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segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23566: Notas de leitura (1482): Alguns elementos sobre a última literatura na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É evidente que me senti atraído por este número da revista dirigida por Adriano Nogueira, o que João Tendeiro escreveu sobre a Guiné é relevante, ele procede a um esforço Hercúlio para sinalizar uma literatura escrita por colonos brancos e cabo-verdianos. O livro que maior circulação tinha, durante gerações, era a "Mariasinha em África", de Fernanda de Castro, recomposto de edição em edição, até se tornar politicamente correto, deixando o autóctone ser tratado como um bom selvagem. A figura principal deste período terá sido Fausto Duarte. Mas o que fundamentalmente me atraiu nesta revista, e não escondo a minha grande surpresa, foi encontrar uma referência minuciosa ao I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, que se realizou na Sorbonne entre 19 e 22 de setembro de 1956, onde esteve seguramente Mário Pinto de Andrade e ainda maior surpresa encontrar na íntegra a mensagem de Sékou Touré ao congresso seguinte que se realizou em Roma, uma arma assentada ao colonialismo português. Como foi possível publicar este libelo acusatório numa revista do regime, não deixa de nos assombrar. Por tal razão, em próxima oportunidade, iremos referir o que Sékou Touré mandou na sua mensagem, certamente saída do punho de um intelectual do seu círculo privado.

Um abraço do
Mário



Alguns elementos sobre a última literatura na Guiné Portuguesa

Mário Beja Santos

Estudos Ultramarinos era a publicação do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, tinha como diretor Adriano Moreira. No seu n.º 3, de 1959, publica-se um artigo de João Tendeiro intitulado “Aspetos Marginais da Literatura na Guiné Portuguesa”. Recorde-se que Leopoldo Amado é autor de um excelente trabalho sobre a literatura do período colonial na Guiné (https://vdocuments.site/literatura-colonial-guineense.html).

O quem nos sugere João Tendeiro? Maior clareza não pode haver: “A Guiné não nos deu até agora um escritor nativo. No campo da ficção, as poucas obras de fundo têm sido escritas por europeus ou cabo-verdianos. É o caso dos romances e contos de Fausto Duarte e de vários contos esporádicos de Alexandre Barbosa, F. Rodrigues Barragão e outros, publicados no "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa". Mário Pinto de Andrade, se quis inserir, na sua "Antologia da Poesia Negra", uma produção poética representativa da Guiné, teve de recorrer a um poema de um jovem cabo-verdiano, Terêncio Casimiro Anahory Silva”. Segundo o censo de 1950, frente à Guiné Portuguesa, o português era falado por 1157 indígenas analfabetos e escrito por 1153. João Tendeiro procura explicações edulcoradas para justificar este buraco negro, como numa colónia portuguesa não havia literatura portuguesa escrita por autóctones: “Um dos fatores primordiais da ausência de uma expressão escrita nos meios nativos consiste nas possibilidades reduzidas de que estes dispõem para alcançar um nível intelectual compatível com a sua realização, segundo os padrões universais da arte literária. António Carreira procede a uma outra apreciação, dizendo que as comunidades africanas possuem na vertente da educação uma estrutura muito sua, todo o fio da educação utiliza a transmissão por via oral”. Os europeus, escreve ele, ao contatar intensamente com estas comunidades com o objetivo de as orientar, educar e instruir, têm de enfrentar os inevitáveis problemas inerentes ao choque de culturas diferentes. "A grande massa nativa continua ainda a reger-se pelo regime jurídico aplicável à situação legal de indígena”. Também se faz o reconhecimento de que o islamismo se fazia acompanhar da difusão da escrita árabe. Viriato Tadeu, no volume "Contos do Caramô", bem como os contos publicados por António Carreira, Amadeu Nogueira, A. Cunha Taborda e A. Gomes Pereira no "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa" fazem-se ressaltar a literatura oral, os provérbios e as poesias declamadas de diferentes etnias guineenses.

Vê-se que João Tendeiro leu atentamente todos os números publicados do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. E dá o crioulo como língua veicular pouco suscetível de atrair os guineenses para usá-la literariamente, fazendo o seguinte comentário: “O crioulo enferma de todas as caraterísticas das linguagens faladas e sem grafia independente. Quer dizer: quando transposto para a escrita fica subordinado ao idioma escrito da região. Não existe uma correspondência entre o crioulo e a ortografia portuguesa”. E vai mais longe: “Os crioulos portugueses escritos – seja o da Guiné, sejam os das diversas ilhas de Cabo Verde – não constituem entidades filológicas independentes mas sim transcrições dialetais fonéticas, em termos de português”. E contextualiza o uso do crioulo pelas camadas civilizadas e assimiladas: “Na Guiné, com exceção de alguns núcleos de origem, ascendência ou influência cabo-verdiana, localizados particularmente em Cacheu, Bolama, Bissau e Geba, o crioulo desempenha apenas o papel de linguagem auxiliar nas relações recíprocas entre as diferentes tribos”. E procede a uma sentença quanto aos limites do crioulo: “Do ponto de vista da escrita, é tão estéril como o são as línguas nativas sem representação figurativa dos fonemas”.

