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sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3386: Operação Macaréu à vista - II Parte (Beja Santos) (50): Fim: Acalma-te, Mário, a guerra acabou

(À esquerda:) Capa do livro Guiné Diário da Guiné: 1969-1970: O Tigre Vadio, de Mário Beja Santos, editado por Temas & Debates e Círculo de Leitores, Lisboa, 2008, a ser lançado no próximo dia 11 de Novembro, no Museu da Farmácia, em Lisboa (À direita: Convite)


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados



Nota dos editores:

Este é o 50º (e último) episódio da série Operação Macaréu à Vista, Parte II, que cobre o período de Setembro de 2007 até agora. Em termos cronológicos, corresponde ao segundo ano da comissão do Beja Santos, à frente do Pel Caç Nat 52, ou seja, desde Agosto de 1969 até ao fim (Agosto de 1970).

Durante 50 semanas, o nosso camarada e amigo Beja Santos mandou-nos, religiosa, metódica e disciplinadamente, os 50 episódios desta narrativa, que agora deu origem ao seu segundo livro, Diário da Guiné: 1969-1970: o Tigre Vadio.

Tigre de Missirá era a alcunha ou o nome de guerra do nosso camarada. Tigre Vadio foi o nome de código da operação que, em Março de 1970, o comando do sector L1 da Zona Leste planeou e mandou executar às suas forças operacionais, na região do Cuor, a norte do Rio Geba Estreito. Uma operação dramática (e sangrenta) que levou o Pel Caça Nat 52, a CCAÇ 12 e outras forças a território controlado pelo PAIGC, a enfrentar o PAIGC, em sua casa, na região de Madina / Belel... (Mais os seus aliados: as abelhas, a sede, o clima, o terreno...).

Pelo meio, ficam muitas outras peripécias, venturas e desventuras de um oficial miliciano, comandante de um pelotão de caçadores nativos. Um jovem, melómano, culto e crente, que vem da militância JUC - Juventude Universitária Católica, carismático, determinado, corajoso, perfeccionista, e com o seu quê de aristocrático, que trata os seus homens por você, e que se corresponde com o poeta Ruy Cinatti e o comandante Teixeira da Mota...

Graças aos aerogramas que escrevia diariamente à sua noiva e depois esposa, Cristina Allen, aos seus apontamentos do seu caderno diário, à memória fotográfica de elefante tanto sua como de alguns dos seus homens que vivem hoje em Portugal (com destaque para o Queba), foi possível, ao Mário, terminar com sucesso, alivío e sentido do dever cumprido esta tarefa, quase sobre-humana, de pôr em linha (e depois em papel) as memórias de uma riquíssima experiència humana e militar no TO da Guiné.

O nosso blogue, que o coaptou e acolheu, em meados de 2006 - e lhe estragou os planos de "escrever as suas memórias da Guiné" após a reforma, aos 67 anos... - aproveita, simbolicamente, este momento para o saudar e para lhe agradecer. Ele foi, nestes últimos dois anos, um bloguista militante, indefectível, com presença semanal, nas nossas páginas. E assim continuará, esperamo-lo bem. Quem conhece(u) o Mário e com ele convive(u), sabe que não é homem para "capinar sentado"... Ideias e obra não lhe faltam.

Por tudo isto, ele merece a nossa singela homenagem, o nosso reconhecimento público, e sobretudo a expressão da nossa amizade e camaradagem. Dia 11 de Novembro próximo, no lançamento do Tigre Vadio, esperamos encher o Museu da Farmácia com a nossa presença, com a presença da malta da Tabanca Grande, com a presença de todos os amigos e camaradas da Guiné.

Um Alfa Bravo, Tigre!

A equipa editorial do blogue,
Luís Graça
Carlos Vinhal
Virgínio Briote


Operação Macaréu à vista - II Parte > Episódio L (*)


ACALMA-TE, MÁRIO, A GUERRA ACABOU
por Beja Santos


(i) Uma marcha processional a caminho do Carvalho Araújo

Só muitos anos mais tarde é que soube como se espalhara a notícia. O Domingos Silva, já a viver em Bissau, telefonara à D. Leontina, nos CTT de Bambadinca, para deixar uma mensagem a um primo em Bricama, pedira as novidades, soubera que eu tinha partido há dois dias para Bissau. No mercado do Bandim encontrou o Zé Pereira que por sua vez encontrou Quebá Sissé em Brá que por sua vez veio ao hospital de Bissau e encontrou no Pidjiquiti o José Jamanca. O telefone árabe ficou imparável, todos aqueles com quem combati no Cuor e nos outros regulados exigiram “partir mantenha”. De modo que, preparava-me eu para ir buscar as duas volumosas caixas em madeira ao Depósito de Adidos, quando à saída do Vaticano III tive a surpresa de encontrar um rancho de amigos prontos para me ajudar.

Aproveitámos uma boleia naquela manhã ensolarada na ruidosa estrada de Santa Luzia, a minha ilustre comitiva fazia catadupas de perguntas (o que vais fazer em Lisboa, onde vais viver, vais ficar longe da família, quando vais voltar à Guiné, se não te importas, levas um bilhete para mandar camisa, calça, sapato, equipamento de futebol, mandas fotografia com senhora e toda a família...). Nisto, o Domingos Silva desceu ao concreto e perguntou se eu não levava arte africana para Lisboa. Acordei para a realidade dos presentes, mesmo a tinir com falta de dinheiro. Assentou-se que íamos primeiro a Brá carregar as caixas, dali seguiríamos para o cais, já com a indicação do local onde ficariam no Carvalho Araújo. No regresso, o Domingos e o José Jamanca iriam comigo à Missão Católica para fazer as compras das ditas lembranças. Foi um alegre cortejo, o mercado de Bandim estava no auge do mercadejar, ouviam-se todas as línguas da Guiné, encontravam-se todos os trajos, era um festival de cor, de cheiros e sons.

À entrada do cais, na posse de uma guia de marcha, subimos a escada até ao portaló, pareciam urnas em madeira natural, avançámos para o convés onde recebi instruções da cabine onde ia ficar e o local onde podíamos depositar as caixas. É neste emaranhado de encontros e desencontros, de gente que entra e sai, que dei de frente com o José Alberto e o Tomé que não via desde que saímos de Mafra, em Outubro de 1967. Abraço puxa abraço acordámos ficar os três na mesma cabine. Saí daquele bulício para regressar ao de Bissau, não tinha palavras para agradecer a todos os meus antigos soldados a surpresa do encontro, o imprevisto de tão linda despedida.

N/M Carvalho Araújo da Companhia Insulana de Navegação


Na Missão Católica fui timidamente escolhendo gazelas, pássaros, árvores da vida, guerreiros, sempre a verificar os escassos escudos e logo a seguir assisti a um vibrante regateio em que o Domingos me aliviou na carteira e me sobrecarregou na consciência, na verdade eu estava a poupar à custa da obra dos missionários. Mais abraços e marquei a despedida para as 11h da manhã do dia seguinte, exactamente uma hora antes do Carvalho Araújo se lançar pelo Canal do Geba em direcção ao Atlântico. O Domingos aproveitou para me lembrar que era cristão e que gostaria muito de ficar com uma lembrança minha, talvez aquela cruz que eu tinha num fio ao pescoço, talvez o meu livro de orações, roupa não valia a pena era muito notória a nossa diferença de peso. Tudo isto me enternecia, a tudo procurava dizer que sim. A desoras fui almoçar, mas o estado de espírito de quem vivia sem obrigações era superior às minhas forças. A humidade da época das chuvas era de cortar à faca, refugiei-me no sombreado da messe de oficiais onde acabei de ler, depois de dormitar, Viver com os outros, de Isabel da Nóbrega, consagrado com o Prémio Camilo Castelo Branco.

É uma prosa original, estruturada em diálogos, pensamentos, declarações e contrapontos. Trata-se de uma reunião mundana, é o culminar de um jantar com o reencontro de amigos e familiares dos anfitriões. Está ali muito da sensibilidade da classe média portuguesa do início dos anos 60. Não há uma só referência à guerra de África, os casais falam dos pais e dos filhos, de amizades desorientadas, no torvelinho dos silêncios há quem recorde traições, infidelidades, doenças mais ou menos graves, os espíritos liberais confrontam-se com os tradicionalistas, estes nitidamente cautelosos e defensivos. Alguém, dentro da reunião mundana, propõe um jogo, algo como o resumo de um romance que todos gostariam de escrever, não assinado, que depois seria lido em voz alta, competindo à assembleia (os participantes da reunião) adivinhar o autor. É um pouco como o teatro dentro do teatro, os diálogos entram em conflito e, paradoxalmente, em unidade, com o que cada um pensa interiormente. Assim se desfia a trama do romance em que múltiplos contadores colam as suas histórias que vencem as solidões pois que a apoteose de todas estas reuniões é descobrir sempre a alegria de nunca estarmos sós. Estão aqui bem vincados os caracteres destes grupos sociais, os seus gostos e as suas preferências, vemos timidamente o discurso da emancipação da mulher, o rompimento com o país imóvel, as contradições de uma classe que aspira ao desenvolvimento e à liberdade de espírito. Leio, volto atrás, identifico pessoas, atitudes, ambientes. Conheço um pouco deste país de que fala Isabel da Nóbrega, rendo-me ao encadeado da psicologia das personagens, à conversação e ao sonho, à afirmação categórica e à dúvida escondida. Um belo romance.

Capa de João Câmara Leme, Portugália Editora, 1965. Trata-se de um jantar de gente das classes médias, celebra-se o restabelecimento do anfitrião, nessa noite de Verão um conjunto de familiares e amigos vai discorrer sobre os temas que os preocupam: o crescimento dos filhos, os preconceitos sociais, os divórcios, as leituras, as recordações da juventude, entre outros. É um vasto encadeado de diálogos a que se misturam reflexões íntimas de quem escuta e sentencia. Está ali mais ou menos tudo o que pensava uma classe a liberalizar-se, obrigando os tradicionalistas a refugiarem-se em esquemas lógicos defensivos. Uma classe média que não vivia a guerra em África e que praticamente vivia à margem do regime de Salazar. Obra original, subtil e cruel com a solidão daqueles que se alimentam a viver com os outros.

