Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 22 de março de 2024
Guiné 61/74 - P25298: Manuscrito(s) (Luís Graça): Quinta de Candoz: a sagração da primavera
terça-feira, 26 de dezembro de 2023
Guiné 61/74 - P25003: Manuscrito(s) (Luís Graça) (241): o meu primeiro Natal no Norte, em 1976
em dezembro
ainda não fazia neve
em dezembro era natal
e comia-se a aletria e as rabanadas
em janeiro cantavam-se as janeiras
e bebia-se o vinho novo
em dezembro ainda não havia neve
pra cozer as pencas pró natal
não havia neve
à porta dos camponeses pobres do norte
nem as peugadas dos pés descalços
das criancinhas do augusto gil
batem leve levemente
como quem chama por mim
ah onde está o tipicismo da miséria rural
que os escritores burgueses descobriram antes de nós
o camilo o eça o ramalho o aquilino
em dezembro
o pai natal já não descia pelo fumeiro
por entre os salpicões e os presuntos
vinha de peugeot pelas estradas de frança
e trazia tiparrillos prá malta fumar
à lareira
em dezembro
a maria do norte cortava erva pró gado
e cantava a plenos pulmões
uma canção do sul
candoz.
natal de 1976 (*)
sábado, 23 de dezembro de 2023
Guiné 61/74 - P24993: As nossas geografias emocionais (20): Quinta de Candoz, "aguarelas" natalícias, com votos de Boas Festas (Luís Graça)
Foto (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Ultimo poste da série > 20 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24980: As nossas geografias emocionais (19): Lisboa: Do Passeio Público à Avenida da Liberdade...
sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
Guiné 61/74 - P24988: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (43): Arroz de moiras com grelos ("Chef" Alice)
Marco de Canveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 21 de dezembro de 2023 > O arroz de moiras com grelos,à moda da "Chef" Alice...Foto (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
− Também lá volto! − exclamava Jacinto com uma convicção imensa. − É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija rapariga de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!... Tentou todavia uma garfada tímida - e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava... E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. (...)
Nota do editor:
sábado, 21 de outubro de 2023
Guiné 61/74 - P24777: Manuscrito(s) (Luís Graça) (239): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VI: no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios" (Padre Manuel Vieira Aguiar, 1947)
Contracapa do livro de Padre Manuel Vieira de Aguiar - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp.
Uma das raras imagens do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. Fonte: Aguiar, 1947, op. cit., pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)
1. O Zé do Telhado (ou melhor, a sua memória popular) calhou-me... "em herança". Tendo casado em Candoz, a escassos quilómetros de Fandinhães (terra da minha sogra, Maria Ferreira), na serra de Montedeiras, e a 5 minutos de carro da Casa do Carrapatelo na margem direito do rio Douro (o mais célebre dos assaltos cometidos por aquele "capitão de bandoleiros", no dia 8 de janeiro de 1852), tinha que me interessar pelas "lendas e narrativas" que sobre esta personagem oitocentista se contavam, ainda nos anos 70 do séc. XX.
Andava há anos para ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890). Só agora tive tempo e pachorra para o fazer. (E também só há uns anos conheci a casa-museu do Camilo, em São Miguel de Seide, V. N. Famalicão)
E, atrás do Camilo, vieram outros autores, não muitos, dos que tèm escrito sobre o banditismo no séc. XIX, em geral, e o Zé do Telhado, em particular.
Também, por "herança", veio-me parar às mãos o livro cuja contracapa se reproduz acima, da autoria do padre Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp). Está completo (falta-lhe a capa), mas em muito mau estado, muito manuseado, a precisar de ser restaurado e reencadernado.
O autor, Manuel Vieira de Aguiar, na altura era professor do ensino liceal, sendo irmão do padre Agostinho de Aguiar. ( Este foi pároco da freguesia de Paredes de Viadores, a que pertence Candoz, e também ele conterrâneo e condiscípulo do meu sogro, ao tempo da escola primária, e amigo da família Ferreira Carneiro, para cujos convívios costumava ser convidado: Já faleceu há já uns largos anos; era natural de Mondim, uma lugar perto de Candoz, e a sua família foi um alforge de padres e freiras.)
