outra alternativa, nem água, nem comida e muito menos dinheiro. No entanto muitos estavam convencidos que os brancos davam dinheiro para o efeito, mas que o Régulo e seu séquito se apropriavam do mesmo, facto que não posso confirmar em virtude da minha idade, na altura.

PS: Uma observação que gostaria de fazer relativamente a observação do José Nascimento é que a flora da região Sul da Guiné é muito diferente em relação ao resto do país pois devido a fertilidade do solo os arbustos e suas ramificações têm um ritmo de crescimento espantoso que em poucos dias atingem vários metros de comprimento. Quem viajou pelas estradas da zona sul, incluindo o triangulo Bambadinca-Xime-Xitole sabe do que estou falando.

6. António Rosinha:

Nunca se devia colonizar as pessoas, aliás os europeus em 1880 na Conferência de Berlim só pensavam nas riquezas do subsolo...mas uma coisa leva a outra.
Como é que um colonialista europeu, na África subsaariana, conseguiria convencer um "indígena" a trabalhar às suas ordens? Quando o indígena não sentia nem motivação social, política ou económica? Quando para a sua subsistência (alimentar, habitação, educação, saúde, desporto, vestuário...) estava tudo adquirido há séculos?

Digo eu que devia ser muito difícil convencer aquela sociedade pôr-se ao serviço de qualquer europeu. Claro que havia uma maneira, que era "a mal", outra maneira que era "a bem". Com ou sem dinheiro, só poderia ser a bem ou a mal.

Hoje após 50 anos livres dos europeus, os dirigentes africanos continuam a recorrer a "capatazes" europeus...e a investidores chineses, e de toda a ordem. Se não for a bem, vai a mal.

Sorte tiveram os Zulus que ficou lá muito ouro em cofre, todos os outros os cofres ficaram vazios.

7. Luís Graça:

Fernando e Cherno: 15 escudos na época (anos sessanta) era dinheiro... Os meus soldados da CCAÇ 12 ganhavam 20 escudos por dia (600 escudos ou pesos por mês)... tanto quanto um trabalhador rural indiferenciado no interior de Portugal (, e este só ganhava "à jorna", ou seja, nos dias em que trabalhasse...)

Os meus soldados tinham, além disso, mais 24$50, para comer, tal como eu: eles eram "desarranjados", recebiam em dinheiro; eu recebia, em "géneros", tinha direito a comer na messe... ou uma ração de combate (quando em operações)...

24$50 era igual para todos... do soldado ao general!

É evidente que se eu fosse um jovem fula da região de Bafatá ou da região de Gabu também queria ir para a tropa, que era "manga de ronco", e deixava de estar sujeito às pequenas prepotências dos chefes de posto, dos administradores, dos régulos e dos cipaios...

Isto não me impede de reconhecer que para a população de Badora era importante ter as estradas (Xime-Bambadinca-Bafatá e Bambadinca- Mansambo-Xitole- Saltinho) "capinadas"... Por elas circulavam não apenas os "tugas" mas também os fulas, os mandingas, os balantas, os comerciantes (europeus, libaneses, cabo-verdianos...).

Sei, de experiência própria, quanto nos custou, a todos, no setor L1, "reabriu", em setembro de 1969, grande parte do troço da estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho, que estava interdito desde o último trimestre de 1968...

8. Cherno Baldé:

Hoje, mais lúcidos e libertos da propaganda dos Paigecistas, podemos reconhecer a importância das vias abertas no periodo colonial, mesmo com trabalho forçado, porque são as únicas que ainda existem. Mas, devemos dar as coisas o seu nome. Aqueles trabalhos de limpeza das estradas eram feitos por "voluntários" à força, recrutados com a ajuda ou imposição dos Régulos e seus agentes de repressão.
Se os trabalhos fossem pagos a 15 pesos, não seria preciso implicar as autoridades gentílicas, pois os innteressados seriam aos milhares e podiam até vir de outras regiões, porque os rendimentos que tiravam da terra e outros trabalhos eram muito inferiores. Se não, comparem os preços praticados na compra do amendoim que era o principal produto de renda na zona Leste, e o custo de produção para a obtenção de uma tonelada ou saco de 100 Kg.