(ii) O momento da partida

Encontramo-nos à porta da cervejaria Mário, bebemos todos Fanta, a todos prometi escrever em breve. Ando, aliás, com o meu caderninho viajante, espero esta tarde começar a listar as minhas actividades assim que chegar a Lisboa. De novo em cortejo ou roda-viva avançamos para o cais, oiço exclamações atrás de mim, é Jolá Indjai que chega, sabia que ele tinha voltado à Guiné tratado da sua tuberculose, vem com um sorriso doce agradecer a hospitalidade dos meus familiares. É nesse momento que não sustenho as lágrimas, vejo o espanto e a confusão no rosto dos meus amigos, a situação resolve-se quando a sirene nos chama para bordo. No convés aceno a todos e junto-me aos oficiais que vão ouvir uma prelecção feita por um oficial general que agradece os serviços que prestámos à Pátria. A todos cumprimenta e abandona o salão prontamente cercado pelos seus acompanhantes. É o tumulto da despedida, agora tenho tempo para observar a excitação dos contingentes cabo-verdianos e açorianos com quem vou viajar. Sente-se a serpentina de calor abafado pelo Canal do Geba fora, há quem identifique Prabis, depois Ponta Prainha e depois Ponta Biombo. A caminho do lusco-fusco temos Caió à direita e a ilha Caravela à esquerda. Depois, entramos no negrume do Atlântico.

Antes, durante e a seguir ao almoço aproveitei para saudar gente que não via há anos, depois escrevi e li. Ficou registado no meu caderninho viajante: dar prioridade à visita à mãe do Carlos Sampaio, visitar o Sr. Raimundo Rodrigues Oliveira que me mandava pelo Natal broas pagando bem caro os portes de correio, agora está tolhido numa cadeira de rodas, ir buscar o Fodé, o Paulo e o Alcino (?) e passearmos por Lisboa.
Estou a ler Aquele dia inesquecível, de James Hilton, de quem já tinha lido Adeus Mr. Chips e o singular romance policial Acidente ou Crime?. Estou rendido à subtileza da história e aos contrastes de uma relação conjugal condenada à ruptura. Naquele dia inesquecível, 1 de Setembro de 1921, George Boswell recebe a visita de Lorde Winslow, que visita Browdley, a cidade industrial onde George trabalha cheio de empenho para a melhoria das condições de vida dos seus munícipes. Lorde Winslow pede-lhe que o acompanhe numa viagem ao Continente, poios o seu filho, Jeff, vive uma relação amorosa, ruinosa, com Lívia a mulher de George Boswell. Sigo empolgado o drama deste conselheiro municipal e director de jornal regional. Somos levados ao passado, a outro drama, o da família Channing, a família de Lívia, depois à paixão de George por Lívia, a morte do filho do casal, os graves desencontros.
Interrompo a leitura, regresso ao convívio, ao jogo das cartas, ao jantar e às conversas sem rumo nem destino. Alguém, na mesa do comandante, informa que a água do banho está racionada, temos sensivelmente trinta minutos entre as 6h45 e as 7h15 para usarmos o chuveiro. Habituados que estamos todos às soluções práticas, entendi-me prontamente com o José Alberto e o Tomé: punha o despertador para as 6h45, saía da cabine para o chuveiro, minutos depois regressaria, seria a vez do José Alberto, a seguir a este tomaria duche o Tomé. Ora, o que se passou no primeiro, no segundo e no terceiro dia? Ainda a limpar-me chamava o José Alberto, quando este regressava o Tomé informava que não precisava de tomar banho, ficava para a manhã seguinte.
Passados estes três dias, não me contive e perguntei ao José Alberto: "O que se passa com o Tomé, está chateado, vai tomar banho a outro sítio, quer que se comece por ele, és capaz de me explicar?”. Surpreendido pela minha curiosidade, o José Alberto deixou-me de boca aberta: “Pá, o Tomé nunca tomou banho na Guiné, deves ser o único que não sabe. Mesmo quando jogava futebol ou vinha das operações, molhava-se com um pano humedecido, não me perguntes porque é que ele não cheira mal. O espantoso é que faz a barba todos os dias, lava a cabeça e põe brilhantina”.
Vivi doze dias numa cabine com o Tomé e a verdade é que não havia maus cheiros. Às vezes olhava-o de lado, a ver se ele se coçava ou a sujidade aparecia na pele ou caía no chão. Era a primeira vez que eu ouvia falar num ser humano, branco, preto ou mulato, totalmente incompatibilizado com o banho durante dois anos consecutivos naquela tórrida África Ocidental.

Tradução de Leonel Vallandro, capa de Bernardo Marques, Colecção Dois Mundos, Livros do Brasil. É um romance muito belo, de estrutura formal, uma interessante análise de uma cidade industrial entre o século XIX e o fim da segunda guerra mundial. Iremos simpatizar do princípio ao fim com George Boswell, a sua moral de dedicação às pessoas e às obras, sentir elevado apreço pelos sentimentos de Lívia, sua mulher, até percebermos que se transformou num autómato da determinação. Aquele dia inesquecível ocorreu a 1 de Setembro de 1921, quando George Boswell soube que Lívia partira para se juntar a Jeff, um jovem diplomata filho de Lorde Winslow. O mundo de George mudou, centrou-se no seu serviço público a Browdley e ao trabalho autárquico. No final, Lívia vai reaparecer mas George toma partido pelas decisões do filho, que a mãe pretende oprimir. James Hilton, naquele início dos anos 70 em que eu o estava a ler, caminhava para o esquecimento. No entanto, este livro, +por si só comprova que estamos perante um grande escritor.




(iii) Do Sal para São Vicente, de São Vicente para Ponta Delgada

Estremunhado, acordo naquele amanhecer barulhento. Fui ver à escotilha, a aridez do Sal está diante de nós, a gritaria da tropa cabo-verdiana é ensurdecedora quando descem para o batelão que os conduz a terra firme, dizem-nos adeus mas só olham para a sua ilha. E seguimos sem nada à vista na linha do horizonte até que vários pontos minúsculos nos dão conta que contornamos um arquipélago, o Carvalho Araújo avança para a baía do Porto Grande em Mindelo. Tivemos licença para sair, Mindelo tem um belo património, em primeiro lugar alugámos táxis e partimos para a praia de Salamansa, por vinte escudos cada um teve uma barrigada de marisco, depois regressámos ao Mindelo que impressiona pela sua arquitectura colonial, é uma cidade cheia de história, ganha pelo pitoresco da posição, graças ao Monte Cara a despontar num dos recantos da baía e avistando-se Santo Antão lá ao fundo. Sente-se a cultura, o nível de alfabetização, sem dúvida a África cruza-se aqui com a Europa. Entardecia quando o Carvalho Araújo levantou ferro a caminho dos Açores.

Ando amolecido, passeio-me pelo convés com uma braçada de livros, A Metamorfose, de Kafka, O Caso do Olho de Vidro, de Erle Stanley Gardner, o livro de James Hilton e até a História da Guiné, de João Barreto, cuja capa está já praticamente desfeita. A excitação dos primeiros dias está a esfriar, as emoções assentam, há cada vez mais gente a meditar para o fundo do horizonte, é lá que uma nova vida nos aguarda.
Leio um pouco da História da Guiné, a sua separação de Cabo Verde, em 1879, isto no tempo de Fontes Pereira de Melo. O novo governo colonial faz tratados com régulos, procura reduzir os atritos, o que não impede um número crescente de revoltas que transformam os acordos e os tratados de paz em coisa nenhuma. Na verdade, governa-se em Bolama, há comércio no Cacheu e na região dos presídios mas a obediência é sempre contingente, com o liberalismo a missionação tornou-se insignificante, as revoltas reacendem-se a todo o instante. É na página 310 que dou de novo com Marques Geraldes, de quem já aqui se falou quando era Itálicocomandante de Geba e que fora resgatar gente roubada junto do régulo Dembel, com um comportamento e uma galhardia que me comoveram, isto em 1883. O autor desta História da Guiné chama-lhe um herói esquecido, refere a sua ousadia quando Marques Geraldes, já tenente, toma a tabanca do régulo de Mansomine, ataca Mussá Moló, em 1886, o que vai trazer alguma tranquilidade na região do Geba. É um tempo de assaltos, de disputas ferozes entre régulos, Bissau está permanentemente hostilizada, a Guiné parece não atrair investimentos nem colonos, tenta-se mesmo criar uma companhia majestática abrangendo toda a colónia, mas tudo falha. Fecho o livro e recordo com saudade os seis meses que vivi em São Miguel, as amizades que cimentei. Esses amigos estarão amanhã à minha espera no porto de Ponta Delgada.

Foi a primeira história da Guiné, escrita por um sanitarista. Está longe de ser um livro perfeito, mas abriu caminho para os dois volumes "A Guiné Portuguesa", de Teixeira da Mota, de 1954. Nos anos 80, René Pélissier iria publicar a "História da Guiné - Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", entre nós editada pela Editorial Estampa, em 1989. O João Barreto organizou o seu trabalho à procura de público amplo que se interessa-se fundamentalmente por: o reconhecimento da história da Guiné e o processo colonizador que se lhe seguiu, com capitanias e presídios; a história da Guiné depois da Restauração de 1640, uma minuciosa descrição do que ali ocorreu ao longo de todo o século XIX, a definição de fronteiras, a questão de Bolama, o aparecimento do Governo Autónomo, a letargia do fim de século, a Guiné e a I República, o tráfego de escravos, a obra de Teixeira Pinto, as missões religiosas, a reorganização dos serviços administrativos. A despeito de todos os seus defeitos, é a obra de arranque para a ténue historiografia disponível sobre a Guiné, como colónia e país independente.



Será uma experiência emocionante. Com lentidão, o navio avança para o comprido dedo do molhe do cais, uma multidão de mulheres vestidas de preto vigia a aproximação dos seus filhos, maridos, netos. Ouve-se o sulcar das águas e o resfolegar da casa das máquinas, há gaivotas em toda a parte, nem no navio nem em terra se ouve uma voz. Estamos a escassos metros quando alguém grita de terra, ergue-se um coro, os braços acenam freneticamente, parece que se deu o milagre instantâneo do reconhecimento. É uma alegria contagiante, quase todos os que vão para Lisboa choram desalmadamente com a possessão que se instalou nos que estão em terra e que parecem querer voar para o navio, tal a vibração do sangue. O barco atraca, a tropa açoriana desce a escada em alvoroço, só vejo braços abertos, só oiço gritos, toda aquela espontaneidade avassala quem está a bordo e só depois, discretamente, descemos para terra. Temos direito a só regressar de madrugada.

