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sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19139: Efemérides (294): Há 49 anos, neste dia 24 de Outubro, no RAP 2, soube que estava mobilizado para a Guiné (António Tavares, ex-Fur Mil SAM)

Porta de Armas do Quartel da Serra do Pilar - Rua Rodrigues de Freitas


1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil SAM da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), com data de 25 de Outubro de 2018:

Camarigos,
Há 49 anos neste dia 24 de Outubro soube que estava mobilizado para a Guiné. Era o meu dia de “Casamento” com o Teatro de Operações do Comando Territorial Independente da Guiné.

A proclamação foi publicada na Ordem de Serviço n.º 250 de 24.10.1969 do RAP 2, que transcrevo:

Nomeação de pessoal para o Ultramar
- Que segundo nota n.º 52400, Pº. 6/4 - HC de 13.10.1969 da RSP/DSP/ME, o pessoal abaixo indicado foi nomeado para servir no Ultramar nos termos da alínea c) do Art.º 3.º do Dec. 42937 de 22/4/60
BCaç.2912/C.Caç.2699, 2700 e 2701/RI 2
B. Caç.2912
ALIMENTAÇÃO – RI 2/RAP 2 ANTÓNIO CARLOS S. TAVARES – 2989/69 – NM 03175469.  

Ao longo dos anos outros nomes e números foram escritos em Ordens de Serviço. Com certeza só a alínea c) do Art.º 3.º do Dec. 42937 de 22/4/60 era comum e aterradora para um jovem em idade militar.

O Quartel de Vila Nova de Gaia – RAP 2 – viu partir milhares de jovens para a Guerra Colonial.
Recebia os Soldados de toda a região Norte mortos no Ultramar.

Nos três meses que estive no RAP 2 vi partir e regressar muitos militares.
Não sei qual o momento mais emotivo a que assisti. A partida era uma incógnita para o desconhecido… Para a Guerra!
Os familiares acompanhavam os militares até aos cais de embarque: Estação das Devesas ou um Cais Marítimo de Lisboa.
A chegada talvez fosse mais emotiva ao receber os Heróis do Ultramar.

As ruas de Rodrigues de Freitas e dos Polacos enchiam-se de pessoas. Estas, quando avistavam os camiões da coluna auto, que transportavam os regressados militares, gritavam e choravam de emoção a chamar os familiares que estiveram na guerra durante dois e até mais anos.
As barreiras colocadas no perímetro da Porta de Armas facilmente eram derrubadas pelo mar de gente.

 Rua dos Polacos

Os Comandos do quartel davam ordens para os militares, que faziam a segurança, recolherem ao quartel. Assim aconteceu com o meu pelotão.

Para todos uma infinidade de tempo decorria entre os períodos em que o militar entrava no RAP 2 e o que abraçava a família.
Militar que regressava diferente do Homem que tinha partido.
A chamada Peluda ficava para uns meses mais tarde.

O Quartel da Serra do Pilar ao longo dos anos teve vários nomes, a saber:
- Maio 1889 a 1897 – Brigada de Artilharia de Montanha;
- 1897 a 1911 – Baterias Destacadas do RA6, RA4 e RA5;
- 1911 a 1926 – Regimento de Artilharia n.º 6;
- 1926 a 1927 – Regimento de Artilharia n.º 5;
- 1927 a 1939 – Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5;
- 1939 a 1975 – Regimento de Artilharia Pesada n.º 2;
- 1975 a 1993 – Regimento de Artilharia da Serra do Pilar;
- 1993 a Julho 2014 – Regimento de Artilharia n.º 5 e
- a partir de Agosto de 2014 - Quartel da Serra do Pilar.

Um Quartel onde assentaram Praça gerações familiares talvez predestinadas para a arma de Artilharia.

 Obuses na Parada General Torres

“ E AQUELES QUE POR OBRAS VALOROSAS SE VÃO DA LEI DA MORTE LIBERTANDO” 
Monumento aos Mortos na Guerra Colonial na Parada General Torres. 
O General Torres foi o 1.º Comandante da Fortaleza da Serra do Pilar.

 
A Caserna dos Polacos da Serra que se distinguiram durante a Guerra Civil (entre as tropas de D. Miguel e D. Pedro IV) e o Cerco Porto (entre Julho de 1832 e Agosto de 1833)

 Monumento na Parada General Torres, evocativo das Invasões Francesas

A minha despedida do Quartel de Galomaro, nas matas do Leste do Teatro de Operações do Comando Territorial Independente da Guiné, em Março de 1972.

Abraço do
António Tavares
Foz do Douro, Quarta-feira 24 de Outubro de 2018
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19135: Efemérides (293): Homenagem aos paraquedistas que completaram 50 anos de brevet (1968-2018): Tancos, 27 de setembro de 2018 (Jaime Bonifácio Marques da Silva, ex-alf mil pára, 1ª CCP/BCP 21, Angola, 1970/72)

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17840: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (45): Questões de sangue

Vista a partir da Serra do Pilar
Foto: © Dina Vinhal

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 29 de Setembro de 2017:

Caros amigos,
Junto nova história verídica que poderá ser incluída na série de "Memórias boas da minha guerra".
Informo que os nomes de pessoas e lugares tiveram que ser alterados devido à exigência do personagem principal.

Abraço
José Ferreira Silva da Cart 1689


Memórias boas da minha guerra

45 - Questões de sangue

No início de Janeiro de 1967, vindos de todo o país e em especial da zona norte, chegavam ao RAP 2 - Serra do Pilar, os seiscentos e tal militares, tidos como preparados para seguirem para a Guerra do Ultramar. Vinham formar o BART 1913 - Batalhão de Artilharia 1913 - que se destinava a cumprir uma Comissão de Serviço Militar na guerra, no CTI da Guiné.

Não fora o facto de ter acabado de frequentar o curso de “Rangers” em Lamego - o que me ligou logo à mobilização - e eu poderia sentir-me satisfeito por continuar a cumprir o serviço militar no norte (depois do GACA 3, de Espinho). Efectivamente, depois de uma razoável classificação no Curso de Vendas Novas (o primeiro sobre guerra subversiva), fui atendido nessas “minhas preferências” então registadas: Espinho, Gaia ou Porto. O que eu não sonhava era que esse pretenso percurso me levaria até à Guiné.

Ao contrário das outras chegadas a novo quartel, desta vez eram evidentes os rostos mudos, carregados de tristeza, apatia e resignação. Entravam cabisbaixos, fixando o chão cinzento-escuro dos gastos paralelos de granito enquanto deambulavam por toda a calçada, na subida até ao pavilhão central onde funcionava a recepção Assumiam, assim, o doloroso papel de “condenados”.
Foi ali que, partindo do zero, nos fomos agrupando em Secções, Pelotões, Companhias, formando o Batalhão. Assim, apareceram as respectivas formaturas, dando início à última e decisiva preparação para a guerra. Claro que reencontrámos alguns camaradas já conhecidos em quartéis anteriores, mas muito poucos a seguirem o mesmo percurso. Uma coisa era certa: iríamos todos para a Guiné.

Da Serra do Pilar, desfrutávamos de vistas deslumbrantes em redor, em especial sobre a cidade do Porto e, planando o olhar, sobre o Rio Douro e sua foz. Agora, nos tempos livres, saíamos dali na esperança de saborearmos mais de perto os encantos daquela lindíssima e secular região portuense. Talvez por isso, era notória a movimentação dos militares a aproveitarem a sua passagem por ali. Em poucos minutos, eles afastavam-se, ansiosos, para contactos novos, pontuais ou não, parecendo quererem absorver conhecimentos, divertimento e os prazeres tripeiros.
Ao fim de uns dias, já havia verdadeiros apaixonados pelo “Puârto”, carago! As paisagens, os petiscos, a linguagem, a franca maneira de ser dos tripeiros, as “gajas” sérias e as outras - as “donzelas” - e, até, os “gajos” porreiros, eram razões mais que suficientes para encantar aquela saudável juventude. Embora eu passasse muitas noites fora dali, uma vez que me deslocava para casa (em Fiães, da Feira) a cerca de 20 quilómetros, tive a oportunidade de conhecer peripécias interessantes e de testemunhar algumas lindas histórias de amor.