9. Virgílio Teixeira:

Sobre a capinagem, também tivemos pessoal do recrutamento local a capinar as margens das pistas de aviação, quer em Nova Lamego, quer em S. Domingos, após as chuvas, Eram bastantes, talvez 20, não sei. Também faziam o arranjo, juntamente com as NT, do piso, que ficava todo esburacado, tenho fotos de uma operação destas.

Não me lembro se era trabalho forçado, nem sei quanto lhes pagávamos, não era da minha lavra este problema. Mas não era grátis, de certeza.

Agora um aparte meu, se o território era dos guineenses e por nós também utilizado, as pistas e estradas eram benéficas para todos, tropa e para a população toda, por isso também lhes competia trabalhar nas suas terras, penso eu!

10. Fernando Gouveia:

Para o Cherno e não só:

Concordo que havia violência psicológica e intimidação mas não violência física. Muitas vezes vi camionetas carregadas de africanos, a mando do administrador [de Bafatá] para executar trabalhos necessários, aos quais pagavam os tais 15 escudos (ou pesos, como se queira). Efetivamente quando lá no Comando do Agrupamento [2957, Baftá, 1968/70] precisavam de pessoal para esses trabalhos era só pedir ao Administrador e rapidamente aparecia uma camioneta cheia de gente.

Reafirmo que se alguns iam contrariados outros agradava-lhe irem ganhar os tais 15 pesos.(ponto final).

11. Luís Graça:

Cherno, nas tabancas, fulas, por onde passava e onde ficava uma semana ou mais, de cada vez, em reforço do sistema de autodefesa, a minha secção ou o meu grupo de combate, da CCAÇ 12 (BambadincA, 1969/71)M, era costume comprar, mesmo a custo, galinhas e frangos, a sete pesos e meio por bico (o equivalente hoje 2,22 €)...

Em 1969, recordo-me que os soldados da CCAÇ 12 (que eram praças de 2ª classe, oriundos do recrutamento local), recebiam de pré 600 pesos/mês (, equivalente, a preços de hoje, a 177, 51 €), além de mais uma diária de 24$50 (=7,25€) por serem desarranchados.

600 pesos deviam dar para comprar duas sacas de arroz de 100 kg cada... O arroz, que era a bse da alimentação dos guineenses, custava então 3 escudos /pesos o quilo...

15 escudos por um dia de trabalho (árduo), ao serviço da administração do concelho de Bafatá, dava para comprar 5 kg...

A questão que se pode pôr é: quem ficava com a massa ? Na Op Cabeça Rapada I, 7 mil capinadores durante 2 dias custariam à administração 210 mil escudos...Muita massa!... Havia cabimento orçamental ?

12. Valdemar Queiroz:

Lembro-me do 1º. Sarg. Ferreira Júnior, quando fomos para Paunca, devido a não haver instalações militares para a nossa CART 11, ter de requisitar casas civis para instalar a nossa tropa, dado que nos abrigos existentes já estavam ocupados pela tropa da outra Companhia e neles apenas reforçávamos a segurança de noite durante umas horas.

Falou-me da requisição ser feita ao abrigo de… (não fixei o nome do diploma) em situações de guerra. E assim foi feito e passamos a 'viver' na tabanca em moranças requisitadas à população.
Na situação da capinagem teria funcionado, também, com esta 'requisição do tempo de guerra' ??

Sete mil (capinadores) a 15 pesos pro dia era muito patacão.

13. Manuel Carvalho:

A propósito das populações serem obrigadas a trabalhar a mando das autoridades, é verdade, se não fossem a bem iam a mal e não precisavam de andar a bater todos os dias porque as pessoas tinham medo e umas vezes receberiam alguma coisa, outras alguém recebia por eles.

