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terça-feira, 12 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25266: Agenda cultural (850): Síntese da apresentação do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que esteve a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor do livro, "Margens - Vivências De Uma Guerra, com data de 10 de Março de 2024:

Caro Luís Graça e Coeditores
Seria interessante que o comentário a este livro MARGENS – VIVÊNCIAS DE UMA GUERRA, cuja apresentação foi feita pelo capitão de Abril, Coronel António Rosado da Luz, fosse elaborado por um dos nossos editores que saberiam escolher os trechos para o Blogue.
Sei, ainda, que o Mário Beja Santos, sempre presente nestas andanças, e carregado dos seus valores, fará uma abordagem à sua maneira.

Transcrevo parte desta apresentação, que me pareceu relevante para o nosso Blogue. De um grande capitão de Abril, cidadão interventivo e activo. Já agora: Este livro é dedicado aos capitães de Abril. No cinquentenário do 25 de Abril.

Paulo Salgado



"Margens – Vivências de Guerra"
Autor - Paulo Cordeiro Salgado

Apresentação pelo capitão de Abril
Coronel António Rosado da Luz

"Foi a primeira vez que me convidaram para APRESENTAR UM LIVRO.
Seguindo a “palavra de ordem” fundamental de “um tropa”,… lá tive que me “desenrascar” …

Nos tempos presentes, por opção, por força das circunstâncias e também por prazer e autorrealização pessoal, a atividade que ocupa 90% do meu tempo é ler.
Ler, estudar, investigar e escrever. E, ler este livro, deu-me imenso prazer por três razões, que me fazem ficar imensamente grato, quer ao Mário Tomé que sugeriu, quer ao Paulo Cordeiro Salgado que aceitou, terem-me proporcionado o imenso prazer de ler, em primeira mão, este livro.

A primeira dessas razões foi a de me terem dado oportunidade para me “desviar” dos temas quase obsessivos que ocupam a minha mente, permitindo-me regressar, por algum tempo, àquilo que posso denominar de “leitura lúdica”.


A segunda, pelo facto dos vários “planos”, logo anunciados no “preâmbulo” do livro, em que o autor decidiu “dar forma” ao tema central desta sua obra, me terem ajudado a refrescar a minha própria abordagem dos tais temas obsessivos que me ocupam a mente.

A terceira e mais importante razão para lhes estar grato é o imenso prazer… e até alguma emoção, …que são proporcionados pela leitura deste livro. O autor escreve, não só com arte, aquela arte de domínio da palavra que nos encanta ler, como escreve com alma, pois consegue pôr – e transmitir - emoção naquilo que escreve.


Mas este não é APENAS, ou, SOBRETUDO, não é um livro de memórias.
É um livro onde as emoções e as reflexões em torno dos dramas e das violências da GUERRA, da VIDA e da MORTE, se espraiam pelo AMOR, pela AMIZADE e pela SOLIDARIEDADE, mas também pela HISTÓRIA, pela POLÍTICA e por essa entidade mítica que nos condiciona, que nos abriga e que “somos”, que é PORTUGAL.

Embora não seja essa a forma como o livro está estruturado, podemos dividir o OBJETIVO do AUTOR em três “tempos”.


O primeiro “tempo” decorre nos dois primeiros anos da década de setenta. O autor deste livro, Paulo Cordeiro Salgado, que era na altura o Alferes miliciano mais antigo de uma companhia sediada no Olossato, a 27 quilómetros da fronteira com o Senegal e situada numa das zonas de guerra mais acesa, do Teatro de Operações da Guiné-Bissau, vê-se de repente, investido nas funções Comandante dessa Companhia, por morte, em combate, do Capitão que a comandava. Até à chegada de um novo Capitão que irá comandar a Companhia (que aqui está hoje presente entre nós) é ele, jovem de vinte e poucos anos, sem qualquer formação ou experiência para tal, que vai passar a ser O SENHOR, quase absoluto, de vida e de morte, sobre uma enorme área geográfica e sobre centenas ou milhares de seres humanos que nela vivem, ou são obrigados a isso.

A missão que lhe impõem é fazer a guerra. Fora mobilizado para ir para aquela guerra pela força de uma Lei, feita por um regime ditatorial, com o qual ele não concordava, para ir combater numa guerra, com a qual ele discordava totalmente. E ali estava agora ele, para matar ou morrer, pessoas que ele naturalmente respeitava como seus irmãos e contra as quais ele não tinha quaisquer motivos para tal. E, a grande maioria das cerca de duas centenas de militares que ele agora comandava, estavam na mesmíssima situação.

Mas há neste livro um segundo “tempo”.

Vinte anos após o fim da sua comissão, a intensidade dos dramas nela vividos pelo Paulo Cordeiro Salgado colaram-se-lhe de tal maneira à pele que ele não conseguiu mais reprimir a necessidade de “ajustar contas com o passado” e regressou à Guiné. Mas desta vez regressou para fazer o oposto da guerra. Regressou como cooperante.
Regressou, não só pela necessidade de se reconciliar consigo próprio, fazendo a sua catarse, como por ter ficado a amar, para sempre, aqueles povos, aquelas paisagens, aquela África.

Como eu compreendo o autor.


Finalmente, o terceiro “tempo” passa-se, 54 anos depois da sua primeira chegada às matas, às bolanhas e aos enormes rios da Guiné que alargam e encolhem duas vezes por dia. Passa-se nos nossos dias. E é nesse terceiro “tempo” deste livro, que se entende com toda a clareza o OBJETIVO do autor, pois é nele que Paulo Salgado, com os pés assentes no presente, resolve olhar para o passado, para o presente e para o futuro, escrevendo este livro.

É agora, 54 anos depois, que ele volta a olhar para os dramas dos “tempos da guerra”, daquela guerra onde ele combateu e, duas décadas depois, para os “tempos da reconciliação”, da reconciliação consigo próprio, com África e com os povos, que ele combateu, mas amou desde o primeiro momento.

E é aí que as reflexões que o autor vai fazendo ao longo do livro ganham um “outro patamar” de interesse. É aí que este livro deixa de ser um “livro de memórias” virado para o passado, para ter uma atualidade dramática.
É que, nesta segunda década do século XXI a que alguns homens desse tempo conseguimos chegar, não só a guerra volta a ser, infelizmente, o tema central do futuro das nossas vidas, como as esperanças de Liberdade e de Democracia, de Fraternidade, de Solidariedade e de Igualdade, quer dos nossos povos irmãos, quer do mundo em geral, começam todos a ser postos em causa.


E é aí, que as reflexões que o autor vai hoje fazendo, ao olhar para as suas vivências de há 54 e 34 anos, ganham um terceiro e mais importante patamar de interesse.

É que este livro é publicado no ano em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril».

António Rosado da Luz
10.03.2024

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Nota do editor

Vd. post de 21 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25195: Agenda cultural (849): Lançamento do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Guiné, 1970/72), dia 8 de Março de 2024, pelas 17h30, na sede da Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95, Lisboa. Apresentação a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25195: Agenda cultural (849): Lançamento do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria de Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Guiné, 1970/72), dia 8 de Março de 2024, pelas 17h30, na sede da Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95, Lisboa. Apresentação a cargo do Coronel António Rosado da Luz (Paulo Salgado)

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África""Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 21 de Fevereiro de 2024:

Caros Editor e Coeditores,
É isto, meus caros: será que a catarse foi completamente feita? Não me interessa. O que inquieta a minha escrita é saber do Outro, daquele que me acompanhou, cá e lá, nas andanças de uma guerra que foi imposta. Vivências. Sim, vivências do Outro em mim. Vivências de mim no Outro.

