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quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15299: Selfies / autorretratos (4): quem vê caras, (nem sempre) vê corações (Torcato Mendonça, ex-alf mil art, CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69)



Foto nº 1 



Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4




Foto nº 5



Foto nº 6



Foto nº 7




Foto nº 8




Foto nº 9



Foto nº 10


Foto nº 11



Foto nº 12


Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) >  Fotos do álbum do Torcato Mendonça, coleção "Fotos Falantes II".

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados Edição: LG]


1. Selfie é uma palavra que entrou há tempo no nosso vocabulário... Resulta da junção do substantivo self (em inglês "eu", "o próprio") e o sufixo ie. Designa  um tipo de fotografia de autorretrato, normalmente tirada com uma câmara digital de mão ou telemóvel com câmara. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013 pelo Oxford English Dictionary. Tornou-se "viral", como muitas outras modas... 

Em 2014 demos iníício a uma série chamada "selfies / autorretratos". Não teve muito sucesso. Publicámos até agora três. O Vasco Pires deu o pontapé de saída... No nosso tempo, na Guiné, não havia tempo nem pachorra para a gente de se ver ao espelho, quanto mais tirar uma "selfie"!... Um ou outro de nós tinha máquina fotográfica ou fotógrafo de serviço (que ganhava algum patacão tirando "chapas" ao pessoal), pelo que até há algumas belíssimas fotos e alguns bons álbuns fotográficos... 

É material, de grande interesse documental, não só para alimentar e desenvolver as nossas memórias como para enriquecer o acervo dos que hão de fazer, com rigor, honestidade, isenção e objetividade, a história daquele período de Portugal (bem como da Guiné-Bissau)... 

Enfim, a par das nossas memórias escritas, é um material  que andamos, há anos, desde pelo menos 2004,  a tentar salvar das garras do esquecimento, do  abandono, da destruição, dos alfarrabistas, da incineradora e do caixote do lixo...

Um desses álbuns, que veio enriquecer a fototeca da Tabanca Grande é o do Torcato Mendonça, ex-alf mil art, CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), senador da nossa tertúçia, e uma dos mais ativos e produtivos colaboradores do nosso blogue (com cerca de 240 referências). É também, de há muito, um dos nossos conselheiros e colaboradores permanentes.

Nos últimos anos, porém, e até por razões de saúde, o Torcato Mendonça tem andado muito mais discreto, remetendo-se ao silêncio, ou intervindo uma vez por outra com um breve comentário. Sei que ele continua nosso fiel leitor. Respeito o seu silêncio, mas fico feliz sempre que o vejo vir à janela da sua morança...(Desculpem a metáfora: a Tabanca Grande não tem, propositadamente, portas e janelas).

Há muitos camaradas, mais novos, "periquitos" no blogue, que não puderam na devida altura acompanhar a sua vasta produção (postes, fotos, comentários), sempre de grande qualidade. São hoje uma referência incontornável...

Sabemos que não é "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre as "questões do foro íntimo", "ver-se ao espelho", e devolver, sob a forma de escrita, os seus "selfies", os seus "autorretratos... Ou partilhar fotos mais íntimas, retratos em grande plano, que mandávamos às esposas,  às namoradas, aos pais, à família, às madrinhas de guerra... DE um modo geral, preferimos as fotos de grupo... Estamos a falar dos nossos "verdes anos", à distância de meio século..

De qualquer modo, e de acordo com o subtítulo deste poste, quem vê caras, (nem sempre) vê corações... Daí a razão de ser  desta seleção de retratos do nosso querido amigo e camarada que vive no Fundão. São da da sua coleção "Fotos Falantes II"... A numeração, arbitrária, é nossa. Bem como a sau edição... E intencionalmente não lhe acrescentámos legendas... Fica o desafio para os nossos leitores... (LG)


O nosso "senador" no Fundão, em 2007. Foto de LG.
2. Excerto de um depoimento do Torcato Mendonça, publicado em 28/2/2015:

(...) "Sim, mudei muito"!  Digo-te porquê. Antes de ser militar, fui estudante e nalguns intervalos fiz 'diversos'. Caçado, sem esperar, pela tropa, aí talvez na especialidade comecei a sofrer uma metamorfose. Aos poucos, e já mais na Guiné, o rapaz alegre e 'bon vivant' foi-se ou, porque não, apagou-se mesmo. (...)

Quando vim, nada ou muito pouco restava do outro. Deram-me várias opções de escolha de vida.

Fui sentindo os anos passarem por mim, os meus filhos crescendo. A guerra estava guardada e, de quando em vez, saltitava para o presente e depois de amansada ia-se. Tratava-a com cuidado e sentia que nunca mais voltara de todo, em grande parte talvez. Nem isso. Fisicamente fui envelhecendo, como é natural. Apressado por “aquilo” e pelas cicatrizes físicas.

Optei, já o tinha feito em parte, e deixei a adaptação correr. O meu mentor, o meu companheiro- amigo, esse meu melhor amigo, esse homem que me deu o ser e muito saber, um dia morreu-me. Chorei nesse dia e compreendi que ainda sabia chorar. Mas tinha mudado muito.