E não era só na África, aqui há muitas estradas nacionais, não estou a falar de caminhos, que no tempo dos nossos pais foram construidas com a colaboração das populações por onde elas passavam mais ou menos da mesma forma. Ou seja as autoridades das aldeias reuniam com a população e cada família tinha de dar uns tantos dias por semana de trabalho ou aqueles que tinham mais possibilidades forneciam animais, carros e até criados para transportar coisas.

E nós também não íamos para lá obrigados [, para a guerra do Ultramar,] e depois de mortos os nossos pais, se quisessem cá o corpo para fazer o funeral, tinham de pagar cerca de 15 contos, pelo menos até 68 foi assim.

Diziam eles que aquilo era nosso, mas eu nunca tive lá nada.

14. Cherno Baldé:

A tropa em geral, sobretudo no consulado do Gen Spinola, cumpria e era correcta nas suas relações com as populações onde estavam estacionadas e não só. Temos que saber separar a tropa (que foi obrigada a fazer a guerra) e a administração colonial que era do sistema e funcionava em conformidade. Eu tenho sérias dúvidas sobre os pagamentos feitos às populações recrutadas para trabalhos obrigatórios.

O mais provável é que seriam requisições, como refere o Valdemar Silva (O Régulo de Gabu), cuja opinião é ainda reforçada pelas observações do Manuel Carvalho. Pois o regime do Estado Novo era o mesmo em toda a parte, e a sua mesquinhez também, obviamente.

O Luis pagava as galinhas porque não tinha espirito colonialista, senão era só requisitar às autoridades gentílicas. que terias o suficiente para um banquete durante a semana, como faziam muitos.

15. Manuel Luís Lomba:


No tempo dos pré-Portugueses, o exército ocupante romano construía estradas para serventia militar (a via Antonino, etc.) e aplicava às populações servidas o ónus anual da "geira" - dois dias de trabalho gracioso, como cantoneiros, pela sua conservação.

Em 1965 e 1966 desempenhei-me um ano como "patrão" da APSICO em Buruntuma e pagava a capinadores, carregadores, etc o mesmo pré dos soldados, na base de 430 pesos/mês, abonados pelo Exército.

16. Luís Graça:

Só a Op Lança Afiada, de 11 dias, de 8 a 19 de março de 1969, em que se bateu todo o triângulo Bambadinca - Xime - Xitole, expulsando da margem direita do Rio Corubal o PAIGC e as populações sob o seu controlo (calculadas na época em 5 mil, entre balantas e biafadas), envolveu 375 carregadores.

Se eles fossem pagos a 15 pesos por dia, o exército terá desembolsado cerca de 60 mil pesos (60 contos), o que não era nada em termos de custo da máquina de guerra: um helicóptero custava só a módica quantia de 15 contos por hora, mais do que ganhavam, por mês, dois alferes...
Esta operação, tal como a primeira Op Cabeça Rapada, foi em março de 1969, e eu só cheguei à Guiné em finais de maio de 1969... Mas nunca mais, no meu tempo e no setor L1 (Bambadinca), se realizaram operações com esta envergadura e sobretudo duração... O conceito foi abandonado e, por outro lado, em nome da política da "Guiné Melhor", Spínola reprimiu muitos dos abusos ainda em vigor, quer da administração e da políicia administrativa, quer da PIDE ou do exército...

Faltam-nos testemunhos dos nossos 1ºs sargentos, encarregues da "contabilidade criativa" das nossas companhias... Eles é que podiam "abrir o livro"... Não me parecem que o tenham feito np devido tempo, nem que ainda o queiram fazer... Muitos deles já morreram... Eram todos mais velhos do que nós uns 15 anos...

De qualquer modo, suspeito que havia indícios da persistência do "trabalho forçado ou obrigatório" no 1º ano do consulado do Spínola, época em que se realizaram operações de envergadiura, mobilizando grande quantidade de civis como capinadores ou carregadores: caso da Op Cabeça Rapada I, II, III e IV e Op Lança Afiada...

Quanto ao PAIGC, foi useiro e vezeiro no recurso ao "trabalho forçado ou obrigatório": a população sobre a bandeira do PAIGC não só alimentava a guerrilha (trabalhando nas bolanhas...) como fazia o transporte de armas, equipamentos e mantimentos... É uma assunto pouco falado... Fica aqui o desafio ao Jorge Araújo, o nosso especialista da "guerra do outro lado"...