E traça comparações com Cabo Verde:
“Enquanto em Cabo Verde o crioulo assumiu o caráter de uma linguagem substituta dos idiomas nativos primitivos, enfeudada à língua portuguesa oficial, na Guiné reveste apenas o aspeto secundário de língua aprendida, desempenhando entre as populações locais um papel semelhante ao dos idiomas utilizados nas relações internacionais entre os povos civilizados”. E o seu acervo de considerações dirige-se a questões relacionadas com a pacificação de Teixeira Pinto: “De todos os povos nativos, a tribo Papel foi a que durante mais tempo se opôs à preponderância dos brancos na Guiné. Os Papéis conseguiram durante anos e anos manter em cheque as forças empenhadas em subjugá-los. Porém, em 1915, as colunas comandadas por Teixeira Pinto irromperam pelas regiões de Safim e do Biombo e impuseram-lhes uma derrota decisiva. A queda, após esta derrota, pode dizer-se que foi vertical. A tribo altiva de outrora deu lugar a uma gente fraca e sem vontade”.

Mudando de agulha, João Tendeiro volta-se para a educação. “Nos termos do Acordo Missionário e do Estatuto Missionário, o ensino dos indígenas é feito na Guiné pelas missões católicas, em escolas de ensino primário rudimentar, cabendo ao Estado a educação dos elementos civilizados. Com a criação, em 1949, do Colégio-Liceu de Bissau, aumentaram as possibilidades de educação dos portugueses residentes na Guiné. Trata-se, no entanto, de uma iniciativa recente e cujos frutos, pelo menos no campo da literatura, ainda não surgiram, se bem que vários estudantes guineenses frequentem universidades na metrópole. Simultaneamente, deu-se mais um passo para a ascensão dos indígenas à cidadania, uma vez que nos termos de legislação de 1946 se consideram como cidadãos portugueses, para todos os efeitos, os indivíduos de raça negra, ou dela descendentes, que possuam, como habilitações literárias mínimas, o 1º ciclo dos liceus ou estudos equivalentes”.

Para além deste trabalho missionário, o autor não deixa de evidenciar a importância do ensino corânico. E cita Teixeira da Mota que refere que em 1951-1952 havia na Guiné 436 escolas corânicas para cerca de 45 escolas das missões católicas, estas com 1044 alunos. Obviamente que o ensino era feito em árabe, com as contingências do uso das línguas locais. Fosse como fosse, os islamizados da Guiné nutriam grande respeito pelos missionários:
“Não têm qualquer hesitação em mandar os filhos às escolas onde eles lecionam. Mas, ao menor intento de catequese, ao mais pequeno sinal de que o espírito da criança se está interessando pela religião dos brancos – logo se ergue uma barreira a isolá-lo e a afastá-lo de tal influência”.

E tudo vai culminar com uma nota picante, a aflorar o mito imperial:
“O problema do ensino dos nativos apresenta-se na Guiné Portuguesa revestido de duas tendências antagónicas. Numa, que representa o ponto de vista tradicionalista fundamentado na noção de superioridade europeia, as populações nativas devem ser educadas num regime de segregação completa dos civilizados; se se trata de mestiços, instáveis por complexo constitucional, na sua recente interfusão de sangues díspares – em que um transmite as hereditárias aquisições multiseculares dos brancos e o outro o primitivo intonso e rude dos negros; se se trata desses mesmos negros, de índole comunitária, estrutura mental pré-lógica, vida imemorial estagnada ou em regresso, marcada por signos e estigmas de diversas estirpes, divergentes da do civilizado branco. A segunda, encaradas pelos defensores do primeiro ponto de vista como própria de idealistas sem o sentido das diferenças psicofisiológicas e sociais entre pretos, mestiços e brancos, proclama um programa em bases semelhantes para o europeu e para o nativo, a quem o ensino rudimentar e elementar colocou em condições de frequentar as mesmas escolas que os brancos”.

Seriam estas as duas tendências. Mas Sarmento Rodrigues impôs a língua portuguesa para todos, sem discriminação.

Ficamos a saber que não havia literatura portuguesa escrita por guineenses e que o ensino dera um verdadeiro salto na segunda metade da década de 1940, irá gradualmente crescer o número daquele que irão falar fluentemente português. E como se vê hoje, os escritores da Guiné-Bissau exprimem-se sem rebuço na língua portuguesa e no seu crioulo.


Mariasinha em África, ilustração de Sarah Affonso
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23565: Notas de leitura (1481): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte III: O Tala Djaló, cmdt do Pel Mil 143 e depois fur grad 'comando' da 1ª CCmds Africana, que virá a ser fuziladdo em Conacri, na sequência da Op Mar Verde

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21651: Historiografia da presença portuguesa em África (243): Revista Estudos Ultramarinos, 1959 - n.º 2 - Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, ´

No mínimo dá que pensar se o corpo redatorial da revista Estudos Ultramarinos vivia num estado de inocência ou abstraídos da ascensão, já vigorosa, da luta anticolonial, um pouco por toda a parte. Reproduzem-se documentos que colidiam frontalmente com o ideário do Estado Novo, diz-se mesmo que está presente no II Congresso em Roma um representante angolano. Trata-se de Mário Pinto de Andrade, dirigente do MPLA, que trabalhará, a partir do ano seguinte, em estreita colaboração com Amílcar Cabral, em Conacri. 

Acervo de documentos que vão mesmo até à inclusão da resolução da Conferência de Tachkent, em que participaram escritores e artistas da Ásia e da África, tecendo-se várias críticas ao colonialismo, culmina este acervo de documentos com uma carta dos estudantes norte-africanos a proclamar em Tunis a criação da Confederação Norte-Africana de Estudantes, fazendo sempre a apologia da luta pela independência nacional. 

Mais trotil para o leitor da publicação do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, de onde se recrutavam os quadros para a nossa administração colonial, não podia haver.

