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sábado, 27 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24344: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVIII: Na 1ª fase da instruçáo da 2ª CCmds Africanos, fomos atacados em Candamã como se fôssemos do PAIGC...


Guiné > s/l > s/d > O furriel graduado 'comando' Cicri Vieira a cumprimentar o Major Raul Folques, comandante do Batalhão de Comandos da Guiné (no período de 28jul73 a 30abr74) (O major Raul Folques sucedeu ao major Almeida Bruno). (Foto publicada no livro, na pág. 197).



Guiné  > Zona Leste >  Sector L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) >  Forças da CCAÇ 12, a descansar na Ponte dos Fulas (sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal), por ocasião de uma coluna logística Bambadinca - Xitole (Xitole era a unidade de quadrícula, do Setor L1, mais a sul; era a sede da CART 2716, em 1970/72).

Perspetiva: norte-sul, quando se vem de Bambadinca e Mansambo para Xitole e Saltinho.  A ponte, em madeira, de construção ainda relativamente recente e em bom estado, era vital para as ligações de Bambadinca e Mansambo  com o Xitole, o Saltinho e Galomaro... A ponte era defendida por um 1 Gr Comb do Xitole, em permanência, dia e noite... Na foto sãos visíveis, em segundo plano à esquerda, o fortim; em terceiro plano, ao fundo, à direita, as demais instalações do destacamento. Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote, facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanbos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVII:

Atacados em Candamã como se fôssemos do PAIGC 
(pp. 195-200)

Em Tite, oito dias depois (*), embarcámos com o pessoal seleccionado para a 2ª CCmds, com destino a Fá Mandinga, para dar início ao curso que iria durar seis meses.

Foi muito duro, terminou com uma prova individual duríssima. Começámos a 2ª parte do curso com a formação das equipas e depois seguiu-se a técnica de combate. Alterámos os horários, o dia passou para a noite e a noite passou para o dia. Começávamos a instrução às 19h00, que era a hora do pequeno-almoço, almoçávamos à 01h00 e jantávamos às 06h00 e a seguir deitávamo-nos no dia seguinte. Era uma semana maluca, diziam alguns.

Num desses dias saímos das viaturas na estrada de Bambadinca para o Xitole. Cinco grupos largados à distância, mais ou menos de três quilómetros uns dos outros, todos com o mesmo objectivo. Tinham-nos sido dados os azimutes para a nossa orientação e, mesmo assim, tivemos muitas dificuldades. A mata tinha um tipo de espinhas que eu nunca tinha visto. Agarravam-se ao camuflado e só saíam à faca. Saímos de lá com os camuflados todos cortados. Até fomos atacados por um civil da tabanca, em auto-defesa, de Candamã [1].

Homens que estavam a trabalhar na monda dos campos de arroz, a que nós na Guiné chamamos lugares de pampam[2], avistaram-nos e como, entre nós, não havia nem um branco, pensaram que éramos do PAIGC e fugiram para a tabanca, a avisar os milícias que a tabanca ia ser atacada. Depois começámos a ser flagelados com tiroteio e não podíamos responder.

Nós sabíamos quem eles eram, mas eles não sabiam que nós também estávamos do lado deles. Como a mata não nos deixava entrar, continuámos a contornar a campada[3] de arroz até que conseguimos deitar a mão a um homem que conhecia um dos nossos cabos monitores, o Califa Embaló, que estava à espera de ser graduado em furriel no final do curso. Convencemo-lo a dirigir-se à tabanca e avisar os milícias que nós éramos de Fá Mandinga e que nos estávamos a dirigir para a ponte do rio Pulom. Cerca de 15 minutos depois, fomos no caminho dele, até à tabanca, que estava vedada com arame farpado.

Quando chegámos, vimos que à volta da tabanca havia uma vala com abrigos que até podiam servir para armas pesadas e toda a população estava lá metida. Quando entrámos não cumprimentámos nem falámos com ninguém, continuámos a andar até sairmos pelo outro lado da tabanca, que ficava a leste da povoação. Seguimos então na direcção do nosso objectivo, a ponte do Pulon e as tabancas de Fulamori, Dulogenjele, Guerleje e Polo, que era o objectivo final. Na ordem de missão não devíamos nem podíamos tocar em nenhuma das tabancas.

