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sábado, 18 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24862: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (129): O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
Antes de entrar no Convento da Cortiça procurei ler ao pormenor o plano de restauros e intervenções de que este magnífico espaço é alvo. O convento viveu um período de abandono que permitiu o vandalismo e alguma pilhagem, a despeito da rusticidade do espaço. A empresa responsável, digo-o com admiração, cuida primorosamente do convento e anexos, há mesmo voluntários a trabalhar nas hortas; desapareceram imagens, a inclemência do tempo e da natureza vão exigir mais restauros, mas não se pode percorrer este lugar sem sentir que houve aqui uma espiritualidade que atraiu homens a uma vida de despojamento e entrega a Deus, orando e subsistindo, seguramente contemplando com êxtase as belezas da serra, construíndo habilidosamente uma harmonia de materiais em que a cortiça, o madeirame e as pedreiras convergiram num diálogo que é impossível não maravilhar quem por aqui passa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (129):
O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (2)


Mário Beja Santos

Aqui se conclui a visita ao Convento da Cortiça, promessa concretizada de D. Álvaro de Castro para homenagear a simplicidade cristã, o despojamento, num contexto de ordem freirática e na linha dos ideais de S. Bento, reza e trabalha, vive alheado das vaidades do mundo. O local escolhido para implantar este convento quinhentista é quase um achado, já vimos o uso apurado da pedra em diálogo com a cortiça, seguimos da entrada para a igreja e percorremos até aos dormitórios, mostram-se agora imagens desta austeridade de vida, percorre-se espaços da organização conventual, caso da cozinha e refeitório, a enfermaria, o forno e o celeiro.

Há décadas que este espaço me impressiona, de tal modo que um dia, no mercado de Santa Clara, em plena Feira da Ladra, na loja do meu amigo Eduardo Martinho, um vendedor exigente de livros e de arte, encontrei este quadro a óleo que mostra um dos aspetos mais cativantes daquela vida conventual. Na ausência de um claustro, que seguramente a Ordem não prescrevia, temos belos pontos de ligação à volta de uma fonte. O óleo veio assinado, assinatura não identificada, é de alguém que seguramente cultivava o uso da espátula e das camadas grossas, torcendo e retorcendo para que tudo ficasse bem claro. Quando abro a porta de casa, é sempre um prazer olhar para cima e cumprimentar esta singeleza conventual da serra de Sintra.

Pormenores dos dormitórios, na segunda imagem não terei dificuldade em reconhecer que há um assento para contemplar a paisagem e especulo se o outro cubículo não seria um pobre guarda-roupa dos poucos trastes que os frades possuíam.
As imagens acima têm a ver com a cozinha e o refeitório, áreas funcionais bem demarcadas: o fogão, sob a grande chaminé, e o lavadouro, sob a janela que abre para o Claustro. No dia 3 de maio, dia de Santa Cruz, havia peregrinos que acorriam ao convento, traziam donativos que chegavam a incluir carne, que os frades comiam apenas duas vezes por ano: no Natal e na Páscoa, para cumprirem o ritual cristão. No refeitório, os frades comiam sentados no chão, com o prato sobre os joelhos. Mais tarde, o cardeal D. Henrique ofereceu-lhes uma pedra, mandada arrancar da serra propositadamente para este efeito. Vê-se inicialmente a sala do refeitório, seguem-se imagens com aspetos da cozinha e não resisti a registar o belo teto em cortiça das instalações.
Passei a correr pela Sala do Capítulo, local de reunião da comunidade e também espaço de confissão. Havia ali um nicho com a imagem de Nossa Senhora das Dores. O que mais me chamou a atenção foi esta pia-fonte, seguramente quando estiver bem restaurada maravilhará o mais indiferente dos visitantes.
Estamos agora no Átrio das Enfermarias, quando adoeciam, os frades beneficiavam de maior conforto. Nas enfermarias usavam camas, havia uma botica onde se guardavam medicamentos e roupas de cama e também onde dormia o frade responsável pelos enfermos. Junto a esta, existe um pequeno braseiro para aquecer águas, chás medicinais e queimar ervas aromáticas. Neste espaço havia a cela de penitência, para recolhimento e meditação, era escura, aqui apenas era necessário a luz interior para fazer esplender a fé.
Pormenor de um corredor com luz para o exterior
Cela do doente
Mais um pormenor de quarto de enfermaria com a natureza ao fundo
Pormenor de janela com a serra de Sintra à espreita
Claustro do Convento da Cortiça já intervencionado na nova etapa de restauros, fechei os olhos para recordar o quadro que guardo em casa que usa uma técnica expressionista que não deslustra o que estou a ver, antes de descer para as hortas e dar por finda esta inesquecível visita.
Pormenor da azulejaria da capela
Teto do celeiro
Antigo Forno
Caminho na mata da cerca do convento, sigo agora para as hortas e desejo a todos os futuros visitantes do Convento da Cortiça que aufiram da mesma alegria que eu aqui tive.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24841: Os nossos seres, saberes e lazeres (600): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (128): O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (1) (Mário Beja Santos)