O livro tem interesse documental, como monografia do concelho do Marco de Canaveses e as suas trinta e duas freguesias (na altura), incluindo Paredes de Viadores. Destaque também para as 75 gravuras (reproduçóes fotográficas), que ilustram o livro, e que são valiosas para o estudo etnográfico das gentes daquela terra do Vale de Tàmega, uma das tábuas do berço onde nasceu Portugal.
A I parte do livro é dedicada à história dos concelhos, entretanto extintos em meados do séc. XIX, que deram origem ao atual concelho de Marco de Canaveses (Bem-Viver, Canaveses, Soalhães, Alpendurada, Santa Cruz de Riba Tàmega e Porto Carreiro) e ainda aos diversos coutos que existiam dentro do território do concelho, cinco privados (Alpendurada, Tabuado,Burgo de Entre-Ambos-os-Rios, Tuías, Vila Boa do Bispo) ou e 1 real (Vila Boa de Quires), Fala-se ainda de duas beetrias do Reino, Canaveses e Paços de Gaiolo (pp. 55-154).
Já agora, defina-se, muito sumariamente, esta terminologia, menos familiar ao leitor:
(i) beetria , segundo o dicionario, é uma localidade medieval que gozava o direito de eleger os seus senhores, um privilégio raro:
(ii) couto era "uma determinada zona de terra, limitada por autoridade real, com certos privilégios, isenções, justiça própria, pagando determninadas pensões aos senhorios diretos" (op, cit., pág. 117).
Havia os coutos privados (dos conventos e da nobreza) e os reais (estes também chamados "coutos de homiziados", ou sejam, de fugitivos à justiça: na prática, era um instrumento de "colonização interna", ficando situados de preferência nas regiões fronteiriças; os criminosos encontravam ali protecçáo e guarida, com exceçáo para traidores, regecidas e hereges...); foram extintos em 1790.
A II parte do livro é dedicada à "história, demografia e corografia de cada uma das freguesias do atual concelho" (pp. 155-360),
E a III (e última) parte é sobre "o folclore em Marco de Canaveses" (pp.361-435): vida rural, com destaque para os trabalhos agrícolas (arranca do linho, espadeladas, malhas, vindimas, esfolhadas), folclore, romarias, serões, festas, bailados populares, superstições, janeiras e reis, carnaval, clamores e pregões, alminhas e cruzeiros, etc.
Na entrada sobre a freguesia de Penha Longa, o autor dedica 13 páginas (pp. 252-265) ao Zé do Telhado e o assalto ao Carrapatelo (passados 70 anos sobre a morte do assaltante e 85 sobre o assalto).
Socorre-se, no essencial, sobre fontes já nossas conhecidas, com destaque para o Camilo "Memórias do Cárcere), Eduardo Noronha ("Zé do Telhado"), Sousa Costa (" Grandes dramas judiciários"), Pinho Leal (" Portugal Antigo e Moderno"), e António Cabral ("Perfil de Camilo").
Antes de apresentar um resumo da vida do Zé Telhado, como militar e depois como bandoleiro, o autor descreve-o nestes termos:
"Alto, gordo, de agradãvel apresentação, génio indomável e fartas barbas, eis o temível capitão de bandidos, que, durante cerca de 10 anos, espalhou o terror do saque e do sangue em terras de Entre-Douro e Minho" (pãg. 252).
O tom é "hagiográfico": afinal trata-se de saber por que é que "os nobres e os ricos lhe davam guarida e proteção"... Já o povo tinha por ele "uma certa estima que, avolumada pela tradição, se transfornou, mais tarde, em admiração profunda" (sic) (pág, 252).
O autor resume o porquê em duas linhas: Porque se dizia que José do Telhado:
A sua vida "épica e aventurosa", resumida pelo autor (e que inclui o episódio da da Guerra da Patuleia em que o José Teixeira da Silva conquista a medalha da "Torre e Espada") vai acabar em 1859, quando é preso...
(...) Por fim, cansado de desgostos, resolveu embarcar para o Brasil. A bordo já da barca Oliveira foi preso por iniciativa de Adriano José de Carvalho e Melo, ex-comissário da polícia do Porto [. Foi também Deputado da Nação e Governador Civil de Bragaça, nota de rodapé, pág. 260], e naquela data administrador do jovem, concelho do Marco de Canaveses, o qual soube soube do paradeiro do famoso facínora, por indicações de José Morgado, agora a ferros.