Durante o trajecto, o furriel Cicri Marques Vieira informou pelo rádio que tinha chegado a Dulogengele e que ele e o Vasconcelos tinham reunido toda a população e que não havia problemas. Eu e o furriel Sada Candé só chegámos ao pôr-do-sol e encontrámo-nos todos em Bamtabá. Quando estávamos sentados, a descansar, vi umas casas cobertas com capim, à moda Futa-Fula e disse para o Sada Candé:

– Aquelas palhotas ali parecem de patrícios meus. Vou lá ver se me arranjam um local para as minhas orações.

Sada Candé quis ir também e quando lá chegámos ouvi um velhote perguntar a alguém se todos tinham ido e ouvi também esse alguém responder que sim.

–  Olha, Sada, estamos tramados. Fugiram todos para Galomaro. E agora? Temos que saber quantos fugiram e para onde foram.

Em passo rápido para a palhota, cumprimentei o velhote, ele respondeu com consideração, e eu perguntei-lhe:

–  As populações fugiram?

–  Mandámos mulheres e crianças passarem a noite em Galomaro.

–  Porquê?

– Porque não temos confiança no homem que se reuniu convosco. Tem barba muito grande!

O velhote estava a referir-se ao Furriel Cicri Vieira. Pedimos a um rapaz, que estava à nossa beira com uma bicicleta, que fosse atrás dos fugitivos e lhes dissesse para regressarem, que não havia perigo nenhum.

De madrugada, retomámos a marcha com destino ao nosso objectivo, que atingimos às 06h45, quase ao mesmo tempo que o capitão Miquelina Simões e o tenente Oliveira. E às 07h30 iniciámos as provas de equipas que terminaram já passavam das 20h30.

Mais dura foi a semana a seguir. Iniciámos a instrução colectiva, por grupos, que durou poucos dias e depois começámos[4] o treino operacional.

Saímos de Fá Mandinga, depois do pequeno-almoço em direcção ao Xime e atravessámos o rio Geba. Toda a companhia estava na outra margem por voltas das 13h00. Dali seguimos para o Enxalé.

Os comandantes dos grupos, todos furriéis, entraram na sala de operações, juntamente com o capitão, comandante da companhia[5] dos europeus do pelotão destacado no Enxalé, para consultarem os mapas da zona.

Saímos de Enxalé à tarde e caminhámos durante toda a noite, até de manhã. A marcha decorreu sem problemas, sem qualquer contacto com o IN. Quando atingimos o objectivo informámos, por rádio, que já lá estávamos. Então, recebemos ordem para retirar.

Foi uma retirada penosa. Estávamos com fome, com sede e com sono, a chuva miudinha não parava de cair. Só atingimos o Enxalé por volta das 16h00. Atingimos o porto às 18h00, estava a maré baixa. Não podíamos estar ali muito tempo, a maré cheia estava prevista para as 22, 23h00. Como continuava a chover, e estávamos cheios de frio, decidimos meter-nos na água e atravessar o rio, ao encontro das viaturas que nos aguardavam na outra margem.

Tirámos a roupa toda e enfiámo-nos no lodo, a rastejar. No meio do rio, vi-me atolado, quase sem me pode mexer. As lágrimas caíam-me pela cara abaixo, misturadas com a água da chuva, que nunca parou de cair. Finalmente, com muito custo, cheguei à outra margem, já passava das 18h00.

Na berma da estrada tinha uma enorme corrente de água da chuva a correr para o Geba. A tremer, com as lágrimas ainda a caírem-me pela cara, meti-me na corrente da água. Depois de tirar o lodo do corpo, vesti a farda encharcada. Uma mulher da minha etnia, que morava ao pé, convidou-me a ir aquecer-me à varanda da casa dela, enquanto o resto do pessoal não acabasse de atravessar o rio.

–  Meu furriel, vá lá, porque tem uma corrente de ar forte, fica seco num instante  –  disse-me um condutor.

