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terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25141: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (18): Três amigos, três destinos - II (e última) parte


Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam por esse país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas...  E espicaçar os vivos que estavam na linha da frente...  para matar e morrer
 
A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique... E os heróis foram ficando para trás... Exaustos. Esquecidos. Abandonados.   Como em todas as guerras...  E até a próxima  guerra... em que dá  jeito ter heróis de reserva. LG]


Contos com mural ao fundo > Três amigos, três destinos - II (e última) Parte 

por Luís Graça


 Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história,  reformado, do ensino secundário, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures na região do Médio Tejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades dos bons velhos tempos", além de homenagear o amigo. (*)

 (Continuação) 

***
 
O sítio, a tasca com esplanada coberta com folhas secas de eucalipto, não podia ser mais inspirador,  com larga vista sobre o casario, a farta lezíria, e o rio, sereno, preguiçoso,  agora com muito menos água do que no tempo da infância dos nossos dois interlocutores... "Carpe diem", dizia a tabuleta, em latinório, aproveita o dia, goza a vida, o dia-a-dia…

Pediram duas taças de branco, enquanto o Belmiro foi relembrando a história de vida do Zé Nuno…

− Além das touradas, o Zé tinha uma paixão, que era a guitarra… 
− explicou o Belmiro.

E continuou, depois de humedecer os lábios: 

− Aqui seguia as peugadas de um tio materno cuja coroa de glória terá sido, dizia-se,  ter acompanhado a Amália num já longínquo programa da Emissora Nacional ou do Rádio Clube Português, numa substituição de última hora. Tocou nas primeiras casas de fado, que floresceram com a guerra, em Lisboa, entre 1941 e 1943, na altura em que fazia o serviço militar obrigatório. Ainda chegou a estar mobilizado para os Açores, o que não aconteceu, talvez devido à guitarra e, ao que parece,  "à cunha certa metida à pessoa certa no momento certo"…

− Cunhas, nesse tempo, Belmiro ?!... Não me faças rir... −interrompeu o Tony.

− ... O Zé Nuno, por sua vez, animava algumas noites de fado no célebre "Solar do Marquês de Marialva", ainda te lembras ?... Era o clube da terra, no tempo dos nossos avós e dos nossos pais. 

Fora em tempos o clube seleto da vila ribatejana. Havia entrado em decadência, talvez no início dos anos cinquenta, depois de algumas senhoras da elite local terem tido a ousadia de denunciar ao Salazar, em pessoa, o sítio como "um antro de jogo ilegal, casa de passe, escola de vício e templo de perdição" (sic)... Uma delas, mulher de um médico com consultório na terra, era amiga, do tempo de Coimbra, da comissária nacional da Mocidade Portuguesa Feminina, a célebre Guardiola…

− E creio que também amiga ou conhecida da Van Zeller, que era a n.º 2 da Mocidade Portuguesa Feminina, e que há-de ser, nos anos 60, a diretora-geral de saúde, a primeira mulher a desempenhar esse cargo – acrescenta o Belmiro.

− Ah!, sim, a médica e deputada Maria Luísa Van Zeller… Sabes que sou barra nesse período do Estado Novo, os anos 30 e 40, fiz um mestrado sobre a ascensão e o  apogeu do Salazar.

− Eram as duas mulheres mais poderosas do regime.

− Depois da Dona Maria..., não te esqueças, Belmiro… E acrescenta a Supico Pinto, a famosa Cilinha, mais tarde, com o início da guerra. Ouviste ainda falar dela, por certo ?!...

− Ah!, sim, o nome não me é estranho... Mas tu sabes que eu não fiz   tropa...

Até então o Solar era frequentado pelas senhoras da terra, mas apenas durante o dia: tomava-se o chá das cinco, fazia-se tricô, jogava-se à canasta, bisbilhotava-se, cortava-se na casaca dos vizinhos… Uma vez por outra, aos fins-de-semana, havia récitas, espetáculos musicais, verbenas, chás de caridade e, no verão, sessões de cinema, no pátio,  ao ar livre... 

A noite era reservada aos cavalheiros... Faziam-se aqui negócios, fumava-se um bom charuto,  perdia-se e ganhava-se uns "trocos da cortiça", arranjavam-se casamentos, emprestavam-se cavalos e  amantes... 

Apesar das tradições republicanas, a segregação de género agravara-se com a Ditadura Militar e o Estado Novo. Fumar e sair à noite, sozinha, nem pensar, para uma senhora de boas famílias. De tempos a tempos, também aparecia por lá gente da boémia da capital, com destaque para as coristas do Parque Mayer, em digressão pela província…  

O Belmiro e o António eram putos nesse tempo, não se lembravam de nada, mas mais tarde irão conhecer o ambiente já decrépito do clube onde, aos sábados, na época marcelista, depois do “fado boémio e reaça” (sic), ainda havia uma ala juvenil que gostava de cantarolar e tocar uns fados e baladas de Coimbra, a meia voz, e onde se revelavam novos talentos da terra, acarinhados pelo Zé Nuno e pelo seu tio materno…

Curiosamente, já ninguém se lembrava, trinta e três anos antes, em 1936, das exortações, aos microfones da Emissora Nacional, de musicólogos, política e ideologicamente próximos do regime, como o Luís Moita, para que a mocidade portuguesa deixasse de cantar o fado, essa “canção de vencidos" (**)...

O tio, materno,  do Zé Nuno era um bocado a "ovelha ranhosa" da família, por ser considerado do "reviralho" (depois das eleições do Norton de Matos)… Em 1958, apoiara publicamente a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, o que lhe trouxe alguns dissabores em casa e no emprego.

Com o novo presidente da Câmara Municipal, e dirigente local da Ação Nacional Popular (que sucedera à União Nacional), o pai do Belmiro, católico, marcelista, mais liberal que o anterior, que era um ferrenho salazarista, o ambiente na vila ribatejana desanuviara-se um pouco no final dos anos 60, princípios de 70.

− Continuando a nossa conversa…, vejo que estás com bom ar, Belmiro… Mas, quem vê caras, não vê corações.

− Bem, parafraseando o provérbio, "muita saúde", vou tendo ainda, mas não sei se "pouca vida"…, porque afinal "Deus não dá tudo"… Acho que era esse o provérbio que dizia o meu avô materno, que morreu cedo, segundo a minha mãe. Vendia saúde às carradas, mas tinha o pressentimento que iria morrer ainda jovem. Costumava também dizer: "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"… A verdade é que não chegou a conhecer os netos… Morreu com a pneumónica...

− Em suma, morria-se cedo, cheio de saúde…

− São provérbios ao teu gosto hipocrático, Tony… Tu é que publicaste em tempos uma antologia de provérbios populares ligados à saúde, não foi ?!... Pelo menos , mandaste-te uma separata, autografada, ainda qundo eu estava nos Açores.

− Sim, uma separata  de uma revista de história da medicina… O povo lá sabe, ou sabia, tenho um certo respeito pela sabedoria popular.

− Tretas…, desculpa lá, Tony… De popular têm muito pouco os nossos provérbios. Fisqusei vacinado com o maoismo...

E, subindo o tom de voz, o Belmiro sentenciou:

− E, se queres um conselho, da minha experiência de vida, que já é alguma, não te fies no povo, na populaça… O povo é vilão, é mouro, é saloio, é conservador, se não mesmo reacionário, manhoso, interesseiro, desleal, ingrato… O povo é um caçador oportunístico, tanto come na gamela do pobre como apanha as sobras da mesa do rei… Eu vi pelo meu pai, que passou de bestial a besta, com o 25 de Abril... Não faltaram os vira-casacas que lhe infernalizaram a vida, e aguns deviam-lhe favores... Sabes que o populismo tanto é de esquerda como de direita... 
Cuida mas é da tua vida, cuida de ti, cuida dos teus!

− “Ao vilão dá-lhe o dedo, toma-te a mão” – ironizou o António Mota. – Seja, mas poupa-me os teus sarcasmos, o teu humor à laia do Bordalo Pinheiro. Estás a sugerir que o nosso Zé Povinho é gentalha, feia, porca e má... Como os ciganos, os pretos, os imigras, os sem-abrigo, os proletas... Vocês, juristas, são tramados… Mas também quero dizer-te que gostei da nossa conversa.

− Dantes ainda nos encontrávamos nos casamentos e batizados… Agora é só nos funerais – lamentou-se o Belmiro.


− Sim, uma conversa à porta do cemitério, não direi mórbida, talvez mais nostálgica do que filosófica.

− Então, à nossa, Tony!... Aos bons velhos tempos!... Tchim, tchim!

E ergueram as taças de vinho branco.

− Vejo que estás mais cético, Belmiro, mais crente em Deus, menos confiante nos homens, ou seja, no povo de Deus. Afinal, quem o diria, um ex-maoista, como tu, quando jovem, para quem a Bíblia, na faculdade de direito, era o famigerado "livrinho vermelho"…

− Sem dúvida, um "best seller", como a Bíblia. Foi um dos primeiros negócios que a China fez no Portugal continental… Em pequema escala, é verdade, mas abria simbolicamente uma porta para um  mercado, muito mais vasto... Mas, eh!, nada de ressentimentos nem de remoques políticos…

− De modo nenhum, nessa altura, já não convivíamos, ou muito pouco, estava cada um para seu lado.

− Assumo esse passado, embora hoje me ria de mim próprio. Sabes como era: jovens imberbes, chegados à capital, más companhias, paixões juvenis, a descoberta do sexo (fácil), a revolta contra o pai, a incultura geral, leituras apressadas, na diagonal, dos gurus do marxismo-leninismo, o " pensamento de grupo" (que é o de todos os partidos), o exotismo da revolução cultural chinesa, a cabeça na ponta do polegar direito (!), a vontade (irresistível) de mudar o mundo e a vida num ato de magia vermelha!...

E ganhando fôlego:

− Fomos como o frango de aviário assado no espeto: em mês e meio ficávamos doutores em ciência política, dominando as famosas RGA, as reuniões gerais de alunos, no caso dos estudantes, mas procurando também chegar às fábricas e aos quartéis... 

- Demagogia, a nossa doença infantil ?


-  Não escondo que éramos demagogos, intolerantes e terroristas (no sentido de usar a palavra como uma arma: "Fogo contra a burguesia!... Abaixo o social-fascismo!"...). Era a orgia e a magia das palavras de ordem que podiam mudar o mundo e a história... Pobres de nós.

− Sei do que falas: as hormonas em convulsão aos 18/20 anos… Não é por acaso que é a idade em que te mandam para a tropa e para a guerra!... A idade perfeita para se matar e para se morrer!