No cais, aguardam-me Maria e Marino Teves, a Bibi e algumas filhas do Dr. José Maria de Medeiros, o padre Weber. Aguento o embate, sou levado para a rua de Santa Clara n.º 2 onde nos esperam mais amigos, segue-se um quase banquete, não se fala da guerra, fala-se exclusivamente daqueles tempos de 1967 e 1968 que precederam a partida para a Guiné. Telefono à Cristina, tenho a voz embargada quando lhe digo eufórico: “Dentro de três dias, ao amanhecer, estarei em nossa casa”. A Cristina responde: “Com o dinheiro disponível, creio que não poderia fazer melhor. O quarto tem o essencial, chegam hoje umas estantes para a sala, com o tempo compraremos mais electrodomésticos. Para começar, penso que não vais ficar decepcionado”.

(iv) Chegada a Lisboa

Anoiteceu quando chegámos a Cascais, de mansinho o Carvalho Araújo planta-se em frente ao Bugio. Estou a acabar de ler Aquele dia inesquecível. Lívia comunica a sua separação, parte para Genebra. George Boswell trabalha desalmadamente, Browdley desenvolve-se, prospera. Vem nova guerra, o filho de Lívia e Jeff Winslow aparece em Browdley ferido. Mais tarde George reencontra Lívia, esta procura reaproximação, mas os afectos estão mortos. Aquele dia inesquecível mudara tudo. Meditava neste belo romance mas as luzes de Cascais e Estoril prendiam-me como um íman. Rendo-me definitivamente ao pandemónio que vai a bordo.

Em alvoroço, subimos e descemos todos os andares do Carvalho Araújo, à procura de referências e de diferenças, assinalando em voz alta o que conhecemos, ouve-se o trânsito na Marginal, ouve-se o rolar dos carros na ponte sobre o Tejo. Há um estado anormal de excitação, joga-se até desoras, bebe-se muito, parece que é exactamente agora que acabou a guerra. É a febre do primeiro dia fora da comissão militar, parece que já estamos desfardados.

Comemos o pequeno-almoço à pressa, há quem esteja à mesa com os seus pertences à volta, não vá chegar aí uma ordem para regressar à Guiné. Saímos de roldão, quem vem em unidade militar tem de controlar as emoções, a gente da rendição individual foge para as saídas, indiferente à gritaria dos diferentes administrativos a quem compete indicar aonde nos devemos apresentar. Fico a saber que as minhas caixas seguem para um quartel na Calçada da Ajuda, informam-me que tenho uma entrevista com um major da unidade na manhã seguinte, o Exército pretende fazer um contrato comigo. Saio desabrido por aquele Cais da Rocha do Conde de Óbidos onde embarquei na manhã de 24 de Julho de 1968. Visto a farda n.º 2, com a calça comprida, não tive dificuldade em conseguir um táxi, quando me instalo, com a mala bem pesada e a arte guineense atada por cordas, posta nos meus costados, parece que estou a dar ordens para partirmos para o Xime ou o Xitole. Faço perguntas, oiço comentários, identifico sítios, assombro-me com algum edifício desconhecido.

O táxi passa pelo Cais das Colunas, esta é a minha Lisboa, pareço um gaiato a apontar para o Castelo de São Jorge, banzado com os cacilheiros, o trânsito da Baixa, a imponência quieta da Avenida da Liberdade. Passamos pelo Saldanha, só faltou acenar ao Monumental, onde fui tantas vezes ao cinema e teatro. É uma manhã de Agosto quente, mas não sinto a humidade da Guiné, incendeia-me o entusiasmo de querer avisar meio mundo que cheguei a Lisboa e que tenho planos para recomeçar a minha vida. O táxi perece voar, é a vez do chofer fazer perguntas, tem um filho a fazer recruta, quer saber se a guerra da Guiné é tão dura quanto por aí dizem à boca calada. Dou respostas assépticas, hoje não quero que o senhor chofer tenha maus sonhos. Passamos pelo Campo Grande que conheço a palmo, o jardim está a definhar, talvez seja do calor do Verão, tem pouco a ver com o verde viçoso e os lindos canteiros de flores que sempre conheci em miúdo. De repente, lembrei-me da felicidade que senti, tinha eu 11 anos, quando achei uma nota de 20 escudos dentro do jardim e ofereci à minha mãe. O táxi vira à direita e entra na Avenida do Brasil, pára ao lado da Garagem Dragão, tinha sido esta a referência que a Cristina me dera ao telefone, estava eu em Ponta Delgada.

Tiro a custo o malão pesado, a arte guineense chocalha com tanto movimento, os mirones param na rua com este quadro insólito. Toco a campainha, oiço a declaração de alegria da Cristina. À porta de um sexto andar gritamos e beijamo-nos. Arrasto o malão para a entrada, a Cristina freme de entusiasmo, quer mostrar o espaço organizado: a salinha com alcatifa em tom azul-marinho, depois um quarto ainda vazio, a cozinha com a mesa já posta para o almoço, é daqui que avisto uma Lisboa com arranha-céus até ao Sheraton, vou fazendo perguntas, a Cristina procura responder. Depois o corredor faz um cotovelo, há uma casa de banho e ao fundo o nosso quarto com janela tendo o Júlio de Matos como fundo. É um ambiente cheio de ternura, a Cristina foi uma grande artífice com os poucos tostões disponíveis.

É no momento em que lhe estou a pegar nas mãos e lhe procuro agradecer tudo quanto tem feito por mim que sinto um rugido medonho, as paredes estremecem, sinto um pânico, estendo os braços com as mãos viradas para a frente, sinto-me em Missirá, procuro um morteiro 81 cercado por bidões cheios de terra e cimentados, preparo-me para gritar, quero todos a postos para reagir contra as gentes de Madina. São segundos de total desencontro, os olhos procuram orientar a melhor resposta para aquele ataque ao fim da manhã.
A Cristina apercebe-se de que estou a viver aquilo que ela já lera em relatos sobre quem chega da guerra: um simples estampido de um carro põe um ex-combatente à procura do inimigo, deitado no chão ou lançando-se sobre as pessoas. A Cristina serena-me: “Estamos na linha do aeroporto, dentro de dias estás completamente habituado a este barulho. Acalma-te, Mário, a guerra acabou. Olha, tens ali uma carta do Ruy Cinatti. Vou acabar o almoço, tenho sardinhas no forno, como tu pediste”.

Recomposto do choque, abro a carta do Ruy. Começa com uma linda saudação, diz que está a escrever um livro sobre Timor e que entretanto prepara duas conferências. Diz que está contente com a minha decisão de voltar a estudar e oferece-me um poema:

Tempo de Vigília

Da realidade concreta erguer um hino
que eleve os corações ao seu destino,
mas tê-la, primeiro, qual a mão
que aperta, doendo,
destruindo ilusão
que a siga, fútil.

Ó delírio épico,
actual e sádico!
Ó salário! – medo
vago, involuntário!

A multidão inclina-se
perante o morto,
subindo até ao cimo da fadiga
o rosto absorto.

No lodo inquieto,
barrento, de águas vivas, jaz oferto
o corpo múltiplo
dos que negaram ser escravos.

Paz e perdão
aos vivos que alinham
cohortes futuras.

Alegria só
aos que se libertam.

A carta termina:
“É a minha vez de lhe agradecer toda a companhia que me deu. É possível que não entenda porque lhe ofereço hoje este poema. Daqui a uns anos falaremos. V. veio diferente, veio liberto e melhor preparado para lutar na vida. Não se arrependa pelo amor que deu e recebeu. É bom tê-lo de volta. Não se esqueça do que viveu. Não se esqueça do que sofreu. Transforme tudo em dívida consigo. Até breve”.
_____________

Nota dos editores:

(*) Vd. os postes anteriores desta série, por ordem cronológica:

13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2123: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (2): Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido

28 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2138: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (3): Op Pato Rufia (Xime, Setembro de 1969)

5 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2154: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (4): Cartas de Missirá, Setembro de 1969

12 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2174: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (5): Aquela Terceira Semana Prodigiosa de Setembro

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2195: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (6): Hoje perdi o meu braço direito, o Casanova

26 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2218: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (7): Afundem a armada de Madina

9 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2251: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (8): Cartas que levam saudade(s) das terras e das gentes do Cuor

16 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2299: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (10): O meu amigo açoriano de Bissau

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2317: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (11): O fantasma de Infali Soncó

6 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2331: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (12): Um Adeus a Missirá, e um poema de Ruy Cinatti a M. Caetano e M. Soares

14 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2349: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (13): Na despedida de Missirá, em que me tornei um Soncó

4 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2407: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (14): O falso descanso em Bambadinca

11 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2431: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (15): Oficial e cavalheiro em Bambadinca, às ordens de Dona Violete

18 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2449: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (16): Aqueles dias cinzentos e nómadas de Bambadinca em Dezembro

25 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

1 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2498: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (18): Operação Punhal Resistente

8 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2513: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (19): O Natal de 1969 em Bambadinca e na Ponte do Rio Udunduma

15 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2540: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (20): A morte de Uam Sambu, na Missão do Sono, em Bambadincazinho

22 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2570: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (21): Em Bissau, em tempo de Vesperax, curando uma depressão

29 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja
Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso


21 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2668: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (24): Cartas de Bambadinca, Janeiro / Fevereiro de 1970

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2693: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos (25): A festa do meu casamento, 7 de Fevereiro de 1970

4 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2720: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (26): Cartas de amor e de amizade

11 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2749: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (27): Quando os mortos abrem os olhos aos vivos

18 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2771: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (28): A euforia de comandar cem homens na Op Rinoceronte Temível

27 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2797: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (29): Lá estarei em Bissalanca à tua espera!

5 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2810: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (30): O Xime, sem ferro mas com fogo...

10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio

19 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2861: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (32): Operação Pavão Real

30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

15 de Junho de 2008 Guiné 63/74 - P2945: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (34): Presentes de casamento

20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2968: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (35): Just Married

27 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2990: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (36): Um memorável batuque, em Bissau, na Mãe de Água, em honra da Cristina

6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3027: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (37): Com baixa psiquiátrica, no Hospital Militar de Bissau

11 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3078: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (39): Adeus, até ao meu regresso

24 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3091: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (40): Operação Beringela Doce: Da cabeça não me sai aquela mulher morta...

8 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3120: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (41): Um mês nos Nhabijões

5 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3172: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (42): Cartas de um militar de além-mar em África... (5)

12 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3195: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (43): Um grande ataque a Demba Taco

19 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3218: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (44): Em Bissau, no julgamento de Quebá Sissé

26 de Setembro de 2008 Guiné 63/74 - P3242: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (45): Um almoço tardio com um engenheiro exterminador

3 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3266: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (46): Chegou o meu periquito

10 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3290: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (47): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)...