Fui com a mulher. Tinha uma fogueira acesa, deu-me uma cadeira e estive ali a aquecer-me até que ouvi chamarem pelo meu nome para entrarmos para as viaturas. Vinte e tal quilómetros até Fá Mandinga, em viaturas sem capota, com a corrente de ar durante toda a viagem.

Quando cheguei, mandei um condutor chamar o enfermeiro, o Domingos Lourenço Fernandes, conhecido por Dundo Fernandes. Vesti umas calças e uma camisola, secas, e enfiei-me na cama com duas mantas em cima de mim. Quando Dundo chegou, aplicou-me duas injecções e deu-me três comprimidos para engolir.

Durante minutos, tapado com as mantas, senti calor, transpirei até que já não aguentava mais a roupa em cima.

Ainda antes da meia-noite, entrou no quarto um furriel europeu, que me acordou e disse que o capitão Miquelina Simões queria falar comigo.

–  Estou doente, pá!

–  É melhor ires falar com ele, parece que o teu grupo vai sair esta noite ainda!

Vesti-me e lá fui ter com o comandante, ao bar.

–  Desculpa, Amadu, esqueci-me de te dizer que vais sair esta noite. Devias estar em Bambadinca à meia-noite, mas vais na mesma, prepara o teu grupo o mais depressa possível.

Dei dez minutos ao grupo para se preparar. Com o grupo formado, conferi se estavam todos, o capitão passou revista, estava tudo em ordem e mandei-os subir para as viaturas. Ainda não era meia-noite, quando arrancámos para Bambadinca e, quando lá chegámos, passavam 20 da meia-noite.

Depois de consultar o mapa e inteirado da missão, pusemo-nos a caminho. Foi toda a noite a andar, até de manhã, sempre a chover, tudo bolanhas cheias. Chegámos ao rio, e tivemos que o atravessar para o outro lado. Demorou cerca de uma hora a travessia, depois entrámos numa área cultivada de milho. Fomos andando até às 11h00, atingimos um local, onde, conforme o estabelecido, entrei em contacto rádio e ficámos a aguardar nova ordem.

Entretanto fomos comendo qualquer coisa, que tínhamos levado connosco, e aí pelas 15h00, apareceu uma avioneta a sobrevoar a zona. Estava à nossa procura. Com o rádio ligado, pediram a nossa localização, estendemos telas e deram-nos ordem para nos mantermos naquele local.

Eram para aí 20h00 recebemos a indicação para atravessarmos o rio e para progredirmos até junto do objectivo, onde deveríamos permanecer, até nova indicação. A grande dificuldade foi atravessar o rio. Estava uma noite completamente escura, a ponte era de paus, a corrente era muito forte e no outro lado estava a mata densa. Agarrados uns aos outros pela cintura, demorou horas a travessia do grupo. Na outra margem fizemos um alto. Por volta das 04h00, retomámos a marcha com todo o cuidado, sempre com a companhia da chuva, até que por volta das 05h30 executámos o “golpe de mão”.

Após o golpe de mão simulado, rumámos para a estrada Bambadinca-Xitole e em Demba Juli apanhámos uma coluna que nos levou para Fá. 

Foram quatro dias sem qualquer ração quente e com paludismo.
_____________

Notas do autor e do editor literário:

[1] Nota do editor: no subsector atribuído à CArt 2714 de Mansambo. [No livro, o topónimo está mal grafado: é Candamã, e não Gandamã. (LG)]

[2] Lavra de arroz no mato. O mato é cortado, primeiro, a seguir é queimado e, quando chove, lança-se o arroz e pega-se no covadouro, para se infiltrar melhor no solo.

[3] Campo lavrado.

[4] Nota do editor: em 10 Setembro de 1971.