Nas minhas histórias acerca desta malta, já destaquei a história do rapaz que casou com a prima empregada nos Caldeireiros (O rapaz do “sorriso parvo”) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2016/07/guine-6374-p16268-memorias-boas-da.html, referi o caso do Mirandela que se apaixonou pela “donzela” que trabalhava junto ao largo da Cadeia (“Deixem-nos trabalhar”) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/09/guine-6374-p12031-memorias-boas-da.html, os engates do Miranda, de Amarante, junto do Café Mucaba e o namoro do Silva “a calcantes” desde a Ponte D. Luís até Gervide, (Cegueira e religião) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/09/guine-6374-p6951-memorias-boas-da-minha.html.
Todavia, terei que contar ainda a história do Armindo Baptista, um alentejano de nascença e coração, mas um nortenho de sangue e de grande ligação. Seus pais, funcionários públicos, oriundos do Minho, acabaram por assentar em Beja, onde ainda residem, perto dos dois filhos e seus quatro netos.
Desde miúdo, apercebeu-se de que o sotaque de seus pais diferia do dos seus vizinhos. A par disso, notava também que eles se ligavam facilmente com toda a gente e que se predispunham muito no âmbito social e religioso. E ouvia os vizinhos dizerem:
- Eles são de sangue nortenho. São mais activos.

O Armindo cresceu, estudou e fez-se um rapagão, rodeado de alentejanos, com quem cimentou grandes amizades. Mas, sempre que ia ao norte visitar os avós, trazia o seu ego reforçado pelo que via, ouvia e sentia. Ele até aprofundava ali os seus conhecimentos históricos e sentia-se cada vez mais integrado no mundo dos nossos heróis, especialmente dos que nasceram e viveram no mesmo espaço que os seus parentes mais chegados. Sentia um orgulho enorme nessa ligação nortenha e estava sempre atento a tudo que ouvia desses lados, incluindo as notícias dos sucessos do F. C. do Porto.
Apesar de sentir a aproximação das miúdas mais lindas do Alentejo, parecia que via sempre nelas uma pequena sombra de sua mãe, a mostrar-lhe a energia que lhe sobrava e que não vislumbrava nessas belas alentejanas. Chegou à tropa sem compromisso amoroso e, agora, com 23 anos, na hora da partida para a Guiné, nem endereço levava para fazer uma madrinha de guerra.
Esteve na recruta das Caldas da Rainha e rumou para Tavira, para tirar a especialidade. Seguiu para Tancos, onde tirou o Curso de Minas e Armadilhas. Com esta última formação, ficou mobilizado e foi chamado para o RAP 2 - Gaia, para integrar a CART 1687, do nosso BART 1913, acima referido.

À saída da Porta de Armas do RAP 2, surgia logo de frente na Rua dos Polacos, um tasco/mercearia típico (o “Faca Afiada”), gerido pela família Moreira. Penso que todos os tropas que passaram pela Serra do Pilar visitaram esse tasco. Lá existia um grande balcão, interrompido por uma divisória, provocando uma zona mais reservada, onde se serviam alguns petiscos, se bebia e se faziam algumas ”jogatanas”. Passei por lá várias vezes, para tomar o último “reforço vitamínico”, antes de passar a Porta de Armas. E sempre encontrava lá o Armindo, conversando com os derradeiros clientes, nos intervalos de um quase contínuo assédio à moreninha que tanto ajudava os pais.

Logo nos primeiros dias de RAP 2, testemunhámos a presença de dois militares, regressados de rendição individual, que vinham fazer o espólio. Passavam o tempo todo no tasco “Faca afiada”. Um, o Jorge Ribatejano, era Furriel dos Comandos e exorbitava as suas façanhas guerreiras, fazendo relatos medonhos que nos assustavam. Exibia o seu corpanzil de pegador de touros, assumindo a sua superioridade e valentia, bem aproveitadas na preparação especial de Comando e nos seus relatos de heroicidade. O outro, o Furriel Carlos Barroso, negro, também estivera em Angola, onde não se encontraram e preparava-se para regressar à sua terra natal - a Guiné.

Não se sabia quem bebia mais. Mas notava-se que o álcool “atacava” mais o Comando. Este, farto de se exibir na sua aludida “matança de turras”, entrava agora no campo da provocação ao negro da Guiné:
- Os pretos são uns cobardes. Não valem um caralho!
O Barroso respondeu-lhe:
- Somos todos iguais. Somos todos portugueses e temos todos o sangue igual.
Irritado, o Jorge, eleva a voz:
- O caralho, é que é igual.

Pega no copo do brandy, bebe tudo de um gole, trinca as bordas do copo, estende o braço esquerdo de manga arregaçada e com o copo estalado e agarrado ao contrário pela mão direita, esfrega-o longitudinalmente pelo braço, provocando lanhos na carne, que já sangrava e grita:
- Estás a ver o que é o sangue e a coragem de um branco?
O Barroso, ferido no seu orgulho, tira-lhe o copo da mão e faz o mesmo no seu braço:
- Estás a ver, seu caralho? Onde está a diferença?

Quando cheguei ao tasco, já eles estavam quase apáticos, sentados e encostados à parede, com os braços feridos, encobertos por um pano meio ensanguentado. Por sua vez, o Armindo, aproveitava para assumir um papel de moralizador, muito do agrado do Senhor Moreira e da sua filha moreninha, a quem ele queria impressionar.
Pois, o Armindo ficou preso à Leonor, logo que a viu pela primeira vez. Passava ali todo o tempo disponível, enquanto estivemos aquartelados no RAP 2. Em pouco tempo, todos os militares ficaram a saber que a Leonor do “Faca Afiada” estava inacessível e presa a um Cabo Miliciano que não saía de lá.

Saímos da Serra do Pilar em direcção a Viana do Castelo, de onde seguiríamos para a Guiné, em finais de Abril. Com este afastamento, acentuou-se o amor do Armindo e da Leonor, provocando uma inesperada paixão que os fazia sofrer diariamente. Contra toda a lógica e expectativas, resolveram casar a escassos dias da partida dele para a guerra. Creio que poucos acreditavam no sucesso dessa ligação, com alguns prenúncios de loucura e fatalidade.

Pouco convivemos na Guiné. A minha companhia saiu do barco Uíge, fundeado ao largo de Bissau, seguindo directamente em barcaça para Bambadinca, enquanto o Batalhão ficou sediado em Catió. O Armindo pertencia à Cart 1687, que se fixou em Cufar, após uma passagem pelo Cachil. Quando estivemos em Catió, vindos do norte, fizemos várias operações militares com passagem por Cufar. Ali convivemos pontualmente e recordámos algumas ligações anteriores. Porém, era evidente que o Armindo acusava um estado bastante sorumbático e cansado. Parece que passou grande parte do tempo afastado das operações, justificando-se com doença e deslocações a Bissau. Sempre pensei que esta relação se iria desvanecer. Com tristeza minha, porque nutri bastante simpatia pelo casal, especialmente pelo Armindo.

Alguns amigos bem conhecidos no nosso Batalhão

No dia 29 de Abril de 2017, participei no Convívio do 50.º aniversário da partida do nosso Batalhão para a Guiné. Teria que ser o mesmo local - a lindíssima e simpática cidade de Viana do Castelo. Quando estávamos dentro do quartel, do Castelo, precisamente no largo onde fora a Parada das tropas, vejo o Francisco Machado (O Chico d’Alcantara) - https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2011/02/guine-6374-p7710-memorias-boas-da-minha.html, a “puxar “ um casal, ao mesmo tempo que dizia:
- Ó Silva, olha aqui o Armindo.
- Qual Armindo? - perguntei.
A Senhora avançou:
- O Armindo que casou com a moreninha do “Faca Afiada”?

Que surpresa agradável! E mais agradável se tornou, à medida que eles iam contando a sua vida deste meio século e aparentando uma felicidade imensa.

Quando me afastei do Convívio, aproveitei para dar uma última olhadela ao baile onde o Armindo e a Leonor dançavam sem cessar.

Nota: - Das conversas que trocámos nesse dia, fiquei a saber que o Armindo perdera o rasto do Comando que trincava o copo de brandy, mas mantivera uma boa relação com o Carlos Barroso, que veio, muito mais tarde, a desempenhar um alto cargo na estrutura do Estado da Guiné-Bissau.
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Nota do editor CV:

Último poste da série de 13 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17462: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (44): O Zé Manel dos Cabritos e a mula transexual

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17030: Estórias avulsas (87): Tudo começou a 9 de Janeiro de 1967 (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)

GACA 3 - Companhia de Instrução


1. Em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2017, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) fala-nos do seu começo nas fileiras no Exército Português.


Tudo começou a 9 de Janeiro de 1967 

A cidade de Espinho era detentora de uma unidade militar denominada Grupo de Artilharia Contra Aeronaves, (GACA3) unidade na qual me apresentei para começar a cumprir o serviço militar, ficando adstrito à 1.ª companhia.

Na minha passagem pelo GACA3, ficou na minha memória um episódio entre mim e um Tenente,  por uma suposta falta de respeito, segundo ele por não fazer a continência que lhe era devida, onde mostrou todo o "poder" dos galões que usava, obrigando-me a fazer flexões sobre uma poça de água, ficando eu todo encharcado, pois chovia imenso nesse dia, e sem farda para continuar a instrução já que tinha utilizado a outra durante a manhã, que estava molhada e a secar. O dito oficial ainda não estava satisfeito com o castigo aplicado e, vai daí cortou-me o fim-de-semana, o que me provocou uma certa revolta interior.