17 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3327: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (48): O adeus a Bambadinca

24 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3349: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (49): Prometo que hei-de voltar

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3349: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (49): Prometo que hei-de voltar


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Agosto de 1970

Operação Macaréu à vista


Episódio XLIX

PROMETO QUE HEI-DE VOLTAR!

Beja Santos

De Bambadinca para o Xime

Amanheceu, tenho o corpo moído de quem dormiu pouco e mal. Todos dormem ainda no quarto, vou ao duche, visto o camuflado, bebo um café com o estômago revoltado. Quando regresso ao quarto, há já bulício dentro e fora, a coluna que vai para o Xime está nos seus preparativos, a Daimler põe-se à frente, o Vacas de Carvalho exige participar na despedida. Num 404 são depositadas as duas caixas com papelada e discos, a mala com a roupa segue ao pé. Abraço quem fica, desde os companheiros do quarto, todos os efectivos da CCaç 12 e do BArt 2917 que andam por ali ou vão partir para missões. D. Violete e D. Ema estão à varanda, avanço para elas, é a minha vez de as surpreender com uma lembrança, deixei lá em casa o meu gira-discos a pilhas e todo o Chopin disponível, incluindo o Samson François, relíquia da Cristina. O rosto de Mamadu Soncó é uma máscara de inquietação, insiste em partir comigo, reitera que é um momento único, em Lisboa vou esquecê-lo, recorda que tem estudado, que sabe português, matemática, desenho e ciências naturais, em Lisboa poderá ir muito mais longe, eu que não lhe corte os sonhos. Não consigo desarmá-lo mesmo quando lhe ofereço a caneta, o tinteiro e um conjunto de livros que ele cobiçava abertamente e me pedia quando se sentava ao pé de mim, eu a escrever ele a ler. Ignoro abertamente que os seus pedidos vão persistir até hoje. A arrumar o correio, que remanesce destes dois anos de comissão, descubro um aerograma seu com data de Setembro de 1973, escrito em Bissau, ele comunica-me que já fez a quarta classe e que está a estudar e a trabalhar como escriturário na Polícia Militar, refere com orgulho que tirou um curso de dactilografia que lhe custou 1.300 escudos. Nos anos subsequentes à independência, entra nas finanças, deambula entre Bissau e Bolama. Continua a pedir para vir para Lisboa, eu não tenho resposta para lhe dar a não ser enviando-lhe livros. Mais tarde, pedirá para a filha mais velha vir estudar em Lisboa. Ele é um Soncó, é naturalmente combativo, alguém lhe terá contado que o régulo Malã Soncó me incorporou na família, mesmo sem vínculos de sangue estou obrigado à solidariedade eterna com as gentes do Cuor. Subo para o burrinho, olho até ao fundo onde se vêem as lalas à volta de Finete, depois, antes de me sentar fixo o olhar na fachada da capela, agradecendo a Deus tudo quanto Ele me ofereceu. E partimos.

Na ponte de Udunduma despeço-me do Rodrigues e do seu pelotão. Ao passar por Amedalai aceno a quem está na estrada. Alguns quilómetros à frente, paramos nas obras do alcatroamento, o engenheiro Semedo insiste em desejar-me as maiores felicidades. A coluna prossegue com todas as precauções. O PAIGC retirou o estado de graça ao BArt 2917, as flagelações e as minas reapareceram no Xime, em Mansambo, na Ponte dos Fulas, no Corubal. O 3 de Agosto foi celebrado com alguma pompa, houve uma flagelação ao Enxalé a que se seguiu a reacção do fogo de obus do Xime; nesse mesmo dia o aquartelamento de Mansambo foi flagelado com morteiros 82, depois chegou a hora do Xime, regressaram igualmente as minas na estrada Xime-Bambadinca. Chegados ao Xime, mudei de indumentária, converso pela última vez com Cherno, entrego-lhe a G-3 e as cartucheiras para regressarem ao depósito de material, o camuflado estava prometido a Mamadu Silá, ofereço ao meu ditoso guarda-costas o meu relógio. O pelotão está formado em U, quase toda a gente que vai partir já embarcou na LDG. É um curto mas emocionado agradecimento que lhes dirijo, comecei por sorrir ao informar que todas as dívidas comigo estavam pagas, era escusado voltarem a escrever-me a pedir novas prorrogações. Não sei exactamente porquê, referi as obras de Missirá e as idas diárias a Mato de Cão, as lições que todos me tinham dado de resistência física e moral. Depois abracei-os um a um, ia pedindo a todos que ajudassem o alferes Nelson Reis como me tinham ajudado durante aqueles dois anos. Quando estava prestes a partir, dei conta que o Cherno desaparecera. Foi aí que me informaram que ele estava em grande sofrimento e que não queria que o vissem a chorar. A todos prometi que voltaria em breve.

Aturdido, subo para a LDG ainda a tempo de acenar à coluna que inverteu a marcha, vai regressar a Bambadinca, esta tarde haverá uma ida a Fá, depois a Bafatá, no regresso passarão por Galomaro para entregar materiais, à noite está-lhes reservada a ponte de Udunduma. Olho o Geba, à procura de Mato de Cão. A LDG parte para Bissau, há uns disparos ainda em Ponta Varela, pensei que fosse para intimidar eventuais atacantes. A partir daí, o Geba abre-se em luminoso estuário, o dia aquece, ouve-se o motor do vaso de guerra e o gralhar dos militares no seu bojo, é a boa disposição ou a euforia dos que partem para férias ou definitivamente. Vejo a minha imagem reflectida num vidro, confirmo que visto a farda n.º 2, tenho a boina bem posta, os sapatos engraxados. Sento-me e abro o caderninho viajante. Tomo as seguintes notas: escrever ao Paulo Costa e ao José Braga Chaves, em Moçambique; dar notícias à minha irmã, ela que foi sempre tão diligente, companhia semanal dos meus soldados doentes no anexo do Hospital Militar; ir visitar o Centro de Estudos da Guiné e depois escrever ao comandante Teixeira da Mota. Aqui parei, estou excitado com estes deveres que se podem cumprir sem os rigores de horário, constato que desta vez não tenho compras para fazer nos mercados do Bissau Velho e de Bandim, sinto-me desajeitado sem as obrigações e as rotinas. Vejo ao longe Porto Gole, afinal estou a fazer o mesmo itinerário de há dois anos atrás. Alguém passa por mim e pergunta se vou de férias ao que respondo que não, chegou a hora de regresso. Olhando novamente a minha imagem reflectida no vidro, falo para mim próprio: “A tua guerra acabou, tens que te preparar para pôr outros sonhos em prática”. As horas passam, venho de novo à amurada de onde avisto um ponto que sei ser o Ilhéu do Rei. Estou cansado, gostava de telefonar imediatamente à Cristina e à minha mãe, o que só poderei fazer ao fim da tarde. Não foi fácil chegar ao Vaticano III com toda aquela carga. Quando os correios estão prestes a fechar, entro de afogadilho e consigo as chamadas: “Em breve estarei aí, não duvidem, estou de boa saúde, logo que souber quando parto, volto a telefonar”. À saída dos correios, senti um arrepio, ainda pensei na malária, mas era, felizmente, só uma brisa muito própria da época das chuvas. Voltei a confirmar que finalmente tinha todo o tempo livre para mim. Começara a separação dos meus queridos amigos do Pel Caç Nat 52.

A última visita ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa

À noite, lancei-me febrilmente a escrever aerogramas, numa tentativa desesperada na sala de oficiais do QG de me isolar de todas as conversas à volta da guerra. Despeço-me de alguns amigos, dou comigo a mandar uma carta a Bacari Soncó, mas também a escrever a Fodé Dahaba e a Paulo Semedo, em Lisboa. No Vaticano III inicia-se uma peripécia que me irá custar 10 escudos que entregarei na esquadra da polícia do Campo Grande, em 1972, sob escolta policial a partir de casa. Quando pedi lençóis ao soldado quarteleiro recebi dois e uma fronha, como era do uso. Um dos lençóis estava rasgado de alto a baixo, fui informar, ele disse não ter importância. Para mim também não, continuava a ter um sono de pedra e não era possível rasgar mais aquele resto de lençol. Quando no dia da partida para o cais de Bissau fiz a entrega dos lençóis, o quarteleiro de serviço pediu que lhe pagasse um novo lençol, o que eu lhe estava a entregar era irreparável. Não lhe dei troco, ele tomou nota do meu número mecanográfico e o polícia do Campo Grande pediu-me os 10 escudos, recusei mas acabei por pagar na esquadra. Estava a aprender o mal que andara a fazer com as minhas deprecadas...

Não sei o tempo que me resta em Bissau, à cautela apareço no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e pedi para consultar duas obras: “Usos e costumes jurídicos dos mandingas”, por Artur Augusto da Silva, vinha tudo em dois números do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, de 1968, e “O Ultramar Português no século XIX”, por A. da Silva Rego, Agência Geral do Ultramar, 1966. Aquela biblioteca quase não deixa filtrar o que se passa no exterior, não há ninguém no Museu, ali ao lado, aquele funcionário sempre tão reservado mas sempre solicito mexe-se com toda a cautela, não quer perturbar quem lê e escreve. No livro sobre os mandingas, paro para recuperar a ideia de que a conversão dos animistas, tendo sido brutal por parte dos fulas, até ao início do século XX, que iam empurrando para o litoral aqueles que não se muçulmanizavam, acabou por se adaptar aos usos e costumes dos próprios animistas. Daí o sucesso da islamização dos povos da Guiné que soube compreender que não podia hostilizar abertamente todas as crenças ancestrais. Os mandingas souberam dar esse exemplo de não pôr completamente de parte os princípios da religião ancestral. Leio e procuro compreender à distância Malã e Lãnsana Soncó: todo o comportamento humano é julgado, punido ou premiado unicamente pela religião, ao contrário das sociedades ocidentais. Mas também os mandingas não ignoravam o legado dos antepassados, as relações sociais e familiares modeladas pelos que já morreram e definem a sabedoria da colectividade. Leio e revejo a força do sincretismo religioso que presenciei em Missirá e Finete, dou conta da importância dos nomes, das castas, do levirato, da filiação, das interdições, do julgamento dos crimes. Leio e o meu espírito divaga a pensar em apelidos como os Mané e os Sani, os Camará e os Cassamá. Depois lembro-me dos ferreiros, alfaiates, tintureiros, ourives, sapateiros e tecelões, lembro-me da falta de direitos dos que estão sob a tutela dos pais, da severidade contra os crimes praticados às pessoas e contra a propriedade. Artur Augusto da Silva fala no crime de adultério, os casos que presenciei em Missirá e Finete acabaram quase todos por serem resolvidos a bem, no fundo aquela sociedade rígida e cruel com a mulher concede-lhe o direito a partir e prende o homem ao terror da esterilidade. Prometo a mim próprio que hei-de estudar mais estas notas que registei no caderninho viajante.