Mais forte, a parte psicológica foi de certeza a de estabilização mais difícil. Nunca estabilizará. Por isso hoje, velho aos 70 anos, com a saúde (ou falta dela) a mostrar os rombos na carcaça nada tem a ver com a hipotética entrada normal na velhice. (...)

_______________

Nota do editor:

Ùltimos postes da série:

30 de setembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav,

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...



Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Junho de 1969 > O fur mil armas pes inf Luís Manuel da Graça Henriques, CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Fotos e texto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.


Luís (*):

Eu tinha nascido no ano zero. 1945.
Lembro-me de teres escrito isso,
muitos anos depois, 
no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... 
Lembras-te, em 1965 ?!... 
Ainda pensámos em dar o salto até Paris, 
éramos vagamente existencialistas, 
anticolonialistas 
e anti-imperialistas, 
eu sonhava com Montmarte,
a boémia
e as copines das belas artes
(o meu lado mulherengo!),
enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!...
Tinhas a mania da filosofia e eu da pintura...
Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta 
a financiar este inconsistente projecto de aventura.
Tu eras mais politizado 
e, sobretudo, mais realista do que eu:
– E os nossos pais ?
E a PIDE (, mais tarde DGS) à perna ?
E a Guardia Civil antes de chegares aos Pirinéus?
E os dez contos de réis para dares ao passador ?
E vais fazer o quê, em Paris ?
Trabalhar como maçon ?
E dormir no bidonville ?
E comer baguetes com marmelada ?

1945… 
Ano zero da idade atómica, 
escreveste tu no catálogo do SNI.
Hiroshima. 
O cogumelo. 
O horror. 
Mas também o fim da guerra. 
Libération!, proclamavam, eufóricos,  os franceses. 
O fim do pesadelo da ocupação nazi. 
O direito à esperança,
em toda a parte, incluindo a nossa terra.
O recomeço da humanidade… 
As palavras continuam a ser tuas,
que sempre tiveste muito mais jeito para a escrita do que eu,
e vinham no meu catálogo 
que até estava bonito,
não estava ?! ... 

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, 
o fim de uma época, o início de outra… 
Que ilusão, meu amigo, 
tu que me chamavas o Renoir de Montemuro… 
só por que eu andava no 1º ano das Belas Artes
e fazia umas coisas démodées,
vagamente impressionistas,
já a caminho do abstracionismo... 
Enfim, aprendiz de Renoir, 
talvez imitador da Vieira da Silva,
de que só conhecia umas reproduções de má qualidade.
Ainda ganhei uns tostões com serigrafias,
havia gentinha com dinheiro fresco
que comprava tudo...

Na minha cédula pessoal, 
um nota a lápis já meio sumida,
letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre 
ou de conservador do registo civil...
Qualquer coisa como 
mais uma boca com direito a senha de racionamento. 
Milho, açúcar, farinha, azeite… 
Havia racionamento de géneros por causa da guerra, 
a II Guerra Mundial. 
Lembras-te ? 
Talvez não,
nasceste depois, já em 47,
na Lourinhã (, se bem me lembro,)
já não apanhaste esses tempos que foram duros 
para os nossos pais e irmãos mais velhos.

Nesse mesmo ano e mês em que nasci, 
acabava de regressar da Índia 
(da Índia portuguesa, como então se dizia, 
englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) 
o filho do francês
o cabo chefe da aldeia 
e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 
Tinha uma pensão do ministério da guerra,
fora gaseado na Flandres, 
regressara tuberculoso e herói de La Lys. 
Admirava o Pétain, o Franco e o Salazar. 
Vociferava contra  a malta do reviralho,
os que eram contra a situação, como então se dizia. 

Era meu padrinho.
Por favores que lhe deviam 
(e deferências que lhe prestavam) 
os meus pais, 
nunca soube quais, 
nem nunca quis saber. 
Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, 
passei a detestar as relações de clientelismo e dependência 
que vigoravam na minha aldeia. 
Na minha aldeia da Serra de Montemuro, 
uma aldeia de pastores 
que não era muito diferente de tantas tabancas fulas 
que depois irei conhecer na Guiné, no Gabu… 
Ainda hás-de visitar a minha aldeia, 
num próximo verão em que fores lá cima ao Norte… 
Em agosto, no teu querido mês de agosto,
como tu lhe chamas,
num escrito, algures, que eu li no teu blogue…
Mas já nada tem a ver 
com a aldeida da minha infância
nem com as invernias agrestes daquele tempo.

Havia sempre festa na aldeia 
quando um filho regressava das colónias, 
mais tarde, do Ultramar. 
No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. 
Quando puto, imagina, 
ainda sonhei ser missionário, 
e ajudar a converter os pretinhos 
lá nas missões de Além-Mar. 
Problemas de pulmões impediram-me de seguir 
essa vocação precoce...
Estás-me a imaginar de sotaina branca
e longas barbas pretas,
não estás ?! 
E acabar, santo e mártir,
frito no caldeirão de uma tribo de canibais!... 
Ah! Como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!…
Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça,
por certo o padre da freguesia, a catequista ou a professora...
Mas a serra de Montemuro,
Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire, Lamego,
deu muita gente para as colónias 
e depois para a guerra,
mas também para a emigração.