Um abraço do
Mário



Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (2)

Mário Beja Santos

Já se referiu que a revista Estudos Ultramarinos, que tinha como diretor Adriano Moreira, ele também Diretor do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, não deixa de nos surpreender, à distância de cerca de seis décadas, e num tempo em que já pairava no ar o sinal de efervescência da luta anticolonial, a publicação de textos de figuras que se irão distinguir nessa luta ou apresentações ideológicas a que o regime frontalmente se opunha. 

Na verdade, a substância da resolução do I Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, que se realizou em Paris, em setembro de 1956, em nada era favorável à política colonial portuguesa. E a mensagem de Sékou Touré enviada ao II Congresso Internacional, que se realizou em Roma, em 1959, foi integralmente publicada na revista dirigida por Adriano Moreira, um texto em frontal rota de colisão com a doutrina imperial portuguesa. 

Como se escreveu em artigo anterior, a mensagem de Sékou Touré escalpeliza a essência do ensino colonial e traz propostas para que seja rebatida, tornara-se inevitável recuperar, em todos os povos de África, as manifestações artísticas originais, e estudar o pensamento profundo que anima a arte africana e a torna socialmente útil. Faz a apologia dos deveres do intelectual ou do artista africano, ele deve integrar o seu pensamento com a sua ação, ligá-los às aspirações populares. Se o escritor ou artista se isolam, se nele permanece a mentalidade do colonizado, ele não pode aspirar a uma ação revolucionária, será um desenraizado ou estrangeiro na sua própria pátria. E enuncia como se deve fazer a descolonização intelectual. Dá exemplos ligados ao bailado, com os balés de Keita Fodéba.

Estava a ressurgir, escreve a mensagem de Sékou Touré, o homem africano outrora marcado pela indignidade dos outros, excluído dos empreendimentos universais, homem despojado de tudo, agora podia reivindicar a plenitude dos seus direitos humanos e uma participação a tempo inteiro. Mensagem que não silencia a crítica e a responsabilidade das civilizações de conquista, fala no crime de Fernando Cortez que liquidou o império Asteca e arrasou os poderosos valores culturais de uma das mais expressivas civilizações pré-colombianas. E a sua mensagem termina com os seguintes parágrafos:

“O processo da participação do homem negro nas obras universais, parte em primeiro lugar da personalidade africana, que não poderá ser reconstituída pelas vontades ou forças exteriores a África, tem que estar integrada na independência e unidade em que repousa o destino do mundo negro. Os compromissos culturais que a dominação estabeleceu impõem ao homem de África uma completa reconversão a fim de que reapareça a sua autêntica personalidade. Na independência da sua jovem soberania, é a via na qual o povo da Guiné está unanimemente comprometido para a libertação total e a unidade efetiva dos povos africanos a fim de que se acelere a sua marcha ou progresso técnico, económico e cultural numa sociedade em perfeito equilíbrio social e moral e num mundo de real civilização humana”

Bonitas palavras para um político que muito rapidamente se transformou num tirano cruel e sanguinário. O tom da resolução do II Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros é muito mais radical, nada tem a ver com a amenidade da resolução de 1956, fala na violência, nas segregações mais insuportáveis que se vivem na Argélia, no Quénia, na Niassalândia, no Congo, em Angola, na Rodésia e particularmente na União Sul-Africana, uma violência que calca os direitos fundamentais dos povos a dispor deles próprios. Recomenda-se a resolução rápida e pacífica dos conflitos violentos em África e principalmente na Argélia, apela-se à libertação de todos os africanos presos ou exilados pelo facto de lutarem pela independência dos seus países e condena a utilização dos africanos nas guerras coloniais. 

Mas em Roma, João XXIII concedeu audiência aos 150 participantes do Congresso. Estavam presentes congressistas de diferentes países, e fala-se na presença de Angola, era Mário Pinto de Andrade. Dirigia o Congresso o embaixador do Haiti em Paris, saudou o Papa, que respondeu com um discurso: 

“A Igreja aprecia, respeita e encoraja um trabalho de investigação e de reflexão que tem por objetivo libertar as riquezas originais de uma cultura própria, de descobrir os pontos de apoio na História, de manifestar as harmonias profundas através das mais diversas manifestações. A universalidade do olhar da Igreja, atenta aos recursos humanos de todos os povos, colocou ao serviço de uma verdadeira paz no mundo. A Igreja convida as elites de todos os povos a ter um espírito harmonioso na colaboração e simpatia profunda com as correntes provenientes das autênticas civilizações”.

A revista dirigida por Adriano Moreira transcreveu o documento em francês, fazendo depois em português um comentário final:

“O discurso do Santo Padre suscitou profunda impressão nos congressistas. Em grande parte estes eram católicos; mas também todos os outros, pertencentes a várias confissões religiosas, fizeram ressaltar que o ensinamento do Chefe venerado da Igreja Católica constitui documento altíssimo, com plena apreciação de quanto a população de estirpe negra sente acerca dos seus destinos e dos seus ideais, postos ao serviço dos mais nobres sentimentos de justiça, de fraternidade e de paz, apregoados por Deus a todos os homens”

Refira-se que ainda nesta secção de documentos se insere o apelo dos escritores dos países da Ásia e da África aos escritores do mundo inteiro, Conferência de Tachkent, outubro de 1958, onde igualmente se apostrofa o colonialismo.
Frantz Fanon no I Congresso de Escritores e Artistas Negros
Mário Pinto de Andrade (para saber mais sobre o II Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, ver a documentação de Mário Pinto Andrade, que nele participou: Casa Comum
Papa João XXIII
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21625: Historiografia da presença portuguesa em África (242): Revista Estudos Ultramarinos, 1959 - n.º 2 - Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21625: Historiografia da presença portuguesa em África (242): Revista Estudos Ultramarinos, 1959 - n.º 2 - Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Impossível não ficar atónito quando uma revista dirigida por Adriano Moreira, do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, com data de 1959, publicar poesia de Agostinho Neto ou Viriato da Cruz, as conclusões do I Congresso dos Escritores e Artistas Negros e também uma extensa mensagem dirigida por Sékou Touré (seguramente escrita por mão alheia) onde se exaltam as culturas africanas e se procede a uma minuciosa análise do processo cultural do colonizador. 