O livro do padre Silva Rego pareceu-me uma valiosa síntese do que aconteceu no Ultramar Português ao longo do século XIX, onde se procurou recuperar a inércia do século anterior. Tomei nota que a Constituição Política da Monarquia Portuguesa, de 1822, não fala da Guiné refere única e exclusivamente Bissau e Cacheu. As alusões à Guiné prendem-se com Honório Pereira Barreto e a questão de Bolama. Barreto é uma figura surpreendente, as fronteiras da Guiné devem-se ao seu esforço, à sua tenacidade em impedir a gula dos franceses. A questão de Bolama inibe igualmente outro pretendente à posição portuguesa, a Inglaterra. Quiseram fundar aqui um estabelecimento de colonização, no fim do século XVIII, a expedição redundou num desastre. Como tinham comprado a ilha a dois régulos, décadas mais tarde reacendeu-se a polémica, os incidentes e a tensão diplomática. Portugal propôs uma decisão arbitral e sugeriu o presidente dos Estados Unidos, Ulisses Grant. A sentença foi proferida em 1870 a nosso favor. Para conhecer a sentença fui reler a História da Guiné de João Barreto. Estou satisfeito com todas as notas que tomei, não sei para que este material serve, não posso adivinhar que no exacto momento em que ponho termo a esta narrativa da minha comissão, os meus caderninhos serão entregues na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Despeço-me daquele reservado senhor que me abriu as portas a estas leituras no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Ele terá visto a contida emoção com que lhe falo e assegura-me que nada lhe devo. Titubeante, parto para o bulício de Bissau.

Em louvor de Doris Lessing

Que livro espantoso, “A erva canta”. Comecei lê-lo há alguns meses, ao princípio duvidei que aquela África existisse, que aquele drama fosse possível numa ruína de vidas perdidas numa fazenda da Rodésia do Sul. Tudo começa com o assassinato de Mary Turner, mulher de Richard Turner, um fazendeiro de Ngesi. O criado da casa, Moisés, confessou o crime, não houve roubo, a polícia não percebeu o móbil do crime. Os Turner eram inadaptados, uns verdadeiros falhados do mundo colonial, eram brancos pobres e o seu fracasso merecia ser esquecido. Estes incidentes dramáticos tiveram lugar quando Charlie Slatter, um fazendeiro próspero e vizinho dos Turner lhes propôs ficar com a fazenda. Doris Lessing é uma autora que eu não conheço. Mas a sua estrutura narrativa para nos levar à compreensão dos factos é surpreendente e prende-nos do princípio ao fim. Como numa investigação policial, antes do móbil são previamente apresentados os personagens, comungamos os seus estados de espírito, ouvimos opiniões, desenham-se atmosferas. Aos poucos, vamo-nos apercebendo da indiferença no casal, na sua pouca ousadia, na sua incapacidade de responder aos desafios do meio hostil. Moisés, o criado, vai progressivamente tomando conta das responsabilidades da casa e cuidando de Mary, cada vez mais ausente. O leitor fica absorvido com este estilo seguro de Lessing que nos prende como numa intriga policial. Foi assim que conheci Doris Lessing, hoje um nome consagrado da literatura inglesa e mundial.





Tradução (muito boa) de Daniel Gonçalves, capa de Paulo- Guilherme, Editora Ulisseia. Penso que foi a 1.ª tradução de Doris Lessing em português. É uma construção literária vigorosa, é uma narrativa muito segura, enleante, a atmosfera depressiva em que vivem os Turner não tem uma falha. Tudo começa com a notícia do crime de Moisés, o criado africano, a narrativa desbobina os acontecimentos do princípio até ao drama, estamos à espera de um desfecho sórdido ou de amores proibidos, a realidade é bem diferente, basta estar atento aos sinais de corrosão na vida de Mary Turner. Grande e inesquecível romance!







As outras leituras foram Rex Stout e o seu Nero Wolfe e mais um enigma altamente problemático de Ellery Queen. Em “Champanhe para um”, Archie Goodwin, o secretário de Nero Wolfe é convidado para um jantar promovido por uma multimilionária e onde vão estar presentes mães solteiras. Como é esperável num livro policial, uma das convidadas aparece morta depois de ter bebido champanhe com cianeto. Archie não aceita a tese de suicídio e inicia-se uma investigação que irá confirmar ter havido uma homicídio a que se seguirão outros. Nero Wolfe, para além do seu peso monumental, do seu apetite desenfreado e da sua obsessão pelas tulipas, desmonta a trama criminosa onde há vingança, cupidez e despeito. Não é brilhante, mas cumpre satisfatoriamente a função de entreter com elegante arquitectura literária.





N.º 150 da Colecção Vampiro, Tradução de Almeida Campos, capa de Lima de Freitas. Temos aqui um Nero Wolfe desempoeirado, a pensar na reputação de Archie Goodwin, seu indefectível secretário. Este aceita ir a um jantar onde estarão presentes mães solteiras, no âmbito de um projecto filantrópico. Uma das participadas morre envenenada, Archie Goodwin alerta a polícia: não foi suicídio mas sim homicídio. Nero Wolfe é logo procurado pela polícia e por vários participantes, com alguns problemas de consciência. Wolfe, como é próprio do se génio, deslinda o problema. Não é um Rex Stout antológico, mas está bem escrito e bem urdido.




“O Mistério da Cruz Egípcia” pareceu-me um dos livros mais artificiosos e mal estruturados de Ellery Queen. Aparecem corpos decapitados em dois pontos diferentes da América, Ellery inclina-se para um ritual secreto envolvendo a cultura egípcia, o drama arrasta-se, é um verdadeiro desgoverno de situações e hipóteses ziguezagueantes, tudo à volta de um criminoso que veio dos Balcãs e que anda a ajustar contas com a família. Para quem, como eu, andava a dormir no Vaticano III não foi a leitura mais acertada, fiquei desavindo com Ellery Queen durante um bom par de anos.

Hoje já sei da minha partida: regresso ao cais da Rocha do Conde de Óbidos a bordo do Carvalho de Araújo, disseram-me que é uma viagem longa, passaremos pelo Sal e São Vicente para largar tropa cabo-verdiana e depois atracaremos um dia no porto de Ponta Delgada onde sairão duas companhias de açorianos. O sargento que me atendeu disse-me: “Venha cá buscar a guia de marcha amanhã de manhã, à tarde já pode pôr as suas coisas no navio. Antes do fim do mês está em Lisboa”. Fui logo telefonar à Cristina e para São Miguel, são coisas do destino, parti de São Miguel para formar batalhão e seguir para a Guiné, chegou o momento de ir cumprimentar e rever queridas amizades fecundadas por esse tempo ingénuo do serviço militar do meu serviço militar.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3327: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (48): O adeus a Bambadinca

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3327: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (48): O adeus a Bambadinca


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Operação Macaréu à vista

Episódio XLVIII

O ADEUS A BAMBADINCA

Beja Santos

Um novo encontro com Cherno Suane na Pérola de São Paulo

São nove horas de uma manhã ensolarada de Junho de 2008, apresento-me na Rua de São Paulo num armazém de electrodomésticos e daqui parto com Cherno Suane para conversarmos numa mesa de café ali ao lado. Tinha-lhe pedido ajuda para rever os episódios da nossa vida entre Julho e Agosto de 1970. Estamos já a beberricar o café quando Cherno tira do bolso uma folha onde posso ler: emboscadas em Samba Silate, Ponte de Udunduma e patrulhamentos em direcção a Taibatá, noites na missão do sono, visitas às tabancas em autodefesa, colunas ao Xitole, aulas, relação do equipamento e armamento com o novo alferes. Decididamente, Cherno recorda o essencial: do amanhecer até ao entardecer na estrada alcatroada entre Amedalai, Ponta Coli e Xime, as emboscadas nocturnas na missão do sono, os recenseamentos de armas e os apoios às tabancas em autodefesa em Badora e no Cossé, as aulas... Mas havia pormenores difusos, pedi mais esclarecimentos. Cherno, como é seu hábito, vai do muito antes até ao muito depois, deixa-me a incumbência de filtrar o que pertence rigorosamente ao período que nos interessa analisar. Começou assim a sua lembrança: “Saíamos de burrinho de Bambadinca até aos Nhabijões, no último mês que estiveste connosco fomos três vezes à procura de canoas, uma vez encontrámos três, foram rebentadas à bala. As obras na estrada alcatroada eram uma canseira diária, com a chuva íamos e vínhamos lentamente, sempre à espera de emboscada, mas tivemos sempre sorte. A última patrulha que fizemos contigo e já com o alferes Reis foi em Cadamã, a tabanca de Ussumane Baldé. Não nos davas descanso, quase todos os dias tivemos aulas junto à escola não com a professora que te dava os livros mas com Dauda Bari, o cabo fula que viera de Gandembel, e Fodé Sani, de Bafatá. Havia pessoal chateado, Sadjo Seidi disse uma vez que era bom que te fosses embora, já não tínhamos idade para aprender mais letras enquanto tínhamos vida operacional. O menino filho de Quebá de Missirá, Mamadu Soncó, também ajudava nas aulas. Nessa altura chegou Demba Trilene, aquele milícia que te disse noutro dia que foi fuzilado depois da independência, gritou que não tinha feito mal nenhum, mas foi abatido”. Já não consigo extrair mais dados sobre a nossa vadiagem naqueles últimos dias. Afinal, correu tudo dentro da rotina, fizemos a verificação do material, analisámos os equipamentos, tudo correu bem e depressa, o fardamento novo tinha chegado há poucas semanas. Quando estou a comunicar a Cherno que o livro está praticamente pronto, foi a vez de ele me fazer perguntas: Tinha eu falado no ferimento de Quebá Soncó, o filho primogénito do régulo Malã, que viera de Madina, em 1965, com uma rótula desfeita? Escreverei eu no livro que Serifo Candé fizera parte da 3ª Companhia de Comandos? Ficara claro que Bacari Djassi, o nosso único beafada no pelotão, substituíra nas férias Mamadu Djau e Adulai Djaló? Ficava-se a perceber no meu livro que os barcos eram atacados em Mato de Cão até eu ir para Missirá e que depois nunca mais houve ataques, os que aconteceram tiveram lugar perto de Enxalé e Ponta Varela? Procurei explicar ao Cherno que eram impossível tanto detalhe, este livro não era propriamente a história do Pel Caç Nat 52 mas o que eu podia recordar de dois anos de Guiné. Com serenidade, sem qualquer azedume, ele observou: “Pensava que tu querias que toda a gente soubesse que nós lutámos sem nos negarmos ao trabalho, todos nós devíamos constar da história que vem no teu livro”. Já não tive resposta para lhe dar. Peguei na mochila com o equipamento de ginástica, guardei o caderno na minha pasta, abracei-o cheio de ternura, cada um foi para o seu trabalho. Ele ainda gritou: “Não te esqueças de escrever que tivemos muita sorte, muita ajuda de Deus”.