Em 45,  os tempos ainda eram bem duros, 
escondia-se, dos fiscais do Governo, 
na serra, nas minas,
o milho, os cabritos e os anhos,
como sempre se escondera
de todos os invasores e usurpadores. 
Isso contavam os meus pais. 
Mesmo assim fazia-se festa rija. 
O foguetório não era como hoje, 
nesse tempo era um luxo. 
Lançavam-se uns petardos, 
de pólvora seca,
não havia dinheiro para mais nada. 
Só no São João,
era a altura em que se fazia algum dinheirito. 
Os cabritos e os anhos do São João
ajudavam a compor o tísico orçamento das gentes da minha aldeia. 
Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro, 
ou até nos barcos rabelos, 
embarcados no ancoradouro de Porto Antigo,
à boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido.
Ainda não havia as barragens, 
e o Douro era belo, puro, duro e selvagem… 
Hoje está completamente amansado.

O francês, meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. 
Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. 
Negociante de gado ou, melhor, intermediário.
Antes disso, ganhara muito dinheiro
no garimpo e no contrabando do volfrâmio,
com um sócio de Moncorvo,
seu antigo camarada de armas,
também "francês". 
Era, além disso, o dono da única mercearia da aldeia, 
com um anexo, misto de café e tasco, 
onde se podia ouvir a Emissora Nacional, 
através do único rádio existente ali e nas redondezas… 
Enfim, uma espécie de rádio, uma galera… 
Ele era engenhocas. um homem de vida, 
e, sobretudo, dava-se bem com gente graúda: 
por exemplo, um tal major de Porto Antigo, 
que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto 
e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época. 
A esposa desse tal major mandava cartas ao Salazar, 
contava a minha mãe, sempre atenta a 
(mas não menos temerosa de) 
os fios com que se costurava o poder. 
Nem por isso o meu padrinho metera uma cunha 
para livrar o filho da tropa,
durante a II Guerra Mundial. 
O rapaz esteve em Goa, como expedicionário,
com muito orgulho do pai 
e maior mágoa da mãe.

Já doente, com setenta e muitos anos, 
o meu padrinho soube da minha partida para África,
em 1968,
depois de eu ter chumbado em Belas Artes.
Eu nunca lhe pedira nada,
e muito menos agora 
lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. 
Nem ele era homem
para aceitar um pedido desses, 
mais do que humilhante, 
inconcebível, para ambos.

Proibi, inclusive, os meus pais de o fazerem por mim. 
Tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada,
e da coerência, 
coisas que hoje não vejo ser valorizadas 
pelos mais novos, 
por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei, deficiente, no verão de 1970, 
já ele tinha acabado de morrer. 
Ele e o Salazar,
que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente,
mas de quem era um admirador completamente acrítico.
O seu maior desgosto na vida 
terá sido um dos netos 
que devia seguir as peugadas do pai, 
advogado no Porto, bem de vida. 
Numas férias de verão, em meados de 60,
o neto ficou em Londres, a lavar pratos,  
e em setembro estava na Suécia. 
Foi dado como refratário ou desertor, 
não te sei dizer ao certo, 
que eu de RDM fiquei farto até aos cabelos. 
Como estava a estudar na Faculdade de Direito,
em Coimbra, 
beneficiava do adiamento da data de incorporação,
tal como eu, de resto.
Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, 
até filho de general era mobilizado, diziam. 
Nunca conheci nenhum, 
nem general nem filho,
a não ser o Schulz e o Spínola,
mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa.
Imagino que, na pior das hipóteses, 
ficariam na guerra do ar condicionado: 
em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

O avô, pelo menos publicamente, 
viu na traição do neto uma desonra para a família,
e para a terra,
que ele,  abusivamente, considerava
uma extensão da família. 
Coimbra, a república dos estudantes, 
dera-lhe a volta à cabeça, lamentava-se. 
Para mais era o seu neto querido, 
o mais inteligente, 
o mais parecido com ele.
Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça
concluía o meu padrinho, 
quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
Sua bênção, padrinho!
foram as primeiras palavras que lhe disse, 
desde há anos… 
– Já o pai não prestava, 
era um fraco
arrematava ele, entre dois ataques de tosse. 
As melhoras, padrinho! – 
foram as últimas palavras que lhe dirigi… 
Julgo que eram sinceras, 
que nada tinham de cínico. 
Impressionou-me a sua decadência, 
a sua descida do pedestal, 
desgastado pela doença,
acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… 
A família a desmoronar-se,
o Salazar a morrer,
a Pátria a esvanecer,
a aldeia a minguar com a emigração… 
Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, 
que era para ele o coveiro do Estado Novo.
Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois,
respeitado mas não amado. 
Durante décadas fora pai, padrinho e patrão, 
um verdadeiro capo,  cabo chefe,
de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal…
Era um régulo, se quiseres...