[5] Nota do editor: CArt 2715 / BArt 2917

[Seleção / Revisão e fixação de texto /  Subtítulo / LG]
___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24337: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI: 16 de abril de 1971, um dia trágico, a morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929 - Tite, 1971)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12106: Estórias avulsas (69): Em memória do meu amigo Mamadú, pescador do Xitole, que pescava no Rio Pulom (Jorge Silva, ex-fur mil, CART 2716, Xitole, 1971/72)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) > Forças da CCAÇ 12, a descansar na Ponte dos Fulas (sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal), por ocasião de uma coluna logística Bambadinca - Xitole (Xitole era a unidade de quadrícula, do Setor L1, mais a sul; era a sede da CART 2716, em 1970/72).

Perspetiva: norte-sul, quando se vem de Bambadinca e Mansambo para Xitole e Saltinho.  A ponte, em madeira, de construção ainda relativamente recente e em bom estado, era vital para as ligações de Bambadinca e Mansambo  com o Xitole, o Saltinho e Galomaro... A ponte era defendida por um 1 Gr Comb do Xitole, em permanência, dia e noite... Na foto sãos visíveis, em segundo plano à esquerda, o fortim; em terceiro plano, ao fundo, à direita, as demais instalações do destacamento.

Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom. Perspetiva: sul-norte. A coluna logística, vinda do Xitole, regressa a Bambadinca, deixando atrás o destacamento da Ponte dos Fulas. Foto do álbum de Humberto Reis, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Humbero Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]

1. Mensagem do Jorge Silva  (que entrou para a Tabanca Grande em 23/8/2010; de rendição individual, esteve na Guiné entre 1/5/71 e 24/04/73, tendo passado pela CART 2716 e pelo BENG 447)


Luís Graça,

Um abraço e parabéns pelo óptimo trabalho que tens produzido no blogue que, cada vez mais, agrega ex-combatentes.

Baseado na realidade que vivi no Xitole, produzi um texto cujo tema reputo de interesse e que publiquei, em 28 de setembro último, no blogue da CART 2616.

Se o pretenderes divulgar e te der mais jeito em pdf, anexo-o neste formato.

Jorge Silva
ex-Fur Mil,
CART 2716 (Xitole,1971-72)
e BENG 447 (Bissau 1972/73)





Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Carta do Xime (1955) / Escala 1/50 mil > Subsetor do Xitolke > Posição relativa da Ponte dos Fulas sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal... Ficava na estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho... A oeste, o triângulo Galo Corubal / Satecuta / Seco Braima, controlado pelo PAIGC.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013).


2. Em memória do meu amigo Mamadú, pescador do Xitole

por Jorge Silva

A expressão raças humanas (branca, negra, etc.) resulta de um conceito antropológico antigo e ultrapassado, cada vez mais em desuso, embora o racismo continue a ser uma infeliz e nociva realidade.

Creio que em vez dessa divisão por raças em função da cor da pele devemos considerar, tão só, uma única raça: a raça humana.

Claro que há pessoas com cores de pele branca, negra, amarela e, até, vermelha. Tal como há pessoas que, apesar da cor da pele ser branca, têm olhos azuis, enquanto outros os têm verdes, ou castanhos, ou cinzentos, ou pretos... E há outras que sendo designadas por terem pele branca afinal têm-na muita morena (escura mesmo) e, a par disso, cabelos muito escuros (mesmo pretos), enquanto também as há de pele nitidamente branca e com cabelos loiros.

Hitler foi um verdadeiro e demoníaco “mestre” nestas distinções. E por isso tornou-se o primeiro responsável pelo genocídio de milhares e milhares de seres humanos, para além das nefastas consequências de uma guerra mundial que prejudicou de forma irreparável a humanidade. Hitler não quis ou não foi capaz de perceber que tal diversidade humana é um dom da natureza e uma mais valia da humanidade. E por isso procurou destruir a obra humana, criada pela própria natureza, cuja diversidade os homens se encarregaram de ir enriquecendo ao longo de milhares e milhares de anos.

Ao contrário de Hitler saibamos, pois, aproveitar a riqueza dessa diversidade. E para tal ultrapassemos preconceitos com mais informação válida e mais conhecimento, pois enquanto eles persistirem não seremos capazes de compreender as diversas realidades, costumes e culturas.

Eu tive a sorte de ter a oportunidade de poder começar a compreender as referidas diferenças a partir de 1971.