Impossível os doutrinadores do Estado Novo estarem completamente alheados das grandes mudanças que se estavam a operar em África desde 1957, esta documentação era um libelo acusatório para o regime e a sua doutrina imperial. Mas há paradoxos incompreensíveis, a explicação plausível, caso exista ultrapassa a nossa compreensão.

Um abraço do
Mário



Como se escrevia sobre a luta de libertação em pleno Estado Novo (1)

Mário Beja Santos

Já se referiu que a Revista Estudos Ultramarinos, que tinha como Director Adriano Moreira, ele também Director do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, não deixa de nos surpreender, à distância de cerca de seis décadas, e num tempo em que já pairava no ar o sinal de efervescência da luta anticolonial, a publicação de textos de figuras que se irão distinguir nessa luta ou apresentações ideológicas a que o regime frontalmente se opunha. Por exemplo, na amostra de poesia ultramarina constam nomes como os de Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro, Noémia de Sousa, Osvaldo Alcântara, Tomás Medeiros ou Viriato da Cruz.

E na secção de documentos, as surpresas não param. Logo, mesmo em francês, a resolução do I Congresso Internacional dos Escritores e Artistas Negros, que se realizou na Sorbonne (Paris), entre 19 e 22 de setembro de 1956. Regista-se a satisfação pelo inventário efetuado às diversas culturas negras que tinham sido até então sistematicamente mal conhecidas, subestimadas e por vezes destruídas; reconhecia-se a necessidade imperiosa de proceder a uma redescoberta da verdade histórica e a uma revalorização das culturas negras, pondo termo à apresentação errónea ou tendenciosa dessa verdade: 

“O nosso Congresso presta homenagem às culturas de todos os países e aprecia a sua contribuição para o progresso da civilização, compromete os intelectuais negros a defender, a ilustrar e a fazer conhecer no mundo os valores nacionais dos seus povos.

Nós, escritores e artistas negros, proclamamos a nossa fraternidade com todos os outros homens e esperamos deles que manifestem para com os nossos povos a mesma fraternidade”
.

O texto seguinte parece-nos incrível como se permitiu a sua publicação. Trata-se da mensagem intitulada “A cultura africana na luta da libertação”, foi enviada por Sékou Touré ao II Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros que se reuniu em Roma de 26 de março a 2 de abril de 1959. Quem redigiu a mensagem foi seguramente um intelectual e ideólogo próximo do ditador, sente-se um certo pendor marxista. 

“A cultura de um povo é necessariamente determinada pelas suas condições materiais e morais. O homem e o seu meio constituem um todo. Todo o povo livre e soberano tem melhores condições para a expressão dos seus valores culturais que um país colonizado, privado de toda a liberdade e cuja cultura está num estado de sujeição”

A projeção pessoal de Sékou Touré não fica de fora: 

“O líder político é, pelo facto de a sua comunhão de ideias e de acção com o seu povo, o representante de uma cultura. O homem, antes de se tornar o líder de um grupo, de um povo ou de uma parte do povo, fez inevitavelmente uma escolha entre o passado e o futuro. É assim que ele representará e defenderá os valores antigos ou sustentará, impulsionará o desenvolvimento, o enriquecimento constante de todos os valores do seu povo”.

 Deixa-se claro o que distingue um líder reacionário de um progressista, segue-se a exaltação dos líderes das democracias populares, recorda-se que a cultura árabe difere da cultura latina e adverte-se como os imperialistas utilizam os valores culturais (científicos, técnicos, económicos, literários e morais) para justificar e manter o seu regime de exploração e de opressão.

Para combater a descolonização é importante ter em conta que não basta somente o descolonizado libertar-se da presença colonial. A colonização, para se afirmar, tem sempre necessidade de criar e manter um clima psicológico favorável à sua justificação. É uma ciência de despersonalização do povo colonizado, subtil nos seus métodos e destinada a falsificar o psiquismo natural do povo colonizado.

O complexo do colonizado ainda é um fantasma permanente que se manifesta pelo uso do capacete, dos óculos de sol, símbolos da civilização ocidental.

  “Os nossos livros escolares das escolas coloniais levavam-nos a aprender a guerra dos gauleses, a vida de Joana d’Arc ou de Napoleão, a lista das diferentes regiões francesas, os poemas de Lamartine ou o teatro de Molière, como se África nunca tivesse tido história, passado, existência geográfica, vida cultura… Os nossos alunos eram apreciados devido à sua aptidão para esta política de assimilação cultural integral.

 O colonialismo, através das suas diversas manifestações, gabava-se de ter ensinado a nossa elite, nas escolas, as ciências, a técnica, a mecânica ou a electricidade, e a influenciar muitos dos nossos intelectuais. Como se fossem proprietários destes conhecimentos universais, pois eles são os mesmos, quando se fala em práticas cirúrgicas, em Londres, Praga, Belgrado ou Bordéus; os processos de cálculo do volume de um corpo são idênticos em Nova Iorque, Budapeste ou Berlim; e o Princípio de Arquimedes é idêntico na China ou nos Países Baixos; não há uma química russa nem uma química japonesa, há a química.