− Mas fica sabendo que foi uma grande escola, a nossa, a maoista…

− Sim, pelo que vejo por aí com os teus ex-correligionários… Um caso de sucesso de promoção da literacia política e, nalguns casos, públicos e notórios, de meteórica ascensão na hierarquia dos partidos do poder, no aparelho de Estado, nas grandes empresas, nos bancos,  nas instituições europeias, etc.

Os dois amigos davam agora conta de que há muitos anos não bebiam um copo juntos… Mas que este tchim, tchim, este tilintar de copos, também tinha algo de premonitório. Como eram os dois supersticiosos, tiveram um estranho pressentimento...,  o de que não voltariam mais a encontrar-se.

− Cruzes, canhoto, afasta de mim esse cálice, irmão! – galhofou o Belmiro, para disfarçar o calafrio que sentiu pela espinha acima.

E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante de direito, justificou-se o Belmiro:

− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado, à direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, cada um com a sua bandeira e a sua ideologia (meia dúzia de chavões!) 
e era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. 

− Sim, os extremos tocam-se, muitas vezes...

− Hoje, em 2018,  não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar a ser como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a títímida  (mas inevitável) mida  democratização do ensino e da saúde,   os bairros de lata a crescer como cogumelos nas cidades industriais, a EFTA - Associação Europeia do Comèrcio Livre...  Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra…

− Ou pela violência das armas ?! O poder está na ponta das espingardas!, era a vossa palavra de ordem maoista… Pobres diabos, putos imberbes, que ainda não tínham dado um tiro nem sabiam manusear uma arma nem podiam imaginar o horror que é uma guerra, dentro ou ou fora de fronteiras...

− Eu, felizmente, não fiz a guerra como tu. Nem sequer fiz o serviço militar, por um bambúrrio da sorte. A guerra acabou antes.

− Tiveste mais sorte do que eu… e do que o nosso pobre Zé Nuno. Mas, tu, Belmiro, terias dado um grande herói do 10 de junho. Infelizmente, hoje serias um herói morto, com direito a nome gravado na pedra, no monumento aos mortos da guerra do ultramar... Como aquele mamarracho que foi erguido no jardim central da nossa vila... Ainda bem que estás vivo...

− E quem te disse, Tony, que eu não poderia ser hoje um herói vivo ?! Um Torre e Espada, que muito honraria a nossa terra ?!

− Os heróis também se fabricam, por mero oportunismo político,  em função dos interesses dos regimes... Vê o caso do soldado Milhões, que salvou a honra da República e do CEP, o Corpo Expedicionário Português, na I Grande Guerra... Ou, no caso da Guiné, o Marcelino da Mata... que cheguei a conhecer pessoalmente.

O António aproveitou então para enfatizar as qualidades de liderança do amigo que tinha tudo para ser um bravo soldado, um grande comndante militar,  digno dos nossos maiores:

− Belmiro, a mim que não tinha jeito nenhum para a tropa, fizeram-me alferes miliciano, comandante operacional... Tu, sim, sempre foste um líder, mais do que um chefe, desde os tempos do escutismo. Não tenho dúvidas que terias chegado a general, se tivesses ido para a Academia Militar, como chegaste a sonhar. Estou grato ao teu pai por te cortado a crista de galo…

− Meu sacana!... Tinha alinhado no 25 de Abril, disso podes estar ciente. Mas nos meus 15, 16 anos ainda cheguei a sonhar com a carreira das armas…

− Em contraciclo!... A Academia Militar estava às moscas, homem!… Depois, o militarismo era, para mim, o lado mau do escutismo. Deixaste-te seduzir pelo espírito de corpo, a unidade comando-controlo, a disciplina, o garbo, a ordem, a farda, os galões, os estandartes, a parada, a música marcial, o baile das debutantes,  a valsa, a  bellle-époque

− Não, estás redondamente enganado. O que me seduzia, na tropa, era a arte e a ciência de mandar, ou comandar!... Para servir os outros, a comunidade, o país, a pátria... O escutismo foi também uma das minhas grandes escolas, estou grato ao Baden-Powell e, já agora, à Mocidade Portuguesa… E, tu, não te esqueças que também lá andaste… Se eu fosse para a tropa, não tenhas dúvidas que queria ser o primeiro, o melhor, do pelotão… e por aí fora!

Fez-se um silêncio, algo embaraçoso. O Tony nunca contava a ninguém que também andara na "bufa"… e depois no seminário. Desviou a conversa:


− Então, o nosso querido Zé também foi parar ao ultramar, estás-me a dar uma novidade.

− Falávamos pouco da tropa… Só sei que andou pelo Índico, a patrulhar a costa moçambicana. Deve ter comido muito camarão moçambicano que era (e é) o melhor do mundo…

− Nada mau, viver numa corveta ou coisa parecida, sempre era melhor do que andar no mato, como a "tropa-macaca".


− O que é isso de "tropa-macaca" ?

− A que andava a penantes, no mato... Os "infantes", os atiradores...

Na realidade, o Zé Nuno tivera mais sorte do que o António Mota. O Belmiro ainda se lembrava dele, aos fins de semana, fardado de branco, impecável, oficial e cavalheiro, um "príncipe encantado" para as garotas da terra.

− O melhor da Marinha era a farda e o bar dos navios − acrescentava, irónico, o Tony.

− O Zé falava muito pouco ou nada desses tempos da guerra do ultramar. Andou por lá, nunca deu um tiro, a não ser nos exercícios navais. Mas falou-me, uma vez, maravilhado, da viagem do navio-escola "Sagres" ao Rio de Janeiro,  recebido em delírio po mulherio...


E mais acrescentou o Belmiro:

− Sei que, quando cá veio de férias, ainda em finais de 1973, por altura do Natal, trouxe uma cassete com as famosas canções do Niassa, que estavam proibidas…

− Nessa altura, como sabes, estava eu na Guiné, só ouvi as canções do Niassa uns anos depois. Mas também havia uma espécie de cancioneiro da Guiné...

− Eh!, pá, da nossa geração poucos escaparam, tirando a malta que andava na universidade e foi adiando o serviço militar, como eu… De exame em exame, lá fomos dobrando o cabo da Boa Esperança…

Naquele tempo, poucos foram os condiscípulos do Belmiro que continuaram a estudar para além da 4ª classe ou do 5.º ano do liceu.

− Ah!, e não te esqueças da malta que deu o salto – disse o Belmiro, que se lembrava ainda de uma leva de jovens do concelho que fora numa carrinha de um passador e que tivera um acidente grave já a caminho de Bordéus…

− Não estava cá quando isso foi… França, Alemanha, Suécia, Canadá, América, Brasil (antes da ditadura militar de 1964)… eu sei lá para onde a rapaziada foi parar!... Muitos à procura de melhor vida, não tinham qualquer consciência política, mas a verdade é que mandaram o  país à merda, o país e os gajos que cá mandavam...

− Desertor, que me lembre, não conheci nenhum na nossa terra. Mas faltosos e refratários foram bastantes. E olha que não eram filhos de agrários. O tipo do stand de tratores e máquinas agrícolas, um comerciante que veio de fora e que enriqueceu depressa, esse, tratou logo, na devida altura, de pôr o filho mais velho a bom recato na Suécia ou na Alemanha. Lembras-te dele? Ficou por lá, casou com uma loura, da Europa  do Norte... Não tenho mais notícias dele...

− Tu é que nunca pensaste em dar o salto!... Eu, também não, porque estava no seminário…

− Acredita que não, foi coisa que nunca me passou pela cabeça!... Se a Pátria precisasse de mim, como soldado, eu lá estaria na primeira fila... Não sou menos patriota do que tu, lá por não ter feito a tropa e a guerra do ultramar. O meu querido paizinho, esse, sim, ainda pôs a hipótese de me pôr na fronteira se as coisas corressem para o torto. Era o plano B, mais para tranquilizar a minha mamã do que para valer… 


Felizmente, para o Belmiro (e a família), funcionou o plano A: ele foi um menino bem comportado, pelo menos o q.b., não se deixou apanhar pela ramona, muito menos pela PIDE/DGS,  nunca chumbou, e depois… veio o plano C, que não estava previsto pelo pai dele nem pelos  seus amigos da situação: o 25 de Abril…

− Grande sortudo!− exclamou o Tony − A sorte protege os escuteiros… E é caso para dizer, uma vez escuteiro, escuteiro para sempre…


E aqui convém esclarecer o leitor que o pai do Belmiro não era um tipo qualquer. Era um conceituado advogado, mais tarde autarca e dirigente da ANP, a Ação Nacional Popular, a nível local. Tinha sido o próprio Marcelo Caetano, seu antigo professor, a integrá-lo nas hostes da União Nacional nos anos 40, quando era ministro das colónias.  

− Não tinhas alternativa: ou te integravas ou eras marginalizado...

Como o pai do Belmiro não era ribatejano, mas lisboeta, só passou a dirigir os destinos da autarquia local em 1969. O presidente da câmara municipal até então tinha sido um médico veterinário, da linha dura do regime. Pertencera, dizia-se,  à Legião Portuguesa e havia combatido, quando jovem, na guerra civil de Espanha, ao lado dos franquistas.

− O meu pai era o típico advogado de província, que vem de fora, como os médicos, que precisa de todos, não se quer incompatibilizar com ninguém, a começar pelos senhores da terra… Mas chegou, viu e... venceu!... Ou convenceu!... Casou cá, com uma menina prendada, herdeira de um belo patrimónioi, que não fez mais nada na vida do que ser boa esposa e melhor mãe... Eu fiquei com o escritório do meu pai e com alguns clientes (se queres que te diga, os piores, os pobretanas, os caloteiros)...

− Belmiro, não levas a mal se eu te disser que foste, apesar de tudo,  um privilegiado!

− Não tenho culpa de ter nascido numa família de classe média alta, politicamente de direita, se bem que republicana e liberal (também sei pouco sobre os meus antepassados, quer alfacinhas, quer ribatejanos)… Mas, atenção, o meu pai era, em termos de peso político, um segunda ou terceira linha…

− Sem querer ofender a memória do teu pai, que Deus já lá tem, dizia-se no meu tempo que havia quem lhe metesse cunhas… E ele gostava de mostrar que tinha prestígio e poder, ou pelo menos que se movia com relativa facilidade nos círculos de poder: os governadores civis, os deputados da Nação, a Praça do Comércio, o Palácio de São Bento...

− Sim, sei que lhe fazia bem ao ego. Mas ele não mandava nada ou muito pouco.  Era um homem bom, afável, tolerante, prestável, generoso, mais depressa capaz de ajudar os de fora do que os da casa… Cunhas para livrar alguém do ultramar, isso, não, posso garantir-te, juro mesmo pela alma dele… Agora que as havia, havia, as cunhas... É uma instituição, é coisa que existe em todas as guerras e em todos os regimes...