sábado, 11 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24841: Os nossos seres, saberes e lazeres (600): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (128): O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
É bom voltarmos a lugares que nos deixaram gratas recordações, em tempos que já lá vão tive casinha alugada em Almoçageme e depois no Penedo, fui espiolhando tudo à volta e nunca esqueci o estado deplorável em que se encontrava este convento, saía-se de Almoçageme, subia-se até ao Pé da Serra, entrava-se numa mata frondosa depois era só seguir as indicações até ao convento, e doía muito ver a obra do vandalismo, um estado de abandono deste riquíssimo património ao deus-dará. O lugar está agora sujeito a obras de restauro e conservação, muito mais protegido, há até voluntários que por ali andam a cultivar as hortas, há centros de interpretação, é pena não haver uma brochura singela mas há uns livrinhos à venda bem elucidativos. E que o visitante possa ver e sentir um modo de vida hoje praticamente em desuso e por muitos ridicularizado, pois que esse visitante cirande pelos caminhos, suba e desça, e desfrute do que terá sido uma harmonia de vida, entre a contemplação, a Regra e o tirar sustento à custa do seu próprio labor, são os meus votos.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (128):
O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (1)


Mário Beja Santos

Há bem vinte anos, por aqui andei a assombrar-me com este património franciscano, a rusticidade do meio e o esplendor da envolvente, o chocante era estado de degradação de um património que, para todos os fins, parecia incluído na Sintra património da humanidade, reconhecimento que vinha detrás, mas que aqui ainda não tivera consequências.
Este convento data do século XVI, obra de uma promessa fidalga, e já com a intenção declarada de ser um exemplo cristão do despojamento e da vida em congregação, orando, trabalhando, apartado dos faustos do mundo, seguindo a regra da mais rigorosa autossubsistência. Foi lugar de peregrinação e sofreu com a extinção das ordens religiosas, veio a ser adquirido pelo 2.º conde de Penamacor, que por sua vez o vendeu ao visconde de Monserrate, Francis Cook. Novo quadro de abandono até o Estado o ter adquirido e recentemente foi criada uma empresa que vai cuidando do seu restauro.
É impressionante, a todos os títulos, a frugalidade, a austeridade de todo o conjunto, avança-se para a portaria e depois é um conjunto de edificações de que hoje se apresenta, oxalá o leitor fique interessado em vir visitar este espaço franciscano, talvez único no património edificado e natural português.


A cortiça é um dos elementos principais deste convento, daí ter ficado conhecido no século XIX como Convento da Cortiça; esta reveste tetos, portas e janelas, era o único conforto a que os frades se consentiam e, à época, era também usado como forro das suas celas, permitindo uma grande intimidade com a natureza, ali circundante, omnipresente.
A Igreja conventual está construída sob uma laje de pedra, em torno da qual se desenvolve o convento. O altar, de embutidos de pedra policroma, é uma produção de oficinas portuguesas do século XVIII. Os nichos apresentavam imagens de São João Evangelista, Santo António, São João Baptista, São Francisco, Nossa Senhora da Conceição e São Ivo, e, ao fundo, duas pinturas a óleo sobre cobre representando a natividade e a Exaltação da Cruz. À esquerda do alar sobe-se à Sacristia onde toda a comunidade se reunia para o serviço religioso e onde se guardavam as alfaias litúrgicas.
O dormitório é constituído por oito celas, todas com janela e um pequeno nicho. A reduzida dimensão dos espaços obrigava os frades a estarem constantemente curvados, em sinal em obediência a Deus. Poderiam ter como cama uma esteira, uma cortiça ou uma manta no chão, e outra para se cobrirem, bem como uma almofada de palha, de pedra ou de madeira. Não podiam ter fechadura nem cadeado na porta, e, para gozarem de uma ‘breve e penitente vida’ teriam um livro de Regra, umas disciplinas, um rosário e uma cruz de madeira tosca.
A imagem permite ver as obras de restauro encetadas em 2013