Conduzido à cadeia da Relação do Porto, ali respondeu por tentar fugir para o estrangeiro, sem a documentação precisa. É entregue depois ao Tribunal do Marco, onde corre o processo do crime de Carrapatelo, é é transferido da cadeia do Porto para a do Pisão, em Canaveses.
O seu companheiro de clausura, que também aguarda julgamento pelo crime de adultério com Ana Plácido, o insigne escritor Camilo Castelo Branco, atendendo à sua pobreza e amizade, conseguiu-lhe para defensor o seu próprio advogado, Dr. Marcelino de Matos, que gratuitamente lhe presta os seus serviços.
E em 25 de abril de 1861, realiza-se na casa da Quinta, freguesia de Tuias, um notável julgamento em que José do Telhado é condenado a degredo perpétuo e trabalhos públicos em África. Mais tarde, mediante recurso, foi a sentença reduzida pela Relação do Porto a simples degredo.
Na selva africana continua porém a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios. No exílio, longe da terra natal e da família, a estrela cintilante, tão nimbada de luz que por vezes nuvens negras envolveram, de novo surgia na sua velhice alquebrada. E assim, lá longe. no olvídio de tantos que o temeram e respeitaram, se findou esse bravo, de sentimentos generosos, que foi grande mesmo no crime.
É assim o destino de alguns homens tatuados com o sinete do génio!....
José Teixeira da Silva tinha qualidades como várias vezes demonstrou, de aguerrido, fidelíssimo soldado. Se, do regresso das lutas partidárias, mãos amigas o tivessem auxiliado, teria sido um homem de bem, honestíssimo. Se nas sendas tortuosas, nubladas da existência, alguém orientasse a sua juventude, tão inclinada à epopeia, ao maravilhoso, teria sido um chefe invencível, talvez mais dominador que Napoleão Bonaparte, mais temido que Júlio César, mais intrépido que Alexandre Magno.
Assim, abandonado às suas próprias forças, sem o amparo carinhoso da avara família humana, foi o que foi − um misto formidável de glória e infâmia, de grandeza e baixeza, de epopeias e tragédias. (pp. 260-262).
Não deixa de ser surpreendente este retrato, feito por um homem, sacerdote católico, que escreve em meados dos anos 40, no auge do Estado Novo. Já agora, não é de ignorar esta dedicatória do livro: "ao Instituto para a Alta Cultura, Secretariado Nacional de Informação, Câmara Municiapl de Marco de Canavese e Junta da Província do Douro Litoral, que se dignaram patrocinar esta obra, a gratidáo reconhecida do autor"...
Um Zé do Telhado, vítima das "circunstâncias histórias" (as lutas fratricidas dos portugueses, na época do liberalismo), e de algum modo "reabilitado" pela História, também convinha à propaganda de um Estado Novo, "antidemoliberal": no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua (...) a realizar proezas", isto é, "subjuga os pretos (sic), funda prósperas roças, dirige negócios" (a expressão é de Manuel de Aguiar).
(Continua)
(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)
Nota do editor:
Último poste da série > 12 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24748: ;Manuscrito(s) (Luís Graça) (238 ): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte V: um país de brandos costumes: quatro mil degredados em Angola, nos finais do séc. XIX, três em cada quatro dos colonos brancos
sábado, 14 de outubro de 2023
Guiné 61/74 - P24755: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (9): A pisa, a desfolha, a apanha da lenha nos montes, o cultivo da batata, a olivicultura... (António Carvalho, Medas, Gondomar)
Marco de Canaveses > circa 1947 _ A vinha de enforcado, as vindimas
1. Já aqui publiquei, há dois anos atrás, várias notas de leitura sobre o livro "Um caminho de quatro passos", do António Carvalho. (*)
Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro no sul da Guiné, durante dois anos (CART 6520/72, Mampatá,1972/74), encantou-me, de sobremaneira, na altura em que o li, as suas vivas recordações da infância passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que muitos de nós ainda chegámos a conhecer, tanto no Portugal continental como insular e até ultramarino. (estou-me a lembrar no nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé, "menino e moco em Fajonquito").0
- quem sabe o que é uma "pipa" e a sua equivalência em litros ?