− Fiz três anos de tropa e de guerra, por isso sei do que falas. Não direi que me impressionou ou intrigou, já estava à espera…mas nos sítios por onde passei, a começar por Mafra (ou Máfrica, a fábrica de oficiais para a guerra de África, como a gente lhe chamava) nunca encontrei nomes sonantes, filhos-família... 
Nem sequer afilhados. Não sei se os filhos da elite da época foram à guerra, mas se foram não foi como "tropa-macaca", como eu. Teriam eventualmente boas especialidades, tinham a força aérea e a marinha, a reserva naval, como alternativa ao exército… De facto, não éramos todos iguais, Belmiro, se é isso que querias saber.

− Tony, repara, o que já lá vai, lá vai... Éramos todos putos quando rebentou a guerra em Angola… Tu e eu cantámos, em muitos acampamentos, o hino "Angola é nossa!", para além do "Lá vamos cantando e rindo"... Ainda te lembras da letra?

− Lá vamos, cantando e rindo, / Levados, levados, sim, /  Pela voz de som tremendo /  Das tubas, clamor sem fim... (Julgo que a letra era do Mário Beirão, um poeta menor.)

−  Bravo!...

− Mas a guerra, com as suas tubas e turbas, não sobrou para ti, por exemplo, sobrou para a mim, para o Zé… e outros, da nossa terra, da nossa geração, que não tiveram a tua sorte. E muitos por lá ficaram… Só do nosso concelho foram para uns vinte e tal.

− Reconheço, Tony, que o país tem uma dívida de gratidão, muito grande, para com vocês, os ex-combatentes.

− Dívida de gratidão? É uma figura de retórica, desculpa lá. Em todas as épocas, em todas as guerras, essa dívida fica por saldar. Revolta-me o cinismo com que hoje se fala dos coitadinhos dos ex-combatentes… Vamos todos parar à vala comum do esquecimento, mais dia menos dia… O resto é o folclore do 10 de junho onde nem sequer há desfiles de ex-combatentes, porque são todos uns velhadas, que já não podem, coitados, com o rabo entre as pernas!


− Desculpa lá, tens razão, embora estejas a ser cruel, muito cruel, para com os teus ex-camaradas… E, para mais, foram vocês os coveiros do Império. Foi um ciclo de quinhentos anos que se fechou… A história vai lembrar os heróis, os marinheiros aventureiros que foram os primeiros na terra e no mar, os descobridores, os fundadores do Império, os vice-reis das Índias, os Gamas, os Albuquerques, não os coveiros... É sempre assim, mano!

− Sem honra nem glória, Belmiro! Pelo menos é o que dizem os revisionistas da história, bem como os saudosistas do Império…


− Tony, se for preciso, eu assino por baixo… Mas já que estás aqui, deixa-me confessar-te a minha, nossa, estupidez juvenil… Eu fui dos que, logo a seguir ao 25 de Abril, ainda gritei, no cais da Rocha Conde Óbidos, a palavra de ordem do meu movimento: “Nem mais um soldado para as colónias!”… Mas acho que era preciso alguém gritar contra a guerra, a favor da paz!... E pôr fim, sobretudo, àquela merda!

− Eu regressei só em setembro de 1974 e sei o mal que isso nos fez, ao moral da tropa que lá ficou a aguentar as pontas... Mesmo assim as coisas correram, aparentemente, melhor do que em Angola e em Moçambique. Não havia colonos na Guiné, o único problema eram os homens de lá que combateram ao nosso lado, os nossos camaradas guineenses. Os meus fulas, por exemplo, de que o Amílcar Cabral não gostava nada. Infelizmente, eles escolheram o cavalo errado… Chamavam-lhe os "cães do colonialismo"... Como se fossem mercenários!...

− Tony, era inevitável… Há sempre excessos, contradições, efeitos perversos... É próprio da ação humana, é uma lição da história… Vê as perversões do cristianismo, que era uma ideologia libertadora…

− Era ou é ?

− Passo em frente, não discuto religião contigo... Mas, historicamente, tu sabes bem que foi.

− OK, são as nossas regras, não falemos de religião... Mas, já que estamos em maré de confidências, deixa-me dizer-te das mágoas que trouxe da guerra... Uma delas nunca  a contarei aos meus filhos, conto-a a ti que és meu mano...

O António pediu então mais uma taça de branco, que bebeu de um trago, e contou:

− Numa das nossas incursões a sul do Morés, que era uma região que a propaganda do PAIGC considerava como "área libertada", fizemos um "golpe de mão" a uma tabanca, de população predominantemente balanta... Como sabes, os balantas eram os homens do mato, e foram a "carne para canhão" da guerrilha do Amílcar Cabral... O meu grupo de combate foi o primeiro a entrar na povoação, onde o alvoroço já era grande, com porcos, galinhas, cães, crianças, mulheres e velhos a fugir em debandada... Por detrás de um bagabaga (um morro de terra, feito pelas formigas), vejo um atirador isolado, com uma Simonov, uma espingarda russa, semiautomática, que em geral equipava as milícias do PAIGC... A arma encravou-se-lhe ou então o atirador entrara em pânico, desiquilibra-se, o corpo fica parcialmente a descoberto, justamente na altura em que lhe acerto com curta rajada  no peito e no ombro. 

Aqui o Tony fez uma pausa, para retomar o fôlego:

 Continuei a correr com os meus homens... Fizemos de imediato um balanço dos "estragos" provocados: para além dos mortos e prisioneiros, tudo população civil, capturámos armas, arroz, documentos; não tivemos uma única baixa...Deparei-me então, junto do bagabaga, com o puto da Simonov, caído por terra: era um "blufo", balanta, adolescente, que não teria mais do que 17 anos, a idade do meu irmão mais novo que, infelizmente, já faleceu, com uma neoplasia, penso que não o terás chegado a conhecer, estvas nos Açores quando ele morreu... Esvaía-se em sangue, sem um ai nem um ui... Eu tinha acabado de matar um homem, o primeiro pelo menos a quem via a cara... Senti-me terrivelmente angustiado. Não tive coragem de lhe dar o tiro de misericórdia. Pedi ao meu guarda-costas, o Sori Jau... 

E o António concluiu, quase em surdina:

− Às vezes ainda hoje tenho pesadelos, e a cara do puto da Simonov, impassível, entra pelo ecrã dentro da minha televisão... E, por detrás dele, a espreitar por cima do ombro, o fantasma do meu irmão, cadavérico....

***

O Belmiro deu um abraço emocionado ao Tony depois do seu relato da cena da morte do puto da tal Simonov.

− Tony, é a primeira vez, nestes anos todos, que ouço alguém contar-me uma cena de guerra na primeira pessoa do singular!... Mas guerra é guerra, como é costume dizer-se. E, numa situação de combate, reage-se por reflexos, por instinto de sobrevivência. Foste também treinado para isso. E eu não faria melhor do que tu, se estivesse no teu lugar. Atirava a matar, sem apelo nem agravo.

− Mas era um puto, Belmiro!


− Afinal, com a idade de alguns dos teus soldados que também foram mortos em combate. E alguns, pelo que me contaste, também foram fuzilados, fria e barbaramente, a seguir à independência.

− É verdade... mas sabes o que ainda hoje, ao fim destes anos todos, me perturba, e às vezes me tira o sono?

− Sim?!...

− É que 
aquele (o golpe de mão sobre a aldeia, ou tabanca em crioulo,) não era o objetivo da operação... A missão era localizar e destruir uma "barraca" (um acampamento temporário) da guerrilha, a sul de uma base no Morés, Sara Sarauol, no centro do país, se a memória não me atraiçoa... Não sei se estás a ver o mapa da Guiné...

− Para mim, é chinês, mas continua...

− A operação foi mal planeada e pior conduzida, pelo major de operações, a partir de uma avioneta (que funcionava como PCV, quer dizer Posto de Comando Volante, isto ainda antes da entrada em cena  dos mísseis Strela, de que te já te falei...) Houve uma falha (e já não era a primeira vez) nas comunicações terra-ar. Ficámos por nossa conta, com um guia que conhecia mal o terreno... Por azar, e já no regresso, deparámos com aquele pequeno núcleo populacional, desarmado ou mal armado...

− Mas houve resistência!?...

− Fraca, a população deu conta da presença tropa e começou logo a debandar ainda antes dos primeiros tiros... 'Tuga, tuga!'... O puto da Simonov deve ter ficado para trás... com mais alguns homens válidos... que deviam ser milícias (eles também tinham milícias). Depois, como deves imaginar, não tive mãos nos meus homens, fizeram o que tinham a fazer... Nós, e mais outro grupo de combate que fizemos o golpe de mão, com o resto da nossa companhia a cercar parte do objetivo, retirámos rapidamente... deixando atrás alguns mortos da população e as palhotas a arder... Apanhámos o que pudemos: algumas mulheres, crianças e velhos, e armas ligeiras que deviam estar entregues ao chefe da tabanca para a autodefesa... O regresso foi um sufoco, com apoio de helicanhão... e  de uma pachorrento caça-bombardeiro T-6...

Os dois amigos desciam agora, em silêncio, a rua do Colete Encarnado que ia desembocar ao centro da vila. O António tinha o carro no parque de estacionamento fora do centro histórico, no sentido contrário do cemitério (que ficava a norte). Ainda ia jantar com o filho, mais novo, que estudava em Lisboa.

Passaram pela antiga casa, solarenga, da família do Zé Nuno, agora transformada em biblioteca municipal e centro cultural. Mas já tinham passado, na parte alta, pela antiga casa dos avós e dos pais do António, uma casa modesta, de piso térreo, agora restaurada. Tinha sido comprada há uns anos por um casal de emigrantes que vivia no Luxemburgo. 

− Gente da terra, trabalhadora... − esclareceu o Belmiro.

O Tony já não tinha mais raízes, na vila, a não ser memórias, depois da venda, há largos anos,  da casa onde nascera, e que fora erguida pelo avô, campino de uma casa agrícola da região. A avó era avieira, nascida na Praia da Vieira, tendo vindo com os pais para a faina da pesca no Tejo, no tempo da miséria. Por seu turno, o seu irmão mais novo também tinha morrido cedo. Em suma, já não tinha família por aqueles lados, e os seus filhos nunca chegaram a fazer por lá grandes amizades, eram os dois nados e criados no Alentejo.

− Belmiro, és aqui o meu último amigo e irmão... Quero ver se,  no Dia de Todos os Santos, daqui a seis meses, volto cá para pôr uma flor na campa dos meus pais e avós e do meu mano. Combinamos uma almoçarada no "Afonso", se tiveres disponível...


− Ainda é aquele que faz a melhor sopa de bacalhau dos campinos, de todos os restaurantes da vila... Mas também pode ser um peixinho do rio... Infelizmente sável não há nessa época...

A antiga rua do Colete Encarnado tinha sido rebatizada, depois do 25 de Abril... Era agora a rua das Forças Armadas...