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17607: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (45): Instruções para indicação de pontos na carta de 1/50.000 (Nuno Rubim, cor art ref, historiador militar)


Guiné > Carta do Xime (escala 1/50 mil) (1961)... Com os 9 quadrantes numerados, de acordo com o esquema B... Clicar aqui para ver em formato grande.

Esquema  A

Esquema B 





1. Mensagem de Nuno Rubim, com data de hoje, às 3h42, em complemento do pedido no poste anterior (*)

Caro Luis

Talvez isto ajude.
Material recolhido no A.H.M. [Arquivo Histórico Militar]

A minha única dúvida reporta-se a qual dos dois esquema, A ou B, era o utilizado.
Abraço

Nuno Rubim

2. Comentário do editor LG:

Nuno:
Obrigado, fez-se luz!.. As tuas instruções são preciosas... Posso confirmar, pela minha experiência operacional (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), relatórios de operações e leitura das cartas, nomeadamente do setor L1, que o esquema que se aplica é o B: de cima para baixo e da esquerda para a direita: 3/2/1 | 6/5/4 | 9/8/7....
Aqui vão algumas localizações:

Vd. carta do Xime (1 /50 mil)

(i) proximidades da ponte do Rio Jago (estrada Mansambo-Xitole): Xime 8A 5-36;
(ii) acampamento IN em Baio/Buruntoni: Xime 2D-81;
(iii) duas tabancas civis sob controlo IN entre a Foz do Rio Corubal e Ponta do Inglês: Xime 3A 2-46 e Xime 3A 4-11.

Mas também experimentei com outras cartas, em regiões onde fizemos operações: por exemplo, Namboncó, a norte do Rio Geba:

(iv) acampamento IN na região de Belel, oito moranças com colmo e 7 de adobe: MAMBONCO  7I4-97;
(v) fuga do IN na direção de MAMBOCÓ 8G6-32.

Também encontrei a referenciação mais detalhada, acima referida, com graus e minutos, por exemplo, no relatório da Op Lança Afiada, comandada pelo cor inf Hélio Felgas (iniciada em 8 de março de 1969, com a duração de 11 dias, envolvendo mais de 1300 militares e carregadores, que bateram toda a margem direita do Rio Corubal, ao tempo do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)... Por exemplo, algumas localizações de posições IN (ao longo da margem direita do Rio Corubal, que corresponde à carta do XIME):

(vi) Gã Garnes (Ponta do Inglês) (subsetor do Xime): 1500 1150 B5-5; 
(vii) Fiofioli (subsetor do Xime): 1500 1145 E4 ou D5;
(viii) Galo Corubal (subsetor do Xitole): 1455 1145 B5 ou D5.

Salvaguarda-se alguma eventual gralha datilográfica...

Espero ter ajudado. Um alfabravo. Luís

PS - O Nuno Rubim tem uma documentação, em suporte digital e em papel, absolutamente fabulosa sobre o TO da Guiné, onde fez duas comissões, no princípio e no fim da guerra (no QG)... Na primeira comissão comandou duas das unidades que passaram por Guileje: a CCAÇ 726 (out 1964/jul 1966) e a CCAÇ 1424 (jan 1966/dez 1966)...

O Nuno Rubim, hoje cor art ref, é um dos membros mais antigos do nosso blogue. Chegou até nós, no último trimestre de 2005, pela mão do nosso querido coeditor Virgínio Briote. Estiveram ambos nos comandos, na Guiné, em 1966, sendo na altura comandante da CCmds da Guiné o Nuno Rubim.

É um dos nossos camaradas que mais sabe da história militar da guerra colonial na Guiné (1963/74) e é um reputado especialista em história da artilharia portuguesa.  Terá mais de 90 GB de informação sobre o CTIG em geral e a região de Tombali, em particular. É um profundo conhecedor do Arquivo Histórico Militar.

Deus, Alá e os bons irãs te protejam, Nuno!
_____________