Mas, com atitude deste oficial, comecei a aprender o que era a imposição do serviço militar obrigatório e tudo o que lhe estava subjacente, porque queiramos ou não, havia oficiais naquela época que abusavam da patente para enxovalhar e espezinhar o seu semelhante, dando assim prazer ao seu ego.

 Abel Santos no GACA 3, é o terceiro a partir da direita na fila de baixo.

Abel Santos no RAP 2, é o primeiro à direita.

Passado o tempo de recruta, fui colocado no Regimento de Artilharia Pesada 2, ao tempo sediado em Vila Nova de Gaia, onde me apresentei a 28 de Abril de 1967, para me especializar em atirador, sendo colocado na 3.ª companhia - 3.º pelotão.

Durante o tempo passado no RAP2 analisei que as chefias tinham uma postura diferente em relação aos seus subordinados, em relação ao que se passou comigo no GACA3, talvez por serem milicianos, ou tinham mandado às malvas a educação nacionalista. O que sei, é que souberam reunir à sua volta aqueles rapazes incutindo nas suas mentes o sentido da amizade e solidariedade, construindo assim uma família de grande fervor castrense.

O Batalhão que estava a ser formado, do qual não me recordo do número, foi mobilizado para Angola, tendo eu ficado no RAP2, e adstrito à Companhia de Comandos e Serviços (CCS) até ser mobilizado para a Guiné. Apesar da instrução ministrada durante a especialidade ser dura, não dando tréguas ao pessoal, mas que aproveitei ao máximo, pois mais tarde usufrui dessa preparação na frente de combate.

No dia 20 de Junho de 1967 estando eu na formatura para o almoço, o comandante da CCS, Tenente Campos, convocou-me para uma reunião no seu gabinete pelas 14 horas, o que me levou a ficar desconfiado que algo se estava a passar, e coloquei a pergunta; estou mobilizado? Respondendo com um gesto de cabeça que sim, e após insistência minha me diz que o meu destino era a Guiné.

A cidade de Penafiel no distrito do Porto era ao tempo detentora de uma unidade militar denominada Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, (RAL5) na qual me apresentei, ido do RAP2, no dia 21 de Junho de 1967, sendo colocado na CART 1742 “ Os Panteras” sob o comando do saudoso capitão Álvaro Lereno Cohen.

 Antigo RAL 5 de Penafiel

Chegado a Penafiel, a CART já lá não se encontrava, estando a aguardar embarque no Regimento de Infantaria n.º 6 na cidade do Porto, para onde me dirigi, apresentando-me a 22 de Junho, sendo incorporado no 4.º grupo de combate - 3.ª secção do Alferes Magalhães.

Caros camaradas, assim foi o meu começo nas fileiras do Exército Português, ao qual ainda hoje me orgulho de ter pertencido.

Abel Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16643: Estórias avulsas (86): O velho problema da falta de meios nas Transmissões (José Luís Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista, 2ª CCAV/BCAV 8320/73, Olossato, 1974)

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16626: Agenda cultural (508): No passado dia 14 de Outubro de 2016, no Salão Nobre do Quartel da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, realizou-se a sessão de apresentação do livro "Memórias Boas da Minha Guerra" da autoria do nosso camarada José Ferreira da Silva

Foto: © Jorge Portojo, com a devida vénia.


No passado dia 14 de Outubro de 2016, no Salão Nobre do Quartel da Serra do Pilar (ex-RAP 2), em Vila Nova de Gaia, realizou-se a sessão de apresentação do livro "Memórias Boas da Minha Guerra" da autoria do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69). A cerimónia foi presidida pelo Senhor Coronel Rui Ribeiro, Comandante daquela Unidade.

A  Mesa era composta por: Edgar Maia, em representação da Chiado Editora; Coronel Rui Ribeiro, Comandante do Quartel da Serra do Pilar; General Art.ª Manuel de Azevedo Moreira Maia, ex-CMDT da CART 1689; Carlos Vinhal, co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, em substituição do apresentador do livro, Dr. Alberto Branquinho, ausente por motivos de força maior; e José Ferreira, autor do livro.

Deu início aos trabalhos, que decorreram de forma muito informal, ou não estivéssemos entre camaradas e amigos, o Autor José Ferreira, que começou por agradecer ao Comandante da Unidade, senhor Coronel Rui Ribeiro, a sua hospitalidade, e a quem deu a palavra.

O Comandante do Quartel da Serra do Pilar, Coronel Rui Ribeiro

Retivemos das palavras do senhor Coronel Rui Ribeiro, o prazer que aquela Unidade tinha em receber os antigos Combatentes dali saídos em missão de soberania para o antigo Ultramar, especialmente para uma sessão de lançamento de um livro de memórias da autoria de alguém que combateu, respondendo ao chamamento de Portugal.

Seguiu-se uma intervenção do senhor Edgar Maia que representava a Chiado Editora, que salientou a disponibilidade da sua Editora para dar a conhecer livros da autoria dos Combatentes da Guerra do Ultramar, uma forma de literatura que deve ser divulgada e acarinhada.

O representante da Chiado Editora, Edgar Maia, no uso da palavra.

Na ausência do camarada Alberto Branquinho, por motivos imponderáveis, coube ao co-editor deste Blogue, Carlos Vinhal, ler o texto que o Branquinho havia preparado, metendo pelo meio algumas achegas para também dar o seu cunho pessoal, e não ser só um mero leitor. 

O Branquinho começa por dizer como conheceu o Ranger Silva, em Lamego, sem saber que iriam juntos para a Guiné e muito menos na mesma Companhia.
Faz seguidamente uma apreciação à chamada literatura da Guerra Colonial, na qual, de acordo com a sua opinião, se insere este livro. Volta ao autor, explicou como o incentivou a escrever para o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné a sua primeira história, "Bife à Dunane", e mais tarde a publicar um livro, este.
De uma forma original enumera umas quantas histórias que fazem parte do livro, apresentando dois ou três parágrafos, deixando o resto à curiosidade dos leitores.
Não esquece a história "O Chico do Palácio", o nosso Chico, como refere Branquinho, o primeiro militar da Companhia morto na guerra.

Termina o texto com um novo incentivo ao autor José Ferreira, para que continue a publicar no Blogue e faça uma selecção doutros textos que, não sendo divertidos, como os da série "Outras Memórias da Minha Guerra", merecem ser divulgados também em livro.

Por sua vez, Carlos Vinhal terminou dizendo que as histórias publicadas pelo Silva da CART 1689 no seu livro "Memórias Boas da Minha Guerra", assim como as publicadas no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, são o espelho da sua maneira de ser e de como vê o seu semelhante, sem filtros e com verdade, tendo ainda a capacidade nata para o retratar com as palavras certas.
E que venha o segundo livro, agora baseado nas "Outras Memórias", estas bem mais duras, mais tristes, porque são as da guerra-guerra, como diria o camarada Branquinho.

O co-editor deste Blogue, Carlos Vinhal, apresentando o texto do camarada Alberto Branquinho, a pedido deste.

Tomou depois a palavra o Autor José Ferreira que, de improviso, falou do seu livro, das histórias nele contidas, originalmente publicadas no nosso Blogue, dos incentivos  que recebeu para se abalançar nesta aventura, e na alegria que sentia por se ver ali rodeado pelos seus familiares, amigos e camaradas, destacando a presença do "seu Capitão" Manuel Azevedo Maia.
Agradeceu à sua família a compreensão e ajuda que deu nas diversas vertentes para que o seu livro fosse uma realidade. Projectos como estes um homem só não leva a bom porto.
A intervenção do José Ferreira teve de tudo, momentos de boa disposição, hilariantes mesmo, e outros de comoção, ambos contagiantes que não deixaram ninguém indiferente. Os presentes riram a bom rir, mas também engoliram em seco quando as palavras calavam fundo.

O autor José Ferreira num momento contagiante de alegria. Talvez estivesse a falar da "Cabra do Berguinhas".

Seguiu-se o depoimento do senhor General Manuel Moreira Maia, que enquanto Cap Art.ª, comandou a CART 1689.
Começou por agradecer o convite do autor para ali estar, lembrando os tempos vividos na Guiné, os bravos homens que comandou e nunca esqueceu, especialmente aqueles que morreram.
Contou peripécias, boas e más, e riu-se de algumas das histórias publicadas, que desconhecia, aproveitando também para desfazer antigos equívocos.

O senhor General Manuel Moreira Maia, ex-Comandante da CART 1689, quando se dirigia aos presentes. 

Um abraço sentido entre velhos camaradas de armas, o Furriel Miliciano José Ferreira e o seu Capitão Maia.