− Que raio de nome! É homenagem a quê ou a quem ? Foram as Forças Armadas que fizeram o 25 de Abril?

− Mas também fizeram o 28 de Maio... e o 10 de Outubro... − ironizou o Belmiro.

O Tony também concordava com a opinião do amigo, que vivia na terra e que conhecia melhor do que ninguém as misérias e grandezas  da vida local. De facto, parecia que, aqui como em todo o lado, as comissões de toponímica municipais eram uma cambada de burocratas que iam atrás das agendas partidárias, eram ignorantes da história local e nacional e sobretudo revelavam  uma miserável insensibilidade sociocultural…

− Limparam as ruas todos, becos, travessas, praças, pracetas… Ficámos amnésicos, Tony. Perdemos a memória da nossa história local. Até o Beco do Quebra-Costas  tem agora o nome de um professor qualquer de Lisboa que era antifascista, e que nunca cá pôs os pés nesta terra...

− Santa incultura geral, Belmiro… Uma tristeza!...


O antigo Solar do Marquês de Marialva, um belo edifício do início do séc. XX, exemplar interessantíssimo da arquitetura regional, e de que o Zé Nuno tanto gostava, acabaria, há uns dez anos atrás, por ser vítima do impiedoso e cego camartelo camarário.

− Sem dó nem piedade! − lamentou o Belmiro. − Nem sequer classificaram o edifício. Hoje é um complexo de apartamentos de luxo, propriedade de gente que nem sequer é da terra. Estão a gentrificar a nossa terra, Tony!

Ainda pararam para beber uma bica, no café que o Zé Nuno gostava de frequentar, e onde costumava parar a malta do grupo de forcados, agora em decadência. E a conversa voltou de novo à tropa e à guerra:

− Costumo dizer, Belmiro, que a Guiné foi a rifa que me saiu em sorte... Só não ganho o raio do Euromilhões!... Mas, pensando bem, não me posso queixar. Pelo menos estou vivo. Podia ter dito que não... Mas será que tinha condições para decidir em consciência ? Para mais, face a um Estado autoritário e repressivo como o nosso, na altura?

− Não, não tinhas alternativa. A deserção era, e é, um crime grave. Ponho-me no teu lugar, eras o indivíduo, só, desamparado, contra o Estado, todo poderoso.

− Foi a rifa que me saiu na história. Como sabes, na história não há "ses"!... Ah!, se eu tivesse nascido dez anos antes, ou dez anos depois!... Não me posso queixar, ou não me adianta, não posso alterar agora o curso da história, da minha e a dos outros…

− Tony, há muitas formas de heroísmo, não é só na frente de batalha... Mas os desertores, em geral, nunca são tratados como heróis...

− Temos sempre dificuldade em abordar o problema dos refractários e dos desertores... Sobretudo destes últimos, que afinal foram em número ínfimo, tanto quanto sei. Já os faltosos e refractários podemos falar em um quinto dos homens em idade militar. Quer dizer, da malta da nossa escola, um em cada cinco cavou para o estrangeiro antes da sua convocação entre os 18 e os 20 anos.

− Refratários... ou faltosos ? Tenho ideia, como jurista, que há uma diferença semântica e concetual... Mas não tinha  ideia desses números... 

− Não faço distinção: foram todos os que faltaram à tropa...

− Sim, Tony, a guerra era impopular... Apercebi-me disso quando entrei na universidade...

− Olha, eu acho que foi o salve-se quem puder − concluiu o Tony. − À boa maneira portuguesa. Somos uns safados... O Salazar deixou-nos uma batata quente que rebentou na boca do delfim mal amado, o Marcelo Caetano. Para lá do impasse militar e do desastre político, tínhamos um problema demográfico bicudo. Já não tens braços para segurar a G3 e ir fazer a guerra. Daí o crescente recurso à tropa de 2ª linha, se quiseres, os guineenses do recrutamento local (e nos outros territórios,os angolanos, os moçambicanos...).  Eram bons combatentes, e sobretudo mais baratos, mas não falavam português, ou falavam muito mal, pelo menos os guineenses… Como se poderiam sentir portugueses ? Nem sabiam onde ficava Portugal no mapa!... E a verdade,  nua e crua,  é que só muito tardiamente, com Spínola,  passaram a ser tratados como portugueses...

− Sim, muito me contas, nunca tinha pensado nisso.

− O PAIGC tinha o mesmo problema… Estava exangue, conheci guerrilheiros em 1974 que só falavam francês, nascidos ou criados no Senegal... A guerra foi um modo de vida, para alguns, de um lado e do outro... Foi um modo de vida para alguns milicianos que se tornaram capitães... De aviário, como a gente dizia... Provetas...

− Confesso, Tony, que na altura, a seguir ao 25 de Abril, queríamos era apressar o fim da guerra. A todo o custo, doesse a quem doesse, incluindo a tropa e os civis espalhados por Angola, Guiné e Moçambique. Era militar, política, diplomática, demográfica  e economicamente impossível prosseguir a guerra a partir de 1974. Ninguém estava mais disposto a perder três anos da sua vida, e muito menos a vida, por uma causa historicamente perdida… Há limites para o patriotismo...

− Sim, tu foste dos que gritaste "Nem mais um soldado para as colónias"... Estavas a ser coerente, embora eu não pudesse de maneira nenhum estar de acordo contigo nessa altura. Em agosto de 1974 eu passei momentos terríveis a tentar tranquilizar os meus soldados, antes de dissolver a companhia. Vi-me embora em setembro e eles, coitados, lá ficaram entregues à sua sorte... Com os ordenados pagos até ao fim do ano... Para serem fuzilados, alguns, sobretudo os graduados, mal os novos senhores da guerra nos apanharam pelas costas...


− Se calhar eu estava a ser também inconscientemente egoísta. Eu não queria apanhar com as sobras do Império, com os estilhaços do desmoronamento do império... A merda do império!... A conhecê-lo, a ir para a guerra, gostava de ter sido no seu apogeu, mas aí eu ainda não tinha nascido. Nem sei se o império chegou a ter algum momento de apogeu... Em boa verdade estava-me nas tintas para a sorte de quem ainda lá estava, como tu e o Zé Nuno, e mais milhares e milhares de soldados, metropolitanos e do recrutamento local, a par de centenas e centenas de milhares de civis, brancos, mestiços e negros, que temiam pelo seu futuro quando fosse arreada a bandeira portuguesa.

- Acredita, Belmiro, nem nós nem o PAIGC estávamos dispostos a voltar a combater... Ouvi eu da boca de alguns comissários políticos... Seria uma tragédia se as negociações entre os políticos tivessem falhado, em Londres e depois em Argel... Agora, não me perguntes se não teria havido outras soluções... Hoje é fácil brincarmos aos jogos de guerra... E não falta aí gente, nas redes sociais,  veteranos de guerra e outros, a destilar veneno contra o 25 de Abril e a descolonização. 

− Eu não teria moral nem muito menos imaginação para impor um outro fim ao nosso fim da história colonial... Mesmo que esse fim não me agradasse, como não me agradou... vistas hoje as coisas a esta distância.

− Todos ou quase todos concordam que, idealmente, as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Sabemos como começa uma guerra, nunca saberemos como ela acaba... No caso de Angola, por exemplo, ela só acabou 40 anos depois e o balanço é aterrador, quase apocalíptico. Na Guiné, tirando os meus soldados fulas, toda a gente festejou o fim da guerra... 

- Tony, fomos todos joguetes nas mãos dos russos e americanos, da Nato e do Pacto de Varsóvia. Estávamos no auge da guerra fria e, cá dentro, à beira de uma guerra civil, no verão quente de 75.

− Eu não tenho a mesma perceção… Seria impossível ter uma Cuba às portas da Eur opa, ou melhor, em plena Europa. Para mais, num país da NATO… O Salazar tinha isto bem armadilhado. E a Espanha do Franco ainda ponderou intervir, ao que parece, para evitar o risco de contágio.  Os nossos revolucionários eram de opereta. As nossas revoluções foram sempre de opereta, desde a restauração, em 1640.

− "Revolução dos cravos"?!... − exclamou, em tom de ironia, o Belmiro.− Mas, olha, também eu, maoista,  fui na onda do papão do social-fascismo... Como eu gostava então do palavrão!... Mas no 25 de Novembro eu estava ao lado do Eanes...

 − ... Fomos todos ingénuos, mas bem ou mal escrevemos o nosso capítulo da história. Eu, por mim, procuro tranquilizar a minha consciência do seguinte modo: fui para a guerra, não desertei, queria continuar ter o direito de viver no meu país, fiz a guerra, na esperança de que os políticos do meu país encontrassem, a tempo,  uma solução (política) para ela...

− Daqui a meia dúzia, anos, em 2026, estamos a debater o 1.º centenário da Ditadura Militar e do Estado Novo. E, se calhar, os portugueses vão confirmar o Salazar como o estadista português mais importante do séc. XX.

− Espero bem que não... Mas a verdade é que ainda hoje o seu fantasma paira pelas nossas cabeças, tal como o do Marquês de Pombal, mesmo quando os mais novos já não sabem sequer quem foram esses homens... O Salazar esteve em cena quase 50 anos, atravessando terríveis períodos do nosso tempo, da crise de 1929 à Guerra Civil de Espanha, da II Guerra Mundial à guerra colonial…

− Foi o "pai da Pátria", o que nos livrou da II Guerra Mundial, como dizia o meu pai lá em casa. E, na verdade, foi, quer gostes ou não.

−... Eu, acho, Belmiro, que ainda não o matámos nem o enterrámos de vez.

E foi com esta conversa melancólica que os dois amigos se despediram. Pela última vez… Passados uns meses, o Tony morreria num brutal acidente de automóvel na A2, quando regressava de Lisboa, a caminho do seu monte no Baixo Alentejo. Nunca se soube a causa de morte, por vontade da viúva e dos dois filhos... 


Ao Belmiro, que ainda tentou, em vão, obter uma cópia do relatório da autópsia, chegaram versões contraditórias: sono, AVC, morte súbita, suicídio?!... Parece que o veículo, que circulava na faixa direita, foi bater de lado nos rails de proteção, e andou dezenas e dezenas de metros descontrolado, a varrer as faixas de um lado ao outro... Felizmente não havia mais carros a essa hora, da noite... O Tony terá tido morte imediata.

O Belmiro inclina-se mais para a hipótese de acidente por despiste, devido a cansaço e  a sono... O Tony amava demais a vida e a família e o Alentejo, nunca lhe falara em suicídio...