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24822: Os nossos seres, saberes e lazeres (599): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (127): No Museu de Lisboa, um olhar sobre o património azulejar dedicado à capital antes do terramoto… e algo mais (Mário Beja Santos)

sábado, 21 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23281: Os nossos seres, saberes e lazeres (505): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (51): A região de Sintra numa exposição de Alfredo Keil (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
O espólio de Alfredo Keil é vastíssimo, abarca a sua pintura, os seus desenhos a grafite, até programas de eventos, cadernos de viagens onde deixou inúmeros esboços, há registos das suas viagens por diferentes países, fotógrafo e médico, grande colecionador, autor da música do nosso hino nacional, e podíamos ir muito mais longe. Pintou muito sobre a sua cidade natal, Lisboa, mas também o Zêzere e os esplendorosos rincões de Sintra, foram estes o que aqui registei da sua mais recente exposição que se realizou na Galeria São Roque Too, um espaço bem apropriado para receber o pintor e o músico a quem tanto deve a cultura portuguesa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (51):
A região de Sintra numa exposição de Alfredo Keil


Mário Beja Santos

A Galeria São Roque Too realizou uma exposição de Alfredo Keil, intitulado O Som das Árvores, entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022. Constava na notícia da Agenda Cultural de Lisboa: “Alfredo Keil (1850-1907) foi uma figura ímpar da arte portuguesa, tendo-se destacado nas artes plásticas, na música, na fotografia, na literatura e no teatro. Apesar de ter sido um artista muito versátil e completo, a exposição que a São Roque Too apresenta debruça-se predominantemente sobre Alfredo Keil músico e pintor, vertentes em que mais se distinguiu. Assim, na área da música, O Som das Árvores expõe documentos e objetos colecionados com a sua obra mais famosa, o Hino de Portugal – A Portugueza -, incluindo a sua partitura original. Alfredo Keil foi ainda pioneiro na ópera do nosso país; por isso, encontram-se também expostos vários cenários das suas quatro óperas: Serrana, Irene, Dona Branca e Susana, assim como documentação diversa que inclui correspondência trocada com Verdi e Puccini. No que respeita à sua obra plástica, a exposição conta com 70 pinturas e desenhos, que incidem maioritariamente sobre paisagens e vistas dos locais preferidos do artista: Lisboa, Sintra e Zêzere”. O que mostro ao leitor tem a ver com Sintra, embora reconheça que nos deixou obra relevante nas telas que pintou sobre Lisboa ou a região do Cabril.

Alfredo Keil pode ser classificado como um tardo romântico no seu naturalismo, olha-se para esta pintura e vê-se que era um artista que apreciava viajar, isto além de ter sido um colecionador eclético, nesta exposição por exemplo eram patentes objetos dessa vastíssima coleção que ele legou. Viajava muito e deixou as suas impressões desde Havre a Nurembergue (era filho de alemães, o pai veio com D. Fernando Saxe-Coburgo-Gota, abriu alveitaria na Baixa de Lisboa). Ele nasceu em Lisboa e representou a sua cidade natal, nesta exposição da Galeria São Roque Too estava um óleo que muito admiro intitulado Lisboa vista do Ginjal. Sendo verdade que os artistas do seu tempo se sentiam motivados a representar cenas da vida quotidiana, pessoas a passear pelas ruas ou em cafés e nas praias, Keil foi atraído pela natureza onde deixou obras esmeradas. Teve casa na Praia das Maçãs e daí o valioso punhado de representações da natureza que nos deixou, vê-se a sua motivação por Colares, o Cabo da Roca, a majestade selvática das praias.
Não escondo o deslumbramento que toda esta região me dá, aqui passei férias e por aqui deambulo com muito prazer, e com esse mesmo prazer que vos mostro algumas imagens destes belos recantos do concelho de Sintra.