Uma surpresa estava ainda reservada ao Zé de Catió.
O Bando do Café Progresso, grupo a que o José Ferreira também pertence, estava largamente representada no Quartel da Serra do Pilar. Um dos Bandalhos, o nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo), tinha um texto para ser lido se fosse oportuno. E foi, não pelo Jorge Teixeira, autor do texto, mas pelo outro Jorge Teixeira, o mais Bandalho do Bando, porque dele é o Chefe.
Aqui fica o registo fotográfico.

Jorge Teixeira lendo o texto do Jorge Teixeira (Portojo), uma singela homenagem ao homem do dia.

Terminadas as alocuções, ainda no Salão Nobre, seguiu-se a sessão de autógrafos, devidamente supervisionada pelas 3 netas e neto do nosso camarada José, num dia particularmente feliz.

Fotos:© Dina Vinhal

Era este o aspecto do Salão Nobre do Quartel da Serra do Pilar
Foto: © Carlos Vinhal

Finalmente, numa sala anexa ao Salão Nobre, foi servido um Porto de Honra aos presentes, oferecido pelo José Ferreira. Já libertos do cumprimento do silêncio exigido antes, foram trocadas memórias de tempos idos, comuns a quase todos.

Foto: © Jorge Portojo, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16610: Agenda cultural (501): No passado dia 13 de Outubro, integrada na série Tertúlias Fim do Império, na Messe Militar do Porto, sita na Praça da Batalha, no Porto, foi apresentado o livro "A Batalha de Cufar Nalu" da autoria do nosso camarada Manuel Luís Lomba, que foi Furriel Miliciano na Companhia de Cavalaria 703 (Guiné, 1964/66)

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16574: Notas de leitura (887): "Memórias boas da minha guerra", de José Ferreira, Chiado Editora, 2016: um exímio contador de histórias, onde geralmente não faltam os ingredientes que nos fazem, a nós, seres humanos (e portugueses), sermos como somos, humanos (e portugueses)...


Guiné > Região de Tombali > Catió > CART 1689/BART 1913 (, Catió, Cabedu, GandembelCanquelifá, 1967/69) > No "relax" de uma canoa...

Foto (e legenda) : © José Ferreira da Silva (2011). Todos os direitos reservados


1. Não tenho a pretensão de ser um descobridor de talentos literários... Mas a verdade é que o nosso blogue tem sido um verdadeiro seminário de vocações literárias...

Ao José Ferreira da Silva já lhe tinha posto o olho em cima desde que entrou na Tabanca Grande e começou a escrever no nosso blogue, há seis anos, em 8/6/2010...  Neste espaço de tempo, foi alimentando, com maior ou menor regularidade, uma curiosa série a que ele próprio chamou "Memórias boas da minha guerra"... Há quem só tenha "memórias más", o Silva da CART 1689 também terá as suas, mas no cômputo final, são as boas que vêm ao de cima ou são aquelas que ele faz questão de partilhar connosco... Há uma série paralela, também do José Ferreira da Silva, a que ele chamou "Outras memórias da minha guerra". No nosso blogue, ele conta já com 7 dezenas de referências.

Finalmente, o Silva coligiu estes (e eventualmente outros) textos e publicou-os em livro. Não conhecemos ainda o índice do livro, mas ficamos mais ricos e sobretudo felizes se,  de algum modo, também temos,  enquanto leitores, eu e mais alguns dos seus fãs,  uma pequena quota parte de responsabilidade nessa decisão, bem ponderada, de passar a papel as "memórias boas da (sua) guerra"... O título pode ser irónico ou provocatório já que a CART 1689 esteve longe de ter ido passar férias à então "província portuguesa da Guiné".

É sabido que não é fácil publicar em papel, no nosso país, e sobretudo o primeiro livro. E ainda para mais quando o estreante é um "jovem... idoso".  Mas o livro,  aliás o 1.º volume, aqui está,  com o mesmíssimo título da série original,  pronto a ser lançado, em sessão solene....  no mesmíssimo sítio, no antigo RAP 2,  no antigo Mosteiro da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, onde tudo começou (leia-se: donde foi mobilizado o pessoal do BART 1913)...

Vai ser na próxima sexta-feira, 14 de outubro de 2016, pelas 16h30,  e a despesa da conversa está cargo do nosso camarada,  o dr. Alberto Branquinho, ex-alf mil da CART 1689, "Os Ciganos", e também ele contista de talento com obra publicada. Apesar do amável convite pessoal do Zé Ferreira, não poderei estar presente, mas espero que o nosso coeditor Carlos Vinhal possa lá dar um salto e representar os camaradas do blogue que vivem fora da área do Grande Porto.


Capa do livro, que tem a chancela da Chiado Editora, Lisboa


José Ferreira, autor de "Memórias Boas da Minha Guerra", 1.º volume, Lisboa, Chiado Editora (2016). Natural de Fiães, Aveiro, vive em Crestuma, Porto. Faz parte do Bando do Café Progresso, tertúlia de antigos combatentes, que das Caldas da Rainha foram parar à Guiné. Além de membro da Tabanca Grande, é também frequentador da Tabanca Pequena de Matosinhos, e da Tabanca dos Melros (Gondomar).


2. Alguns comentários do nosso editor L.G. a alguns postes da série "Memórias Boas da Minha Guerra", com incentivos ao longo do tempo a este promissor escritor,  nosso amigo, camarada e grã-tabanqueiro... Vejam-se estas notas também como um pequeno contributo para se perceber melhor o "making of" e o conteúdo do livro (que ainda não conhecemos na sua versão definitiva) (**):


(...) O Zé Ferreira tem-nos aqui contado históricas pícaras, verosímeis, reais ou fictícias, não interessa. Costuma-se avisar o leitor de ficção,  de que "qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência"...

Os textos do Zé Ferreira são ficção literária, não são crónicas ou memórias, pelo que os nomes aqui evocados, em princípio, não são de camaradas nossos, de carne e osso... E, se o forem, não me parecem que possam ser facilmente identificados....

Em todo o caso, vou pedir ao Zé Ferreira para nos dar a garantia de que este texto não viola um das nossas regras básicas, que é o direito de cada um de nós, que ainda estamos vivos, à "reserva da intimidade", ao sigilo, e até ao esquecimento... (...)

PS - Silva, a história, tendo ou não um fundo autobiográfico,é verosímil, e encaixa-se perfeitamente na tua "idiossincrasia" nortenha... Só uma pequena sugestão: numa próxima versão, revista e melhorada, põe o Diogo a militar na JAC - Juventude Agrária Católica, e não na JOC - Juventude Operária Católica... Quanto ao desfecho (surpreendente...), acho que fizeste bem em "desencontrar" o Diogo e a freira... Afinal, a vida é isso mesmo, feita de amores e desamores... (E não há amores como os primeiros!)... E depois, como diz o fradesco, misógino (ou apenas pícaro ?) provérbio popular, "Freiras e frieiras é coçá-las e deixá-las" (...)



(...) De há muito que o nosso camarada José Ferreira da Silva está "sinalizado", no nosso blogue, como um dos nossos "penas de ouro"... Ele é um exímio contador de histórias, aonde geralmente não faltam os ingredientes que nos fazem, a nós, seres humanos (e portugueses), sermos como somos, humanos (e portugueses)...

Infelizmente, não tenho nenhum convívio com ele, conversámos os dois, a sós, um pouco mais longamente, certa vez em que eu fui à Tabanca de Matosinhos. Confirmei a impressão que já tinha dele, da leitura dos seus escritos (e já serão mais do que meia centena!), de ser um "homem de vida", como se diz no norte, e um apaixonado pela vida, mas também um grande observador do "zoo" humano, e um grande escultor de corpos e almas... Tem um notável sentido do picaresco, do burlesco, e as suas histórias não nos deixam indiferentes, tocam-nos, justamente pela sua humanidade... É um homem afável, um bom camarada e tem um grande talento literário... Acho que as suas histórias merecem o prémio de um livro!...



(...) É um gosto e um privilégio ler as tuas "short stories", pequenos contos onde cabe sempre uma parte das nossas vidas, de quando éramos jovens e filhos devotados da Nação... Podias não ser um ás a jogar xadrez, mas é um mestre na difícil arte do conto... Tens que fazer uma antologia, para publicar em livro, das tuas melhores "memórias boas da minha guerra"...

Saúdo o teu reaparecimento, quando o tempo, pelos lados da orla marítima atlântica, já dá os primeiros sinais do fim do verão, e do "dolce far niente". Como dizemos os "mouros" de Lisboa, "Santo António já se acabou / O São Pedro está-se acabar / São João, São João / Dá cá um balão para eu brincar"...

Quem, naquela bela idade, não queria um balão para brincar, no São João  do Porto ou na praia de Espinho ou nas suas belas dunas ? Enfim, tudo isto faz parte da educação sentimental e erótica da nossa geração. (...) 