Na Guiné criámos a nossa própria escola de administração exactamente para contrariar este estado de inferioridade que marca os programas e a natureza do ensino colonial. As potências coloniais e a necessidade de homens que produzissem, que criassem, mão-de-obra qualificada: para cortar madeira, agricultores eficientes, trabalhadores para as poderosas companhias coloniais; e igualmente era também necessário travar as grandes endemias que ameacem as populações, que possam reduzir a mão-de-obra, e assim os poderes coloniais criaram corpos de médicos africanos com a determinação de fazer um corpo subalterno. 

Assim, no plano do conhecimento puro, no plano dos conhecimentos universais, o ensino dispensado em África era voluntariamente inferior e limitado às disciplinas que permitem uma melhor exploração das populações. Por outro lado, o ensino primário e secundário visava constantemente a despersonalização e a dependência cultural. É preciso denunciar este falso sentimentalismo que consiste em acreditar que somos devedores ao aporte de uma cultura imposta em detrimento da nossa. É preciso abordar o problema objectivamente. Quantos dos nossos jovens estudantes fizeram, sem disso darem conta, o processo da cultura africana submetendo-se à cultura da potência colonial? 

A cultura é a maneira como uma dada sociedade dirige e utiliza os recursos do seu pensamento. Fomos levados a aprender o nome de intérpretes eminentes do colonizador, perdemos as referências tradicionais da nossa cultura. Quantos dos nossos jovens estudantes citam Bossuet ignorando a vida de Alhaji Omar Tal? Quantos intelectuais africanos foram levados inconscientemente a desfazer-se das riquezas da nossa cultura para registar as concepções filosóficas de um Descartes ou de um Bergson?”

(continua)

Sékou Touré
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Nota do editor:

Último poste da série de 2 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21603: Historiografia da presença portuguesa em África (241): Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905, por Alfredo Loureiro da Fonseca, no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20074: Notas de leitura (1210): A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo, Grupo de Pesquisa Sobre a Descolonização Portuguesa; Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa 1979 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Este documento destaca-se por ter sido o primeiro ensaio de investigação fora da balbúrdia dos extremos: proliferavam na época os libelos acusatórios ao colonialismo e os chamados "livros negros" acusando militares e forças políticas de traição e abandono das populações das colónias. Sente-se, do princípio ao fim, a presença tutelar de Adriano Moreira. É um documento com altos e baixos, obviamente, o contexto em que se estuda o chamado problema ultramarino e procede ao balanço da colonização portuguesa decorre com bastante rigor e serenidade. Escusado é dizer que as investigações se aperfeiçoaram nas décadas seguintes, surgiu muita documentação e até se conhece melhor os pontos de vista no campo dos movimentos de libertação.
É lastimável que este documento não conste em qualquer referência bibliográfica sobre o colonialismo português e os atos da descolonização.

Um abraço do
Mário


A descolonização portuguesa, aproximação a um estudo

Beja Santos

“A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo”, da responsabilidade de um grupo de pesquisa dirigido por Mário António Fernandes de Oliveira, edição do Instituto Democracia e Liberdade, 1979, dois volumes, apresentou-se como uma tentativa de oferecer elementos aos estudiosos que no futuro viessem a tratar o tema na perspetiva do conhecimento rigoroso e sereno, e simultaneamente a obra apresentava-se com intuitos de pacificar os portugueses sobre tão traumatizante questão. Importa esclarecer que o Instituto de Democracia e Liberdade era uma área de estudos confim ao CDS que, como é de todos sabido, pretendia ganhar notoriedade como um partido democrata-cristão. O diretor deste estudo, Mário António Fernandes de Oliveira, era um intelectual nascido em Angola com pergaminhos na investigação e na poesia. Paira sobre este estudo a imagem tutelar de Adriano Moreira, prefaciador dos dois volumes. Neste tempo, tanto no campo da esquerda como no dos ultranacionalistas já se apresentavam interpretações (na maior parte meramente ideológicas ou emotivas) para o fenómeno colonial português, e surgiam protestos e denúncias no campo oposto assacando tremendas responsabilidades aos militares, a Spínola, ao MFA, à esquerda em geral e ao PCP em particular, libelos que apareciam como acusação de abandono puro e simples e traição às populações que no espaço colonial se sentiam portuguesas, havia que pôr os réus em tribunal.

Mário António é o primeiro à direita
No que toca à compreensão do colonialismo em geral e da luta nacionalista na Guiné em particular, é o primeiro volume que oferece boas chaves explicativas: analisa-se o colonialismo português, as correntes de opinião sobre o ultramar num amplo arco histórico, esboça-se um balanço da colonização portuguesa bem como das lutas de libertação, expõem-se as hipóteses descolonizadoras anteriores ao 25 de Abril e questiona-se a situação militar nas colónias no primeiro trimestre de 1974.

A equipa dirigida pelo intelectual angolano elabora um pertinente documento sobre o caso português no contexto dos impérios coloniais, procura-se uma especificidade para a empresa ultramarina dos portugueses, alicerçada por posturas permanentemente assertivas desde o liberalismo até às correntes nacionalistas e oposicionistas até à década de 1950, aqui terá lugar uma viragem, a fratura adensar-se-á entre o regime e da oposição socialista para a esquerda. O documento pondera as várias hipóteses de descentralização que surgem em torno da discussão da revisão do Acto Colonial, a questão indiana despertará os próceres do regime para a necessidade de pôr em ação um novo quadro de desenvolvimento socioeconómico para as colónias. Iniciada a luta de libertação em Angola, vão aparecer vozes, de um modo geral desencontradas, apelando a formulações políticas que conciliassem os interesses das populações locais com o projeto imperial. A partir de 1972, sente-se a inevitabilidade de encontrar uma solução por uma guerra sem fim, as posições extremam-se. Um exemplo é dado pelo I Congresso dos Combatentes do Ultramar, que se realizou no Porto em 1973 e em que os ultranacionalistas fizeram aprovar conclusões como estas: 1 – todo o combatente deve continuar vigilante, ativo e dinâmico, na Metrópole e no Ultramar, combatendo todo e qualquer inimigo de Portugal; 2 – o que foge ao cumprimento do serviço militar não é digno de ser português; 3 – Portugal só pode realizar-se integralmente num território pluricontinental; 4 – continuar a defender Portugal por todos os meios e pelo tempo que for necessário. Coube a Spínola criar uma atmosfera propícia ao golpe militar de 25 de Abril.