Porventura, será o meu último livro, substantivamente memorialista, sobre o modo como eu vivi a Guerra Colonial. Curiosamente: em guerra – na Guiné; em cooperação – na Guiné-Bissau. Já agora, passe a imodéstia: louvado em campanha e louvado pelo Ministério da Saúde da República da Guiné-Bissau...

Uma saudação bloguista.
Paulo Salgado


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C O N V I T E

Lançamento do livro "MARGENS - VIVÊNCIAS DE GUERRA", da autoria do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, a ter lugar na sede da Associação 25 de Abril, no dia 8 de Março, pelas 17h30, com apresentação do Coronel António Rosado da Luz.

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Nota do editor

Último post da série de 11 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24942: Agenda cultural (848): dia 14, no Centro Científico e Cultural de Macau, o nosso camarada António Graça de Abreu vai apresentar o seu trabalho de tradução dos 170 poemas do poeta chinês 苏东坡 (Su Dongpo, 1037-1101), "um dos grandes génios da poesia universal"

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25132: Carta aberta a... (19): Moura Marques, Amigo, Companheiro, Camarada, Irmão de solidariedades (Paulo Salgado, ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721)

Guiné-Bissau > Região do Oio > Olossato > 2006 > Rio Olossato > O Paulo Salgado e o Moura Marques, 35 anos depois...


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África""Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 1 de Fevereiro de 2024:

Caro Editor, Luís Graça e Caros Coeditores
Permiti-me que vos fale, em breves palavras de um camarada e amigo, amizade construída na guerra e continuada posteriormente – o Moura Marques, que foi cabo do meu pelotão, da CCAV 2721. Faço-o à guisa de carta aberta, que a ele dirijo.

Saudação bloguista
Paulo Salgado



Carta aberta a...

Moura Marques, Amigo, Companheiro, Camarada, Irmão de solidariedades

Devias pertencer ao grupo de autores célebres de cartas, porque elas, por mérito, encerram as tuas considerações, os teus comentários, a audácia em te meteres por leituras verdadeiramente críticas de obras que compras com sacrifício, a ternura e a frontalidade com que falas de assuntos, ora tão íntimos, ora tão objectivos. Se algumas editoras soubessem o que escreves, meu Camarada na Guerra Colonial – Olossato e Nhacra, 1970-1972 – por certo não hesitariam em publicá-las.

Camarada Moura Marques, não sorrias, por força da tua genuína simplicidade! Tenho guardadas as cartas, dezenas, mais de uma centena. Leio-as e releio-as quando me chegam às mãos.
Compras todos os meses, quase invariavelmente, um livro - livros que muitos intelectuais gostariam de ler. É verdade. A minha mulher e eu vimos estantes de tua casa carregadas de obras: de História Universal, de História de Portugal, de biografias, de ensaios. E todas leste. E continuas a ler, apesar de teres necessidade de usar uma lupa…

Fazes os teus comentários nas interessantes cartas que me escreves, e que eu gostaria de escrever. Eu, que sou um escritor.

Estou a falar de ti aos camaradas do nosso Blogue, por seres um grande homem, de carácter, vertical e de uma humanidade enorme. Na guerra e na tua vida profissional e familiar. Sei do que falo. Para além da amizade que fomos fortalecendo ao longo das décadas, sei que viste partir a tua filha, netas e genro para o Brasil. Resistes. Deste, num processo de divórcio amigável, o andar que tinhas adquirido com as tuas economias, à tua ex-mulher, para que, sofrendo ela de grave doença, pudesse subsistir. E sempre resististe. Agora, o senhorio quer despejar-te da casa… como vais resistir?

Lembro-te, companheiro, que demonstraste grande nível de humanismo ao longo da permanência no TO. E eu não resisti a inscrever-te nas crónicas de dois dos meus livros, sob nome diverso. Claro.

Na comemoração do Cinquentenário do 25 de Abril em Torre de Moncorvo (como sabes, foi publicado o programa remetido aos editores do Blogue, foi publicado, de que, com a minha mulher e o Mário Tomé nos orgulhamos de ter proposto à Câmara Municipal), tu, Moura Marques, estiveste presente, vindo de Tires, Cascais, fizeste um esforço enorme, porque algum mal trazes contigo, ainda que não te moleste, tão gravemente, por enquanto, mas que, para muitos, seria impeditivo de estar presente.

Devo lembrar-te um episódio: quando me visitaste em Bissau, a meu convite, 35 anos depois do regresso, éramos a minha mulher e eu cooperantes, fomos os três ao Olossato (já descrevi esta viagem no nosso Blogue). Lá choraste na campa do Suleiman, outro grande homem. Parece que tinhas perdido um irmão.

Olha, meu camarada, irmão de solidariedades, as tuas cartas estão guardadas. Não sei se alguém as vai ler, um dia. Talvez o meu neto Xavier, por te ter conhecido em dois ou três momentos, ou possa ter interesse, eventualmente, quando crescer, em saber algo acerca do avô. E dos amigos do avô.

Olha, vou mandar esta carta para ti. Mas aberta, para que os camaradas fiquem a conhecer um grande homem, militar à força, mas crítico, escrupulosamente crítico. E, desculpa-me repetir a tua frase, que mencionaste há uns tempos: “pensei que ia para a Guerra do Ultramar e acabei por ir para a Guerra Colonial”. Coisas diferentes. Sabemos bem.

Mereces esta modesta homenagem pública.
Até já.

Um abraço do Salgado
31 de Janeiro de 2024.

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Nota do editor

Último post da série de 23 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23809: Carta aberta a... (18): Ministros da Cultura e da Defesa.... Portugal pode e deve recuperar os restos das estátuas, abandonadas no forte do Cacheu, dos nossos Teixeira Pinto (séc. XX), Nuno Tristão (séc. XV) e Diogo Gomes (séc. XV-XVI) (António J. Pereira da Costa, cor art ref / Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf)

domingo, 31 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25021: Bombolom XXX (Paulo Salgado): Como a Guerra é (re)contada

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África""Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier", com data de 29 de Dezembro de 2023:

Meus Caros Camaradas,
Desejo a todos os editores do nosso Blogue, e a todos os que nele participam, Bom Ano de 2024.
Uma saudação de camaradagem e o pedido de bombolarem o meu bombolom.
Paulo Salgado



O meu Bombolom

Como a Guerra é (re)contada

Olossato, 1970 - O Alf Mil Op Esp Paulo Salgado - Foto: © Paulo Salgado


N
um dos encontros que a Companhia de Cavalaria 2721 tem realizado, pela mão de um grande camarada, para lembrar a camaradagem e a solidariedade que se construíram em tempo de guerra, dizia-me um ex-militar, graduado, face às histórias que cada um ia narrando:
- Eh pá, pelo que ouço nestes nossos encontros, dá-me a impressão que não estivemos na mesma guerra, no mesmo local, que percorremos os mesmos caminhos, que sofremos as mesmas emboscadas, que estivemos sujeitos aos mesmo bombardeamentos, sofrendo as mesmas vicissitudes!