(...) Mais uma história "nua e crua" do nosso querido e talentoso Ferreira da Silva ?!...

Sem dúvida, mas não somos "meninos de coro", nem "virgens púdicas"... O "pícaro", o picaresco, faz parte da(s) nossa(s) vida(s)... Tal como este "cromo" do Florita... faz parte do "zoo humano" deste nosso querido país...

Não fazemos juízos de valor sobre o comportamento dos nossos camaradas, antes, durante e depois da guerra... É uma das nossas regras. O único limite é o do "bom senso e bom gosto"... Enfim, é uma história com "moral"... Faz-nos sorrir e pensar, a mim pelo menos fez-me sorrir e pensar...




(...) Portugal era muito diferente, nos anos 60, do país que conhecemos hoje... (Como era diferente, mas eu não tenho saudades!)... Era diferente, para o melhor e para o pior...

Era (e continua a ser) feito por grandes mulheres como a Deolinda...

[Esta é] u
mas das mais belas histórias de amor em tempo de guerra que eu já li!... Ganda Zé Ferreira!... Que bela prenda de Natal!... Não sei como retribuir-te!! (...)


3. Lista dos 10 primeiros postes da série Memórias Boas da Minha Guerra (José Ferreira da Silva) (com reprodução do primeiro parágrafo)... É também uma pequena homenagem do nosso blogue ao autor, e um incentivo aos nossos leitores, nomeadamente do Grande Porto, para comparecerem na sessão de lançamento do seu livro(*):



(...) Chamava-se António Martins mas gostava que o tratassem por Tony e de preferência ainda, por Tony Quin. A verdade é que, além de ter alguma semelhança física com este actor, ele evidenciava-se a imitar "Zorba, O Grego", a dançar.

Deu nas vistas logo que chegou a Gaia, ao RASP, para a formação do BART 1913. Tinha aspecto bem cuidado, vestia muito bem, caminhava muito direitinho e executava gestos moderados e muito seguros. Enfim, naqueles anos sessenta, fugia um pouco àquela bandalheira reinante. Salientou-se, ainda, porque entre aquela maralha toda do norte, ele falava um pouco diferente. Exibia muito aqueles galicismos próprios duma capital pretensiosa e seguidora de outras modas, tidas como mais avançadas. Levou um tempito a recuperar. Quando dizia que queria ir ao “rês–tô-ran”, lá tínhamos que lhe explicar que em Portugal não havia disso, mas sim Restaurantes, Tascos, Tasquinhas, Tabernas e Adegas. Falava em “friu”, ”riu”, “uma ganda t’são na .picha”, etc, etc., mas, rapidamente, verificou que ser português não é o mesmo que ser lisboeta e para ser aceite plenamente como português, teria que se corrigir. (...)





(...) O António Piteira, natural de Bencatel, próximo de Borba, era uma força da natureza. Conheci-o em Vendas Novas, durante o Curso de Artilharia. Irrequieto e provocador, vivia sempre em competição, parecendo querer afirmar-se em tudo. Dizia-se que nas Caldas da Rainha, estando doente, não aceitou o resultado da prova de potência. Foi repeti-la, para baixar mais de 30 segundos. Como era bom jogador de futebol, foi aproveitado para jogar como ponta de lança no Estrelas de Vendas Novas. Ainda como jogador do Lusitano de Évora, foi treinar ao Sporting e, segundo ele, como não lhe passavam a bola, abandonou o treino chamando-lhes Filhos da… (....)


(...) Viviam-se dias calmos naquela “estância termal” de Canquelifá, no nordeste da Guiné, no final da comissão. O trabalho limitava-se a serviços de manutenção e a alguns pequenos patrulhamentos, a nível de Pelotão.

A população nativa cuidava pacatamente do seu gado, enquanto alguns deles vigiavam o “inimigo”, em cima de palanques feitos de troncos de árvores, colocados no meio do mancarral. De lá gritavam impropérios em idiomas locais, afugentando o “inimigo” – bandos de periquitos – ao mesmo tempo que lhes atiravam pedras, evitando que comessem os amendoins. (...)




(...) Desde o CSM, em Vendas Novas, que conheço o Miranda e, também é desde essa altura, que fizemos amizade. Aconteceu que nos reencontrámos na mesma Companhia, que veio a ser a CART 1689.

A sua maneira de ser, franca e aberta, torna o relacionamento cativante. Depois… bem, depois, quando está com um “grãozinho na asa”, irradia alegria e felicidade por todos os lados. Especialmente por isso, não havia festa sem a participação do amarantino Miranda.

No entanto, não abdica da maneira como vê o mundo. Não há quem o demova das suas teimosias e, normalmente, passa grande parte do tempo envolvido em debates polémicos. Digamos que também é “cego” nas suas convicções. Escreveu um livro contra a construção da Barragem do Torrão, no Rio Tâmega e é um lutador acérrimo contra o poder (incompetente ou não) através do seu jornal. (...)



(...) Chamava-se Joaquim Freitas, mas era mais conhecido por Felgueiras, por ser natural dessa terra. Foi dos melhores militares que conheci. Além de manejar bem a arma G3 e a Metralhadora, era um mimo na utilização da Bazuca. Incutia muita confiança nos companheiros, porque respondia ao inimigo sempre da melhor forma. Apontava invariavelmente para o ponto de onde vinha o ataque. Esteve sempre nos principais confrontos, sem se esquivar. Se era destemido (estou a lembrar-me de quando se lançou a salvar o Banharia, com uma granada de fumos activada no seu bolso), ele era ainda o primeiro a ajudar os colegas em dificuldades, chegando a transportá-los às costas. (...)



(...)  – Moniz, levanta-te que já é tarde. – dizia-lhe eu, enquanto me penteava frente a um minúsculo espelho pendurado ao lado de uma pequena janela do nosso quarto.
Dali se via o largo da parada bem como a esplanada da “messe”, que era um prolongamento aberto do bar e da cozinha. Por detrás, era o quarto do 1.º Sargento e, ao lado, havia mais dois quartos, perfazendo no total seis divisórias. (...)



(...) A nossa Cart 1689 - Os Ciganos - era uma Companhia de Intervenção. E como tal, passou a maior parte do tempo de serviço em Operações Militares ao longo da Guiné. Em muitas dessas operações atacávamos acampamentos e muitas vezes trazíamos cabritos e galinhas, usando de “truques especiais” para que uns não fizessem “mé-mé” e outras não cacarejassem. Numa operação, lá para os lados de Gubia (Empada), o Furriel Enfermeiro Faria, mais conhecido por Berguinhas ou por Pastilhas ou, ainda, por Doutor ( assim chamado na zona de Canquelifá, devido às “curas milagrosas” que conseguia), trouxe, ao colo, uma cabra ainda muito nova.  Tratava a cabra como se fosse um filho. Lavava-a amiúde, medicava-a e a comida nunca lhe faltava. Além disso, deu-lhe tanto carinho que se tornaram inseparáveis. Era a sua Princesa. (..,.)



(...) O furriel Farinha sonhava em voz alta. E, durante o sono, contava pormenores da sua própria vida, mesmo os mais íntimos. E, quando acordava, não se lembrava de nada. Quando alguém lhe falava do que ouvira, como é lógico, não gostava nada. Penso que, até, se medicava para o evitar.

Tinha regressado de férias, passadas na sua própria terra, lá para os arredores de Guimarães. Quando voltou para Catió, ao fim de poucos dias, já era sabido como passara o tempo de férias. Claro que ouvíamos só partes, mas ficávamos com a noção do resto. Assim, como a que segue: (...)



(...) Cufar é no sul da Guiné, perto do rio Tombali, e fica a uns 12Km de Catió. Apesar de se encontrar assim perto, estava isolado e a ligação entre Cufar e Catió, fazia-se só em colunas militares, com periodicidade mais ou menos mensal, para seu abastecimento.

De vez em quando servia de base de operações, sempre com muita tropa, por ser zona perigosa. Só para montarmos a segurança às colunas, nuns 8 km, até ao cruzamento de Camaiupa, gastava-se um dia, desde o amanhecer até ao anoitecer. Os que lá estavam aquartelados eram poucos para as necessidades operacionais e de defesa (não passavam de uns 170 homens, incluídos os africanos da milícia) e a sua actividade limitava-se praticamente ao movimento diário no espaço do aquartelamento e à defesa de violentos ataques nocturnos. Sempre que por lá passávamos, era festa e bebedeira certa. (...)




(...) MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA (1): BIFE À DUNANE

Para a CART 1689, a ida para as “Termas” de Canquelifá foi, ao contrário do resto da comissão, um período de quatro meses de quase repouso. Constava que “eles” iam mexer com a zona, mas isso só veio a acontecer depois de termos regressado. Já não havia combates por ali há cerca de um ano, o que era uma situação anormal e… agradável.