Colares – Ribeira, não datado
Searas em Colares, 1878
Quinta Mazziotti – Colares, 1880
“Banzão”, 1882
Pescador na Praia das Maçãs, não datado
“Monte da Azoia”, não datado
O Farol do Cabo da Roca, 1882
Colares V, não datado
Praia da Ursa, 1878
Na última pedra – Praia das Maçãs, 1895
“Azenhas do Mar”, não datado
Azenhas do Mar, 1851
Colares – Lavadeiras na Ribeira, não datado
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23263: Os nossos seres, saberes e lazeres (504): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (50): Uma amostra dos tesouros colecionados pelo Dr. Anastácio Gonçalves (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21521: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (26): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Chegámos finalmente às férias do Natal, é a primeira viagem da amorosa belga para conhecer a identidade do seu Paulo Guilherme, a Lisboa que ele ama, é daqui nado e criado, percorre o burgo sempre que pode em todas as direções, escolheu um menu feito de diferentes aperitivos, inevitavelmente tinha de começar pelo Parque das Nações, era a primeira grande transformação do princípio do século XXI. Correspondeu, nos primeiros dias, ao que ela ansiava ver, foi o caso do romantismo de Sintra, tudo epidérmico, era inevitável. Percorreram a Baixa, começaram na Igreja de São Roque e desceram toda a Rua do Alecrim até ao Cais do Sodré, nem parecem dois cinquentões, andam de mão dada, beijam-se como dois adolescentes, só que ela anda derreada com a vivacidade do seu amoroso, tem que o refrear. E agora aproxima-se o Natal que ela vai descrever com um entusiasmo inusitado, nunca vira coisa igual, toda aquela gente horas à mesa a mordiscar fritos, a rir e a contar histórias. Como iremos ver.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (26): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Noémie adorable, parto amanhã para Bruxelas e espero ver-te muito em breve, começo a trabalhar dentro de dois dias, viajo para uma conferência em Copenhaga, regresso pelo Luxemburgo e bem gostaria de passar um bocadinho o fim-de-semana contigo para te dar conta das maravilhosas férias de Natal que passei com o Paulo, em Lisboa e arredores. Cheguei a meio da manhã, queria aproveitar o máximo possível os cerca de dez dias na companhia de quem tanto amo. O Paulo avisara-me do frio de Natal, para nós aquele frio é mais do que suportável, mas estive o cuidado de vir agasalhada. Ele sugeriu que seguíssemos para o primeiro itinerário, para eu ver a grande mudança que se operara na cidade com a exposição de 1998, comemorativa da viagem de Vasco da Gama. Chegámos a um local chamado Parque das Nações, uma zona da Lisboa Oriental que foi completamente remodelada para albergar os pavilhões da exposição numa lógica bem engenhosa de reaproveitar aqueles espaços para equipamentos, tudo circundado por edifícios com escritórios e um vasto parque habitacional. Arrumado o carro, seguimos a pé, mostrou-me a nova estação de metro, atravessámos depois um centro comercial e entrámos no parque, logo me impressionou uma escultura em ferro, Paulo disse-me tratar-se de uma obra relevante de um dos mais originais escultores portugueses, mostro aqui a imagem. Passeámos à beira Tejo, sempre com um zumbido do teleférico no ar, pedi para não ir, tenho vertigens, mas vi adultos e crianças com um ar muito feliz da viagem aérea. Impressionou-me muito todo aquele percurso à beira-mar, aproximou-se a hora do almoço e numa zona um tanto internacional de restaurantes o Paulo sugeriu que comêssemos comida portuguesa, eram pastéis de bacalhau com arroz de feijão, que delícia, depois pediu uma sobremesa a que chamou farófias, explicou-me que se trata de um aproveitamento de claras, faz parte de um receituário conventual muito antigo. E bebemos o café português, não é como o nosso, nós preferimos o gosto predominante do arábica, eles misturam robusta com arábica, olha, é muito saboroso. Talvez porque eu tenha insistido muito em conhecer a azulejaria portuguesa, fiquei uma vez assombrada quando visitei em 1991, no âmbito da Europália Portugal, uma exposição de azulejos e onde se dizia que o país tem mais azulejos dos que há em todo o mundo, depois quando percorri Lisboa antiga verifiquei que usavam muito azulejo e nas casas apalaçadas é impressionante o uso do azulejo, como nas igrejas, o Paulo, dizia, que fez questão de antes de irmos para casa me mostrar o Convento da Madre de Deus onde está sediado o Museu Nacional do Azulejo. Saímos do Parque das Nações e caminhámos pela Lisboa Oriental já a caminho do centro, aí o casario é antiquado, muito envelhecido e muito maltratado, o Paulo comentava que houvera casas senhoriais famosas, houvesse circunstância e iríamos visitar o palácio do Duque de Lafões, para eu conhecer como vivia a velha aristocracia portuguesa. Chegados ao convento, dado o adiantado da hora o Paulo insistiu em visitarmos só a azulejaria, mas observando que a igreja era de uma opulência inacreditável. Tu não podes imaginar a variedade de azulejos, os portugueses não escondem a influência hispano-árabe e muito menos a importação de elementos flamengos, eu ia reconhecendo motivos típicos do nosso país, o Paulo confirmava que nas trocas comerciais entrava a azulejaria, aliás ele queria mostrar-me azulejos de Delft, parece que há muitos em Portugal.