Perante o meu espanto, prosseguiu:
- Não te admires, camarada. Participei, como te lembras, numa grande operação, houve barafunda, tiroteio forte, confusão, no meio da mata, feridos, alguns graves, evacuações. Pois bem, chegados ao aquartelamento, ouvi diferentes versões, inclusive sobre o que decidi, sobre as ordens que dei, sobre a minha intervenção. E aqui, nestes encontros, dezenas de anos depois, ouço versões diferentes, por vezes contraditórias. Isto é do caraças…!

Calado fiquei por breves instantes. Porém adiantei:
- Claro que me aconteceu uma situação similar, alguns meses despois, ao episódio que focaste. Um camarada lembrava que teria havido uma manobra mal feita pelo grupo (a que eu pertencia) que fazia a segurança ao grupo que retirava do golpe de mão, e que teria deixado passar o IN. E falava com uma certeza impressionante. Foi contraditado na altura, mas ainda hoje, mantém a mesma versão… Até posso afirmar que os camaradas que habitualmente seguiam à frente comigo nos patrulhamentos contarão os factos diferentemente uns dos outros, e de mim, naturalmente... sempre que o perigo era pressentido ou quando havia contactos…

Ouvindo a conversa nesta amena cavaqueira, logo um outro veio afirmar:
- Não foi assim que se passaram as coisas. É preciso lembrar que o IN sabia muito bem contornar as situações… o grupo que fazia a segurança (os “aguentas”), procedeu da forma correcta. Obviamente, ambos não chegaram a acordo, e cada qual ficou com a sua.

Não liguei muito ao caso sobre o foco de cada um. Nem ligo, hoje. Por duas razões.

Primeira: vivi intensa e criticamente o tempo em que estive na guerra, esforcei-me por dar o meu melhor em contribuir para todos regressarmos, o que infelizmente não sucedeu: dois mortos e alguns feridos. Escrevi notas, escrevi cartas, poetei alguma coisa, li alguns livros, comandei a companhia durante alguns meses, bem ou mal, construímos um jornal, jogámos futebol, passámos fome e sede, até fizemos operações helitransportados, fiz exames da quarta classe aos jovens, contactei e respeitei a população dentro da filosofia que o capitão imprimiu... Colaborei na feitura da História da Companhia. Fui louvado.

Segunda: por convite e convicção, fui cooperante na República da Guiné-Bissau vinte anos depois do 25 de Abril. Ao revisitar o “local” (por diversas vezes, uma delas com o cabo Moura Marques (grande soldado, meu convidado no Bairro da Cooperação, cerca de 35 anos depois), fui reconhecido pelos soldados feitos milícias. Calcorreei grande parte daquele País, acompanhado pela minha mulher, namorada na altura da guerra. Vi homens e mulheres, alguns eram crianças…! – agora libertos do jugo colonial e da força das armas. Pelo serviço prestado, foi-me concedido um diploma de honra ao mérito pelo poder instituído no País. Poucos haverá que tenham sido louvados pelos dois lados – já agora.

Para trás, os detalhes, as histórias narradas que me deram lastro para escrever (narrativa histórica ficcional) sobre alguns momentos e episódios. Sem falar da guerra, propriamente. As cartas, as abundantes cartas, que a minha mulher guardou, raramente falavam de episódios de guerra… Estão conservadas para a memória dos meus descendentes, se tal lhes aprouver.

A História é assim: cada um rememora-a como a sentiu e viu e viveu. Desta guisa, fizeram Cadamosto, Tristão da Cunha, Nola, Diogo Cão, Bartolomeu Dias… E, em especial, os cronistas, que vale a pena ler: Zurara, Rui de Pina, o grande Damião de Góis... Também Albuquerque, Duarte Menezes, entre outros, no Oriente. Em pleno século XIX, Livingstone, Serpa Pinto, Silva Porto (que foi espezinhado pelo inglês…) e outros exploradores narraram as suas andanças pelo continente africano. De forma diversa. Basta compulsar os livros. Até hoje. Repare-se: se perguntarmos aos soldados que estiveram em cima das chaimites, comandados por Salgueiro Maia, cada um conta à sua maneira o que viu no Largo do Carmo… Cada um conta a história à sua maneira, ou, se quisermos, como a viveu, e de acordo com a sua perspectiva. É a força da emoção e da percepção havida no momento, camaradas.

Nos meus livros, as crónicas são ditadas de acordo com o que e como eu vivenciei ou me contaram… mas sempre baseado em factos e personagens verídicos.

Ora, envolvermo-nos em histórias orais da natureza que introduz este desabafo é sinal de pouca clarividência, de pouca lucidez: não foi assim, dirão uns; não, estás enganado, responderão outros… Em História, podemos afirmar o seguinte: os historiadores baseiam-se em fontes, que podem ser de natureza diversa: escritas, orais, materiais… O narrador é a voz que narra os acontecimentos, faça ou não parte, como personagem, da trama.

Nós, que participámos no “teatro” (designação tão interessante esta!) da Guerra Colonial, somos narradores personagens, em primeira pessoa, portanto, relatamos os factos como participantes dos acontecimentos. E descrevemo-los segundo perspectivas que são diferentes, muitas vezes enviesadas, distorcidas, não adrede, claro.

Mas é bom que fiquem as memórias – a chamada Literatura Memorialista.

Saudações, camaradas. Bom ano. Com calor humano. Calor humano, tal como o recebi do povo nas minhas andanças em tempo de liberdade. E, também, em tempo de guerra, quando, sabem Deus e Alá a razão, as mulheres e as crianças sofriam tanto, quando o grande Suleiman me livrou de ter pisado duas minas antipessoal e me protegeu tantas vezes! A minha paga foram as vezes que o visitei no Olossato e quando o procurei ajudar no Hospital Nacional Simão Mendes, onde assisti à sua morte, serena morte, a morte de um soldado que lutou por uma Pátria (?!) que não o soube tratar como devia, a ele e a tantos…

Paulo Salgado
28.12. 23

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21591: Bombolom XXIX (Paulo Salgado): "Dezasseis anos depois", um poema meu, que li em Santarém, no encontro anual da CCAV 2721, em Abril de 1986, onde esteve presente no final do almoço o Salgueiro Maia (1944-1992)

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24976: Boas Festas 2023/24 (7): Mensagens natalícias dos nossos camaradas Valdemar Queiroz, ex-Fur Mil Art da CART 2479/CART 11; Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav do Pel Rec Daimler 2208 e Paulo Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721


1. Mensagem natalícia do nosso camarada Valdemar Queiroz, ex-Fur Mil Art da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70):

Desejo a todos e suas famílias Feliz Natal e Bom Ano de 2024
Abraços e saúde da boa
Valdemar Queiroz



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2. Mensagem natalícia do nosso camarada Ernestino Caniço (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá, Mansoa e Bissau, 1970/71), hoje médico reformado:

Caros amigos
Votos de Um Feliz Natal e que o próximo Ano nos traga especialmente saúde.
Que os DEUSES nos protejam, pelo menos até 2100 (preferencialmente + IVA).