Entre Canquelifá e Piche havia um destacamento em Dunane. Era um posto segurança avançado, que funcionava a nível de pelotão, reforçado pelos milícias locais, que viviam lá com os familiares. Os patrulhamentos eram pequenos e os serviços eram poucos e bem distribuídos. Além disso, comia-se muito melhor, porque havia fartura de carne. Daí ser chamado “Hotel Dunane”. (...)

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16567: Agenda cultural (498): Lançamento do 1.º Volume de "Memórias Boas da Minha Guerra", da autoria do nosso camarada José Ferreira da Silva, dia 14 de Outubro de 2016, pelas 16h30, no Salão Nobre do Mosteiro da Serra do Pilar, na Rua Rodrigues de Freitas, Vila Nova de Gaia, com apresentação do Dr. Alberto Branquinho

(**) 7 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16572: Notas de leitura (886): “Paz e Guerra, Memórias da Guiné", pelo Coronel António Melo de Carvalho, edição de autor, 2015 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16268: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (33): O rapaz do “sorriso parvo”

Foto: © José Ferreira da Silva


1. Em mensagem do dia 27 de Junho de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta boa memória da sua guerra:


Memórias boas da minha guerra

32 - O rapaz do “sorriso parvo”

Penso que o nome dele era António Freitas Gervásio. No entanto, ele próprio tinha-se como Giribásio e, para os mais chegados, Tono Giribásio. Apareceu em Gaia, no RAP 2, em Janeiro de 1967, para integrar o BART 1913. Foi parar ao meu pelotão, ao tal que veio a ser chamado de Pelotão dos Nabos.

Estava sempre de sorriso aberto. Inicialmente, esse sorriso deixou-nos intrigados, dado que não víamos motivos que justificassem tal expressão, quase contínua. E as interpretações logo vieram:
- Este gajo parece meio parbalhon.

Ou:
- O pascácio parece que está a gozar co'a gente.

E, até, o interpelavam:
- Oube lá, ó morcon, e se te fosses rir pó caralho?

Ou:
- Olha que, quem tem muito riso tem pouco juízo.

Pois ele ouvia, ouvia, mantinha o sorriso e sem fitar os “agressores”, atirava a meia voz:
- Merdosos. Que Deus me dê paciência e um paninho p´râ levar.

Claro que, perante aquele ambiente, já bastante carregado pela certeza de que iríamos para a Guiné, ver um soldado sorridente, era sinónimo de excepção. Por isso, o Gervásio foi dos primeiros militares a quem dei especial atenção.
O que percebi logo, foi que ele se sentia muito bem e que, para ele, a tropa lhe dava o gozo que nunca tivera.

Vinha dos arredores de Vieira do Minho, onde vivia isolado com a família, entre fragas e penedos, em regime de auto-sustento quase total. Visitavam a vila por ocasião das festas anuais, para cumprimento de promessas e algumas feiras, para reabastecimento e negócio do gado. A família mantinha a regularidade do seu trabalho dedicado à agricultura de subsistência e criava algum gado para matar ou vender e para ajudar nas várias tarefas no amanho das terras e, também, no carro de bois, único veículo da casa.

Gostava de dizer que era “d’ó pé” de Braga, ali logo a seguir a Póvoa do Lanhoso. Viu o mar, pela primeira vez, quando chegou a Gaia e lhe apontaram a foz do Rio Douro. Sempre que podia, vinha espreitar essa vista magnífica e, ali, deslumbrado, de sorriso mais aberto e, aparentemente, mais feliz, saboreava a brisa fresca que lhe batia na cara. Pouco tempo depois, no intervalo dos treinos na Carreira de Tiro, tive a oportunidade de o ver na praia de Silvalde, seguindo os outros militares que, de cuecas de malha brancas, a pretexto de molharem os pés, se encharcavam alegremente. Aí, mais uma vez, via o Giribásio exibir a sua aparente satisfação. Aliás, foi ele que, mais sorridente, me chamou à atenção para reparar naquele espectáculo de cuecas molhadas e esticadas, quase até os joelhos com o peso da água retida nas bolsas inferiores. Então, perguntou-me até onde chegava o mar. E eu respondi:
- Até à América. Você não aprendeu na escola?
- Qual escola? Lá in casa, ninguém sabe o qu’isso é. A minha mãe, quando andou a serbir, uma filha do patrão chegou a ensinar-lhe as letras.

E continuou:
- Amanhamos umas territas e num temos tempo p’ra mai nada. Olhe qu’inté p’ra a minha mãe ir “albezes” à missa, temos que ser coibeiros e fazer o comer. Ela perde o tempo nas “biages”. O meu irmão “pichote” tinha “buntade” da escola mas são “caijo” três horas de caminho e o “alganismo num aganta”. “P’ra biber antro milho num precisa d’ir” à aula. E quem naceu p’ra burro nunca chega a cavalo.

Fiquei esclarecido com estas poucas palavras. Porém, voltei a interrogá-lo:
- Mas tem saudades?
- Sim. A minha mãe é uma santa e o meu pai é um mouro de trabalho. Eles compreende a situaçon. Faço lá munta falta mas o que tem de ser tamém tem munta força. Eu andaba morto por bir p’rá tropa. E “aqui há atrasado” falei cum parente que estebe em Angola, e me disse que quem bai à guerra dá e leva e se tiber sorte inté se muda de bida. Eu bou-lhe ser franco: estou a biber o melhor da minha bida. Isto aqui é só brincadeira d’hómes, comer, beber e mandriage. E num quero mais biber lá naquela miséra.

O Gervásio era obediente e parecia assimilar bem a instrução militar. Todavia, por vezes, desdramatizando, lá deixava escapar uma ou outra expressão que me levava a pensar que o sorriso daquele analfabeto, nos transmitia uma lição permanente de saber viver.

Por várias vezes me disse que precisava de ir aos “Caurdeireiros”. Eu entendi que ele queria “ir às putas”. Seria natural, para quem vinha lá do interior minhoto, sem namoros nem outros contactos que o pudesse ajudar a aliviar os reservatórios. E, por isso, um dia, falei no assunto ao “Chico do Palácio”, que era, sobejamente, o mais indicado e mais experiente para o acompanhar, solidariamente, àqueles ambientes.
- Ouça lá, ó Francisco, podia dar um jeito ao Gervásio que, quer-me parecer, deve andar com a “rebarba” por tratar.

O Chico logo respondeu:
- Já lhe tinha perguntado se ele ia às vacas da estrada, mas ele, coitado, diz que lá não há estradas. Estava tão isolado que, se calhar, onde ia era mesmo às cabras do monte.
- Então, trate disso e não envergonhe o rapaz. É dos nossos e vai passar muito tempo junto de nós.

Uns dias depois, pareceu-me que o sorriso era maior. Perguntei-lhe:
- Então, sempre foi aos Caldeireiros?
- Sim. O Chico é um bacano. Lubou-me mesmo lá à porta qu’eu precisaba. Que bom! Sin que tal, vou lá mais bês.
- Cuidado, não vá para lá sozinho, porque aquilo é zona perigosa. – aconselhei.

Desta vez, o sorriso, sendo igual, me pareceu mais matreiro, quando acrescentou:
- Num se apoquente q’eu quero ir com vós p’rá guerra.

Na Guiné, no teatro de operações, onde muito sofríamos, ele mantinha o seu sorriso que, agora, mais parecia transmitir alento e confiança a todos seus camaradas. Chegou a fazer de carregador de granadas de morteiro e de bazuca, prescindindo de levar a sua G3. E quando estávamos debaixo de fogo, era normal vê-lo cauteloso, mas cheio de coragem, a colaborar no embate com o inimigo. Lembro-me bem da boa influência do seu sorriso mais leve, mas confiante.

Sofremos juntos nas emboscadas e nos ataques perigosos. Passámos juntos os dias mais difíceis das nossas vidas. Tudo ultrapassámos! E, na hora da glória, lá estávamos também sorridentes.

Mesmo em zonas perigosas, sempre que via arrozais nas bolanhas ou as verdes clareiras de capim, ele arregalava os olhos de admiração e saudade. Cheguei a ouvi-lo murmurar:
- Pra bem, era ver aqui as minhas vaquinhas. Ou por ó menos ter aqui o gadanho. Que rica erbinha mimosa!

O Gervásio acusava a sua falta de prática nos divertimentos. Confessou que sabia jogar mal à sueca, que ocupava toda a família, e ao “burro”. Gostava de ir aos ninhos e de usar a sua fisga. Sabia que havia outros divertimentos e alguns desportos, que nunca vira. O pai chegou a comprar um pequeno aparelho de rádio de pilhas mas elas gastavam-se depressa, especialmente quando ouvia os relatos do Benfica.