E seguimos para casa do Paulo, situada num local que se chama Avenidas Novas, ele deu-lhe o nome de Bairro das Estacas, explicou-me porquê Estacas, grande parte daqueles prédios parecem assentar em pilares cilíndricos, um bairro curioso, rodeado de comércio local, até com um pequeno mercado , espaços ajardinados entre os prédios, tudo muito perto de uma linha de caminho-de-ferro. Quando entramos, eu confesso que mesmo conhecendo um pouco os gostos do Paulo, tive sérias dificuldades com todas aquelas paredes com quadros ao longo da parede, lembrou-me os gabinetes de estampas do século XVIII, quadros expostos de cima a baixo, e o Paulo a fazer questão de me mostrar o que comprara na Bélgica, quer em antiquários quer nas feiras da ladra. O vestíbulo está pejado destes enquadramentos, há uma vitrine completamente cheia de louça portuguesa e também muita louça de outros países, fomos ao escritório, uma estante a abarrotar, com filas de fotografias enquadradas, o Paulo mostrou-me o cadeirão onde faz as suas leituras, rodeado de algumas centenas de CD, o leitor pousado numa bonita mesa Arte-Nova. O mesmo aspeto impressionante no quarto, o Paulo a explicar-me a proveniência das obras, inevitavelmente artistas belgas, franceses e ingleses, dirigiu-se para uma fotografia emoldurada e disse-me que tinha sido um grande amigo seu, penso que fixei bem o nome, Cinatti, quem tirara aquela fotografia em Timor a um régulo, o rosto firme, direi mesmo majestático, de alguém que nos acompanha com os olhos, e Paulo disse-me que gostaria muito de falar dele, como se tinham conhecido em 1967 e como ele tinha sido uma das suas mais prestimosas ajudas durante a guerra da Guiné. E quando falou na guerra da Guiné voltou a recordar-me de que vai agora começar a narrativa daquilo que ele chamou o maior desafio que a guerra lhe suscitara, Missirá fora devorada por um incêndio, era uma corrida contra o tempo, havia que reconstruir o quartel antes da época das chuvas, e isto sem abrandar as suas responsabilidades operacionais. Mas estávamos em férias, a guerra ficaria para depois, é um poderoso incentivo para telefonemas e para envio de pacotes com papéis e fotografias. E observou que ainda temos muita guerra pela frente, o romance vai nos primeiros meses. E beijou-me com imensa ternura, eu sou para ele a sua heroína, o arrimo para a segunda metade do século que ele quer viver por inteiro, proferiu esta frase com imenso ardor, com uma voz quente de paixão. E entregámos os nossos corpos.

Quando me levantei na manhã seguinte, o Paulo já tinha preparado um pequeno-almoço tão a meu gosto, flocos de aveia, sumo de toranja, chá verde e torradas, e um café português, claro. Comemos na varanda com vista para os jardins, a conversa, não sei como nem porquê, deslizou para o romantismo, foi quando o Paulo recordou que gostaria muito que fizéssemos hoje o primeiro passeio a Sintra, o que ele chamou uma aproximação, uma iniciação à atmosfera de um lugar mágico. O que aconteceu.