À guisa de balanço da colonização portuguesa, os autores não iludem as realidades que davam pasto às reivindicações nacionalistas. Por exemplo:
“O número de africanos desempenhando funções médias na sociedade foi reduzido em todas as colónias, assim como o de africanos com títulos de propriedade privada, quer em relação às estruturas fundamentais, como a terra e a habitação, quer em relação a indústrias, incluindo as mais rudimentares. A distribuição profissional dos colonos justifica a posição de marginalidade a que a colonização condenou os africanos”.

Vejamos agora a Guiné: uma economia agrícola predominantemente de subsistência, com um baixo grau de monetarização, a produção agrícola foi profundamente afetada pela guerra, as autoridades procuraram o reordenamento rural e lançaram projetos de produção socioeconómica preferentemente no Chão Manjaco; um conjunto de unidades industriais solicitou autorização de instalação, com especial relevo as dedicadas ao fabrico de cerveja e refrigerantes, reparações navais, plásticos, pão, pescas, conservas e farinação de peixe, em 1973 encontrava-se instalada a CICER – Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes da Guiné e a Companhia de Pesca e Conservas da Guiné; nesse mesmo ano as atividades industriais de maior significado foram a de moagem e de descasque, a produção de óleo de amendoim, gelo, amendoim descascado, refrigerantes, sumos e serração de madeiras; existiam 56 centrais elétricas, a rede rodoviária dispunha de mil quilómetros de estrada dos quais 460 asfaltados e aproximadamente 517 no fim de 1973. Enfim, não se ilude a insignificância dos dados nem o caráter rudimentar da economia colonial.

Faz-se uma exposição sobre a ascensão do nacionalismo guineense, a partir de 1954 e depois um curto historial sobre o PAIGC. Também não se ilude a evolução favorável ao PAIGC da luta armada, o gradual prestígio internacional do seu líder, o seu armamento e a preparação militar eficiente dos militares e milícias. Releva-se a ofensiva desencadeada pelo PAIGC a partir de Maio de 1973 e o que representou a perda de supremacia aérea com os mísseis Strela. Citando Jaime Nogueira Pinto, os autores referem algo que não corresponde à verdade: “Segundo relatos posteriores dos responsáveis político-militares da Guiné, o governo de Lisboa dera na altura instruções para se evacuar a parte Sul do território até ao Geba, o que não fora cumprido, terminando pouco depois a comissão de Spínola”. E no questionamento se se caminhava ou não para o colapso, os autores opinam: “Sem dúvida que a situação militar na Guiné, no primeiro trimestre de 1974, era de facto bastante grave, quer pelo estado de abatimento das tropas portuguesas, quer pelo reconhecimento de inferioridade dos meios materiais de que dispunham, quer porque começavam a ter problemas na formação de quadros e dos contingentes com vista às rotações normais do pessoal. Contudo, apesar de condenado internacionalmente como ocupante ilegítimo do território de um Estado independente, Portugal mantinha todos os seus poderes de soberania exercendo os actos da administração corrente em quase todos os pontos do território a que tinha acesso”.

Não se tem dado o devido valor a este primeiro documento em que de forma abrangente uma equipa de investigadores procurou com seriedade e busca das fontes e consulta dos documentos uma interpretação global para o fenómeno do colonialismo português e para os atos da descolonização.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19246: Notas de leitura (1126): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (62) (Mário Beja Santos)

Sede do BNU - Lisboa


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Abril de 2018:

Queridos amigos,

Muito tem para dizer o gerente de Bissau, nesta fase que já preludia a subversão. O Ministro Adriano Moreira fez uma curta visita, os comerciantes aguardavam-no com expetativa para resolver o problema dos cambiais, problema eterno, nem novas nem mandados; estão a chegar efetivos à Guiné, os edifícios aprestam-se com medidas de segurança, o BNU mandou instalar em todo o quarteirão luzes elétricas, Bissau é patrulhada, e a questão cabo-verdiana vem claramente ao de cimo, um grupo rival do PAIGC, o Movimento de Libertação da Guiné, capitaneado pelo manjaco François Mendy anuncia em panfleto que nada tem a ver com Amílcar Cabral nem com a sua litania de unidade Guiné – Cabo Verde. O que há de verdadeiramente curioso neste panfleto que diz ser de março de 1951 mas era de março de 1961 é que se apresentava com alguma civilidade e etiqueta, deu provas com o que fez em Susana e Varela de vandalismo puro.

Desses e de outros acontecimentos falaremos seguidamente.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (62)

Beja Santos

Na documentação avulsa constante nos arquivos do BNU, merece todo o relevo o conteúdo da carta enviada em 8 de junho de 1961 de Bissau para Lisboa, conforme se pode ler:

“Conforme os desejos manifestados por V. Ex.ª, fazemos a seguir um relato resumido da situação geral da Província.