Gustavo, o neto do meu padrinho, 
ainda me escrevera um dia para o meu SPM,
quando eu estava em Nova Lamego.
Éramos amigos, 
ou melhor, mais conterrâneos do que amigos, 
tínhamos brincado juntos, quando garotos, 
nas férias de verão. 
Havia aquela cumplicidade de putos,
pesem embora as diferenças sociais.
Estudara em colégio particular, 
vivia no Porto, na Foz, em zona fina, 
passava esporadicamente férias na aldeia. 
Agora, em Estocolmo, na Suécia, 
militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer 
e angariava dinheiro para o PAIGC. 
Dinheiro que tanto servia para comprar livros e medicamentos 
como armas e munições, questionava-me eu. 
Irritou-me a sua missiva, 
cheia de metáforas, 
clichés, 
prosápia,
slogans,
frases pomposas, 
retiradas do livrinho vermelho do camarada Mao 
(Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo)…

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC,
algo quixotescas,
guevaristas, 
desvaneceram-se 
com os imperativos da camaradagem na caserna 
e a prova de fogo na  frente de batalha. 
Não se podia objetivamente estar do lado de cá, 
fardado de camuflado,
e equipado com a G3,
a comandar 30 homens,
e ser-se um simpatizante, 
vagamente romântico, 
daqueles que nos combatiam,
de Kalash na mão
(e que nós combatíamos, objetivamente falando)… 
Além disso, chocavam-me os métodos de terror
usados pelo PAIGC 
contra os fulas, na zona leste.
Fiz alguns amigos guineenses,
quando passei pela região do Gabu,
em tabancas onde estive destacado
(Não me perguntes quais,
que os nomes varreram-se-me da memória)...

Nunca lhe respondi. 
Achava-o um puto mimado, burguês e provocador. 
Não me admirei de o vir a encontrar,
depois do 25 de Abril, 
num dos partidos do poder. 
Andará hoje  (ou andou) por Bruxelas,
segundo me disseram. 
Tinha-se casado com uma sueca, 
mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 
Secretamente, invejava-lhe a sorte, 
ele ali no bem bom da Suécia 
e das suecas louras, de olhos azuis,
que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos… 
e eu a gramar a pastilha
de uma comissão de serviço militar na Guiné. 
Achei que o mundo não era justo,
mas mesmo assim não me podia queixar,
estava vivo,
e os primeiros tempos, 
passados entre Bafatá e Nova Lamego,
até nem foram maus de todo. 
Ainda fiz o gosto ao dedo 
e pintei alguns quadros 
que até tiveram um ou outro comprador. 
Outros ofereci, 
a um família de comerciantes
cuja casa costumava frequentar,
e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. 
Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. 
Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta,
uma deceção...
Nunca me perdoei, de resto, ter chumbado nas Belas Artes
e de ter sido chamado para tropa...

Passei por uma crise existencial,
ou lá o que queiras chamar, não sou psicólogo,
ainda tive, uma vez, 
uma única vez, 
depois de ter despejado uma garrafa de uísque no bucho, 
a pistola Walther apontada ao céu da boca.
Senti a atração da morte, 
a vertigem do nada,
a comiseração da autodestruição,
a autopiedade...
Mas, mesmo anestesiado, 
era demasiado cobardolas para resolver, 
com um tiro mortal, 
as minhas contradições, 
pequeno-burguesas, dirias tu em 1965,
agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, 
que ainda tu ainda chegaste a conhecer, 
no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, 
a bela menina-família do Funchal, 
que estava a estudar serviço social, 
ali no Campo de Santana, em Lisboa, 
tinha-me trocado...
por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… 
Ainda trabalhara uns tempos,
na Misericórdia de Lisboa, 
num dos projectos de realojamento 
de população de um bairro de lata. 
Não esqueço a última carta que ela me mandou, 
de despedida. 
Era um encanto de miúda, 
delicadíssima, 
linda de morrer,
com pele de veludo e blusinhas de renda,
mas com pouca margem de decisão 
em relação à sua vida pessoal.

O clã é sempre quem mais ordena. 
O pai, tanto quanto percebi, 
era um homem do regime, 
da média burguesia funchalense, 
mas com problemas financeiros, 
por negócios mal sucedidos, 
na área do import-export, 
bananas, frutas tropicais, flores, ou coisa do género. 
Família numerosa, católica, um bando de filhos. 
Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora, 
nunca pensara, de resto, em pedir-lhe a mão, 
muito menos depois de conhecer o inferno na terra 
que foi a Guiné. 
Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão, 
achava-me no direito de a ter como namorada 
e madrinha de guerra e confidente...
Fui surpreendido 
quando um dos meus amigos do Funchal 
me veio lembrar que seria bom decidir-me, 
porque havia mais pretendentes na fila...
Foi um choque,
não estava preparado para tomar nenhuma decisão, 
muito menos para decidir 
quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 
Estava na Guiné,
estava na guerra,
a milhares quilómetros da minha terra,
sem saber o que fazer ao certo da minha vida… 
sem saber sequer se iria chegar à meta, 
que era cumprir a minha pena, de 21 meses, 
de “perigos e guerras esforçados, 
mais do que prometia a força humana”, 
a pena a que fora condenado 
sem ter cometido nenhum crime… 
a não ser o de ter nascido em 1945, em Montemuro...
No mínimo, queria chegar à meta,
inteiro, de cabeça, tronco e membros.
Ainda tentei telefonar-lhe,
dos correios de Nova Lamego,
horas a fio à espera por um ligação para Lisboa... 
Em vão. 
A chamada caiu, 
nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido 
com a minha noiva,
que afinal nunca o fora. 
Acabei, já em Lisboa, bancário,
por casar com uma galega de Orense, 
que nunca chegarás a conhecer, 
pela simples razão de que já fomos,  
cada um de nós,
à sua vida.
É apenas a mãe dos meus filhos.