- e menos ainda o significado de "desarroar as pipas" (tirar o sarro);
- "canastro" (ou espigueiro) também é um vocábulo estranho a um lisboeta;
- tal como "canistrel" (pequeno cesto de vime);
- ou como "calda bordalesa", "pingue de porco", "queiró, carqueja e tojo", "pisa", "desfolhada", etc.
- "à medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar";
- "tanger os bois";
- "guiar à soga";
- "o moleiro que arrochava os sacos de farinho sobre o dorso das mulas";
- "os dois porcos grandes, que se queriam gordos";
- "um terço de despacho (desembaraço)";
- "com a sua licença, o porco";
- "apercar";
- "freima";
- "aneira";
- "anos minguados"
- "barco rabão";
- "sortes" ...
Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro do António Carvalho (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como contributo para a nova série que temos em curso, "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço", onde a sua participação (para mais, agora às voltas com a gestação de um novo livro) é absolutamente obrigatória (*), a par de outros camaradas como o transmontanto Francisco Baptista, por exemplo. (Temos de recuperar alguns dos seus escritos sobre Brunhoso.)
António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", ex-fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74, membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008, autarca na antiga freguesia das Medas, Gondomar durante 28 anos (hoje, União das freguesias de Melres e Medas); tem cerca de 80 referências no nosso blogue.
(...) "Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro e pela serra de Açores, rebatizada (não sei por quem nem porquê) a partir da segunda metade do séc. XX, como serra das Flores, como aqui nasceram também, pelo menos, alguns dos meus octavós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho.(...) Talvez também por isso, nem em sonhos me passou algum dia pela cabeça assistir à assimilação da minha freguesia por outra, numa amálgama sem identidade !
(...) Espero não morrer sem ver a minha freguesia ressuscitada – a única coisa que me interessa, ao nível da política local. (...)" (pp. 212/214) (...)
A PISA E A DESFOLHADA
Setembro era o mês de maior azáfama, porque se juntava a colheita do milho e a vindima, não havendo um minuto de folga naqueles dias ainda grandes, mas já sem as reparadoras sestas.
As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele.
A ÁREA BRAVIA E A LAVRADIA
Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as camas do gado.
E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por queiró, carqueja e tojo, tornou-se mesmo decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de estrume.
Ora nessa área de terreno inculto, dispersa por várias parcelas a que os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas por sorteio, em número proporcional à área agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução.
Os lavradores maiores que tinham excedentes de mato, vendiam, para os fornos do Porto, alguma carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles, anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.
Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros, reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam nas lareiras de quase todas as casas, antes da chegada dos fogões a gás e a eletricidade.
A lenha das videiras que resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa.
As medas de ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família, faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.
Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado.
Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva.
Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado.
O AZEITE , O ÓLEO DOURADO
Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura.
Mas a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados.
Entre novembro e dezembro era a altura de se colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos, para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados, deixando que as copas se desenvolvessem na vertical, sempre com o propósito de evitar que se apoderassem do solo com a sua sombra.
A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso varejar os ramos mais altos.
Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que varejávamos do chão e de cima das escadas.
A azeitona colhida mais cedo e sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não fossem acompanhadas de carne gorda.
Na culinária a gordura que se usava mais frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano. (...)
© António Carvalho (2021)
(Seleção, revisão e fixação de texto, negritos, para publicação deste poste: LG) (Com a devida vénia...)
Capa do livro do António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.
3 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22593: Notas de leitura (1386): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte II (Luís Graça)
(**) Último poste da série : 13 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)
sexta-feira, 13 de outubro de 2023
Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)
Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele, uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74)... E a resistência, ativa e passiva, contra a violência de Estado e dos senhores da nobreza e do clero... E a guerrilha contra os invadores da Pátria, os Junot, os Soult, os Massena... E a cumplicidade com os Zé do Telhado, os Brandão, os Remexido...
Como era simples a vida da camponesa que ia ao monte buscar lenha, a moinha, as pinhas, as giestas. No carro de bois, que chiava pelo estradão, com a ca(n)ga(nça) toda de uma junta de bois nados e criados em Entre Douro e Minho.