Íamos numa estrada muito movimentada quando ele me propôs que o passeio começasse num ponto extremo, ele falou em Cabo da Roca, parece tratar-se do ponto mais ocidental do continente europeu, depois passaríamos por um lugar chamado Colares e subiríamos a uma estrada para visitar o Parque de Monserrate, eu iria conhecer um jardim extraordinário, obra de vários séculos, não poderíamos entrar no palácio propriamente dito, que fora propriedade de uma rica família inglesa, por estar em obras, a autarquia encetara os trabalhos, podíamos ver à distância e apreciar como o edifício é espetacular com a influência dos arabismos que os românticos tanto cultivaram. Seduziu-me toda aquela vegetação, espero voltar quando este palácio estiver reabilitado. À saída Paulo disse-me que gostaria de me levar ao Convento dos Capuchos, mas atendendo à hora iríamos almoçar num local chamado Almoçageme, não esqueci o nome do pequeno restaurante familiar, a Mariazinha. Nesse dia não comi bacalhau, comecei por uma sopa de caldo-verde e locupletei-me com costeletas de borrego com batata frita e uma alface ripada. Saímos e voltámos à estrada, senti uma certa sonolência, Paulo parou num parque frondoso e aí fiz uma pequena sesta, eram emoções a mais, quase que não acreditava na dimensão da minha felicidade.

E prosseguimos numa estrada franqueada de plátanos em direção ao Palácio da Pena. O Paulo avisou-me logo que era só para ver de fora uma construção originalíssima, tratava-se de um empreendimento de um príncipe alemão, primo do marido da Rainha Vitória, era um apaixonado por castelos românticos, aproveitou uma ruína de um mosteiro, misturou uma série de estilos e o resultado final, asseguro-te, é deslumbrante, olha para este bilhete-postal e depois conversaremos.

Desculpa estar a contar-te tanta coisa ao mesmo tempo, a afogar-te com nomes e imagens que certamente não te dizem nada. É para tu sentires o meu entusiasmo. Pedi ao Paulo para voltarmos para casa, já não sou criança, não sei aonde é que este homem vai buscar tanta energia e tanta ocupação.

Vamos ficar agora só com o dia seguinte, uma pálida imagem do centro histórico. Nada de automóvel, tomámos o metro e fomos para o que ele chamou Baixa-Chiado. No caminho, o Paulo foi-me falando numa igreja sumptuosa, com capelas riquíssimas, obra dos Jesuítas, São Roque. Chegados à tal Baixa-Chiado subimos uma rua chamada Misericórdia e visitámos o templo, é esmagador, a magnificência das capelas fala, disse-me o Paulo, daquela época das riquezas brasileiras que davam para comprar uma capela forrada em lápis-lazúli em Roma. Descemos essa mesma Rua da Misericórdia, Paulo disse que o nome daquele lugar era o das Duas Igrejas, de facto há ali duas igrejas, apontou para a estátua de Luís de Camões, e disse-me que íamos descer a rua que ele mais aprecia pela panorâmica que se desfruta, a Rua do Alecrim. O que eu desfrutei, sinceramente, foi da alegria jovial do meu amoroso, entrou em lojas de velharias, de alfarrabistas, casas de azulejos, uma loja de banda-desenhada, eu entrava e saía de todos estes estabelecimentos depois de ter conversado com os vendedores, há de facto um pormenor muito gracioso, que é o rio Tejo ao fundo, descemos até a um lugar chamado Cais do Sodré, já não podia esconder que me doíam as pernas, e o Paulo levou-me a um restaurante chamado Porto de Abrigo, ali comi uma coisa curiosa, um recheio de marisco, ele chamou-lhe vieira, depois sugeriu-me polvo, jamais tinha comido polvo, com batata a murro, expressão dele, um repasto magnífico. Tinha que ser franca, precisava de descansar, mas aceitei ainda passarmos pelo Terreiro do Paço, e aí assombrei-me com a vista do castelo no alto e as iluminações do Natal. Pois é no Natal que te vou falar a seguir, como eles celebram um tanto diferentemente de nós. Com profundo afeto, Annette.

(continua)
Convento da Madre de Deus
Palácio Real no Terreiro do Paço, Museu Nacional do Azulejo
Cabo da Roca
Parque de Monserrate, palácio já reabilitado, aberto em 2010
Palácio da Pena
Igreja de S. Roque, Lisboa
Rua do Alecrim, Lisboa, imagem da época
Panorâmica mais antiga da Rua do Alecrim, com o Tejo enevoado ao fundo
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21496: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (25): A funda que arremessa para o fundo da memória