Depois, meu amigo, 
veio o rol de desgraças que me aconteceram:
a descida aos infernos,
a cafrealização, à maneira do Rimbaud, 
a porrada do segundo comandante no Gabu,
a ida para o sul, 
de casttigo, em rendição individual,
a mina anticarro 
que me mandou, mais de um ano e tal, 
para o estaleiro,
com passagem pela Estrela, Alcoitão, Hamburgo.
Poupo-te os pormenores,
um dia contar-tos-ei,
se tiveres tempo e pachorra,
eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos
guardados no armário da minha memória…

Tentei esquecer a Guiné durante décadas,
(o que é difícil quando se tem uma prótese...)
até ao dia em que, 
não sei porquê, 
por mero acaso,
vi o teu nome na Net 
a tua cara, 
os teus óculos, 
vi o teu nome associado a Bambadinca, 
um dos poucos sítios,
de passagen obrigatória para malta do leste,
de que guardava algumas, poucas, boas memórias…
Reconheci-te, numa foto antiga,
sem barbas, 
em tronco nu,
de óculos esfumados,
a G3 ao ombro,
em pose turística...

Em suma, desencontrámo-nos na Guiné. 
Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado,
podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro,
em Bafatá,
onde devemos ter estado alguma vez,
no mesmo dia e hora,
embora em sítios diferentes.
Mas achei piada ao teu jogo de palavras,
no mail em que me respondeste ao meu olá:
“o Mundo é Pequeno 
e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te
para marcarmos um encontro
e matar saudades.
Preciso de ganhar coragem.
Confesso que tenho medo de revisitar o passado.
E por agora ando a recuperar o tempo perdido,
depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco.
Até lá, um alfabravo,
como vocês dizem,  
do tamanho do nosso Rio Geba.
Parabéns pelo teu blogue
de que sou apenas um fortuito visitante.

Assina este relambório
o teu falhado amigo pintor, 
e, pior do que isso,
frustrado companheiro da viagem a salto
até Paris, 
viagem que nunca passou de um devaneio
de umas tantas tardes de verão 
em que estivemos, juntos, em 1965, 
no SNI, o Secretariado Nacional de Informação,
ali no Palácio Foz,
a preparar uma exposição que foi a minha vernissage,
entre copos de ginjinha nos Restauradores. 

Teu F...
o Renoir de Montemuro.

PS – Nunca mais voltei aos Restauradores 
para beber uma ginjinha… 
E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para seu lado.. 
Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto,
quando voltar a Lisboa.
Afinal fiquei com uma boa pensão de DFA,
a par da  reforma do banco.

Nota de L.G.:

Ainda estou para beber a tal ginjinha,
prometida pelo meu amigo F...
Nunca mais deu sinal de vida, 
depois que falámos longamente ao telefone,
há uns anos atrás.
Deve ter mudado de mail e de telemóvel.
Sei que adora(va) viajar.
E que tem(tinha) um filho, 
casado, arquiteto, 
a viver nos arredores de Paris. (**)

Adaptação livre, fixação e revisão de texto: LG


______________

Notas do editor


(*) Último poste da série > 26 de setembro de  2014 > Guiné 63774 - P13654: Manuscritos(s) (Luís Graça) (39):Portugueses pocos, pero locos... Ou como vemos (e somos vistos por) os outros...O que fazer com tantos clichés, estereótipos e preconceitos idiotas ? E não se pode exterminá-los ?

(**) Vd. também os postes já publicados da série "Selfies / autorretratos":

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)

30 de setembro de 2014 >Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)

Tropa a bordo do navio Angra do Heroísmo
Foto de: © Manuel Passos

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Setembro de 2014:

Achando eu que o tema é merecedor do nosso melhor interesse e não querendo melindrar ninguém com as minhas opiniões sobre o assunto, deixo aqui a minha participação no tema aproveitando para saudar todos os camaradas e em especial o Vasco Pires e o Manuel Reis

Juvenal Amado


Um auto-retrato de soldado

Tinha eu saído da escola primária quando se deram os massacres da UPA sobre colonos e seus assalariados no Norte de Angola. Lembro-me bem do horror daquelas imagens que circularam meio à socapa e do medo que os jovens em idade militar, e alguns que já tinham o serviço obrigatório, de serem mobilizados, o que aconteceu a muitos.

Os acontecimentos provocaram uma onda de terror associada à ideia de vingança patriótica(*) que tais actos provocaram, porém não conheci ninguém que se tivesse sentido feliz por ir. Passados dez anos quando embarquei, também não conheci ninguém que não ficasse de boa vontade por cá a cumprir o serviço militar sem mais chatices, com férias e fins de semana em casa, mandando assim o espírito de missão ou mesmo de aventura, às urtigas.

Faço aqui um pequeno parênteses para mencionar as tropas especiais, que por serem voluntárias tinham outro espírito.

Ao contrário do que leio hoje, em especial nas redes sociais, faz-me querer que a vasta maioria escondeu na altura o seu patriotismo e seu fervoroso amor à Pátria e que passados 40/50 anos depois veio ao de cima, à medida que uns se calam ficamos com a ideia que a esmagadora maioria foi de bom grado e de livre vontade.