Que quadro, que pintura, que pitoreco, que beleza, tardo-naturalística, desta humilde cena portuguesa, desta gente sem rosto, sem nome, sem registo, sem trilho, sem a mística nem a estética do Movimento Nacional Feminino. Sem dom nem dó. Mas com fé, esperança e caridade.
"Porra e lenha, é quanto a venha", diz o meu home, que anda num virote, enquanto a água de Covas é benção do céu para o milho e a vinha que cresce, apertada, na bordadura, nos solcalcos de granito...
Como era simples e bruta a vida da mulher do campo, no tempo em que ainda havia a distinção socioantropológica entre a cidade e o campo, ou a diferenciação teológica entre o céu, o purgatório e o inferno. E cada coisa estava no seu lugar. E a freima também matava a gente. A freima da lavoura, mais a salgadeira. E "na casa deste home, quem na trabalha na come"-
E havia o carro de bois, e o penso para o tourinho, e a lavagem para os cevados, e a maçã, biológica, do paraíso perdido, e o império colonial, e as expedições do Serpa Pinto, vizinho ali de Cinfáes, à distância de um tiro de canhão, e as campanhas de pacificação do Teixeira Pinto (a quem os guinéus chamavam o "capitão-diabo")...
Como eram imutáveis as leis que regiam as relações entre a terra e o sol, o solstício do verão e do inverno, entre presas e predadores, entre machos e fêmeas, entre fidalgos e rendeiros, entre donzelas e donzéis, entre soldados e capitães, entre operários e patrões, entre ricos e pobres. entre cabaneiros e os sem eira nem beira. E a sexta-feira era o dia de praticar a caridade, dar aos pobres, que o mesmo era emprestar a Deus. E o filho do "manjor" e da criada brincava com o "morgadinho" que nunca poderia ser seu irmão à luz das leis de Deus e dos homens. Porque fora feito no pecado, em cima da palha do milho na eira e não em lençóis alvos e castos e bentos de linho.
"Se queres conhecer o vilão mete-lhe o mando na mão". E cada um tomava o seu lugar no desconcerto da nação e no palco do teatro da vida e da morte.
Como era estupidamente alegre e feliz e livre a infância, breve, dos rapazes e raparigas, no tempo em que a sardinha era para três. E sobrevivia o mais forte e o pai era pai e patrão e a mãe era mãe, pai e patroa, quando o home partia para os brasis ou outros eldorados que ficavam para além do mar, ou simplesmente para lá ou para cá das serras do Marão,das Meadas, de Montemuro, da Aboboreira, de Montedeiras. E muitas vezes já não voltava, muito menos rico, muito menos vivo ou inteiro.
E o galo cantava para a galinha pedrês, e a vida fiava-se e tecia-se linha a linha, em branco fio de linho, no tear da dor e da solidão.
Como era curta a vida, a esperança de vida, e certas, tão certas, a velhice e a morte. Mais a morte que a velhice, que "esta vida não chega a netos nem a filhos com barba", garantia o coveiro e certificava o facultativo.
"Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dava tudo", lembrava o sino da igreja da aldeia, quando morria algum cristão, velho, que os novos já tinham seguido nas naus da Índia, fugidos da santa inquisição.
E "quem não poupa lenha não poupa nada que tenha", acrescentava, misógino, o rifão. Ou noutra variante, quiçá feminista "avant la letre": "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês".
Quinta de Candoz,
setembro de 2008,
Último poste da série > 9 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (7): O Pão que Deus Amassou (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)
quarta-feira, 27 de setembro de 2023
Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)
Quinta de Candoz > 2023 > O que resta do velho carro de bois: duas rodas desconjuntadas...