Com 22 anos fui para a Guiné (Xitole). Branco, e crescido no meio de brancos, fui conviver com negros. Católico,  fui para o meio de muçulmanos, de etnia Fula.

Tive lá um amigo especial, o pescador do Xitole que, na altura,  teria 40 e tal anos, mas que quando tinha apenas 15 anos foi levado de Dakar pelos franceses até Paris para, mesmo sendo menino, ser incorporado no exército francês e ser forçado a participar na última guerra mundial.

O pescador (que,  se a memória não me falha,  se chamava Mamadú), era um homem maduro, vivido e culto. Quando estive destacado na Ponte dos Fulas, juntamente com o David Guimarães, o pescador acompanhou-nos e, com excepção dos fins de semana, em que ia para junto da família, permaneceu connosco cerca de um mês, para lançar as redes no Rio Pulom e capturar o peixe que nos saciou a fome.

Nas muitas conversas que tive com o Mamadú, um dia perguntei-lhe porque é que os homens do Xitole passavam os dias sentados na aldeia enquanto as mulheres se entregavam à vida dura da agricultura, inclusive com filhos às costas e outros a seu lado. E, soltando o que me ia na mente, perguntei-lhe porque é que tais homens não ajudavam as mulheres nos trabalhos agrícolas e, ainda de forma mais directa, se tal se deveria ao facto de esses homens não gostarem de trabalhar...

O meu amigo pescador captou-me o preconceito e,  com imensa calma, feita de muita sabedoria, o Mamadú perguntou-me se na minha terra (Porto) eu encerava o chão, lavava a louça, lavava a roupa à mão, estendia a roupa para secar, passava a roupa a ferro, etc., etc.

Estávamos em 1972 e, também por preconceitos, tudo isso era, inquestionavelmente, trabalho de mulher. De tal modo que qualquer homem que assumisse a realização dessas tarefas seria alvo de epítetos nada abonatórios nem desejáveis.

Naturalmente respondi-lhe que não, o que correspondia à verdade. Mas mesmo que assim não fosse ter-lhe-ia dito na mesma que não. Com um sorriso amigo e de compreensão ele explicou-me que lá no Xitole as coisas também funcionavam de idêntico modo, pois trabalhar a terra era serviço exclusivo de mulher, pelo que se algum homem fosse ajudar a mulher a trabalhar a terra perderia a consideração e o respeito da aldeia.

E, completando a lição, o Mamadú explicou-me que os Fulas eram comerciantes por natureza, pelo que estavam sentados à espera que a guerra acabasse para, sem correrem perigos, poderem trilhar as matas, de aldeia em aldeia,  com a mercadoria às costas, para comercializarem os seus produtos e sustentarem a família.

Percebi, então, que esses amigos Fulas do Xitole não eram malandros. A guerra é que o era. De tal forma que nem sequer os deixava trabalhar.

Aprendi, então, que não devia avaliar os outros à luz da minha cultura e dos meus valores e muito menos com a mente envenenada por preconceitos. O meu amigo Mamadú, pescador do Xitole, ensinou-me isso e muitas coisas mais. E com isso ajudou-me a crescer e a ser homem.


Há pouco tempo informaram-me que ele já teria falecido, o que muito lamento. Evoco-o deste modo, cumprindo uma obrigação que tinha para com esse amigo, já que deixei passar a oportunidade de, olhos nos olhos, lhe agradecer o quanto me ensinou, com uma paciência, uma maturidade e uma humildade difíceis de igualar, a atestar que tive o ensejo de ter estado diante de um homem culto e bom de pele negra.Obrigado, Mamadú, velho pescador do Xitole. E, apesar de ser católico,  desejo que Alá te guarde.

Jorge Silva [, foto à esquerda, do tempo da CART 2716, Xitole, 1971/72]




Página do blogue da CART 2716 (Xitole, 1970/72), Amigos do Xitole,  criada e administrada pelo Jorge Silva
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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12105: Estórias avulsas (68): Do meu Álbum de Fotos sobre Galomaro 2 (José Ribeiro)