Lá diz no poema de Luís Vaz de Camões, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”.

Embarque do BCAÇ 3872, em Lisboa, no navio Angra do Heroísmo

O portugueses não eram o povo próspero nem feliz e a ideia de ir dar o corpo ao manifesto por um Portugal Ultramarino, para o qual não havia bilhete da carreira nem de comboio, sendo mesmo necessário uma carta de chamada para se poder ir para lá, por muito portuguesas que fossem essas terras, era uma coisa que pouca felicidade nos trazia. Por outras palavras, a carta de chamada para ir para uma terra que diziam nossa, era o que havia em comum com a nossa saída para qualquer país, por exemplo do continente americano. Até a moeda não tinha o mesmo cunho nem o mesmo valor.

Estou plenamente de acordo com o que o Luís Graça escreve no seu comentário e cito:(1)

As motivações para a saída em massa e ilegal (, "a salto",) são fáceis de perceber: o círculo vicioso a da pobreza, em Portugal, não poderia ser mantido mais tempo, com o "milagre económico europeu" à nossa porta... (Os "trinta gloriosos", as décadas de excecional desenvolvimento económico e social que a Europa conheceu, desde o pós-guerra até 1973)... Já [não] era preciso ir para o Brasil: a França e a Alemanha estavam ali, à nossa porta, ou pelo menos, a partir dos Pirenéus.

Acrescento que foi essa riqueza e bem-estar europeu, que permitiu ao governo português manter aquela guerra por tanto tempo.

Conheço quem fugiu à tropa por motivos económicos, quem fugiu por motivos políticos, mas também quem regressou para cumprir o serviço militar. Considero todos os motivos válidos e tomados por homens conscientes, não cabendo no meu vocabulário o termo cobardia para os que fugiram, nem de coragem e patriotismo para os que ficaram ou regressaram, direi simplesmente que uns e outros assumiram a situação de forma diferente.

Mesmo os que regressaram do estrangeiro para serem incorporados salvo excepções, fizeram-no para poderem regressar às suas aldeias e vilas sem serem incomodados pelo regime, circularem a partir daí livremente até para se irem embora para o País que antes os tinha acolhido, desde que sua a política fosse futebol, fado e Fátima, convém sublinhar.

João Caramba a bordo do Angra do Heroísmo, ao larga da Ilha da Madeira

Alguns apresentaram-se já fora da idade de incorporação normal, a julgar pela idade que tinham quando fizeram as respectivas recrutas e nos apareceram como rendições individuais nos destacamentos no mato. Regressaram da outra Europa livre e próspera, após indultos para refractários e possivelmente também para desertores, concedido por Marcelo Caetano se não estou em erro. Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses, a caminho de uma situação sem volta à vista, pois quem é que podia dizer quando a guerra acabava. Se acabasse com uma vitória das nossas forças, a situação de quem tinha fugido podia eternizar-se até ao dia que houvesse uma amnistia do regime, que se tornaria “rancoroso” para quem não tinha dado o corpo ao manifesto.

De França veio mesmo uma pessoa para me levar, o que chegou ao meu conhecimento quando já estava na tropa. Não fui tido nem achado na resolução final, e hoje penso que foi melhor assim.
Nessa altura tinha o meu irmão embarcado para Moçambique. O meu pai não querendo arriscar outro filho em tal missão, agiu assim em conformidade com muito do que pensava. Não fora a minha mãe que após muitas suplicas tais como, “que nunca mais o vemos se ele fugir”, “que ele pode ir para tropa e ter a sorte de ficar cá", “que se Deus quiser nada de mal lhe acontecerá”, eu teria mesmo ido para França e de certeza, não regressaria para ser incorporado para combater em tal guerra.

Todas essas súplicas e razões deram à minha mãe, como resultado, muitas noites de insónia, em que me via morto ou sem pernas, e que isso me tinha acontecido por causa de ela não me ter deixado ir para França.
De certo fez muitas promessas para eu regressar vivo e inteiro.
Felizmente para mim, para ela, voltei sem problemas e foi com enorme alegria que vi a guerra acabar dali a muito pouco tempo.

Não foi uma guerra mas muitas guerras, pois as condições alteravam-se como areia movediça. Quem embarcou em 1961, encontrou uma situação que rapidamente se transformou, de ano para ano, à medida que os movimentos passaram de aceso ódio tribal para nacionalismos militantes e exércitos de guerrilha organizados. O armamento também se modificou em quantidade e qualidade, pelo menos o do inimigo.

Quando falo com camaradas que estiveram na Guiné muito tempo antes de mim, não são poucas as vezes que me dizem “no meu tempo é que era, vocês foram uns lordes”. Depois lembro-me daquele tempo, dos anseios, das saudades, das noites acordado, do que vi, lembro os mortos, a violência a que estiveram sujeitos muitos destacamentos nos 28 meses que lá estive e fico a pensar se estamos a falar da mesma guerra.