Nunca tinha jogado à bola. Mas, lá na tropa, quando via que também podia chutar, aproveitava logo a oportunidade. Ora, conforme já referi, o chamado “Pelotão dos Nabos” também se fazia representar nos jogos contra os outros pelotões. Aparentemente, tudo levava a crer que o resultado seria desastroso. Porém, tal como no seu comportamento nas Operações, este pelotão tornou-se numa agradável surpresa.

Beneficiámos da preparação técnico/táctica fornecida pelo Furriel Mariz, que era o defesa central do Anadia e pela força e manhosice do Guilhermino, um bom avançado que militava no Lusitânia de Lourosa. Eu também ajudava alguma coisa, pois tinha chegado a jogar, a extremo, nos juniores do União de Lamas. Mas o Mariz esmerou-se na escolha dos restantes. E não é que escolheu o Giribásio para defesa direito!?

Seguindo à risca a máxima de que “passa a bola mas não passa o homem” ou o contrário, o Giribásio dava festival. É certo que, muitas vezes, provocava gemidos e gritarias. Sempre que dominava o adversário, aumentava-lhe o nervosismo, e, ao mesmo tempo, entusiasmava a assistência, que aplaudia e ridicularizava.

Foi um sucesso! Os “nabos” venceram os dois torneios em que participaram! O “bruto” Giribásio ganhou tanta confiança no futebol, que chegava a jogar descalço e, mesmo assim, distribuía “cacetada” abundantemente. Então é que ele abria mais o sorriso e, para amedrontar o adversário, ao vê-lo aproximar-se com a bola, cuspia nas mãos, esfregava-as, e avançava agressivamente com um pontapé infalível, ao mesmo tempo que soltava o grito gutural:Ouuuuouupaa!!!

Quando regressámos da Guiné, no comboio especial, que nos trouxe de Lisboa a Gaia, naquele ansiado dia 9 de Março de 1969, os meus periquitos verdes saíram do aparelho de rádio que eu comprara, para lhe tirar o “miolo” e esconder lá os proibidos animais. Voaram de carruagem em carruagem, sobre os militares, que os tentavam apanhar. Nessa recuperação salientou-se o Gervásio, que parecia um especialista nessa acção. Como já estávamos perto, ficámos ali juntos, de pé, com o “rádio” (dos periquitos) ao lado. Perguntei-lhe:
- Como vai lá para cima, para o Alto Minho?

E ele respondeu:
- Inda num sei. Sinque tal, bou de táxi ós Caurdeireiros. Óspois, bê-se

Olhei-o, meio surpreso e afirmei:
- Não me diga que deixou lá alguma coisa esquecida?

Ele olhou-me mais demoradamente e interrompendo o seu sorriso crónico, respondeu-me com seriedade:
- Num, num me esqueci de nada. Nunca me esquecerei daquela segunda prima, menor, que fugiu da terra, porque um sacana se serviu dela, à força. E a mãe dela, que ficou sorteira, e que nunca disse quem foi o pai da rapariga, num se preocupou munto co'caso porque o gajo era importante. Pra mim, ela é amante desse patrão madeireiro que lhe desonrou e engravidou a filha.

Eu interrompi:
- E você, porque se preocupa tanto com ela?
- Desde miúdos, quando nos encontrábamos, dába-nos bem. Ela era mais nobita. Sempre a respeitei e, albezes, inté pensaba esperar por ela. Bou ter cum ela. Ela já me escreveu a dezer que o chefe dela me quer a trabalhar pró horto e jardins da Câmara.

O comboio começou a travar e a apitar. Estava tudo falado e os destinos mais que estudados. Cada qual procurava a sua bagagem e já ninguém se ligava. Estavam todos focados no que iriam encontrar no exterior. Saí também. Não via ninguém conhecido à minha espera. Ao meu lado, o Campos esforçava-se para abrir a mala onde trazia a “nossa” domesticada gazela “Dunane”. Durante a viagem de barco, costumava ir ao porão dar-lhe de comer, através de uma pequena abertura que fizera junto da boca. A desgraçada passou sete dias naquela posição. Quando ele abriu a mala, viam-se-lhe os ossos da coluna vertebral. Mal se equilibrava de pé. Fiquei meio incomodado com esse espectáculo. Afastei-me um pouco. Deixei o Campos, de novo agarrado à sua “noiva”, dando largas a uma paixão duradoira.

Ainda no pátio de embarque, vi chegada a minha tia Josefina que me veio abraçar. E logo de seguida, vi que estávamos a estorvar. Era o Gervásio que nos passou, a olhar com o seu sorriso bem conhecido que, desta vez, era acompanhado de um olhar a brilhar de felicidade. Fitei-o e pareceu-me ouvi-lo dizer:
- Tás a ber Jacinta, este é o Sirba, o tal que foi como um bèlhote pra nós.

A jovem olhou-me, com os olhos em lágrimas, mas com sorriso “à Giribásio” e balbuciou:
- Obrigado, Senhor Silva, por ter ajudado a trazer o home da minha bida.

Chegada da Guiné - Com a tia Josefina na Estação das Devesas
Foto: © José Ferreira da Silva

Agradavelmente comovido, ouço a minha tia Fina:
- Alegra-te rapaz! Olha que já te safaste da guerra! Tens o mundo à tua frente.
- Obrigado, tia. Neste momento, o que mais desejo é esquecer tudo, ir para uma ilha, levar a Gilda e uma cana de pesca.

De repente, a algazarra vai diminuindo e vou deixando de ver os meus heróis, agora “emboscados” pelos seus mais queridos. Apenas ouço a voz grossa do Mafamude, já do lado de fora da Estação das Devesas, a despedir-se do seu amigo inseparável:
- Ó filho da puta de Felgueiras, olha que nunca mais te quero ver. Conheci-te na tropa e ela já acaboouu! JÁ AACAABOOOUUUU!!! VAI CO CARALHO!!! VAI PASTAR PRÁ TUATERREOLA!!!

E quase como num “happyend” de Hollywood, faço um “zapping” sobre a cidade do Porto, que vejo ao fundo, brilhando sob um sol “marçagão” do meio-dia. Ouço o barulho de um comboio que se aproxima. Vem de lá, do norte. Junto da outra linha, segue o Gervásio, de mala sobre o ombro esquerdo, acompanhado pela Jacinta, à sua direita, que leva pela mão um miúdo de boina militar enterrada na cabeça. O comboio, esse vai para sul, vai para trás, para onde ninguém quer olhar.
- Vamos Tia, este filme acabou.

Olhámo-nos e sorrimos. Sorrimos “à Geribásio”.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Poste anterior da série de 22 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13021: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (32): Férias da guerra: o "Lourosa", padres, religião, cinema e etc.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13426: Fotos à procura... de uma legenda (31): O mosteiro e o quartel da Serra do Pilar (onde esteve, no tempo da guerra colonial, o famoso RAP 2) vistos de um dos melhores (mas menos conhecidos) miradouros do Porto... Adivinhem qual?...O Jorge Portojo sabe mas não vai responder... (Luís Graça)


Foto nº 1 < Mosteiiro da Serra do Pilar, pertenceu aos padres crúzios. É hoje propriedade do exército.
Abriu recentemente ao público. Dias de abertura: de terça-feira a domingo. Horários: 9h30-17h30. Subidas ao zimbório: 10h30, 11h30, 14h30, 15h30, 16h30. Preço: 1 euros ou 3 euros, se incluir subida ao Zimbório. Portadores de Cartão Jovem e maiores de 65 anos têm desconto de 50%. Menores de 12 anos não pagam....


Foto nº 2 > Mosteiro da Serra do Pilar e tabuleiro da ponte D. Maria


Foto nº 3 > Mosteiro da Serra do Pilar e  a ponte de Dom Luís (1881/88)



Foto nº 4 > Casario do centro histórico do Porto, Rio Douro e cais de Gaia


Foto nº 5 > Sé do Porto (cuja origem remonta ao séc- XII)... É de estrutura romano-gótica, é um dos nossos mais antigos e mais importantes monumentos.


Foto nº 6 > Porto: Paço Episcopal , do séx. XVIII (fazer aqui visita virtual a 360º) e igreja de São Lourenço dos Jesuítas  (ou, mais popularmente  igreja e convento dos Grilos, séc. XVI-XVII).


Porto > 20 de julho de 2014 > O "Porto eterno" e o mosteiro e quartel da Serra do Pilar (séc. XVI e XVII) vistos de uma dos melhores (mas menos conhecidos) miradouros da cidade... Adivinhe-se qual é... (O Jorge Portojo sabe, mas não vai dizer... Ele é, de todos nós, o que mais conhece, ama e fotografa o Porto, Gaiia e a o rio que as une e separa...).. Do RAP 2 muitos camaradas nossos seguiram para a guerra colonial. É um património fabuloso, a conhecer e a visitar...