O corpo, depois de libertado, foi cremado. As cinzas repousam agora junto à "oliveira da paz", que o Tony replantara no seu monte, vinda do Alqueva... Era centenária. Os filhos e a viúva cumpriram assim a sua última vontade, mas só em parte: ele deixara escrito que as suas cinzas deveriam ser espalhadas por três sítios que ele amou: a sua terra natal, o monte no Alentejo e "o rio Geba, cuja água ele bebera"... 

Em alternativa, lançaram parte das cinzas no Cais da Rocha Conde Óbidos numa cerimónia restrita, apenas com a família mais próxima e alguns amigos íntimos, entre eles o Belmiro. Dali tinham partido, de barco, centenas e centenas de milhares de soldados para as guerras coloniais (Índia, Angola, Guiné, Moçambique)... O gesto era simbólico: o Tony  ainda fora  de barco e regressa já de avião,  nos TAM - Transportes Aéreos Militares.

O Belmiro ainda chegou a abordar um elemento influente Comissão de Toponímia Municipal, um jovem arquiteto, vereador da câmara municipal, membro influente de um dos partidos do arco do poder quanto à hipótese de ser dado o nome do dr. António Mota a um novo arruamento a abrir em breve (ou equipamento escolar a inaugurar no futuro), nos arredores da vila, já na zona extra-muros. A resposta não podia ser mais desencorajante , para não dizer desconcertante:

− Caro doutor, como sabe tão bem como eu, a comissão é meramente consultiva, dá pareceres, quem atribui os nomes é a Assembleia Municipal... Faça-me uma proposta, fundamentada, por escrito, mas vai ser difícil...

− Difícil ?...− interrompeu o dr. Belmiro Mateus.

− O dr. António Mota era nosso conterrâneo, e depois ?... Fez a guerra do ultramar, mas não foi reconhecido como herói. Tem uma cruz de guerra, a Torre e Espada, ou coisa parecida ? Não tem. Tem alguma comenda ? Não tem... Como sabe, temos muitos candidatos e poucos novos arruamentos ou equipamentos para homenagear os nossos conterrâneos ilustres... E depois a guerra do ultramar, felizmente,  já está esquecida, é uma coisa do século passado... Já temos, por outro lado, uma praceta dos Heróis do Ultramar, numa sede de freguesia concelho,  construímos há dois ou três anos um monumento aos combatentes do ultramar, e no nosso cemitério há um talhão da Liga dos Combatentes... Acho que a nossa terra já fez o que tinha a fazer pelos nossos bravos antepassados que andaram, e alguns morreram, na I Grande Guerra e na Guerra do Ultramar...E, olhe, eu nem sequer sou desse tempo!... E depois, se quer que lhe diga, os meus avós e os meus pais são retornados, deixaram lá tudo em Angola,  as economias de uma vida... Eu já nasci cá, mas pelo que eles me contaram houve "heróis do ultramar" que nem um tiro deram... Doutor, desculpe a minha franqueza!...

O dr. Belmiro Mateus estava quase a explodir de raiva, mas conteve-se... Percebeu onde é que o jotinha queria chegar: o António Mota era um "outsider", um desalinhado, não fazia parte do sistema, "não comia na mesma gamela", nunca tinha sido autarca, presidente de junta de freguesia, presidente da câmara, presidente da Assembleia Municipal, vereador, dirigente partidário, cge de gabinete, deputado, não chegara sequer a general, nem muito menos era um herói... nem se deixara matar!

Sim, por que raio é que deveria ter um nome de rua na sua terra ?! Ele, o Zé Nuno e tantos outros conterrâneos, centenas, anónimos, que afinal foram os coveiros do Império ?!...


Luís Graça (2018), Revisto em 5/2/2024 
 
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 5 de fevereiro de 2024 > Guiné 6174 - P25137: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (17): Três amigos, três destinos - Parte I

(**)  No ano da graça de 1936, o germanófilo  Luís Moita apelava aos microfones da Emissora Nacional: "Rapazes, não cantem o fado!". Os rapazes eram a "Mocidade Portuguesa" (MP) que acabava de ser criada, no âmbito das reformas da "educação nacional", decretadas pelo poderoso ministro A. F. Carneiro Pacheco (1887-1957).

Organização de tipo miliciano, a MP visava o enquadramento político-ideológico da juventude, era de inscrição obrigatória para todos os estudantes do ensino primário e secundário, e potencialmente mobilizava todas as actividades circum-escolares: a educação cívica, o lazer, os cuidados de saúde, a preparação física, a formação política e militar, etc.

"Canção de vencidos", "cocaína de Portugal", o fado era então visto por certas personalidades da direita integralista e nacionalista (incluindo escritores e musicólogos) como um "herança maldita vinda do ultramar" (referência ao lundum, "avô do fado", que nos terá chegado do Brasil, com o regresso da corte de D. João VI), subproduto de uma "raça abastardada" e que entre nós se havia expandido justamente "nos bairros onde, há trinta anos ainda,nos finais da monarquia, e princípios da república,  albergavam o vício, o crime e a vadiagem" (sic!), em contraste com as "canções alemãs, fulgurantes e alegres" das cervejarias de Munique e dos Wandervogel (Moita, 1936, pp. 217-218) 

PS - Os Wandervogel integravam-se naquilo a que se poderia chmar os Grupos de Juventude do Nacionalismo Alemão, surgidos no princípio do séc. XX. Não comfundir com a Juventude Alemã hitleriana.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Guiné 6174 - P25137: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (17): Três amigos, três destinos - Parte I



Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam pelo país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas... A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique.. E os heróis foram ficando para trás... Esquecidos. Como em todas as guerras.. LG]


Contos com mural ao fundo >

Três amigos, três destinos - Parte I

por Luís Graça


 
Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história., reformado, do ensino secundário, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures na região do Médio Tejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades dos bons velhos tempos", além de homenagear o amigo,

***

Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos estando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, gemendo e chorando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo.

O Belmiro Mateus, advogado, e o António Mota, professor de história do ensino secundário, reformado, dois conterrâneos agora separados pelo Tejo que, no passado, há mais de oito éculos,  fora fronteira natural e política de Portugal, já não se viam...  desde os tempos da Expo 98!....

− Agora, cada um para seu lado, Belmiro. O nascimento aproximou-nos, a vida ou a história afastou-nos. Bolas, e se éramos "amigos do pêto"!

− Como irmãos, Tony, como irmãos!... É verdade, não se escolhe pai e mãe, e a terra natal é aquela que nos calha na rifa da sorte!

− ... aquela que nos calha na rifa da sorte, dizes bem!

Reencontravam-se agora no cemitério da terra natal, pela segunda vez  desde 1998, o ano da Expo, o que só podia queria dizer... “por circunstâncias infelizes”. Desta vez, vinham acompanhar um amigo comum, o Zé Nuno, “até à sua última morada”.

− Que raio de sítio – pragejou o António – para o reencontro de dois velhos amigos, conterrâneos, vizinhos… e condiscípulos!

− E manos, acrescenta aí!... (Felizmente, ainda tenho vários, mas biológicos.)

O Belmiro, ainda hoje supersticioso, confessou que, quando era novo, tinha "um medo que se pelava de passar por aquelas bandas", sozinho, à noite, fora do resto das muralhas que delimitavam o casco velho do antigo burgo medieval.

O cemitério tinha sido construído há cento e tal anos, no tempo do senhor Dom Luís de boa memória, e localizava-se no início da lezíria, que fora outrora o grande celeiro da vila ribatejana.

− À noite, só de pensar nos fogos fátuos, nas corujas, nas bruxas, nas almas penadas, nos lobisomens... ficava com os cabelos em pé!

− Eu, também, confesso, nessas coisas era um medricas… Mas, lembras-te, Belmiro ?!... As nossas patifarias, tais como caçar lagartos no muro do cemitério...


−... com anzóis de pesca e bocados de pão, embebidos em leite!... Para o que nos devia de dar!... Esses lagartos, hoje, foi espécie que desapareceu.

− Espera, não eram lagartos, eram sardões! Eram verdes, podiam medir um ou dois palmos.

O Belmiro lembrava-se que o bando de garotos de escola enfiava um laço à volta do pescoço do bicho, e com um cordão comprido passeavam-no pelas ruas e vielas da terra, metendo medo aos mais fracos, as crianças mais pequenas, as raparigas, as mulheres e os velhotes…


− Acho que éramos sádicos e cruéis como todos os miúdos na pré-puberdade, a aprender a ser homens, isto é, machos!

− Mas, já agora, Belmiro, acrescenta ao rol dos nossos crimes de malvadez partir os vitrais da rosácea da velha igreja matriz… À pedrada, imagina!

− Se me lembro, Tony, ainda hoje carrego essa culpa, por crime de lesa-património. Bolas, era (e é) um belo monumento da nossa terra, e mais do que isso, um lugar sagrado, a casa de Deus!... Que estupores!.. . Meninos de coro e escuteiros, ainda por cima. 

− E, tens razão, era a casa de Deus!... Se bem que fechada ao culto, na altura estava para obras, com andaimes... E havia até quem tivesse a triste ideia de a transformar em museu de arte sacra!

E aqui o Belmiro reconstituiu a cena do grupo de “peles vermelhas”, ululantes, montados nos seus cavalos de cabo de vassoura, comandados pelo grande chefe “Língua de Víbora”, um primo mais velho do António, que há de, logo a seguir, em meados dos anos 50,  emigrar com a família para as Américas...


− Montados em cavalos de cabo de vassoura, como os das bruxas,  e disparando saraivadas de setas com arcos de pau de tramagueira!...

− Mas que terrorista,  esse meu primo, filho de uns tios-avós. O gajo safou-se, mesmo a tempo, de ir parar mais tarde, com os quatro costados à Índia ou até a Angola...

O “Língua de Víbora”!... O Tony nunca conhecera, no seu tempo de escola, miúdo mais endiabrado, mais mal educado, mais traquinas, se não mesmo mau e perverso, como o seu primo em terceiro grau.

A alcunha cabia-lhe que nem uma luva, tinha-lhe sido dada, ninguém sabe por quem, devido às patifarias que ele pregava e sobretudo às asneiras que ele deitava pela boca fora. Todos os palavrões que o Tony sabia (e que usou pela vida fora...) tinha-os aprendido com o primo, mais velho uns três ou quatro anos... Era expulso com frequência da escola e da catequese pela sua insolência e má-criação. E, no entanto, a mãe era uma santa senhora, daquelas que iam à missinha todos os dias. O pai, pelo contrário, era um carroceiro, negociante de gado, antigo almocreve.

− Mas, sabes, eu tenho saudades dele e do nosso bando de "índios" – atalhou o Belmiro. – Dele e toda essa malta, rapazes e raparigas que fizeram parte da nossa infância e que, já em plenos  anos 50, começaram ir-se embora, uma parte deles para o Brasil, aos EUA, o Canadá!...