O último jantar em Bambadinca

O Nelson Reis e eu recebemos a indicação de que não iríamos naquela noite para a emboscada no Bambadincazinho, teríamos de permanecer no quartel. Para mim, o que aconteceu depois comoveu-me. Quando entrámos pelas 20h na messe, sentimos uma atmosfera de jantar de festa. Esperava que o novo batalhão me tributasse alguma gentileza na hora da despedida, mas um jantar daqueles estava muito além das minhas expectativas. Houve brindes e votos de felicidades e no termo do jantar, Domingos Magalhães Filipe, o comandante, sugeriu que passássemos para a messe, estavam ainda todos de pé quando o major Anjos de Carvalho leu uma proposta de louvor que fora enviada para Bissau. Como é usual nos louvores da tropa, invocaram-se as qualidades de comando deste alferes, a inteligência, a cultura, a sensatez e a extrema devoção à missão, atributos que para mim eram triviais, achava aquilo tudo sem sentido. Onde verdadeiramente me comovi foi nas referências à ligação a Missirá e à estima granjeada junto da população. Depois, a proposta de louvor voltou ao discurso que tanto agrada à tropa, como a referência à resistência física e moral, ao fino trato e às qualidades de comando e ao respeito e admiração dos subordinados. Por último, eu era dado como credor de estima e confiança de quem me iria louvar já que a minha acção na Guiné era digna de ser apontada como exemplo. E pela segunda vez fui louvado por quem me tinha punido. Tudo começara com um desacerto, já era tarde para se remediar aquela pequena injustiça e aquela desmedida incompreensão. Agradeci, pedi a todos que ajudassem o meu substituto, paguei o que devia no bar, pedi licença para ir arrumar os tarecos já que partiria na manhã seguinte para o Xime, e daqui para Bissau.

Durante a tarde, sempre acompanhado pelo Reis e pelo Pires, despedi-me nos estancos do Zé Maria e do Rendeiro, visitei as famílias dos soldados, fui aos CTT agradecer todas as amabilidades de D. Leontina, embaracei-me em casa de D. Violete quando a vi de lágrima no olho: “O Sr. alferes vai-nos fazer muita falta. Graças a si, tivemos que discutir o passado da Guiné, andámos à procura de papéis, tenho amigos intrigados com a sua pesquisa, ninguém percebe o seu interesse por Infali Soncó, Abdul Indjai e Mamadu Sissé, emprestaram as coisas que tinham, espero que um dia publique tudo. À minha mãe e a mim vai-nos fazer falta a sua companhia, o chá que tomávamos juntos, consigo pusemos entre parêntesis o que esta guerra mudou. Por favor, não se esqueça de nos escrever e de nos visitar quando a paz voltar à Guiné. Amanhã de manhã, espero dizer-lhe adeus na varanda”.


Cheguei a Bambadinca em 2 de Agosto de 1968, parti 2 anos depois. O jantar promovido pelo tenente-coronel Domingos Magalhães Filipe, comandante do Bart 2917, sensibilizou-me profundamente. Foi lida a proposta de um louvor que referia "inteligência, cultura, sensatez, sólida formação moral ( só nos louvores da tropa!)" e depois foram ditas coisas que me comoveram. Não as mereci ver escritas, mas traduziram toda a minha atitude.

No quarto, enquanto arrumava os últimos trastes, Mamadu Soncó insistia que queria vir comigo, tinha aprendido, insistia ele, o suficiente para ser bom aluno em Lisboa. Esgotei todos os meus argumentos, garanti-lhe que ia ver se era possível uma bolsa de estudo, ensaiei todas as promessas plausíveis. Ele respondia sempre: “Não, eu quero mesmo ir contigo, era tudo mais fácil, temos visto chegar e partir os militares que também prometem levar-nos e nada acontece. Não dou trabalho durante a viagem, leva-me que eu quero estudar e ter uma vida diferente da dos meus irmãos”. Estava cansado, garanti-lhe pela última vez que tudo faria para que ele tivesse uma vida diferente da dos seus irmãos.

As leituras inesquecíveis da última semana em Bambadinca

Nos últimos quinze dias, andámos praticamente a monte, o importante era deixar o Nelson Reis informado sobre o que era a intervenção na área de Bambadinca. Por pura casualidade, li do bom e do melhor. Primeiro, de Robert Merle, de quem já tinha lido “Fim de Semana em Zuydcoote”, devorei o empolgante “A Morte é o meu Ofício”. Trata-se de uma ficção acerca de uma figura fundamental do Holocausto, o chefe do Campo de Auschwitz, Rudolf Lang, nascido em 1900. Educado com disciplina severa e na ascese por um pai em estado de culpa, com dezasseis anos foge de casa e combate heroicamente na Turquia, de onde regressa humilhado e sentindo-se sem futuro. Irá entrar mais tarde na máquina nazi, devotar-se à missão que Himmler lhe confiou na tarefa de exterminar os judeus. Revelou-se zeloso, procurou a todo o transe os melhores resultados do assassínio em massa. Descoberto pelos americanos, respondeu sempre com naturalidade que obedecia a ordens, nunca se preocupou com o que pensava, o seu dever era obedecer. Dirá mesmo num interrogatório: “Compreende, pensei nos judeus como se fossem unidades, nunca como seres humanos. Refugiei-me no aspecto técnico da tarefa. Não tenho de que ter remorsos. O extermínio era talvez um erro. Mas não fui eu que o ordenei”. Será executado sem ter percebido o alcance do seu ofício de matar. Merle escreve sempre na primeira pessoa, não defende nem acusa, circunscreve-se a um estudo psicológico, como se estivesse a incarnar o indiscutível espírito de missão que Rudolf Lang aceitara. Enquanto lia este livro de Robert Merle, no meio das andanças, no meio das esperas e dos naturais tempos mortos,

Este livro de Robert Merle foi publicado na prestigiada Colecção Século XX, das Publicações Europa-América (que acolheu obras de Remarque, Hellmut Kirst, Pratolini, Sartre, Silone, entre outros). Tradução de Ana da Luz, capa de Jardim Portela, Publicações Europa-América, 1960. Logo a dedicatória: "A quem posso dedicar este livro senão às vítimas daqueles para quem a morte é um ofício?". Robert Merle, laureado com o Goncourt pelo livro "Fim de semana em Zuydcoote", levanta em "A morte é o meu ofício" questões dolorosas sobre o cumprimento de ordens como as das práticas do Holocausto. Vamos acompanhar a evolução de Rudolf Lang, o pretenso comandante de Auschwitz. Rudolf é produto de um educação severa, dominada pelos princípios de uma incontestada ortodoxia religiosa. Combate na frente turca ainda adolescente, vê a Alemanha espezinhada, assiste à ascensão do nazismo que irá servir incondicionalmente. Terá a missão de pôr de pé o assassínio em massa e irá cumprir sem hesitações, só preocupado com a eficiência dos resultados. Nunca admitirá a monstruosidade da máquina de chacina que montou, para cumprir as ordens de Himmler: "Não tenho de ter remorsos. O extermínio era talvez um erro. Mas não fui eu que o ordenei". Sim, até que ponto não somos solidários com a bestialidade dos outros? Quais os limites da disciplina e da ética? Para quem estava na guerra como eu, a pergunta provocava muita inquietação.


Li “Defesa sem controle”, de Mickey Spillane e “Cuidado com as curvas “, de A. A. Fair. O primeiro é seguramente o mais bem conseguido livro de Spillane, um livro de espionagem talhado para o mais americano e anti-comunista dos justiceiros, Tiger Mann. Um engenheiro de electrónica, um perito em mísseis intercontinentais balísticos, Louis Agrounsky, desaparece sem deixar rasto, mas suspeita-se que montou um sistema pessoal para controlar o uso desses mísseis. Agrounsky é um sabotador que tem um circuito secundário que pode virar do avesso o sistema defensivo dos EUA. O que há significativo neste livro é a estrutura da obra, fluída e plausível, emocionante do princípio ao fim, na trama da caçada, nos ardis utilizados pelos grupos de espionagem envolvidos. Inevitavelmente, Tiger Mann deixará um rasto de morte e irá surpreender-nos quando denunciar o chefe da quadrilha a soldo de Moscovo. Spillane é um escritor excepcional.


Número 241 da Colecção Vampiro, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, capa de Lima de Freitas. É um dos mais prodigiosos e bem arquitectados livros de Spillane. É mais do género de espionagem do que policial. Estamos na Guerra Fria, um cérebro doente, Louis Agrounski, viciou o sistema dos mísseis intercontinentais balísticos, pode criar uma inferioridade para os EUA. No livro alguém diz: "O Agrounski tem nas suas mãos algo que pode virar o mundo inteiro do avesso. Sabotou o nosso sistema de ICBMs, com um circuito secundário que lhe dá a possibilidade de o activar ou desactivar. Se não o encontrarmos antes de ele tomar uma decisão, perdemos, arriscamo-nos a ir todos desta para melhor. O herói chama-se Tiger Mann. Ele será confrontado com um dos atiradores mais expeditos ao serviço de Moscovo, haverá histórias de ocasião com algumas beldades deslumbrantes, a perseguição estará prestes a falhar, mas Tiger não só salvará a América e o mundo livre como destruirá uma tenebrosa rede de espionagem que esteve à beira de escravizar os democratas desse mundo livre. É uma boçalidade o que Spillane escrevia, só que ele era exímio e não teve grandes substitutos à altura.