O miradouro em questão está localizado em pleno centro histórico do Porto, património da humanidade, em local nobre mas desprezado... E, imagine-se,  foi recentemente privatizado!... Há 40 anos que venho ao Porto e nunca tinha lá ido exatamente ao sítio onde tirei ontem estas fotos...

Fotos: © Luís Graça  (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]

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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12031: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (31): "Deixem-nos trabalhar"

1. Em mensagem do dia 2 de Setembro de 2013, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, CatióCabeduGandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta "boa memória da sua guerra", mais uma vez apimentada qb:


Memórias boas da minha guerra

31 - "Deixem-nos trabalhar!"


Antigo RAP 2 

- Ó Silva, estás tramado para este fim-de-semana. Estás de serviço de Ronda no Domingo. – Gritou o Mariz de Anadia.
- Não vou a Lisboa, este fim-de-semana, mas não olhes para mim, porque não te vou fazer esse serviço. Quero ir até ao Minho, conhecer alguma coisa. E espero encontrar uma garina. – Interveio o Machado.
- E qual é o meu papel? – Perguntei a quem me quisesse responder.

Logo o Sargento Bagaço:
- Fazer o percurso das Pontes D. Luís, Vila Chã, Sé, Rua Escura, Bainharia, Ribeira…
- …Zona das putas. – Interpôs o Delfim Nora, de Matosinhos, que aproveitou para fazer o convite:
- Não caias nessa merda. Vem, mas é, até Matosinhos para visitarmos as casas de trabalho da Rua Brito Capelo.

Deixei-me cair na cama e, em silêncio, de olhos no tecto, pus-me a pensar. Ou melhor, a “ver o filme” de uma visita que tinha feito àquela zona.
Foi em princípios de 1958.
Eu ainda não tinha 15 anos quando o meu tio de Trás-os-Montes (Boticas) veio visitar-nos. Depois da devida autorização paternal para o acompanhar na visita a “uma pessoa amiga do Porto”, seguimos num autocarro da Feirense, directamente para junto do Café Derby.

Edifício onde esteve o Café Derby na Rua Chã. 

Logo ali verifiquei o à-vontade do meu tio no relacionamento com aquelas mulheres.
Ele, um rapagão de bom aspecto e cheio de saúde, já tinha perto de 40 anos e não mostrava namorada nem intenção de casar. Parecia que aquele ambiente o satisfazia plenamente.
Na Sé, descemos por umas ruas estreitas em direcção à Ribeira.
Enquanto descíamos, eu ia ficando pasmado pelos “polícias” de humanos, de cães e de outros animais que via pelos cantos da rua. A dada altura, passámos por duas miúdas (aparentando cerca de 10 anos) que conversavam em voz alta. Uma delas pôs-se de cócoras, sem cuecas e começou a mijar, ao mesmo tempo que ia falando.
Como me demorei a olhar para a cena, a miúda perguntou:
- Oube cá, ó morcon, nunca bistes uma c____ sem pelos?

Quando me viu meio aparvalhado, o meu tio aproveitou para me dizer que aquela gente era igual à da minha aldeia e que fazia aquilo porque, normalmente, não tinha casas de banho, e que, ao contrário de nós, não tinha mato, pinhal ou campo para nos imitar. Como bem me lembram aqueles momentos de arejar o “material”! Quem é que não gosta de dar uma mija (ou mais) e deixar o “badalo” sacudido lentamente a observar a natureza e a absorver aquela límpida aragem rural?
Ah, e daquelas mulheres de carrego à cabeça, na conversa, que abriam as pernas, puxavam as saias para a frente e deixavam cair o mijo direitinho, sempre no mesmo sítio!

Logo que entrámos na casa da Micas fixei os olhos nas suas exuberantes mamas, pouco escondidas debaixo de uma blusa muito desapertada. Enquanto ele falava para uma moça, a quem pediu uma cerveja, a D. Micas puxou-me e disse:
- Anda aqui que eu arranjo-te outra “coisa”.

Não sei o que deixou cair. Vergou-se demoradamente, possivelmente para me mostrar o traseiro e o pername. De seguida foi-se aproximando, tocando-me e aconchegou-me a cara ao centro daqueles peitos avantajados. E eu, que nem sou muito de leite, quando me apercebi, já estava com vontade de mamar.

Nove anos depois, vejo-me com vontade de repetir o percurso.
Estava uma linda tarde de sol daquele mês de Janeiro de 1967 quando descemos do RAP2, da Serra do Pilar. Seguimos o tabuleiro superior da Ponte D. Luís em direcção a Vila Chã.

A Ponte Luís I, hoje dedicado ao Metro e a peões

Depois, chegados à Sé, fui aconselhado pelo meu adjunto de que deveríamos seguir pela Rua Escura, em direcção à Bainharia e Ribeira, zona mais frequentada pelos militares.
Era bem visível o trânsito lento dos magalas, a divagar e a observar tudo e todos mas mais focados no mulherame. Entravam e saíam dos tascos ou de portas manhosas, vindos não sei de onde.
De repente, cai uma penicada mesmo na nossa frente. Então, oiço de lá de cima, em voz alta:
- Ai Birgem Nossa Senhora de Fátima, que ia molhando a Ronda da Tropa! Descuuuuulpem! Descuuuulpem!

Rua Escura - Pormenor

Não percebi que aquilo era um aviso (não só para nós), continuámos a descer e, enquanto observávamos se acaso teríamos sido atingidos com a dita penicada perfumada, surge nova remessa. Desta vez, fomos atingidos ligeiramente. Ficámos atordoados e sem saber o que fazer.
Foi, então, que um sujeito (talvez o Júlio) saiu de um bar e veio ao nosso encontro para nos acalmar, elucidar-nos e pedir desculpa. E logo uma catraia, bem boa, por sinal, encostando-se exageradamente à minha pistola, pousou as mãos no meu ombro esquerdo e melosamente acrescentou baixinho:
- Senhor Meleciano, num benha p’ráqui assim armado porque a tropa gosta de estar à buntade e as donzelas querem trabalhar. Por fabor deixem-nos trabalhar! Deixem-nos trabalhar!

Forçados a regressar ao Quartel, rapidamente me lavei e mudei de roupa.
Quando ia a atravessar a rua, em frente do Café Mucaba, parou um carro de onde me chamaram.

Avenida de Gaia. Antigo Mucaba à direita 

Era o Neca Folhetas, que namorava uma vizinha e que insistiu para ir com ele para o Porto. Mal entrei, disse-me que queria ir dar uma volta pela zona do métier. Disse-lhe que não ia. Só se fosse lá para os lados da Cadeia, Clérigos, cimo dos Caldeireiros, etc.
Corremos três ou quatro bares e viemos para o cimo dos Caldeireiros.

Perante um aglomerado de gente, aproximámo-nos e constatámos que lá dentro do bar havia confusão. Abeiramo-nos da porta e perguntei a um militar o que se passava. E ele respondeu:
- É o caralho do Mirandela. Anda apaixonado por uma gaja e não a larga.
- E não o conseguem trazer? - perguntei.
- Foda-se!!! É que ele já está com os copos e de naifa é um perigo! Ninguém se aproxima dele.

Ouve-se, então, uma mulher a lamentar-se:
- Uma galdéria cheia de bida, podia ganhar umas coroas e o gajo não ajuda nada. É mesmo morcon!

E logo outra acrescenta:
- Filha da puta da Ronda que nunca mais chega! Assim, não temos condições para trabalhar! Ó meu Deus, o que mais pedimos é que nos deixem trabalhar. Deixem-nos trabalhar!!!

Silva da Cart 1689

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Zona histórica do Porto

Fotos: © Jorge Teixeira (Portojo)

ADENDA
Significado de palavras usadas no texto, tal como extraído do “Manual do Morcon”, integrado no “Dicionário da Lingua Romontica Portuense”:

- À maneira – De longe a mais portuense de todas as palabras e expressões e que significa: “como debe ser”, “com categoria”,”com qualidade”, enfim, “à maneira mesmo”.
- Foder – Bocábulo pouco utilizado na región e raramente referido a sexo. No caso da expresson “Bouta foder” ou “touaqui toutafoder” pode significar: “Bou-te esvaziar dois pneus da biatura e tu só tens uma roda sobressalente”.
- Donzela – Qualquer baca que f__a mais de dez vezes ao dia.
- Fdp – Expressón raramente usada. Usa-se mais “grande filha da puta”. Na zona de Campanhã acrescenta-se sempre “bouta foder”.
- Galdéria – Tola. Que podia ganhar muito mais se tivesse juízo (para o “negócio”).
- Garina – Debe ser de Lisboa, a puta.
- Puta – Palabra que se emprega em manifestações de amizade e carinho, tais como: “Meu belo filho da puta”.
- “Deixem-nos trabalhar!” – Frase muito bulgarizada entre as putas e, também, entre os políticos, quando nos querem endrominar.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11981: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O Jorge Ribeiro era um "gentleman"