O acontecimento que nos últimos meses mais agitou a população, foi, sem dúvida, a visita do Sr. Ministro do Ultramar. Em especial o comércio (e não há outra actividade marcante no sector privado) alimentou esperanças de que Sua Ex.ª resolveria o mais melindroso problema económico que preocupa a Guiné – o problema cambial.

Não havia, porém, razões para tão eufórica expectativa. O problema cambial desta Província entronca-se noutros problemas igualmente complexos, que possivelmente só podem ser examinados e solucionados num vasto plano de conjunto.

Não era crível Sua Ex.ª o Ministro estivesse, na sua curta visita, apetrechado com as soluções que, no caso específico, o comércio infundadamente aguardava.

Outros e mais importantes problemas preocupavam, na altura dessa visita, estamos em crer, o espírito esclarecido de Sua Excelência. E foram certamente esses problemas que determinaram a sua presença nesta terra.

No aspecto político, a situação é estacionária. Os efectivos militares na Província têm aumentado, constando que são actualmente de 4 mil homens. Este efectivo deverá ser aumentado dentro de dias com mais 500 homens. Esta tropa está repartida pela área fronteiriça, com mais densidade na área da vizinha República da Guiné, havendo também fortes guarnições nas principais cidades (Bafatá, Farim e Bolama).

Em Bissau, além das forças de reserva aquarteladas, as de Polícia Militar, PSP e PIDE asseguram a ordem. Pelo que sabemos de fontes autorizadas, está completado o sistema defensivo com vista não só ao perigo exterior (incursões armadas penetrando pelas fronteiras) como ao perigo interno (acções subversivas com núcleos de terroristas civis).

Naturalmente que não conhecemos em pormenor o dispositivo de defesa e como ela se articulará. Temos, porém, informações que nada aconteceu, por hora, mas conta que do lado da República da Guiné se notam concentrações de gente indígena e de chineses. Internamente, em todas as cidades e vilas de maior importância, são rigorosas as precauções e nelas têm colaborado entusiasticamente a população civil e as empresas.

Nalgumas vilas mais distantes, organizaram-se milícias que policiam dia e noite e esta actividade é ‘coberta’ por patrulhas móveis de tropa. Aos que não dispunham de armas, o Comando Militar forneceu-as.

Na cidade de Bissau, as precauções são mais importantes. A Casa Gouveia, por exemplo, contratou na Metrópole paraquedistas de reserva, adquiriu armas automáticas em quantidade, além de isolar todas as suas instalações erguendo muros e montando novos sistemas de luz. A Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosas & Cta. tomaram providências semelhantes.

No que se refere ao nosso Banco, como V. Exas. sabem, o nosso edifício e terrenos apenas tinham guarda da PSP das 19 horas às 8 da manhã. Só o edifício principal tinha lâmpadas de segurança. Todo o resto do terreno (pavilhões de pessoal, garagem, etc.) permanecia na mais completa escuridão. Por força das circunstâncias e da urgência, mandámos instalar em todo o quarteirão luzes eléctricas, e para esta despesa pedimos o acordo de V. Exas.

Ao mesmo tempo, oficiámos ao Governo da Província, através da Direcção de Fazenda, pedindo o reforço da guarda. Sua Ex.ª o Governador deu imediatas instruções ao Comando da PSP e o sistema defensivo ficou montado. Porém, há um óbice em tudo o que se conseguiu: os muros que, a partir da área do edifício principal são da altura de 1,20 metro, permitem a passagem de toda a gente. Impõe-se o levantamento desse muro, sem o que as precauções policiais tomadas não terão qualquer eficiência, de modo que toda a propriedade fique isolada, fazendo-se o acesso só pelos portões.

Pedimos ao construtor A. F. Parente um orçamento. Por indicação do Comandante da PSP, tivemos de adaptar uma parte dos baixos do Pavilhão n.º 1 para servir de caserna para 6 guardas, em caso de emergência. Iniciámos já esta pequena obra, mas temos de adquirir 6 camas de ferro completas. Também para este dispêndio solicitamos o acordo de V. Exas.”

A exposição muda agora de azimute, o gerente de Bissau vai informar Lisboa da subversão em marcha:

“A avaliar pelas impressões que temos colhido de pessoas responsáveis, a ideia dominante é a de que o indígena do interior está totalmente alheio a qualquer movimento de subversão e não mostra disposições para aceitar e acolher propagandistas.

Porém, nas cidades e vilas de certa importância existe em evolução um movimento clandestino de independência, dirigido de Conacri e de outros pontos fronteiriços pelo chamado Comité de Independência de Guiné e Cabo Verde, cujos mentores são na realidade cabo-verdianos, como cabo-verdianos são os cabecilhas-médios e propagandistas que têm sido presos pela PIDE, entre os quais figurava um empregado da Filial, já demitido por V. Exas.

Raros são os guineenses que estão no ‘movimento’, à parte o chamado ‘calcinha’, fauna de vadios que vive à custa da família e não quer trabalhar. Infelizmente a acção repressiva sobre esta gente tem sido muito tolerante, em obediência a conceitos e directivas de nível superior que, pessoalmente, consideramos prejudiciais. E assim pensa quase toda a população europeia.

Merece registo que a população nativa da Guiné de todas as raças detesta profundamente os cabo-verdianos. Há evidentes provas disso. Este facto, felizmente, contribui para tornar mais difícil a actuação criminosa dos homens do ‘movimento’, e concorre poderosamente a nosso favor. Como demonstração dessa má vontade dos guineenses pelos cabo-verdianos, parece ter-se criado já um outro ‘movimento’ exclusivamente guineense. Anexo encontrarão V. Exas. um panfleto clandestino que há dias foi enviado, por correio, a muitos cabo-verdianos na Província”.