Um abraço
Juvenal Amado

(*) Que deu em repressão violentíssima na Baixa de Cassange sobre população confinada que cinquenta anos antes (1911) tinha convertido, pela força, guerreiros orgulhosos em agricultores de algodão, humilhando-os na sua condição, daí em diante.
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Notas do editor

(1) Vd. poste de 22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

Último poste da série de 22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)

1. Comentário de Manuel Reis ao poste P13623


[, Foto á esquerda: Manuel Augusto Reis, em Guileje, 1973:  foi alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã, Colibuia, 25/10/72 - 27/8/1974]

Amigo e ex-camarada Vasco:

Abriste uma frente de diálogo bastante interessante e que o Luís com o seu saber deu uma ajuda suplementar.

Conheço o Vasco desde os tempos de escola, com um percurso um pouco idêntico, mas trilhando o mesmo caminho: colégio de Anadia e Universidade de Coimbra e,  imagine-se, ....Gadamael. 

Aproveito para lembrar o percurso dos meus familiares no que à guerra diz respeito. Meu avó (materno) foi mobilizado para a 1ª guerra mundial e participou na batalha de La LYs. Consegui ouvir algumas peripécias, dispersas, dos momentos difíceis, que teve de suportar, na sua qualidade de granadeiro. 

No seu regresso era um homem destroçado anímicamente. A minha presença na sala tornava-se incómoda, pelo que me era dada ordem de retirada.

Na casa dos meus avós vivia-se um ambiente republicano, sendo o meu bisavô, Pedro, meu grande amigo, constantemente perseguido. A maior parte das noites eram dormidas em palheiros, afastados da sua residência. Lamento que o diário do meu avó se tenha extraviado, a sua importância, para mim, era bastante significativa.

Seguiu-se o meu pai, que é mobilizado para alinhar na 2º guerra mundial, sendo enviado para Moçambique, durante 3 anos, onde supostamente se previa um desembarque de tropas japoneses. Nada faria supor esta mobilização do meu pai, recém- casado. Não sofreu os traumas da guerra, mas a ausência da família foi dura.

Poucos anos passados, face ás dificuldades económicas, o meu pai emigra para o Canadá onde permanece durante mais de 20 anos. No ano em que eu completava 17 anos e perante o espectro da guerra que pairava sobre a minha cabeça, desloca-se a Portugal e coloca-me a possibilidade de emigrar também. 

O meu pai, homem simples do campo, tem a noção e a preocupação de que a guerra me espera.Possibilita-me que decida .Estar-lhe-ei  eternamente grato. Acabei por recusar, via a guerra ainda muito longe, e com um percurso académico satisfatório, nada o aconselhava. 

A minha entrada na academia, e o meu envolvimento nas lutas académicas, rasgaram-me outros horizontes e quando decidi, contrariado, participar na guerra que já se vivia nas ex-colónias, sabia para o que ia. A decisão era sustentada no plano familiar, pois na qualidade de filho único, não imaginava um afastamento prolongado dos meus pais.

Um grande abraço.

Vasco,  as caçoilas estão prontas!

Manuel Reis

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Nota do editor;

Último poste da série > 22 e setembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)


Guiné > 1970 > Um "selfie" ("avant la lettre"...) do Vasco Pires, ex-al mil art,  cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72; bairradino, vive no Brasil desde que acabou a comissão de serviço no CTIG).

Observ.: Selfie - junção do substantivo self (em inglês "eu", "o próprio") e o sufixo ie. Ou selfy... É um tipo de fotografia de autorretrato,  normalmente tirada com uma câmara digital de mão ou telemóvel  com câmara. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013 pelo Oxford English Dictionary. Tornou-se "viral",  como muitas outras modas... Fonte: Adapt. de Wikipedia.


Foto: © Vasco Pires (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. O Vasco Pires foi quem deu o mote (*):


(...) Nesses tempos de "selfies" (neologismo que significa autorretrato), chamou minha atenção essa [minha] foto de 1970, poucos dias após a chegada à Guiné [, vd. foto acima].

Autorretrato acompanha a História da Humanidade, lembra Narciso,  filho de liríope, passa pela necessidade de autoconhecimento, até chegar na expressão dos modernistas angustiados.

Mas voltemos ao soldado, que parece perguntar:
- Como é que eu vim parar aqui?

É uma viagem à década de sessenta, jovens inexperientes, num país que se queria fechado ao mundo. Eu, particularmente, vinha da Bairrada profunda, de um grupo familiar que Gramsci apelidada "intelectuais rurais', logo por defenição conservadores, embora dela tenham saído alguns que ele chama de intelectuais urbanos.

Passando pelas escolas locais, cheguei na Academia Coimbrã em plena efervescência da segunda metade da década de 60, verdadeiro "ponto de clivagem", dos valores e hábitos Ocidentais (não vamos achar que somos o centro do Mundo, só porque assim fizemos como nosso mapa).
Um fervilhar de ideias, contestação dos valores tradicionais, onde poucos tinham uma visão cosmopolita.

Na época, muitos devem lembrar, a figura do "passador", que mediante determinada quantia, fazia chegar as pessoas, além Pirenéus.

Pois, tinha um que era amigo da família, pai de um amigo, e que trabalhava em parceria com um frade (não sei se este o fazia por dinheiro ou convicção), eu tinha também, grande parte da família do outro lado do Atlântico. Assim, com essa facilidade, eu, que jamais pensei que a missão era "dilatar a fé e o império", nunca me passou pela ideia de usar os seus serviços, ou me reunir aos parentes. Penso, talvez, que não queria romper com os valores culturais em que estava inserido.
Contudo, "nesta altura do campeonato", não é mais relevante. Alguns de nós foram à guerra por convicção, outros movidos pela propaganda, muitos por inércia, e alguns outros com receio de enfrentar usos e costumes estrangeiros.