− Cá tens, o exemplo de um mau líder de grupo que faz maus rapazes. O "Língua de Víbora", há séculos que não sei dele, espero que não se tenha perdido no Novo Mundo… Oxalá ainda esteja vivo!... Não lhe posso desejar mal, para mais meu parente.

− Ficas a saber, Tony, que eu nunca tive a coragem de confessar, na Quaresma,  ao padre frei Batista esse grave pecado, o de atirar pedras aos vitrais da igreja. Para mim, puto, era um pecadilho, daqueles que não dava condenação ao inferno, apenas um simples castigo no purgatório. 

− Deixa-te de tretas, o purgatório já existe, se é que alguma vez existiu...

− Concordo, é uma metáfora, como todas as criações da Bíblia...uma obra-prima da literatura universal...

E foi logo recordado por ambos os amigos a figura do bom frei Batista, que fazia os sermões da Quaresma e confessava ruas inteiras de putos e beatas, mais tarde missionário, franciscano, barbaramente assassinado,  a golpe de catana, em março de 1961, no norte de Angola.

− Que raio de memórias, fomos buscar!... Mas, voltando ao que aqui nos traz hoje, o doloroso dever de homenagear o nosso já saudoso amigo Zé…

− Já se foi, António, já aqui está na terra da verdade… Horrível, um tumor cerebral,  fulminante, que em poucos meses o levou…

− É tramado, Belmiro… Um rapaz da nossa geração, da nossa colheita...E que nos habituamos a ver sempre cheio de saúde, energia e alegria de viver...

O Zé Nuno era ligeiramente mais velho, uma meia dúzia de meses, que o Tony e o Belmiro. Fez o antigo curso de engenharia técnica em Lisboa e depois alistou-se na Marinha. Ficou na Reserva Naval e foi mobilizado para Moçambique onde desempenhou funções de guarda-marinho....

 − ...numa lancha de fiscalização grande ou numa corveta, que eu de marinha (e de tropa) sou um zero à esquerda − atalhou, de pronto, o Belmiro

− A imagem que eu tenho dele era o do moço de forcados, jaqueta bem apertada, calça à boca de sina, como se usava naquete tempo, pegador de touros, marialva, “bon vivant”...

− Bom garfo, melhor copo, garanhão, mas… mau cavaleiro! Não tinha jeito nenhum para montar, até eu, que não tinha cavalos, montava melhor do que ele…

− Mas valente como ninguém na cara dos touros... Enfim, é o lídimo representante de uma geração que está a desaparecer.

− Inteiramente justo o que dizes, Tony.

− Como sabes, Belmiro, eu nunca fui amante da festa brava, que continua a ter muitos aficionados na nossa terra, em todo o nosso Ribatejo e o nosso Alentejo. Devo ser, nesse como noutros capítulos da nossa gesta heróica,  a ovelha ranhosa cá da terra... 

− Eu sei, Tony, os amigos não têm que ter todas as afinidades. Como eu gosto de dizer, no círculo estreito da amizade,  cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... E as touradas (e já agora a bola, a política e a igreja) são algumas delas...

− Sim, coisas que nos podem separar, a política, a religião, o futebol, os touros e o sexo…, o que no cômputo final representa 99% das nossas conversas de machos…

− Mete aí também o tempo, passamos a vida a falar do tempo que faz, ora sol ora chuva, ora calor ora frio... É um dos desportos favoritos da nossa gente. Mas isso é inócuo, é conversa da treta... De qualquer modo, o Zé tinha outras vivências e origens sociofamiliares. Os touros, o fado, os cavalos, o marialvismo, a boémia... eram coisas que ele tinha bebido no leite materno,..

− ... ou que estavam nos genes do pai. De qualquer modo, vai-nos fazer falta, o Zé, a todos nós – lamenta, com tristeza,  o António.

− Vai fazer falta à terra, ao grupo de forcados, à festa brava, à malta que gosta do fado e sobretudo à família e aos amigos. Era um coração aberto, generoso como poucos…

Fez-se um silêncio, entre ambos, sentados, ali num  murete do cemitério, a "relembrar os bons velhos tempos", em que havia "três amigos, três destinos" (título da letra de um velho fado, que o Zé Nuno tocava e cantava com muita piada). 

− Deixa cá ver se me lembro da primeira quadra... Três  amigos, três destinos / Que o Diabo moldou /, No Tejo os batizou, / Para sempre, três meninos"...

O Belmiro continuou a conversa:

− Sabes, fico sempre jeito, nestas ocasiões. Eu que tenho a mania que falo bem, e de improviso, com tantos anos de barra nos tribunais, nunca encontro as palavras certas para consolar a família e os amigos mais íntimos... Sim, o Zé era o mais afável de todos os nossos amigos de infância, e se calhar o melhor de todos nós. Aquelas mãos brutas e aqueles braços compridos de pegador de touros, e sobretudo aqueles dedos mágicos de dedilhar a guitarra,  também sabiam dar afagos e chicorações, como ninguém… Era uma joia de moço, um encanto...


E esclarece:

− Foi meu companheiro de caça durante muitos anos, se bem que a política nos tenha afastado um bocado, 
antes e depois do 25 de Abril. Ele teve dificuldade em lidar e aceitar o meu esquerdismo dos verdes anos... Eu nessa altura era, como sabes, um maosta  intratável, arrogante, convencido...(e perdi amigos por isso).

Foi também para Lisboa, estudar, o Zé Nuno...

− ...Mas raramente nos encontrávamos lá, eu em direito, ele em engenharia... Sei que o seu sonho era ir para o curso de regentes agrícolas em Santarém, ficava ao pé de casa, tinha lá amigos do grupo de forcados... Mas o pai, homem conservador, autoritário, achava que seria borga a mais... De resto, o irmão mais velho,  é que começou cedo a tomar conta da herdade. (Dizia que não tinha cabeça para estudar.)

− Autoritário e mulherengo, o pai, acrescenta aí. Nunca foi pessoa, aliás, das minhas relações – arrematou o Tony. 

− Infelizmente, a casa agrícola, outrora próspera, prestigiada, com tradições monárquicas, com criação de cavalos e de gado bravo, 
está de pantanas, hipotecada aos bancos... Confirma-se a velha teoria de que em três ou quatro gerações dá-se cabo do  património de uma empresa, neste caso agrícola, que chegou a ser uma das maiores e melhores da nossa região.

− Há aí uma espécie de sina ou  anátema da História... Sei pouco da saga tumultuosa  da família, mas contava-me o meu avò, que era republicano dos quatro costados, que um dos antepassados do Zé Nuno, talvez o pai do trisavô,  teria sido um dos campinos que montou a guarda de honra ao Dom Miguel, na sua entrada triunfal em Lisboa após a vilafrancada (em 1823).. 

− Nunca lhe ouvi contar essa história... Mas, na verdade, o irmão, o "morgado", era Miguel. (Também já lá estána terra da verdade ...)

− Mera coincidência ou talvez não... Sabes que os portugueses são maus alunos em História...  Quando dava aulas (já estou reformado), punha os meus alunos a escrever a história da família, paravam logo nos avós que já mal conheceram... Era gente humilde, no geral...  Os pobres encolhem os ombros, acham que têm pouco ou nada para contar...

− De qualquer modo, costuma-se dizer "coitado é de quem cá fica", refiro-me em concreto à viúva, que encontrei, ontem, no velório, lavada em lágrimas... Era uma miúda muito gira, talvez a mais bonita da terra. Destroçou corações...

− Disso já não me lembro, Belmiro. É bastante mais nova do que nós, e eu mal a conheço. 

Para o Belmiro, o advogado, estes não eram tempos bons para um gajo bater a bota e deixar a família em maus lençóis.

−  Sabes que o Zé tinha casado tarde, ficara solteirão até aos quarenta, mantendo uma tradição que remontava até ao bisavô, contemporâneo e condiscípulo,  em Coimbra,  do nosso José Relvas, ali da Golegã. (Nunca foram amigos, um era monárquico,  o outro republicano.)... 
E, ao que sei, deixa ainda um filho a estudar na universidade. E outro com problemas de saúde mental, creio que é bipolar...

 −  Enfim, Belmiro, essa é a desvantagem de se viver num vilória como a nossa: não há vida privada – concluiu o Tony. – Vai parar tudo à praça pública, até os segredos de padre no confessionário e do médico no consultório...

E prosseguiu:

− Belmiro, o que a gente sabe é que o raio da gadanha da morte não escolhe idade nem condição, ceifa o pobre, ceifa rico, o jovem e o velho, o homem e a mulher, o ganhão e o latifunidário... Também não já não me lembrava que ele tinha passado por África, pela guerra colonial…

O António tinha perdido o contacto com a malta do seu tempo, da escola primária e do colégio, os que ficaram pela terra e sobretudo os que partiram... E foram muitos, não só para a França e a Alemanha, como antes para o Novo Mundo (Brasil, EUA, Canadá)... Um ou outro fixou-se em Angola e Moçambique, depois de terminado a comissão de serviço militar. 

− Além da grande Lisboa, os felizardos, como tu e o Zé, que tiveram a possibilidade de prosseguir os seus estudos… E de ter direito a férias de praia, no verão. 

−  O que foste agora buscar agora, a  nossa época balnear!...Tu, na praia de São Pedro de Moel, e eu na  praia da Vieira, da arraia-miúda! ....

− Ias de bicicleta visitar-me. Que inveja, os meus pais não me davam essa liberdade.. Mas gostavam muito de ti e sabiam que tu eras de famílias honradas e sobretudo uma "boa companhia"...

O Tony estudara até ao antigo 5º ano do liceu no antigo  colégio particular da terra;  com grande sacrifício do pai, que tinha uma pequena oficina de serralharia.

Depois, aos 16 anos, tinha tido uma “crise mística” e decidiu ir para o seminário. Fez a filosofia e parte da teologia, envolvendo-se no 10º ano com um grupo da JUC – Juventude Universitária Católica que, na associação de estudantes da Faculdade de Letras,  tirava a “stencil” uns panfletos contra a guerra colonial

Um dia um pequeno grupo foi apanhado pela PSP a deixar "papéis subversivos" na estação de metro  e no interir das carruagens, a horas mortas... A PIDE tomou conta da ocorrência.

… As mensagens eram "pacifistas",  o que não  livrou o Tony, já "quase padreco"(sic), de passar uma noite na António Maria Cardoso, juntamente com mais dois ou três rapazes do grupo da JUC. O caso chegou aos ouvidos do Patriarcado de Lisboa e foi comunicado ao seminário dos Olivais. 

O silêncio da Igreja em relação à guerra colonial e aos católicos presos por "motivos políticos" levaram o Tony a questionar a sua vocação sacerdotal. Saiu do seminário, aos 21 anos, zangado com  Deus e com os homens...E aos 22 estava em Mafra a fazer a recruta. Escassos meses depois era mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, como alferes miliciano de infantaria, para uma companhia de caçadores, independente, composta por praças do recrutamento local.