É evidente que o tom usado pelo gerente no seu documento confidencial é de amenidade e confiança. Mas termina a sua carta não iludindo que começara um certo êxodo europeu:

“Desde Abril e mais intensamente em Maio estão a abandonar a Província quase todas as mulheres e crianças europeias. Têm seguido em aviões militares, em navios, que partem cheios. É um desgraçado sintoma do pânico que impera na Guiné. Também têm seguido alguns comerciantes, após terem liquidado os seus negócios ou deixando-os entregues a empregados interessados.
Este êxodo tem criado um agravamento da crise cambial, pois todos os que partem pedem transferências de dinheiros e a fixação de mesadas.”

A próxima missiva para Lisboa anunciará, em 21 de julho, o ataque a S. Domingos. E em junho de 1962 toda a documentação vai referir com clareza quem é o movimento que está a pôr a região Sul em turbilhão: o PAIGC.

(Continua)




Sala no BNU em Lisboa.
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Notas do editor

Poste anterior de 23 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19225: Notas de leitura (1124): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (61) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19243: Notas de leitura (1125): 38.ª COMPANHIA DE COMANDOS "Os Leopardos" - A História, coordenação de João Lucas (Belarmino Sardinha)

domingo, 30 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13960: Agenda cultural (367): Apresentação, pela escritora Helena Matos, do livro "Estudos Gerais Universitários de Angola. 50 anos: história e memórias" (Autores Vários; Lisboa, Colibri, 2104; prefácio de Adriano Moreira)

Título: Estudos Gerais Universitários de Angola. 50 anos: História e Memórias

Autoria: AAVV
Temas: História, Sociologia, Lusofonia, Memórias
Editora: Colibri
Local: Lisboa
Ano: 2014
Capa: mole
Tipo: Livro
N. páginas: 376
Formato: 23x16
ISBN: 978-989-689-441-2
Preço: 30,00 € 

Sinopse:

A criação dos Estudos Gerais Universitários de Angola e, também, na mesma data, de Moçambique foi antecedida de uma grande batalha e, por isso, acompanhada de um erro e de um compromisso. O erro traduziu-se no título das instituições, chamadas Estudos Gerais com o intuito de ficar afirmado que tinham a mesma intenção, dignidade e responsabilidade das mesmas instituições ocidentais usadas na Europa havia séculos. 

O compromisso teve origem na necessidade de ultrapassar as resistências, desactualizadas nos tempos e nas convicções de muitos, de que era necessário continuar a exigir e manter o ensino superior na metrópole como instrumento para assegurar a unidade prevista na Constituição de 1933. 

Neste caso tratou-se de um conflito de experiência e de concepção. Quanto à concepção, a ideia de unidade de Portugal nasceu da visão, confirmada por factos históricos, como a Restauração de 1640, de que os portugueses, emigrados pelas cinco partidas do mundo, e os descendentes manteriam essa comunidade, em primeiro lugar de afectos e, depois, de solidariedade e interdependência, que se chama Nação. 

Uma concepção que seria alargada, com expressão viva no Comandante João Belo, na esperança da assimilação que viesse a unir europeus e gentes das terras. Uma concepção ideológica contraditória com o próprio ensino universitário da época, provavelmente inspirado nas independências do continente americano, e que usava o exemplo de os filhos se separarem dos pais, o que estava em contradição evidente com a interpretação constitucional. Mas era mais relacionada com a convicção da preservação da unidade imperial o engano de que tal objectivo da unidade era melhor servido pela manutenção na metrópole do exclusivo ensino superior que, apenas, tinha excepção na Escola Médica do Estado da Índia, cujos diplomas não eram reconhecidos suficientes na metrópole. 

[do prefácio de Adriano Moreira] 

Fonte: Edições Colibri


Vídeo (14' 51''). Luís Graça (2014). Alojado em You Tube > Nhabijoes

A escritora Helena Matos, no lançamento do livro "Estudos Gerais Universitários de Angola: 50 anos, história e memórias"  (Lisboa: Edições Colibri, 2014)

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 27/11/2014, 18h00 > Ao centro, a engª agrª Marília de Sousa, que coordenou a edição literária, e, à sua direita, o representante da editora. Mão de Ferro.




Vídeo (3' 36''). Vídeo de Luís Graça (2014). Alojado em You Tube > Nhabijoes

A jornalista Helena Matos, no uso da palavra (continuação) 




Vídeo (10' 26''). Vídeo de Luís Graça (2014). Alojado em You Tube > Nhabijoes


 Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkina > 27/11/2014, 18h > Sessão de  lançamento do livro "Estudos Gerais Universitários de Angola: 50 anos, história e memórias"  (Lisboa: Edições Colibri, 2014)

Ao centro, a minha amiga e amiga da Maria Alice Carneiro, engª agrª Marília de Sousa, que coordenou a equipa de  edição literária (6 pessoas); à  sua direita, o representante da editora, Mão de Ferro;  à esquerda , a  analista política e escritora Helena Matos, que apresentou a obra.

Helena Matos, nascida em 1961, é autora de, entre outras obras, Salazar em dois volumes (Lisboa, Temas e Debates, 2010), e Os Filhos do Zip Zip (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013).  Foi professora do ensino secundário. Trabalhou em seguida como jornalista.  Mais recentemente foi consultora histórica das séries Conta-me Como Foi (RTP) e Depois do Adeus (RTP). Faz ou fez comentário no Diário Económico,  na Antena 1, no Público  e no Observador.

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