A obra da A. A. Fair não tem esses méritos mas tem outros que empolgam a leitura. Bertha Cool e Donald Lam formam a parelha mais bizarra da literatura policial: ela nada sabe do ofício de detective mas é hábil a espremer os clientes; ele vive indiferente às rotinas burocráticas e ao deve e haver da empresa, só quer casos sofisticados. Desta vez um cliente procura alguém que só conhece pelo nome de Karl, que viu há seis anos em Paris, sabe que morava numa determinada localidade, era rico e estava a fazer a sua viagem de núpcias. O cliente pretendia reencontrar essa pessoa para obter o direito exclusivo de utilizar a sua história. Assim vai começar uma investigação rocambolesca, apura-se que houvera um crime, o cliente de Bertha e Donald aparece envolvido nesse homicídio, o júri decidirá pela sua condenação por homicídio sem premeditação, o crime fora cometido há mais de três anos, prescrevera, o acusado saiu em liberdade. É uma investigação cheia de artifícios, o verdadeiro homicida terá sido outro que, por ironia do destino, e graças a um plano maquiavélico de uma especialista em violações forjadas, será condenado a prisão perpétua.



Número 160 da Colecção Vampiro, tradução de Mascarenhas Barreto, capa original de Lima de Freitas. A. A. Fair era um pseudónimo de Erle Stanley Gardner. Isto para dizer que os crimes e as suas investigações passam sempre por tribunais onde se desafiam inteligências do foro criminal. A dupla Bertha Cool e Donald Lam é confrontada por um pedido de localização de uma pessoa que o cliente viu em Paris há muitos anos. A localização é quase imediata mas a seguir vem uma investigação prodigiosa, houvera um crime, desaparecera e reaparecera a arma, o júri considerou ter havido homicídio sem premeditação, o acusado saiu em liberdade. O par de advogados ganhou uma grossa maquia, uma senhora especialista em casos chantagistas de pseudo-violações consegue atirar o verdadeiro criminoso para uma prisão perpétua. Não é uma obra fulgurante, mas cumpriu a função de me ter entretido já não sei se na Ponte de Udunduma, nos Nhabijões ou ao ar fresco, enquanto se alcatroava a estrada entre Amedalai e o Xime.



O grande prato de substância das minhas leituras foi “Uma noite na toca do lobo”. Eu tinha admirado o livro anterior de Tomaz de Figueiredo, pedi que me enviassem este, li-o duas vezes cheio de emoção. Considero Tomaz de Figueiredo um dos maiores escritores portugueses, usa o castiço, as referências culturais e a construção dos monólogos-diálogos com genialidade. Diogo Coutinho, o senhor da Toca o Lobo, volta às suas recordações da meninice e juventude, oferece-nos um dos patifórios mais simpáticos da nossa literatura, Zé Cesteiro, tudo começa num serão à volta de um cosmorama em que duas amigas atraem os fantasmas de Diogo Coutinho. Logo no início: “Vinha assim, às vezes, ao pingar das Trindades, a prima D. Maria do Socorro, sequinha e combalida, mas a aparentar de grã-duquesa viúva, sob a tradicional capa alvadia de romeira encanunada e vivos de veludo roxo amortecido pelo tempo, herdanço de outra prima que a deixara no trinque, a prima D. Maria da Purificação, morgada e senhora de sete casas torrejadas no termo de três concelhos”. Naquela noite de serão participamos na cumplicidade entre D. Maria do Socorro e a tia Francisquinha, é aqui que assaltam as primeiras memórias, fala-se do Rei D. Miguel, dos passeios, das festas, de paixões inconsoláveis, de gente morta no auge do romantismo, de padres foliões, do grande traste que é o Zé Cesteiro, é uma galopada toda aquela noite na Toca do Lobo, o passado triunfal de muita gente do Alto Minho vem até à ribalta, dentro e fora do que se vê no cosmorama. Diogo Coutinho reaviva as lembranças, chama agora pelos mortos, eles engrandecem, do princípio ao fim, esta obra esplendorosa de Tomaz de Figueiredo.




4.ª Edição, 1985, Capa de Carlos Leitão, Editorial Verbo. Li a edição com capa de Sebastião Rodrigues, talvez o nosso maior designer gráfico so século passado, edição do princípio dos anos 60. Tomaz de Figueiredo pertence ao rol dos grandes escritores portugueses injustamente esquecidos. É um autor do castiço, dos valores da ruralidade perdida do Alto Minho, onde se fala do miguelismo, música, amores inconsequentes, memórias queridas trabalhadas em densos monólogos onde a reconstrução das possíveis conversas que são um ponto alto da literatura portuguesa. Diogo Coutinho, o herói da Toca do Lobo, volta à sua infância e juventude. Este livro alberga uma das nossas maiores criações literárias, o Zé Cesteiro, patifório simpático que nos deslumbrará com façanhas, seguramente aldrabadas, mas muito boas patranhas. Para mim, há uma outra doce memória, suplementar: foi o último livro que li em Bambadinca. No dia seguinte, a guerra iria acabar para mim.



Aos pés da minha cama já dorme o jovem Mamadu Soncó, deve estar a sonhar em ir comigo até Bissau e mudar de vida. Nas outras camas, adormeceram profundamente o Abel e o Moreira, foram dois camaradões que jamais esquecerei. As caixas em madeira estão fechadas, escrevi a tinta preta, grossa, o meu nome e destino. O sono demora a vir. Respiro os cheiros de África, que me irão acompanhar até ao fim da vida. Há um silêncio total à minha volta, quase diria que ninguém suspira pela guerra, estamos ali em Bambadinca, todos à espera que a vida renasça, e nós também.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 10 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3290: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (47): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)...

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3290: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (47): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)...


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.




Operação Macaréu à vista

Episódio XLVII

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (6) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA
Beja Santos

Para Ruy Cinatti


Ruy, Dear Father,

Primeiro, as boas notícias. Aproxima-se o termo da minha comissão, chegou há dias o meu substituto, em conversa com os comandos assentou-se que haverá um período de sobreposição que não excederá os quinze dias de modo a que ele fique a conhecer as nossas missões de intervenção em todo o sector. É provável que no fim de Agosto eu esteja em Lisboa. Até lá, durante esse período de transição, acompanharei o Nelson Wahnon Reis (é assim que ele se chama, é de trato afável, brando embora pouco comunicativo, a questão grave é que é cabo-verdiano, o que pode vir a ser uma incompatibilidade com soldados fulas e mandingas) a Enxalé, Xime, Mansambo e Xitole, faremos patrulhamentos e emboscadas, colunas de reabastecimento, não quero sair daqui deixando-o às aranhas, que foi na verdade a situação que eu vivi quando cheguei a Missirá, não sabia o que era material à carga e quais as minhas responsabilidades para fazer as folhas de pagamentos, por exemplo. Já estou a fazer projectos para os meus estudos, acabo de saber que a Cristina alugou uma casa de três divisões na Av. Brasil, penso rescindir o meu contrato com os serviços mecanográficos e fazer um contrato até cinco anos com o Exército, V. não ignora que há cada vez manos efectivos na população jovem, o Exército procura manter nas suas fileiras oficiais milicianos que supram inúmeras carências, dando-lhes facilidades para estudarem, que é o que verdadeiramente me interessa. Bem gostaria de ouvir a sua opinião, estou certo que me apoia neste meu desejo de voltar a estudar e cumprir os meus sonhos.

A má notícia já a sabe, mas eu vivi-a de perto. No passado dia 24, fomos avisados que iríamos montar segurança a um grupo de deputados que vinham visitar os reordenamentos dos Nhabijões e do Bambadincazinho, na manhã seguinte. Antes deles chegarem parti para os Nhabijões onde os recebi. Foi uma boa surpresa reencontrar o Dr. José Pedro Pinto Leite que conhecera num lançamento na Moraes, salvo erro em companhia do Prof. Miller Guerra, bem como numa conferência promovida pela JUC. Após a visita, ele e os outros deputados vieram até à messe de Bambadinca, estávamos a meio da tarde, formaram-se grupos, o Pinto Leite pediu-me discretamente para conversarmos em particular, cá fora. Saímos para junto de uma das portas de armas, com um copo na mão, ele queria saber o tipo de guerra em que estávamos envolvidos, a natureza das dificuldades que vivíamos, os apoios da guerrilha, etc. Inicialmente eu estava muito constrangido, são assuntos com que nunca falamos com os civis e muito menos com deputados. Ele pôs-me à vontade, queria só que eu fosse sincero. Com toda a naturalidade, então, falei-lhe como vivera no Cuor, o tipo de guerra que ali fazíamos e agora em Bambadinca. Escolhi o exemplo do Xime, uma povoação e um porto doravante fundamental para o abastecimento do Leste, que vai ter uma estrada alcatroada até Bambadinca, mas onde os guerrilheiros se movem sem grande embaraço a cerca de 4 km de distância. Ele perguntou-me como é que os guerrilheiros aguentavam tantas dificuldades. Creio que lhe terei dito que sempre viveram nas maiores dificuldades e se não se entregam é porque acreditam no que fazem. Disse-lhe igualmente que sentia cada vez mais dificuldades no campo militar e que as populações estavam forçadas ao jogo duplo. Ele tudo ouviu, de vez em quando pedia esclarecimentos, e regressámos à messe. Antes de entrar, ele observou: “A Guiné actual já não tem solução militar. Por favor guarde para si, o próprio governador gostaria de chegar a um acordo com Amílcar Cabral. Em Lisboa, espero poder dizer frontalmente tudo ao Presidente do Conselho. Tem que se chegar à paz”. Despedimo-nos pouco depois no aeródromo, prometi-lhe visitá-lo logo que chegasse a Lisboa. A 28, soubemos que na véspera um tornado precipitara o helicóptero em que ele ia com outros dois deputados, no rio Mansoa. Pode imaginar a minha mágoa, o mais grave é a perda para o país com o desaparecimento deste político tão promissor, gostei sempre muito da acutilância e a oportunidade das suas propostas. Imagino a consternação que V. sente, sei que também o apreciava muito. Por favor, não escreva mais para o meu SPM, prefiro ter a surpresa de encontrar uma carta sua na minha nova morada, que junto. Receba um grande abraço deste seu amigo que tanto lhe deve e que está ansioso por tocar à campainha da Travessa da Palmeira. Até muito em breve.


José Pedro Pinto Leite era um dos deputados da Ala Liberal, eleito para a Assembleia Nacional em 26 de Outubro de 1969, ao lado de Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Magalhães Mota e Miller Guerra. Torna-se num político prestigiado pela defesa de causas, desassombro de posições, o que lhe custa amargos de boca, tendo sido lançado contra ele a calúnia que servia interesses estrangeiros, que o levou a vir a público defender a sua honra. Visitou Bambadinca 2 dias antes de falecer num acidente aéreo.