***

− O Zé!... Éramos vizinhos da Rua do Colete Encarnado, na encosta das ruínas do castelo, eu na parte de cima, a dos pobres, e ele, na parte de baixo, a dos ricos... As nossas famílias não eram chegadas, naturalmente, não conviviam... Só eu ia lá, à sua casa, aliás um casarão do séc. XVIII, fria e desconfortável, mas descomunal para um miúdo da minha idade...

O Tony alongou-se depois com memórias sobre a família do Zé Nuno e a sua: 

− Como sabes, os teres e os haveres aproximam as pessoas, a pobreza, mesmo honrada, afasta-as. O pai dele era um senhor lavrador, um agrário, o meu, um serralheiro, pequeno patrão, que mal ganhava para ele e o seus dois ou três empregados.

− Enfim, encontravam-se, ao menos,  na missa, ao domingo. Na igreja, lá éramos todos iguais, irmãos em Cristo....

−  Cá fora, bom dia e boa tarde, entre dentes.! .. Uma vez por outra era preciso ir à quinta fazer uns trabalhinhos de soldadura, arranjar as cercas e os portões… Ah!, e havia o futebol, chegaram a jogar juntos, quando novos, cá no clube da terra… E, julgo eu, foram condiscípulos, andaram na mesma escola, na mesma turma. De resto, tudo os separava. Nunca se tratavam por tu... 

Só depois do 25 de Abril, é que se atenuaram algumas diferenças sociais entre os ribatejanos do burgo... como de resto aconteceu, de norte a sul do país...

O Belmiro não quis pegar neste assunto das diferenças de classe das famílias de uns e outros, e chamou a atenção do amigo para o que se passara na missa de corpo presente:

− Repara, António, que até o padre estava embatocado… Não é costume ele mostrar as suas emoções nestas cerimónias fúnebres… Sei que ele era muito amigo do Zé!...

− Meu caro dr. Belmiro Mateus, ilustre advogado da nossa praça, parece-me que Deus tem andado ultimamente distraído... Bolas, a morte tem levado alguns dos melhores filhos da nossa terra… Para mais, católicos, apostólicos, romanos...

− Não vais sem resposta, António Mota, Deus não precisa de advogado de defesa, e muito menos dos serviços de um pobre advogado como eu... Mas também é verdade que Deus tem as costas largas.

O António Mota, ex-crente, ex-seminarista, professor de história do ensino secundário, reformado, que se refugiara no seu monte alentejano, em plena terra de mouros, não quis ser indelicado para com o seu amigo, mas pensou, com os seus botões, como dava jeito ter uma bode expiatório para todos os males da humanidade... Na cultura judaico-cristã, era o maldito pecado original.

− Sim, Deus tem as costas largas... Mas, já agora, acrescenta a crise, se me permites... Tanto à esquerda como à direita, a crise tem sido usada, "ad nauseam", para explicar tudo e mais um par de botas... Dá jeito, como o fetichismo dos números redondos, das estatísticas, dos gráficos, das folhas de excel… para os nossos demagogos parlamentares e para os nossos jornalistas incultos… Mente-se com números, temos uma grave problema de inumeracia…

− O quê ?...

− Iliteracia numérica, incapacidade para ler e interpretar números… Vejo o que se passa com as redes sociais: as pessoas "emprenham", já não é só pelos ouvidos, é também pelos olhos, pelo que leem, veem e ouvem...

− Tony, a minha racionalidade não chega a tanto, ou melhor, acaba aqui, não sou um homem das ciências duras, há coisas que não sei compreender e muito menos explicar (e no íntimo não quero saber)... Vou ter que viver com o absurdo do mal, a matança dos inocentes, etc... Sei que infelizmente  já não és crente e estás-me a avaliar como aos teus alunos de liceu...

−... e às alunas, de alto a baixo!

− Não sejas ordinário, Tony, não te conheço essa faceta!... De resto, sempre fomos o cão e o gato, na escola, no recreio , no colégio, nos acampamentos de escuteiros… Era a competição e eu conhecia o teu ponto fraco, os teus limites… Sabia até onde podia provocar-te, sem te agredir. Por isso sempre fomos bons amigos... Até hoje! É verdade ?

− Eu sei, e estou-te grato, Belmiro. Mas, respondendo agora à tua observação, devo dizer-te que a minha fé, de menino e moço, não resistiu à dura prova da realidade, à medida que me fui tornando homem e conhecendo o mundo… A descoberta, tardia, aos 16 anos, da minha vocação sacerdotal, o "chamamento de Deus", o "calling", como dizem os ingleses, se calhar não foi mais do que uma forma de fugir desta terra, que se tornara para mim claustrofóbica…

− Pois, eu também já tive as minhas crises de fé, os meus altos e baixos… Para mim, a última coisa a perder não é a fé, mas a esperança. Também estive fora, como tu, mas sempre determinado a voltar na melhor ocasião. Ainda passei uns anos pelos Açores, onde a minha mulher, que era de lá, foi notária,  antes de decidirmo-nos, já com filhos, de voltar às minhas origens... E aqui estou na minha, nossa, bela terra… É aqui que eu tenho o meu doce lar, os parentes, os amigos, o horizonte largo da lezíria… Sabes, as ilhas, sim, são claustrofóbicas. E eu seria incapaz de viver e trabalhar num navio como o Zé Nuno... (Se tivesse que ir à tropa, oferecia-me para a Força Aérea.)

− Fico feliz por ti e pela terra que se calhar não te merece… Mas, olha-me à volta, para cá caminhamos, para este lugar sombrio, mesmo que o sol lhe bata todas as tardes, como hoje… Mesmo soalheira, há de ser a nossa última morada, também…

− Já cá estão os nossos pais, tios, avós, bisavós... Lembras-te, vieste cá, em 1998, ao enterro do meu pai... Fiquei muito sensibilizado com o teu gesto solidário...

− E agora é a rapaziada do nosso tempo... Por mim, ainda não sei onde vou deixar os meus ossos ou cinzas. Já pedi para ser cremado, espero que os meus filhos e netos respeitem a minha última vontade!

− Tony, olha que não é bem assim… Se tiveres o azar de ir parar à morgue, à medicina legal, estás tramado, só com ordem de um juiz é que podes ser cremado!

− Não acredito!... Mas também já me disseram isso. Afinal, um homem não é dono do seu corpo.

− Ah!, pois não, Tony, nem homem nem mulher… Como católico, sou contra a cremação, mas como jurista tenho que aceitar e respeitar as leis da República.

− Belmiro, no dia do Juízo Final, queres estar de corpo inteiro, na fila dos justos e dos eleitos…

− Não sou capaz de imaginar tal cena, mas acredito que esse dia, o fim do mundo, há de chegar!

− Espera, meu irmão, a morte é a derradeira prova de fogo de um homem!... Por mim, não quero ir para a "cova funda", para usar uma poderosa imagem poética do Bocage… Como um cão!... Quero lutar com ela, a senhora morte, até ao fim!... Como lutei na guerra, em África!

− Mas que raio de conversa, Tony!... Para o que nos devia de dar, dois velhos colegas de escola, dois meninos de coro, dois briosos escuteiros, falando do passado e da morte…

−... colegas de escola e dos escuteiros, sim!...

− … a falar do dia em que lá teremos que devolver a alma ao criador…

− A alma ?

− Sim, a máscara que nos foi emprestada!... Tenho uma teoria, a de que nada nos foi dado, muito menos a vida, é tudo emprestado, e vamos ter que prestar contas a alguém...

− Essa é uma metáfora, já os antigos egípcios acreditavam nisso… 

E, mudando de assunto, o Tony fez uma proposta ao amigo:

− E se fôssemos beber um copo, antes de eu me meter à estrada, que ainda tenho uns bons quilómetros  para fazer ?!… (E cada  menos gosto  de conduzir!...) Fico em Lisboa, esta noite… Falar da morte, e para mais num cemitério, faz-me securas na garganta. Mas, nos cemitérios, num raio de 500 metros, há sempre um tasco com o letreiro "À volta cá te espero"… Vamos lá dar de beber à dor, companheiro!

− Alinho, Tony, vamos lá!... Já perdi o dia todo, e não tenho cabeça para passar pelo escritório. Temos um tasco, aqui mesmo, a dois passos, nas traseiras do  largo da Misericórdia. O "Carpe Diem". É de um gajo castiço, poeta popular, o nosso Aleixo, eu chamo-lhe o António Aleixo do Ribatejo. Um bom sítio para se petiscar e beber um copo.

 (Continua)

© Luís Graça (2018).

Revisão: 3/2/2024

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25117: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19171: A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)



Luís Graça, Contuboel,  CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, julho de 1969

A Galeria dos Meus Heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)




− Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos andando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo.

Em muito pouco tempo, em escassas semanas, era a segunda vez que se encontravam, depois de longos anos sem se verem, o Belmiro Mateus, advogado, e o António Mota, professor de história do ensino secundário, dois conterrâneos agora separados pelo Tejo.

− Cada um para seu lado, Belmiro. O nascimento aproximou-nos, a vida ou a história afastou-nos. Bolas, e se éramos amigos de coração!

− Como irmãos, Tony, como irmãos!... É verdade, não se escolhe pai e mãe, e a terra natal é aquela que nos calha na rifa da sorte!

− ... aquela que nos calha na rifa da sorte, dizes bem!

Reencontravam-se agora no cemitério da terra natal, pela segunda vez em dois meses, o que queria dizer “por circunstâncias infelizes”. Desta vez, vinham acompanhar um amigo comum, o Zé Nuno, “até à sua última morada”.

− Que raio de sítio – pragejou o António – para o reencontro de dois velhos amigos, conterrâneos, vizinhos… e condiscípulos!

− E manos, acrescebta aí!

O Belmiro, ainda hoje supersticioso, confessou que, quando era novo, tinha um medo que se pelava de passar por aquelas bandas, sozinho, à noite, fora das muralhas que delimitavam o casco velho do antigo burgo medieval.

O cemitério tinha sido construído há cento e tal anos, no tempo do senhor Dom Luís de boa memória, e localizava-se no início da lezíria, que era o grande celeiros da vila ribatejana.

− À noite, só de pensar nos fogos fátuos, nas corujas, nas bruxas, nas almas penadas, nos lobisomens... ficava com os cabelos em pé!

− Eu, também, confesso, nessas coisas era um medricas… Mas, lembras-te, Belmiro ?!... As nossas patifarias, tais como caçar lagartos no muro do cemitério...


−... com anzóis de pesca e bocados de pão, embebidos em leite!... Para o que nos devia de dar!... Esses lagartos, hoje, foi espécie que desapareceu.

− Espera, não eram lagartos, eram sardões! Eram verdes, podiam medir um ou dois palmos.