Abraço,
Ernestino Caniço


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3. Mensagem natalícia do nosso camarada Paulo Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72):

Amig@s,
Estou a remeter as Boas Festas às pessoas com as quais, por qualquer circunstância, me cruzei, e cruzo, neste percurso de vida. Faço-o com estima e imensa consideração.
Desejamos-lhe, a minha mulher e eu, muitas felicidades e à sua Família. Olhe, ainda temos esperança que o próximo ano (bissexto) seja melhor e que os senhores da guerra olhem para si mesmos, no que estão a fazer, sobretudo a quem sofre.

Um abraço nosso. E saúde. E Paz. E que as crianças não sofram...
Paulo Salgado

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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24975: Boas Festas 2023/24 (6): Presente de Natal do nosso camarada José Teixeira

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24769: Agenda cultural (841): Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril em Torre de Moncorvo - A Guerra Colonial: Conversa/debate com escritores - Mário Beja Santos e Paulo Cordeiro Salgado; moderador António Lopes (Paulo Cordeiro Salgado)


1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de hoje, 18 de Outubro de 2023:

Meus caros Luís e Camaradas de redação do Blogue,
É com muita satisfação que apresento este registo.
Satisfação dupla: por um lado, pelo envolvimento nesta comemoração, fazendo parte da comissão executiva; por outro, ter ao meu lado, para conversar, o Mário Beja Santos, além do moderador António Lopes, também ele militar na reforma (não foi à guerra porque ainda era jovem) e editor sediado em Carviçais, Torre de Moncorvo.
O texto é um pouco longo, mas é assim, Luís e Caros Camaradas.

Mantenhas
Paulo Salgado



COMEMORAR O CINQUENTENÁRIO DO 25 DE ABRIL EM TORRE DE MONCORVO
A GUERRA COLONIAL: CONVERSA/DEBATE COM ESCRITORES

Mário Beja Santos e Paulo Cordeiro Salgado

Moderador António Lopes

Sinopse de ideias para a conversa

Escrever sobre a Guerra Colonial é algo que pode ser levado a cabo sob diversos aspetos e formas.

Quanto a mim, que não pretendo ser herdeiro de qualquer tradição de «melancolia épica, natural acompanhamento do interminável crepúsculo que nos caracteriza», como refere Eduardo Lourenço na sua obra “A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia” (Gradiva, 3.ª edição, 2004), o que me mantém motivado a escrever foi, e é, o trazer memórias que me ajudaram a crescer e que me têm acompanhado ao longo de uma vida que vai sendo longa. Os tempos passados estão ainda presentes, são o “hoje”. Que reflexo no futuro?

Digo e escrevo com franqueza: às vivências pessoais sofridas na Guerra Colonial, tenho feito juntar o Outro, sendo que este Outro se encontra expressivamente e impressivamente ligado aos vários momentos que, apesar de decorridos em tempos diferentes, estão interligados. Guerra e Raízes – os domínios da minha escrita. O “eu” como ator/narrador, e o “Outro”, como construtor de histórias que se prolongam em mim por diversas formas.

O centro da nossa História, feito de descobertas e de conquistas ao longo dos séculos XV a XVII, feito de encontros e desencontros igualmente durante os séculos seguintes, passou a ser, nas décadas sessenta e setenta, a Guerra. Não uma guerra com caravelas e naus à procura das especiarias e escravos, quase sempre em confronto, algumas vezes em encontros amigáveis com gentes com que nos deparámos, que tinham o seu próprio processo histórico, mas uma guerra agora feita com espingardas e morteiros e obuses e fiats e bombardeamentos e napalm. O que foi uma presença quase planetária, de proselitismo religioso, de comércio afanoso, de poder a estabelecer nem que fosse à força, de curiosidade científica, também, passou a ser uma humilhante saída da aventura do que restava do mundo que percorremos, por incapacidade de compreendermos o processo histórico.

Não sou historiador, nem sociólogo, nem antropólogo, nem psicólogo; sou apenas alguém interessado em factos históricos de que procuro, quer algumas figuras maiores, porque a elas se encarregaram os estudiosos de engrandecer e historiar, quer, sobretudo, personagens menores, ou “arraia miúda” – como lhe chamava Fernão Lopes, esse mestre iniciador, entre nós, da História Viva – e a que Herculano quase três séculos mais tarde apelidava de História da Verdade.

São os meus camaradas que calcorrearam os trilhos, as picadas, as matas, as zonas pantanosas;
são os meus camaradas que vieram do norte e do centro e do sul deste Portugal simultaneamente querido e amordaçado – quase sempre desconhecedores do que andavam a fazer nas matas, vales, planuras, rios e montes de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, regressando alguns, infelizmente, em caixas de pinho como canta o poeta Zeca Afonso;
são as aldeias sem gente, fugida para o longe, para o lado de lá, queimadas as suas tabancas; são as crianças sem pais;
são as mães sem eira nem beira que choram, aqui, neste rincão do sudoeste europeu, e as que lá sofriam com as bombas e com a fome, desesperadamente afastadas dos seus;
são os combatentes pela libertação que deixaram terras por arrotear e se lançaram na aventura de ter como seu o chão que pisam.
São os adeuses nos barcos que levavam os jovens como eu para o inferno das Kalashnikov e dos morteiros e mísseis.
São as cartas e os aerogramas enviados, e as cartas e os aerogramas que traziam esperanças e sonhos de regresso.
Mas são também os reis e conquistadores e frades que navegaram e caminharam pelos mundos, no que foi uma epopeia narrada em Os Lusíadas.
São ainda os chefes que reclamavam, enganados na sua mentalidade serôdia, uma Pátria multirracial do Minho a Timor.
São estas personagens que entram na minha narrativa, que, por certo, fica aquém da prosa estritamente historiográfica.
São igualmente as raízes que me sobraram da infância e juventude. Eis o que agora vos devolvo nos meus livros, porque já me fora entregue pelo Outro. É que tudo se passou como se nada tivesse importância: o mar que nos banhou ao longo de aventuras e desventuras, as andanças de homens e mulheres calcorreando as partes de África, dos Brasis, e do Oriente, e o que vivido foi por muitos de nós destas gerações, mancebos de sessenta e setenta, a morte rondando debaixo dos pés, ou na ponta das espingardas – um verdadeiro desassossego, diria Pessoa…eu gritava (como outros): não quero morrer, não quero morrer, não quero morrer. O acaso, ou talvez as circunstâncias, me levaram às terras da Guiné-Bissau vinte anos depois da guerra, em trabalho de cooperação e, mais tarde, a Angola e Moçambique e S. Tomé e Príncipe – desta maneira, as minhas crónicas são um ir e vir pelo “hoje” e pelo passado – uma mistura só conseguida graças à capacidade que a escrita tem, antecedida pelo pensamento. As multiplicidades psicológicas e existenciais do Outro, os encontros com o Outro, fixaram-se na minha obra, estão vivas. A vida é isto: é ternura, é carinho, é solidariedade, é beleza, é fealdade. Agarrei-me a tudo (a quase tudo), e os dedos empurraram-me para a escrita…

Não pretendo ter na minha escrita qualquer «fixação hipnótica», como escreve Eduardo Lourenço, na obra acima referida. Senti, durante a presença no espaço e no tempo de guerra, guerra dura de que senti, chorando, a morte nos braços, que ruía por completo o Império, se Império Português houve. E, pasme-se, senti, igualmente, que restavam resquícios de um certo “modo português de estar no Mundo”, traduzido especialmente na “pretidão de amor”, expressão que Camões utilizou e viveu, experienciada por mancebos, militares e civis, que se acolhiam, no intervalo de combates, nos braços quentes das jovens mulheres, dando corpo, físico e mental, à teoria lusotropicalista de Gilberto Freire, aproveitada de forma conveniente pelos senhores pensantes antes da eclosão da guerra colonial, que, aliás, se adivinhava.