1. Luís Graça, que não é antropólogo (mas ficou com o "bichinho" da antropologia / etnologia, aquando das aulas e trabalhos de campo com o seu grande mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, no ICSTE, no âmbito da sua licenciatura em sociologia, 1975/80), tem pelo menos a sensibilidade cultural (ou socioantropológica, passe o palavrão) para olhar para o passado sem saudosismos nem miserabilismos, mas sabendo que a roda de um carro de bois, a enxada, a matança do porco, a salgadeira, a panela de ferro, a "mina" (nascente de água") ou os muros de suporte da Quinta de Candoz de antigamente (quando ainda se fazia o milho, o centeio e havia rendeiros...), todos esses "signos", todas essas "coisas & loisas" falam do "antigamente" da gente. Falam da nossa infância, falam do campo da nossa infância, falam das nossas pequenas vilas e cidades de provincia, falam dos nossos "usos e costumes", das formas de vida e de trabalho, dos nossos pais e avós... nomeadamente na regiáo de Entre Douro e Minho, a que se referem as fotos que reproduzimos acima.
Há dias lançámos o mote e o desafio (**)...Vamos lá "relembrar" algumas das "coisas & loisas do antigamente", ainda do tempo em que nascemos, crescemos, andámos na escola, começámos a trabalhar e a namorar (e alguns casaram) e, entretanto, fomos para a tropa e depois para a "nossa querida Guiné" (**)... com "licença para matar e morrer"...
Vamos abrir uma série para deixar espaço para essas "recordações avulsas", de modo a que não se percam na voragem do tempo... Interessam-nos sobretudo as nossas vivências (no campo, mas também nas vilas e cidades onde nos fizemos homens). Afinal, tudo isto faz parte do nosso ADN sociocultural, da nossa identidade, da nossa humanidade, da nossa portugalidade... São as nossas raízes "telúricas", não as podemos enjeitar, temos orgulho nelas: afinal nascemos num pequeno grande país, já milenar,,,
O pontapé de saída cabe ao nosso querido amigo e camarada, minhoto dos quatro costados, Joaquim Costa (***).
Vila Nova de Famalicão > c. meados dos anos de 1950 > A família Costa: da esquerda para a direita na fila de trás: José (pai) e Gracinda (Mãe), seguindo-se os irmãos: Maria, Avelino, Manuel (que esteve na Guiné), Eduardo (o columbófilo) e na fila da frente o João (o Don Juan da família) a Noémia e o Joaquim, o mais novo.
O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos (escolares… e não só!) a bom preço, bem como um pouco de divertimento e “galhofa” fugindo, por algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:
- venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas saltando de mão em mão. Durante toda a tarde nunca a malga era lavada : "Sara! lave com a mesma água !");
- onde se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;
- onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes : um burro que nasceu com 3 cabeças e um homem que foi “morto matado” por um coice do cavalo e ressuscitou quando o cavalo se ajoelha junto do “morto matado” de lágrimas nos olhos de arrependimento;
- onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;
- onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;
- onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;
- onde não faltava, nos dias de maior calor, a “aguadeira”, com o seu cântaro de barro à cintura vendendo copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;
- onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.
Depois de feirar: ver, apalpar, experimentar, regatear e pouco comprar, lá chega o momento do caçula. Depois da compra do material escolar: uma lousa, uma dúzia de “riscotes”, uma tabuada, um metro de serapilheira para fazer a sacola… e é tudo…, lá fomos às chancas.
Não era propriamente uma sapataria mas sim um artesão de calçado com sola de pau (Socas, chancas e outros artigos em madeira. O artesão era já conhecido, pois foi ele que calçou ao longo dos anos toda a família. Conhecedor dos hábitos da família começou logo a colocar vários pares de chancas para eu provar. Lá se chegou ao número que eu considerei o mais confortável. O artesão, que já conhecia o hábito da Gracinda diz: leva dois números acima não é D. Gracinda! Claro senhor António, sempre assim foi, pois eles crescem todos os dias e este é o último e não tem a quem deixar!
Sempre usei as chancas com com papeis ou trapos enfiados na biqueira para que as mesmas não me saíssem dos pés!
Nota: As tabernas da Sara Barracoa em Famalicão e a Bagoeira em Barcelos, poiso dos lavradores nos dias de feira, felizmente, ainda sobrevivem, com algumas adaptações aos novos tempos.
24 de setembro de 2023 às 12:27 (**)
(*) Vd. blogue A Nossa Quinta de Candoz > 22 de dezembro de 2005 > Augusto Pinto Spoares > A matança do porco de antigamente
(***) Vde. também postes de:
19 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23996: Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) - Parte II: A mãe Gracinda