Para Comandante Avelino Teixeira da Mora, em Luanda

Sr. Comandante e meu querido amigo,

É para lhe comunicar em primeiro lugar que estou prestes a partir para Bissau e penso que me metam no primeiro barco com destino a Lisboa. Escrevi hoje ao Ruy Cinatti e referi-lhe a conversa que tive com o deputado José Pedro Pinto Leite que veio aqui visitar dois reordenamentos e insistiu em saber, em privado, a minha opinião sobre a evolução da guerra. Ele estava informado sobre o uso de armamento moderno por parte do PAIGC, sobretudo os foguetões e o uso de morteiros muito eficientes. Senti que ele estava muito preocupado e revelou-me ter acesso directo ao Presidente do Conselho, com que iria falar logo que regressasse a Lisboa.

Os meus cadernos enchem-se de notas, tudo aquilo que aqui escrevo é seguramente do seu inteiro conhecimento, sei que um dia me vai ajudar a interpretar correctamente o que para mim ainda é obscuro ou ajudar-me a colmatar as lacunas. Não sei exactamente para que é que estes cadernos vão servir, agora só me interessa vê-los preenchidos com coisas que me enchem a alma. Sim, há figuras que me empolgam ou me intrigam. No primeiro caso está Mamadu Sissé, régulo mandinga e tenente de segunda linha que esteve na Exposição Colonial do Porto, em 1934, e no segundo caso temos Abdul Indjai ou Infali Soncó. Creio que já lhe disse que encontrei uma fotografia de Mamadu Sissé exactamente no catálogo da referida exposição. Não percebi porque é que ele foi condecorado pelo Alcaide de Vigo, talvez tenha sido uma boa vontade da Galiza com um guerreiro guineense que dedicou uma boa parte da sua vida a lutar ao lado dos portugueses na chamada pacificação das primeiras duas décadas deste século. Li que ele lutou contra a rebelião felupe, esteve na campanha do Oio contra os régulos Boncó Sanhá e Infali Soncó, e contra os papéis de Bissau. Também de acordo com os dados que recolhi, em 1913 bateu-se contra os balantas de Mansoa e os mandingas do Oio, creio que ao serviço de Teixeira Pinto. Em 1914, terá tido um comportamento valoroso na revolta dos manjacos e dos balantas. Nos anos seguintes, entre 1915 e 1917, aparece a combater novamente os papéis de Bissau e depois os Bijagós. Espero que em Lisboa me faculte mais elementos sobre este régulo que, tudo leva a crer, foi uma peça essencial para consagrar o domínio português na Guiné.

São penteados soberbos. Estas imagens foram publicadas na revista «Mundo Português», 1936, era director Augusto Cunha, editada conjuntamente pela Agência Geral das Colónias e pelo Secretariado da Propaganda Nacional.

Sei muito bem que em Luanda não me pode ajudar no esclarecimento das minhas dúvidas, mas gostava de saber como é que no final do século XIX se procurou pôr uma boa parte da economia da Guiné nas mãos dos condes de Buttler, investidores franceses. Uma professora aqui de Bambadinca emprestou-me um livro intitulado “Guiné Portuguesa, estudo elementar de geografia física, económica e política”, de autoria do capitão de mar e guerra Ernesto Vasconcellos. Foi aqui que eu encontrei referência aos condes de Buttler. Passo a citar: “O nosso domínio na Guiné efectuava-se por nódulos, isto é, não tínhamos uma divisão territorial contínua; existiam por assim dizer isolados uns dos outros os centros de ocupação a que vulgarmente se chamavam presídios e só depois de se dar unidade ao governo da Guiné é que se iniciou, mas em pequena escala, o alargamento da nossa acção, por meio de contratos de cessão territorial com os diversos régulos”. E mais adiante: “Na metrópole causava viva impressão o estado constante de rebelião em que se encontravam as três raças mais fortes e adiantadas da Guiné, fulas, mandingas e beafadas e António Enes, gerindo a pasta da marinha e ultramar, em 1891, pensou que a melhor maneira de libertar a metrópole de tantos cuidados com a Guiné, era entregar a colónia a uma grande companhia de colonização, e por isso, fez em Janeiro de 1891 concessão dos seus baldios aos condes de Buttler, que deviam formar uma companhia com o capital de 900 contos de réis. Os condes de Buttler eram franceses e seria sem dúvida em França onde encontrariam o capital para a sua exploração que, felizmente para o país, não chegou a efectuar-se”. Gostaria muito de perceber o que se passou e em que desespero nos encontrávamos para se ter optado por uma solução tão arredia aos interesses portugueses.

Esta imagem veio publicada num número de 1971 do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. O que há de macabro é tínhamos abandonado esta região em 1969, foi exactamente aqui que se deu o horrível sinistro que levou à morte 47 dos nossos militares durante a travessia de uma jangada preparada para a operação da evacuação de Madina de Boé. Dizem que é um ponto de indizível beleza, com mata luxuriante.

Continuo sem saber se já encontrou o meu primo José Augusto Gândara de Oliveira que está tão entusiasmado em conhecê-lo. Pela sua última carta percebi que a extensão de Angola e o bulício de Luanda o intimidam e prefere levar uma vida retirada, entregue aos seus estudos. Penso também que já espera passar o Natal na companhia de sua mãe. Será uma grande alegria estar consigo logo que regresse. Despeço-me, agradecendo-lhe tudo o que fez por mim, a companhia, os conselhos, as informações, os livros. Não pode imaginar como tem sido importante a sua amizade em todas estas circunstâncias, como me ajudou a vencer a solidão e a ignorância. Até Lisboa.

Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Tal como lhe escrevi anteontem, confirmo que dentro de dias partirei para Bissau. Não irei de avião, parece que haverá um barco em meados de Agosto, logo que tenha informações precisas comunico-lhe. Chegou o meu substituto, parece-me um homem moralmente bem preparado, mas estou preocupado pois ele é cabo-verdiano e temo que surjam conflitos independentemente da tolerância e da cultura. Só muito tarde é que despertei para esta realidade que muita gente finge não ver ou talvez queira iludir. Os problemas raciais são dinamite, começo agora a estudar e a procurar perceber este litígio entre cabo-verdianos e guineenses.

Tomei a decisão de mudar de profissão, o meu objectivo é concluir rapidamente o meu curso. Por essa razão, estou a informar-me sobre as possibilidades de um contrato que poderei estabelecer com o Exército, terei que dar recrutas em Mafra e depois terei condições para estudar em Lisboa, com o estatuto de militar-estudante. A Cristina já alugou uma casa, tem praticamente o curso concluído, pretende começar a dar aulas em Outubro. A guerra nesta zona está presentemente calma e os meus afazeres passam por patrulhamentos, vigilâncias numa estrada que está a ser alcatroada, colunas de reabastecimento, desloco-me com o meu substituto procurando explicar-lhe as nossas missões, se bem que a actividade operacional que lhe está reservada seja uma perfeita incógnita. Quem sabe se quando eu sair daqui não o põem no Enxalé ou noutro quartel. Por favor, não volte a escrever mais para o SPM, assim que chegar a Bissau telefono-lhe. Passando em revista estes dois anos que levo na Guiné, agradeço-lhe do coração as coisas boas que me deu, a companhia, os estímulo e os livros. Incluo neste agradecimento a ajuda notável que a Manuela me deu, ela continua a visitar aos sábados no anexo do Hospital Militar Principal os meus soldados, auxilia-os, manda-me publicações, tendo sido maravilhosa. Desejo as suas melhoras e até breve.

Para Cristina Allen Santos

Meu adorado Amor,

Vejo pela tua última carta que estás ansiosa para que eu parta depressa desta guerra, fiquei muito contente com os teus exames e a descrição que fazes da nossa casinha. É um esforço que eu nunca te poderei agradecer, o de estares a estudar e ao mesmo tempo a mobilar com escassos recursos o nosso palácio. Com o remanescente do dinheiro que tenho aí depositado, compraremos os outros electrodomésticos e os móveis de que falas.

Evidente que não te posso tranquilizar, mas partirei em breve, talvez dentro de uma semana. Por ora, ando com o Nelson Reis pelos locais que ele precisa de conhecer. Ainda hoje iremos a Fá, o Cabral fará connosco um reconhecimento junto ao Geba, frente ao Cuor. Não voltei a Missirá desde que fui ver o gerador a funcionar e não espero voltar. Nesta última visita fui assaltado pelas boas e más recordações, as idas diárias a Mato de Cão, não sei o que é que a vida me vai reservar mas não acredito que venha a ter mais energia, ânimo e protecção divina para aguentar um esforço como foi a reconstrução de Missirá. Comecei a embalar as minhas coisas, um carpinteiro fez-me duas caixas de madeira para os livros, papéis e discos, nada tão volumoso como a carga que trouxe há dois anos mas mesmo assim vai dar trabalho a metê-las no barco. Estou a escrever as últimas cartas para os nossos amigos e para a minha família, a tirar notas das últimas leituras das publicações que a professora de Bambadinca me empresta.

Vou escrever agora ao teu pai para lhe agradecer muito sensibilizado a ajuda material que eles nos deram no arranque da nossa casa. Esta, prometo-te, não será a última carta que te escrevo. No momento exacto em que partir daqui para Bissau, a última carta será para a primeira eleita do meu coração. Então, como num filme que corre velozmente, recordarei tudo quanto me deste nestes dois anos, quando estou desanimado lembro as tuas lágrimas no cais, em Lisboa, os nossos telefonemas, a ansiedade que te transmiti em tantas cartas, como se tu tivesses obrigação em saber que existem Mamadu Djau, Serifo Candé, Sila Sabali ou Adulai Djaló, recordarei a doce companhia que me deste, dia após dia. Foi assim que aprendi que há gentilezas, ternura e cuidados sem preço. Foi assim que te envolvi nesta guerra, escrevendo-te todos os dias. Foi a escrever-te que se revelou que eu não tenho talentos para a poesia. Descobri também que não tenho vocação para outras formas de ficção e isso entristece-me pois gostava de te dedicar a mais linda prosa do mundo, gostava que os outros soubessem que um dia irei reler as cartas que te mandei e orgulhar-me do que te escrevi. Recebe mil beijos do marido que tudo te deve.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 3 de Outubro de 2008 Guiné 63/74 - P3266: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (46): Chegou o meu periquito