Mas, afinal, o que é escrever? Afinal, o que é escrever sobre “este” passado histórico, tão recente e tão distante, olhado e compreendido de formas diferentes? Tenho sempre dúvidas: as que decorrem de questões estéticas e éticas. Estéticas, porque há sempre um receio de que não seja bela a manifestação do que escrevo; éticas, porque o discurso que utilizo me coloca perante questões da vida, das mais simples às mais elevadas. Falar do Outro é sempre muito complexo, por estarmos permanentemente a entrelaçar Estética e Ética.

Nas minhas obras já publicadas, por certo outras virão, encontram os leitores uma narrativa que se baseia na História, mas exibe ficção, que mais não seja por razões éticas. Os meus Amigos, o Rogério Rodrigues e o Mário Tomé, que prefaciaram e ou apresentaram dois dos meus livros, juravam, com a bondade que os caracteriza, que estas narrativas continham em si a dimensão nobre de “contos históricos” – porventura serão. Pareceu-lhes, creio, um desejo, um desafio, lúdico, o meu.

Em “Guiné – Crónicas de Guerra e Amor” e “Milando ou Andanças por África”, também em “7 Histórias para o Xavier”, permanecem fixamente factos e personagens, com que deparei nas minhas leituras e minhas diversas passagens por África, e nas Raízes do meu canto aldeão transmontano – o Larinho, aldeia do concelho de Torre de Moncorvo, que entregou a Salazar e Caetano três soldados…
Neste momento, para eles a minha saudade e admiração. O meu respeito.

Paulo Cordeiro Salgado

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Nota do editor

Vd. poste de 17 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24765: Agenda cultural (840): Síntese da minha comunicação destinada à conferência "Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril", realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24765: Agenda cultural (840): Síntese da minha comunicação destinada à conferência "Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril", realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo (Mário Beja Santos)


A juventude moncorvense compareceu em força num dos painéis
Presentes: coronel Vasco Lourenço, general Alípio Tomé Pinto e o presidente da edilidade, Nuno Rodrigues Gonçalves. Sentado, e diligentemente a escrever, o nosso confrade Paulo Salgado, moderou a sessão António Lopes, oficial do Exército aposentado

Imagens cedidas pela Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, a quem agradecemos


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Do programa da conferência não falo, veio publicado no blogue. O que me foi pedido prendia-se com a análise da literatura da guerra colonial, mau conhecedor das literaturas referentes aos teatros angolano e moçambicano, fui-me reportando ao que conheço da realidade da literatura guineense.

Como estas comunicações não dão para divagar, há que encontrar um ritmo que possa cativar um público transversal, por isso achei por bem falar da abrangência da literatura e suas manifestações; enfatizar a variedade topográfica que gerou singularidades quanto à Guiné, Angola e Moçambique, se bem que, haja um enquadramento que vai do embarque ao desembarque e que toca a todos, e mesmo nesse itinerário um relato de alguém que viveu em destacamento naturalmente que se distingue de quem foi fuzileiro ou paraquedista; procuro dar ênfase à questão do meio, como ele é preponderante na inquietação de um patrulhamento ou no fascínio de um esplendoroso palmar que surge inopinadamente; e há a questão do tempo da comissão, um relato de Álvaro Guerra, que combateu no início da luta armada distingue-se da história de um batalhão como o BCAV 2867, que combateu na região de Tite nos anos de 1969 e 1970, e que coteja os factos por ele percecionados com a documentação do PAIGC depositada na Fundação Mário Soares. 

E confesso que me desvelou o acolhimento de Paulo Salgado que me levou a visitar zonas extraordinárias do Baixo Sabor, deu-me matéria para falar de itinerâncias na região moncorvense.

Um abraço do
Mário


Síntese da minha comunicação destinada à conferência Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril, realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo

Uma guerra colonial que gerou investigação e largas memórias de diferente ficção

Mário Beja Santos

1. Era inevitável: uma guerra vivida em três frentes, de 1961 a 1975, iria implicar estudos historiográficos, socioeconómicos, abordagens militares, diferentes domínios de investigação, nomeadamente no campo universitário, dando origem a uma vasta multiplicidade de teses e obras destinadas a um vasto mercado, desde o estritamente militar ao do grande público. 

Por natureza, e mercê do olhar ideológico, será também motivo de contínuos trabalhos, recorde-se que há omissões graves no campo da investigação que importa colmatar: por exemplo, não há ainda nenhum estudo aprofundado sobre os quatro anos (1964-1968) da governação de Arnaldo Schulz;

2. Mas nem só da investigação vive o homem: há um rol infindável de manifestações literárias: conto, novela, romance, poesia, literatura memorial, reportagem, propaganda para captar populações ou a favor da política do Estado Novo, justificando a gradual intervenção militar, mesmo quando esse regime apresentava tal intervenção como “ações de polícia”;

3. Como é natural, dada a variedade topográfica das três frentes, gerou-se uma literatura com particularidades/especificidades. Há, contudo, questões e conceitos que se podem apresentar como padronizados: 
  • as despedidas aquando do embarque; 
  • a viagem tormentosa, com as praças metidas em porão; 
  • o estado de nervosismo e a expetativa do que se vai encontrar pela frente; 
  • a chegada, o embate com o clima; 
  • a deslocação para um lugar ainda desconhecido; 
  • a adaptação ao meio, por vezes uma intensa participação em obras para melhorar o nível do conforto; 
  • a tensão nos patrulhamentos, procurar ver o que se esconde no capim; 
  • o sobressalto da mina antipessoal e mina anticarro; 
  • os primeiros contactos com a guerrilha; 
  • o comer mal, a vigilância noturna, as flagelações, etc., etc.. 

Não são situações padronizadas, são quadros de referência do itinerário da comissão, obviamente com cambiantes, é bem provável que um paraquedista, um fuzileiro, um comando, estejam dominados por outras referências, as operações têm um peso dominante na literatura que eles elaboram;

4. As particularidades decorrem do meio, como é óbvio: 
  • o território da Guiné depende das marés altas e baixas (o território tem uma superfície de 36.125 km2 numas alturas, noutras 28.000 km2); 
  • é território sulcado por rias e braços de mar, tem de facto só dois rios, o Geba e o Corubal;
  •  há o tarrafo, que pode ser um inimigo natural implacável, no mínimo intimida, ande-se por terra ou por água; 
  • há as florestas-galeria, por vezes caminha-se de gatas, surgem inesperados contratempos, podem ser as abelhas, um porco do mato que se atravessa à frente da patrulha, e que provoca pânico; 
  • há a estação das chuvas, que nos faz adoecer, que aumenta os casos de malária…
  • como é evidente, há a ligação entre o militar e as populações, a solicitação do médico ou do enfermeiro ou do maqueiro, angariar professor para a criançada ou para os soldados iletrados; fica-se aterrado quando se vê um leproso ou um ser humano com elefantíase...