2. Comentário do nosso editor Luís Graça [ex-fur mil, armas pes inf, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71]  (*)

(...) "Alguns de nós foram à guerra por convicção, outros movidos pela propaganda, muitos por inércia, e alguns outros com receio de enfrentar usos e costumes estrangeiros". (..:)

Vasco, lusitano da diáspora que estás sempre a lembrar as tuas raízes bairradinas... e respiras portugalidade por todos os poros... Dava uma série, para o nosso blogue, o feliz título que tu escolheste: "autorretrato de um soldado"...

No fundo, a questão que pões é: "por que é que eu fui p'rá guerra"...

Questão provocatória, incómoda, ou até absurda ?... Alguns camaradas nossos poderão achar que sim... Se a "pátria" te chama, só tens que responder com prontidão... Não foi sempre assim ao longo da nossa história ?... Se calhar não foi sempre assim... A história da nossa pátria está longe de ser um "livro aberto" e ter uma única leitura...

Sabe-se que de 1946 a 1973, dois milhões de portugueses sairam da sua terra, e quase metade (45%), em plena guerra colonial, só no curto período de 1966 a 1973... A maioria em idade ativa e jovem... E muitos deles, portanto, terão sido refratários...

Como alguém disse, o Estado Novo e as suas políticas (incluindo a guerra colonial) foram plebiscitadas pelos portugueses "com os pés"...

As motivações para a saída em massa e ilegal (, "a salto",) são fáceis de perceber: o círculo viciosoa da pobreza, em Portugal, não poderia ser mantido mais tempo, com o "milagre económico europeu" à nossa porta... (Os "trinta gloriosos", as décadas de excecional desenvolvimento económico e social que a Europa conheceu, desde o pós-guerra até 1973)... Já não  era preciso ir para o Brasil: a França e a Alemanha estavam ali, à nossa porta, ou pelo menos, a partir dos Pirinéus...

Muitos jovens da nossa geração emigraram, não tanto para fugir à guerra colonail, mas por razões "económicas" (, digamos assim, para simplificar)... E outros (e se calhar muitos) fizeram a guerra para ter direito a um passaporte e poder emigrar (ou passear pelo estrangeiro, estudar, etc.) legalmente...

Lutámos em África também para ter direito a um pátria... De certo modo, foi o teu caso, o meu, e de muitos outros de nós que fizemos a tropa e a a guerra...

Não sei, não temos suficiente evidência empírica sobre esta questão... Cada um, portanto, só poderá falar de si e por si....

Sinto, no entanto, que é não "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre estas "questões do foro íntimo"... Para mais, à distãncia de meio século...

No passado, quando jovens, reagíamos com o corpo inteiro (cabeça, coração, estômago, hormonas, braços e pernas, o chamado "sangue na guelra"...). Hoje tenderemos a "racionalizar" e a "idealizar" as "escolhas" que fizemos no passado (e que estavam longe de serem inteiramente livres...).

Um alfabravo verde-rubro do tamanho do Atãntico que nos separa e que, ao mesmo tempo, nos une... Luís. 


3. Comentário de Francisco Baptista [ex-alf mil inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72)] (*):

Amigo Vasco:

O meu percurso é parecido com o teu. sendo eu natural do nordeste transmontano, filho de lavradores ilustrados para o tempo e região, tinham a quarta classe.
Nesses tempos, excluindo os da capital eramos quase todos provincianos, eu influenciado por algumas leituras, não abençoadas pelo regime, pois por falta de meios financeiros, não fui para a faculdade, deixei que me levassem para a Guiné, por inércia, por outros medos e porque tinha 5 irmãos mais novos que precisavam da minha ajuda. (...)

4. Comentário de José Manel Matos Dinis [ex-fur mil, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71]


Olá, Vasco,

A mesma frase que lança o Luís em comentário, pode ser acrescida de outras controversas condições: para além da veneração à pátria, e da aceitação das atribuições dela decorrentes, também a transigência aos costumes, e o medo da perseguição e discriminação pessoal e familiar eram condicionantes influentes na decisão de ir à guerra. Se podemos considerar decisão, face ao estatuto de passividade existente.

Eu nem me questionei muito. Se fugisse, nem sabia bem para onde, pois uma paixoneta ou outra em Inglaterra não seriam garantia de nada. Por outro lado, cedo comecei a preparar-me mentalmente para a sorte ou o azar de ir batê-las em África, e fui sem custo especial.

O comentário do Luís tem a virtude de alongar o nosso raio de pensamento sobre a questão, e de nos fazer confrontar, 40/50 anos depois, com o estado de espírito da época.

Ele tem uma interrogação pertinente, "não foi sempre assim ao longo da nossa história?"

Pois a minha resposta é que não sei, em primeiro lugar, porque a história está mal contada, em segundo, porque ao longo do tempo muitos foram arrebanhados para diferentes campanhas, sempre ao serviço dos poderosos, que evitavam a valorização do povo para dele disporem melhor. Ainda é assim. (...)

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