O Belmiro lembrava-se que o bando de garotos de escola enfiava um laço à volta do pescoço do bicho, e com um cordão comprido passeavam-no pelas ruas e vielas da terra, metendo medo aos mais fracos, as crianças mais pequenas,as raparigas, as mulheres e os velhotes…


− Acho que éramos sádicos e cruéis como todos os miúdos na pré-puberdade, a aprender a ser machos!

− Mas, já agora, Belmiro, acrescenta ao rol dos nossos crimes de malvadez partir os vitrais da rosácea da velha igreja matriz… À pedrada, imagina!

− Se me lembro, Tony, ainda hoje carrego essa culpa, por crime de lesa-património. Bolas, era (e é) uma magnífica igreja, gótica, monumento nacional, um lugar sagrado, a casa de Deus!... Que estupores!... Meninos de coro e escuteiros, ainda por cima. E, tens razão, era a casa de Deus!

− Se bem que fechada ao culto, na altura estava para obras, com andaimes...

E aqui o Belmiro reconstituiu a cena do grupo de “peles vermelhas”, ululantes, montados nos seus cavalos de cabo de vassoura, comandados pelo grande chefe “Língua de Víbora”, um primo mais velho do António, que há-de, logo a seguir, em meados dos anos 50,  emigrar com a família para o Canadá.


− Montados em cavalos de cabo de vassoura, como os das bruxas,  e disparando saraivadas de setas com arcos de pau de tramagueira!...

− Mas que terrorista,  esse meu primo, filho de uns tios-avós. O gajo safou-se, mesmo a tempo, de ir parar mais tarde, com os quatro costados à Índia ou a até a Angola...

O “Língua de Víbora”!... O Tony nunca conhecera, no seu tempo de escola, miúdo mais endiabrado, mal educado, traquinas, se não mesmo mau e perverso, como o seu primo em segundo grau.

A alcunha cabia-lhe que nem uma luva, tinha-lhe sido dada, ninguém sabe por quem, devido às patifarias que ele pregava e sobretudo às asneiras que ele deitava pela boca fora. Todos os palavrões que o Tony sabia (e que usou pela vida fora...) tinha-os aprendido com o primo, mais velho uns três ou quatro anos... Era expulso com frequência da escola e da catequese pela sua insolência e má-criação. E, no entanto, a mãe era uma santa senhora, daquelas que iam à missinha todos os dias. O pai, pelo contrário, era um carroceiro.

− Mas, sabes, eu tenho saudades dele e do nosso bando de "índios" – atalhou o Belmiro. – Dele e toda essa malta, rapazes e raparigas que fizeram parte da nossa infância e que, já em plenos  anos 50, começaram ir-se embora, uma parte deles para o Brasil, a América, o Canadá!...

− Cá tens, o exemplo de um mau líder de grupo que faz maus rapazes. O "Língua de Víbora", há séculos que não sei dele, espero que não se tenha perdido no Novo Mundo… Oxalá ainda esteja vivo!

− Ficas a saber, Tony, que eu nunca tive a coragem de confessar ao padre frei Batista esse grave pecado, o de atirar pedras aos vitrais da igreja. Para mim, puto, era um pecadilho, daqueles que não dava condenação ao inferno, apenas simples castigo no purgatório.

E foi logo recordado por ambos os amigos a figura do bom frei Batista, mais tarde missionário, franciscano, barbaramente assassinado,  a golpe de catana, em março de 1961, no norte de Angola.

− Que raio de memórias, fomos buscar!... Mas, voltando ao que aqui nos traz hoje, o doloroso dever de homenagear o nosso já saudoso amigo Zé…

− Já se foi, António, já aqui está na terra da verdade… Horrível, um cancro, fulminante, que em poucos meses o levou…

− É tramado, Belmiro… Um rapaz da nossa geração, da nossa colheita...

O Zé Nuno era ligeiramente mais velho, uma meia dúzia de meses, que o Tony e o Belmiro. Fez o antigo curso de engenharia técnica em Lisboa e depois alistou-se na Marinha. Ficou na Reserva Naval e foi mobilizado para Moçambique onde desempenhou funções de imediato de uma orveta da Marinha.

− A imagem que eu tenho dele era o moço de forcados, rijo pegador de touros, marialva, “bon vivant”...

− Bom garfo, melhor copo, mas… mau cavaleiro! Não tinha jeito nenhum para montar, até eu, que não tinha cavalos, montava melhor do que ele…

− Mas valente como ninguém na cara dos touros... Enfim, é o lídimo representante de uma geração que está a desaparecer.

− Inteiramente justo o que dizes, Tony.

− Como sabes, Belmiro, eu nunca fui amante da festa brava, que continua a ter muitos aficionados na nossa terra, em todo o nosso Ribatejo e o nosso Alentejo.

− Eu sei, Tony, os amigos não têm que ter todas as afinidades. Como eu gosto de dizer, no círculo estreito da amizade cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... E as touradas (e já agora a bola e a política) são algumas delas...

− Sim, Coisas que nos podem separar, a política, a religião, o futebol…, o que no cômputo final representa 90% das nossas conversas de machos…

− Mete aí também o tempo, passamos a vida a falar do tempo que faz, ora sol ora chuva, ora calor ora frio... Mas isso é inócuo, é conversa da treta... De qualquer modo, o Zé tinha outras vivências e origens sociofamiliares. Os touros, o fado, os cavalos, o marialvismo, a boémia... eram coisas que ele tinha bebido no leite materno...

− ... e que estavam nos genes do pai. De qualquer modo, vai-nos fazer falta, o Zé, a todos nós – lamenta o António.

− Vai fazer falta à terra, ao grupo de forcados, à festa brava, à malta que gosta do fado e sobretudo à família e aos amigos. Era um coração aberto, generoso como poucos…

Fez-se um silêncio, entre ambos, sentados, ali no muro do cemitério, a "relembrar os bons velhos tempos"... O Belmiro continuou a conversa:

− Sabes, fico sempre jeito, nestas ocasiões. Eu que tenho a mania que falo bem, e de improviso, com tantos anos de barra nos tribunais, nunca encontro as palavras certas para consolar a família e os amigos mais íntimos... Sim, o Zé era o mais afável de todos os nossos amigos de infância, e se calhar o melhor de todos nós. Aquelas mãos brutas e aqueles braços compridos de pegador de touros, e sobretudo aqueles dedos mágicos de dedilhar a guitarra,  também sabiam dar afagos e xicorações, como ninguém… Era uma joia de moço, um encanto...


E esclarece:

− Foi meu companheiro de caça durante muitos anos, se bem que a política nos tenha afastado um pouco, antes e depois do 25 de Abril. Ele teve dificuldade em lidar e aceitar o meu esquerdismo dos verdes anos... Foi também para Lisboa, estudar, mas raramente nos encontrávamos lá, eu em direito, ele em engenharia... Sei que o seu sonho era ir para o curso de regentes agrícolas em Santarém, tinha lá amigos do grupo de forcados... Mas o pai, homem autoritário, achava que seria borga a mais... De resto, o irmão mais velho, o "Morgadinho", é que começou cedo a tomar conta da herdade. Dizia que não tinha cabeça para estudar...

− Autoritário e mulherengo, o pai, acrescenta aí. Nunca foi, aliás, das minhas relações – arrematou o Tony.

− Infelizmente, a casa agrícola, outrora próspera, prestigiada, com tradições republicanas, está de pantanas, hipotecada aos bancos... Confirma-se a velha teoria de que em três gerações dá-se cabo do  património de uma empresa, neste caso agrícola, uma das maiores e melhores do nosso concelho.

− Olha, costuma-se dizer "coitado é de quem cá fica", refiro-me em concreto à viúva, que encontrei, ontem, no velório, lavada em lágrimas...

− Era uma miúda muito gira, talvez a mais bonita da terra. Destroçou corações...

− Disso já não me lembro, Belmiro. É bastante mais nova do que nós, e eu mal a conheço.

Para o Belmiro, o advogado, estes não eram tempos bons para um gajo bater a bota e deixar a família em maus lençóis.

O Zé tinha casado tarde, ficou solteirão até aos quarenta, mantendo uma tradição que remontava até ao bisavô, republicano, amigo e admirador do José Relvas, da Golegã.

− E, ao que sei, deixa ainda um filho a estudar em Coimbra. E outro com problemas de saúde mental, creio que é bipolar.

− A desvantagem de se viver num vilória como a nossa: não há vida privada – concluiu o Tony. 
– Vai parar tudo à praça pública, até os segredos de padre no confessionário e do clínico no consultório...

E prosseguiu:

− O raio da gadanha da morte não escolhe idade nem condição, ceifa o pobre, ceifa rico, o jovem e o velho, o homem e a mulher… Também não sabia que ele tinha passado por África, pela guerra colonial…

O António tinha perdido o contacto com a malta do seu tempo, da escola primária Conde de Ferreira e do colégio João XXIII, os que ficaram pela terra e sobretudo os que partiram... E foram muitos, não só para a França e a Alemanha, como até para o Novo Mundo (Brasil, EUA, Canadá)... Um ou outro fixou-se em Angola e Moçambique, depois de terminado a comissão de serviço militar.

− Além da grande Lisboa, os felizardos, como tu e o Zé, que tiveram possibilidade de prosseguir os seus estudos…


O António, Tony para os amigos da terra, estudara até ao 5º ano do liceu no colégio João XXIII, com grande sacrifício do pai, que tinha uma pequena oficina de serralharia. 

Depois, aos 16 anos, tinha tido uma “crise mística” e decidiu ir para o seminário. Fez a filosofia e parte da teologia, envolvendo-se no 10º ano com um grupo da JUC – Juventude Universitária Católica que, na associação de estudantes,  tirava a “stencil” uns panfletos contra a guerra colonial. 

Numa noite, foi apanhado pela PSP a colar "papéis subversivos" nos candeeiros, junto às esplanadas dos cafés da Avenida de Roma... Terá havido uma denúncia de algum empregado mais zeloso da propriedade alheia ou, o que era mais provável,  de algum bufo da PIDE… As mensagens eram "pacifistas", o que não  livrou o Tony, já "quase padreco"(siv), de passar uma noite na António Maria Cardoso, juntamente com mais dois ou três rapazes do grupo da JUC. O caso chegou aos ouvidos do Patriarcado de Lisboa e foi comunicado ao seminário dos Olivais. 

O silêncio da Igreja em relação à guerra colonial e aos católicos presos por "motivos políticos" levaram o Tony a questionar a sua vocação. Saiu do seminário, aos 20 anos. E aos 21 estava em Mafra a fazer a recruta. Escassos meses depois era mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, como alferes miliciano de infantaria, para uma companhia de caçadores, independente, composta por praças do recrutamento local.


 [Continua]