 Tudo isto é matéria que aparece na correspondência do militar para a família e amigos e entra nas obras literárias, claro está;

5. Tal como os estudos historiográficos, a propaganda apologética, qualquer obra de ficção tem de ser dimensionada pelo tempo em que foi escrita e publicada. Da análise que faço à literatura da guerra colonial da Guiné, consigo distinguir as seguintes fases:
  • as obras publicadas até 1974, nelas prepondera o heroísmo e a exaltação das qualidades do soldado português, há situações específicas como um diário que foi publicado no Jornal da Bairrada, em pleno Estado Novo, e quando o autor, também durante esse regime deu corpo a um livro, este foi apreendido pela censura (Tarrafo, de Armor Pires Mota); 
  • há literatura encriptada, é o caso das obras de Álvaro Guerra; com o 25 de Abril, o azimute muda de direção, crescem as críticas à guerra, há mesmo assassinatos de caráter, e nesta literatura tantas vezes contundente surgem obras que hoje merecem atenção nas universidades, é o caso do romance Lugar de Massacre, de José Martins Garcia; 
  • tenho para mim que é nas décadas de 1980 e 1990, quando o antigo combatente passa a ter mais disponibilidade e serenidade face aos acontecimentos vividos, que vão surgir obras de inegável valor no campo romanesco; 
  • é na viragem do século que faz aparição a literatura memorial, hoje a vanguarda desta ficção, é um amplo leque que vai da poesia popular, passando pelos diários, recordações fragmentadas, singelas histórias de unidades militares, e muito mais.

6. Tudo conjugado, temos o campo da investigação, o ensaio antológico, a análise política; e, na sequência diacrónica a literatura da guerra colonial tem de ser apreciada no tempo em que foi escrita e no território em que se combateu. É de uso indispensável, doravante, para ser compatibilizada com o que dizem os factos históricos, pois há imensos relatos que podem servir de contraponto ou validação de documentos: dou o exemplo dos depoimentos de antigos combatentes do BCAV 2867, que combateu na região de Tite (sul da Guiné) nos anos de 1969 a 1970, e que aparecem ao lado de documentação do PAIGC depositada na Fundação Mário Soares.

Poderá dizer-se que na sua generalidade esta literatura não prima pela grande qualidade, mas há um acervo de obras (e noutras capítulos ou parágrafos) que farão obrigatoriamente parte do que melhor se tem escrito na nossa contemporaneidade.

É a análise destes pontos que pretendo fazer e debater neste auditório. 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24729: Agenda cultural (839): "Comemoração do Cinquentenário do 25 de Abril em Torre de Moncorvo", com destaque para a guerra colonial, dias 5, 6 e 7 de outubro (Paulo Salgado)

 











1. Programa que nos foi enviado, em 29 de setembro último, pelo nosso amigo e camarada Paulo Salgado, relativo à "Comemoração do Cinquentenário do 25 de Abril em Torre de Moncorvo", uma iniciativa da autarquia local. (Para mais imformação, ver aqui no sítio da CM de Torre de Moncorvo.)

O Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), é natural de Moncorvo, escritor (dois dos livros mais recentes, "Milando ou Andanças por África", 2019,  "O Amor que veio da China e outros contos", 2022);  é autor da série, no nosso blogue, "Bombolom"; é  administrador hospitalar reformado, consultor em gestão de serviços de saúde com larga experiència em África (com destaque para a Guiné-Bissau e Angola).

É um dos veteranos do nosso blogue, integrando a Tabanca Grande desde 19 de setembro de 2005. Tem cerca de 120 referências.

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de setembro de  2023> Guiné 61/74 - P24693: Agenda cultural (838): Orquestra Médica Ibérica: Hoje, 24 de setembro, às 16h, vai dar um concerto solidário no Altice Forum Braga... Programa: Tchaikovsky, Mendelssohn e Joly Braga Santos... Ingresso: 10 euros

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24490: Tabanca Grande (550): João de Jesus Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que se vai sentar no lugar 878 do nosso poilão

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano, João de Jesus Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), enviada ao Blogue no dia 15 de Julho de 2023:

Boa tarde Carlos Vinhal
Sou leitor do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné desde as primeiras publicações - ainda como "FORANADA.BLOGSPOT.COM - mas nunca me decidi em colaborar no mesmo.

Como ultimamente, o Luís Graça se vem queixando da falta de colaboradores e publicações para "alimentar" o Blogue, resolvi oferecer a minha colaboração.

Para isso, estive a reler a história da minha Companhia e a relembrar as várias situações e "estórias" vividas naquelas terras vermelhas, quentes e chuvosas.

Desdobrei a história da minha Companhia em várias partes, para não ficarem muito "pesadas" e levarem os nossos camaradas a desistirem da leitura antes de chegarem ao final.

Já tenho a história da minha COMPANHIA DE CAVALARIA 2721 em emails individualizados.
Só preciso que me informes a data a partir da qual posso começar a enviar-te para publicação.
Pensei em mandar um email por semana, para não ficar muito maçador.

Se concordares com este prazo, diz-me o dia de semana que preferes que envie.

Votos de saúde.
Abraço.
JOÃO MOREIRA
Ex-Furriel Miliciano


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2. No mesmo dia foi enviada resposta ao João Moreira

Caro João:
Muito obrigado pelo teu contacto e pela tua disponibilidade para aderires à nossa tertúlia, não para seres mais um, mas prometendo desde já colaborar "forte e feio" com as tuas memórias.
Na verdade estamos muito necessitados de sangue novo, não forçosamente em idade, mas de camaradas que queiram deixar, na nossa página, as suas memórias, escritas e fotográficas, destinadas a serem consultadas pelos nossos vindouros e pessoas que, de alguma maneira, queiram ler os testemunhos, na primeira pessoa, de quem "por lá" andou e sofreu na pele as consequências de uma guerra que não quis.

As tuas memórias militares começarão quando e como quiseres. A recruta foi o nosso começo mas o fim, esse parece vir só com o fim da nossa existência. Estás à vontade para começares até na inspecção militar.

A periodicidade para o envio e publicação dos teus textos e fotos, será conforme queiras, mas acho que semanalmente não estava mal.

Não esqueças que de ti queremos saber: o nome, posto, especialidade, unidade, datas de ida e volta da Guiné, locais de acção, etc.

As fotos que enviares deverão ser acompanhadas por legendas (à parte), onde constará a identificação dos retratados (caso não vejas inconvenientes nisso), data, local e situação. Quando as quiseres intercalar nos textos, ou as colocas tu, ou fazes uma nota no local para nós as localizarmos durante a edição.

Deves mandar as tuas coisas, sempre para: luis.graca.prof@gmail.com e para mim, carlos.vinhal@gmail.com, para assim teres a certeza de que eu e/ou o Luís vai ler.
Vamos fazer uma prévia apresentação tua à tertúlia, pelo que podes aproveitar para aí começares a contar a tua vida militar e outros pormenores que aches que possamos saber de ti, por exemplo, formação académica, profissão, etc.

Acho que o essencial está dito, mas estou sempre por aqui para qualquer dúvida.

Recebe um abraço do camarada, de há muito, e amigo desde hoje
Carlos Vinhal


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3. Nova mensagem do camarada João Moreira ainda no mesmo dia:

Carlos e Luís Agradeço a aceitação do meu pedido de inscrição no grupo.
Em resposta ao Carlos Vinhal, informo que tomei nota das tuas sugestões.
Comunicar-vos-ei os elementos que sugeriste. Não garanto que seja hoje, mas se se proporcionar ainda informo neste fim se semana. Se não puder, envio durante a próxima semana.

Informo-vos que enviarei um email por semana, para publicação e que neste ritmo posso tenho stock para mais de um (1) ano.

Abraço e bom fim de semana.

JOÃO DE JESUS MOREIRA
FURRIEL MILICIANO (porque não quis virar as divisas)

João Moreira na actualidade

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4. No dia 16 recemos a mensagem em que o nosso novo amigo, João Moreira, faz um resumo do seu percurso militar:

Boa tarde Carlos e Luís,

As sugestões do Carlos Vinhal, iriam ser satisfeitas ao longo das publicações que irei enviar.

De qualquer forma e para fazer a minha apresentação vou enviar os dados que o Carlos Vinhal sugeriu.

Chamo-me JOÃO DE JESUS MOREIRA-

Nasci no dia 05 de Junho de 1946, no lugar do Candal, freguesia de Santa Marinha, concelho de Vila Nova de Gaia.

Tirei o Curso Geral do Comércio na Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia.
Fiz a Secção Preparatória para o Instituto Comercial, na Escola Oliveira Martins, no Porto.
Fiz a admissão e frequentei o Instituto Comercial do Porto mas não acabei o curso.

Fui trabalhar na secção de peças duma empresa Comercial do Porto, que entre outras actividades também vendia máquinas industriais.

Com o desenvolvimento dessa secção foi criado um departamento de contabilidade só para esse sector e eu fui transferido para a contabilidade até ir para a tropa.

Quando vim do ultramar fui reintegrado na secção de peças, que passei a chefiar e a ser o gestor de stocks.

Na vida militar fui furriel miliciano com a especialidade de atirador de cavalaria. Também tirei a especialidade de Minas e Armadilhas, em Tancos.

Em Janeiro de 1969 fui para Estremoz para formar batalhão para a Guiné, mas não embarquei por estar internado no Hospital Militar de Évora.

Quando tive alta do Hospital Militar vim gozar os 10 dias da mobilização para ir ter com a minha Companhia que estava em Ingoré. Ao 2.º ou 3.º dia recebi um telefonema do 1.º sargento da secretaria do RC 3 de Estremoz, a dizer para regressar ao quartel, porque tinha sido desmobilizado.

Fiquei lá até Dezembro de 1969, data em que fui transferido para o RC 4, em Santa Margarida, para formar a Companhia de Cavalaria 2721, novamente para a Guiné.

Embarquei no T/T Carvalho Araújo, no dia 04 de Abril de 1970, ou seja já tinha sido incorporado há 27 meses (21 meses de tropa efectiva mais 6 meses das 2 especialidades perdidas. Já era furriel desde Janeiro, embora ainda não me tivessem promovido.

Fui para o Olossato, que tinha um destacamento no Maqué. Ficavam na estrada Mansoa, Bissorã, Olossato, Farim. No final de Maio de 1971, metade da Companhia foi para Nhacra e a outra metade, onde estava o meu grupo de combate, só fomos no dia 09 de Junho.

Ao princípio da noite sofremos um ataque (penso que foi o primeiro ataque a Nhacra). Em Nhacra também passei pelos destacamentos de Dugal e Ponte de Ensalmá.

Regressamos num avião dos TAM, no dia 28 de Fevereiro de 1972.

Curiosamente o Vinhal foi e veio nos mesmos transportes, 2 semanas depois de eu ter ido, e esteve também na mata do Oio. Estávamos a cerca de 10 quilómetros de distância, em linha recta, com o mítico MORÉS, no meio.

Nhacra, 1971 - João Moreira

Reprodução, com a devida vénia, da pág. 512 do 7.º Volume - Fichas das Unidades - Tomo II - Guiné, da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), publicação do Estado-Maior do Exército.

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5. Comentário do Coeditor CV:

Caro amigo, e camarada de armas, João Moreira, como prometi, estás apresentado formalmente à tertúlia.
Tens reservado para ti o lugar 878 do nosso poilão.

Acho que sabes que tens na tertúlia um companheiro da tua CCAV 2721, o ex-Alf Mil Op Esp, Paulo Salgado, que escreveu o livro "Guiné - Crónicas de Guerra e Amor". Não sei estiveste na apresentação aqui no Porto.

Temos, como disseste, um percurso quase paralelo na Guiné, vocês embarcaram para lá no dia 4 de Abril de 1970, indo no "Carvalho Araújo", e nós no dia 13 do mesmo mês, no Porto do Funchal, no navio "Ana Mafalda". Fomos quase vizinhos, Olossato e Mansabá não ficavam asssim tão distantes, fazendo as duas localidades parte do "empreendimento turítico" do Morés.
Se a tua Companhia substituiu em Abril, no Olossato, a CCAÇ 2402 do BCAÇ 2851, a minha substituiu também em Abril, mas em Mansabá, a CCAÇ 2403 do mesmo batalhão.

Apesar de tudo, a CCAV 2721 teve mais sorte porque em Maio/Junho de 1971 se mudou para um local bem mais pacífico, Nhacra, enquanto a 2732 aguentou estoicamente, em Mansabá, até Fevereiro de 1972, chorando ainda a perda de dois camaradas, em Janeiro, na zona de Mamboncó, um dos carreiros de e para o Morés. A CCAV 2721 regressou a casa em 28FEV72 e a CART 2732 só em 19 de Março.

Ah! Ainda mais uma coincidência, temos ambos uma "pós-graduação" em Minas e Armadilhas.
Posição relativa do Morés, uma importante base estratégica do PAIGC. © Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné

A tua Companhia a partir do Olossato, e a minha, em Mansabá, foram forças activas no Plano de Operações Faixa Negra, que tinha como missão o apoio logístico e manter a segurança aos trabalhos de asfaltamento da estrada Mansabá-Farim, obra reatada no Bironque, até à margem esquerda do rio Cacheu. As nossas Companhias faziam parte das chamadas Forças de Intervenção, a minha integrada no Sub-Agrupamento "M", juntamente com a CCP 122, 2 GCOMB/CCP 121, mais 1 Pelotão(-) do EREC 2641. A tua 2721 fazia parte do Sub-Agrupamento "O", juntamente com a CCP 121(-) mais 21.º PelArt (10,5).

Posição relativa do Bironque na estrada Mansabá-Farim. © Infografia Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Ainda a propósito da tua ida tão tardia para a Guiné, e uma vez que já terias tempo suficiente para a promoção a Furriel Miliciano, antes do embarque, nunca chegou a sair à ordem a tua promoção a 2.º Sargento? Éramos mesmo muito mal tratados, no fim do curso de sargentos promoviam-nos(?) a cabos, e quando tatingíamos o tempo para promoção a 2.ºs sargentos, esqueciam-se de nós.

Como o poste já vai longo, resta-me deixar aqui um abraço de boas-vindas em nome dos editores e da tertúlia.

Estamos por aqui sempre disponíveis para qualquer dúvida que tenhas em relação ao funcionamento do Blogue, e já que nos indicaste a tua data de nascimento, a menos que não queiras, terás direito ao nosso singelo postalinho de aniversário. CV

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24275: Tabanca Grande (549): As "fotos da praxe" do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, que completou 90 anos em 12/12/2022... Foi 2.º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73) e Cmdt do Comando Geral de Milícias (1973)

sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24166: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte II: A versão do guarda-livros da Casa Gouveia, e dirigente do PAI, o Luís Cabral

Guiné-Bissau > Bissau > Cais do Pidjiguiti

Fogo (e legenda) © Paulo Salgado (2005).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Bissau > Postal de Maio de 1966 > Ponte-cais de Bissau e não cais do Pidjiguiti (que ficava mais à direita e onde atracavam as embarcações de pesca e de transporte de cabotagem),

Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Bissau > s/d > Vista aérea da Ponte Cais, e de parte da zona ribeirinha da Bissau Velha: à direita o edifício da Alfândega, em frente a praça e a estátua de Diogo Gomes e portão de armas e as muralhas (lado sul) do forte de São José da Amura (coberto de seculares poilões)... Do lado esquerdo (e já não visível na imagem) ficava o cais do Pidjuiguiti.

A ponte-cais do porto de Bissau (obra emblemática do governo de Sarmento Rodrigues, remontando o início das obras a julho de 1948) é inaugurada em 1953 por Raúl Ventura, subsecretário de estado do Ministério do Ultramar, sendo Sarmento Rodrigues ministro da tutela.

Pormenor de: Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).


Guiné > Bissau > s/d > Vista  da ponte-cais (ou porto) de Bissau, a partir da praça Diogo Gomes).

Pormenor de: Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).



Guiné > Bissau > s/d  [c. 1960/70] > Pormenor de monumento a Diogo Gomes (às vezes confundido com Diogo Cão) e Edifício das Alfândegas > Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 136". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).

Bilhetes postais: Colecção do nosso camarada, natural do concelho de Leiria, Agostinho Gaspar (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72,  Mansoa, 1972/74),



Guiné-Bissau > Bissau > Bissau Velho, com as ruas rebatizadas pelo PAIGC > 1975 > Planta da cidade > Localização de: (i) fortaleza da Amura; (ii) cais ou porto  do Pidjiguiti (à esquerda); e (iii) porto de Bissau (à direita)... Alguns leitores confundem, por vezes, a ponte-cais de Bissau com o cais do Pidjiguiti (para sempre associado aos acontecimentos de 3 de agosto de 1959).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)

1.  Os graves e trágicos acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no cais do Pidjiguiti, são uma página triste na história da presença portuguesa em África. Nunca deveriam ter ocorrido. Como já o dissemos, as autoridades da época, a Casa Gouveia e o seu gerente António Carreira ficam mal na "fotografia da História"... Mas passados mais de 60 anos continuam a ler-se versões díspares, nomeadamente sobre o que realmente aconteceu, a sua origem, processo e consequências.

Há poucos relatos contemporâneos.  E não há imagens, ao que parece (*). É importante continuar a confrontar, serena mas criticamente, as diferentes versões. Uma delas é a do nosso camarada Mário Dias que esteve lá, integrado numa força militar, uma companhia de recruta que foi desviada no seu regresso ao quartel de Santa Luzia, depois de prestar honras militares, em Bisslanca, a subsecretário de Estado da Aeronáutica, a caminho de Angola: os recrutas levavam mausers sem munições, não tinham quaisquer armas automáticas (**). 

A outra versão é a do Luís Cabral (LC) , na altura guarda-livros da Casa Gouveia, e que irá sair clandestinamente do território alguns meses depois, no início de 1960. 

Como  futuro dirigente do PAI (e depois PAIGC), tem uma leitura "enviesada" do que aconteceu, mas de que foi também testemunha ocular (parcial, como o Mário Dias).  Todavia, há erros factuais na sua versão, escrita vinte e tal anos depois, já no exílio: consta do seu livro "Crónica da Libertação" (Lisboa, O Jornal, 1984). Excertos dessa versão já foram aqui em tempos publicados (***). Mas justifica-se voltar a reproduzir uma parte e compará-la com a versão do Mário  Dias.

Excertos de Crónica da Libertação, 

de Luís Cabral (1984) (pp. 65-73)(**)

(i) Reivindicações laborais do pessoal das docas e do transporte de cabotagem

(...) A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos  [o equivalente, a preços de finais de 2022, em Portugal, a 75 e 150 euros, respetivamente]; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado". Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.

O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé  [o equivalente, a preços de finais de 2022, em Portugal, a 7,50 euros] , quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.

Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.

Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.

(ii) Contexto político, interno e externo

(...) A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [PAI] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.

A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.

Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.

(iii) A greve

(...) A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. 

Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. 

Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.

Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.

(iv) O ultimato aos grevistas por parte do António Carreira, gerente da Casa Gouveia

(...) Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia [referência ao cabo-verdiano António Carreira] , mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. 

Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.

(v) Reacção das autoridades

(...) As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.

No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.

A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.

(vi) Resposta dos grevistas

(...) Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.

A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.

Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heroicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.

(vii) Tiros, mortos e feridos

(...) Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.

À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.

À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. 

Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.

(viii) Saída dos escritórios da Casa Gouveia

(...) Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. 

Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.

Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.

(ix) No apartamento 
 [do LC, que pertencia à Casa Gouveia] 

(...) Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.

Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco 
 [BNU] onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pelos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.

(x) Aproveitamento político por parte do PAI

(...) Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. 

Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. 

Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. 

(xi) O poder de influência do António Carreira que manda soltar o Carlos Correia

(...) No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.

Entretanto, o Aristides 
[Pereira, chefe da Estação Telegráfica] tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.

(xii) Na iminência de ser preso pela PIDE, o Carlos Correia foge para Dacar

(...) Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade?

O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto.

 O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo — disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.» (...)

(...) O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela polícia.

(...) Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos.

(...) À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7,30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda. (...)


Comentário do A. Marques Lopes (***):

Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAI / PAIGC. Como refere o Luís Cabral (****), a páginas 75 e 76 do seu livro:

(...)   Na reunião com o Amílcar (19/9/1959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios dos mártires de Pijiguiti.

Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.

Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.

Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.

A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo.  (...)

[Transcrição: AML  / Seleção, revisão e fixação de texto, subtítulos, negritos e notas em parênteses retos: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959


(...) "Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).


(***) Vd. poste de 18 de fevereeiro de 2006 > 18 de fevereiro de 2006 >Guiné 63/74 - P540: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (A. Marques Lopes, cor inf , DAF, na reserva)

(****) Luís Cabral (Bissau, 1931 - Lisboa, 2009), meio-irmão de Amílcar Cabral (Bafatá, 1924-Conacri, 1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, filho do mesmo pai, o professor do ensino primário  Juvenal Cabral. Viria a ser sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).

Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabo-verdiana do PAIGC. Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de Estado...

Publicou em 1984 as suas memórias (que vão da infância até à morte de Amílcar Cabral): "Crónica da Libertação"(Lisboa, O Jornal, 1984)

Luís Cabral era empregado, guarda-livros, da Casa Gouveia, do Grupo CUF,   em 3 de Agosto de 1959. E dirigente do PAI, na clandestinidade. Nessa data, o Amílcar Cabral estava em Angola, em trabalho, como engenheiro agrónomo, não tendo ainda passado à clandestinidade. Passou por Bissau em 19/9/1959 para se reunir  com o pequeno grupo dirigente do seu partido, que então se chamava PAI.