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quarta-feira, 13 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25269: Historiografia da presença portuguesa em África (414): A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940, Lisboa (Mário Beja Santos)

Capa do livro sobre a secção colonial da Exposição do Mundo Português, mostra uma cena de Macau, pintura de Fausto Sampaio


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Dei comigo a pensar que nos faltavam imagens e texto sobre a presença guineense na Exposição do Mundo Português. A dedicada bibliotecária da Sociedade de Geografia de Lisboa trouxe-me algumas preciosidades dignas dos mais exigentes bibliófilos, dou-vos conta do que até agora apareceu. Alguém um dia terá que se dedicar a este trabalho de arrumar as peças dos eventos imperiais e delas subtrair o que tange à Guiné. Os desenhos de Eduardo Malta são exímios, são estes que aqui se publicam e no álbum não há mais; quanto à secção colonial, é uma obra essencialmente divulgativa, a generalidade das informações prestadas são do amplo conhecimento dos leitores, seria redundante dar mais do mesmo. Mas o trabalho de procura vai continuar.

Um abraço do
Mário



A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940

Mário Beja Santos

Um dia destes dei comigo a pensar se o assunto da presença guineense nas grandes exposições do Estado Novo era um assunto esgotado. Creio que sobre a I Exposição Colonial Portuguesa, que decorreu no Porto em 1934, se esgotara o assunto quanto às referências bibliográficas mais significativas e ao uso das principais imagens; o mesmo ocorre dizer da Exposição Colonial Industrial que se realizou na área do Parque Eduardo VIII, em 1937. E dei comigo a pensar que era escassa e difusa a informação sobre a presença guineense em 1940; e há imagens de bustos de guineenses no Jardim Botânico Tropical, onde decorreram eventos da Exposição do Mundo Português. Mas havia que preencher lacunas. Graças à preciosa colaboração da Dr.ª Helena Grego, prestimosa eficientíssima bibliotecária na Sociedade de Geografia, pus-lhe o assunto e logo foi buscar o material alusivo à secção colonial.

Temos primeiro o livro que o visitante podia adquirir, alusivo às parcelas do império. Encontrei alguns dados curiosos, se bem que a generalidade das fontes seja do conhecimento do leitor, são obras já aqui referidas. Dá-se informação geográfica, ou seja, fala-se da situação e superfície, da orografia e considero bem observado o que se diz sobre a geologia: “O solo da parte plana da Guiné é formado exclusivamente por aluviões argilosos, misturados de sedimentos arenáceos derivados de fortes arrastamentos das terras altas do Futa Djalon, pela fusão das geleiras glaciares formando caudalosas correntes, como se depreende ainda hoje dos estuários dos principais rios e da localização do arquipélago dos Bijagós. Os aluviões argilosos constituem nos lugares baixos as bolanhas e lalas conforme são temporariamente ou permanentemente alagados. O óxido de ferro é abundante, dando às terras da Guiné uma característica cor avermelhada.” Depois na referência hidrográfica (território retalhado por uma rede de braços de mar), faz-se uma observação sobre o clima: “É equatorial oceânico. As condições meteorológicas e as terras baixas não dando fácil escoante às águas das chuvas, dão à Guiné as características de um clima insalubre, porém, os braços de mar e os ventos oceânicos modificam estas condições, beneficiando o clima.”

Dão-se informações que o leitor já conhece: capital em Bolama, a colónia dividida em dois concelhos e sete circunscrições, os concelhos de Bolama e Bissau e as circunscrições de Cacheu, Farim, Mansoa, Bafatá, Gabu, Buba e Bijagós. No tocante à informação económica, escreve-se que a Guiné está incluída no domínio vegetal do Sudão e os seus terrenos baixos e húmidos e de aluvião favorecem uma vegetação luxuriante e de grande porte. Eram assim as vias fluviais da época: as portas principais abertas à navegação de longo curso eram Bissau, Bolama, Bubaque e Cacheu; os portes de navegação de cabotagem ficavam em Bafatá e Farim. Quanto à indústria da época, havia a Sociedade Industrial Ultramarina que explorava uma fábrica de cerâmica, uma fábrica de gelo e de energia elétrica que abastecia Bissau. Mista, de comércio e indústria, era a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, concessionário em Bijagós com sede em Bubaque e explorando palmeiras. Depois os autores espraiam-se sobre a informação etnológica e etnográfica, guardei a seguinte informação: “Por quatro veias correu o sangue a alimentar o corpo das famílias a que pertencem os povos da Guiné Portuguesa. Pela Etiópia, do Iémen, pelo Alto Nilo (Egito), pelo deserto do litoral, líbico, e pelo Atlântico.” E depois espraia-se ao detalhe sobre a etnologia e a etnografia, considero matéria já aqui largamente tratada.

Capitão Henrique Galvão pintado por Fausto Sampaio, ele foi o grande arquiteto da secção colonial
Uma das muitas imagens referentes à Guiné nesta obra, aqui vemos um Felupe, os responsáveis pela publicação socorreram-se dos arquivos da Agência Geral das Colónias

Este álbum comemorativo é hoje uma preciosidade, andam os bibliófilos à caça e pagam bom dinheiro por o ter. Os desenhos são de Eduardo Malta, de facto um artista plástico que tinha um lápis invulgar, não tanto se dirá do que pintava. Reservou à Guiné estes desenhos, estou em crer que não tínhamos qualquer um deles e vêm enriquecer o nosso acervo de imagens, porventura o mais rico que existe em Portugal sobre a história da Guiné e a guerra colonial. Não dou por concluída a pesquisa sobre estes tempos de 1940, mas a paciência e a insistência são as armas do negócio, é provável que haja mais elementos. Deliciem-se com os desenhos do Eduardo Malta.
Maritime – Bijagós, desenho de Eduardo Malta
Mansata Bande (Fula) e Jenabá Mantânhadjalo (Mandinga) – Guiné, desenho de Eduardo Malta
Braima Sanhá (chefe Fula), alferes de 2ª linha – Guiné, desenho de Eduardo Malta
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Nota do editor

Último post da série de 9 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25252: Historiografia da presença portuguesa em África (413): O luso-colonialismo nunca existiu: para África, só desterrado ou com "carta de chamada" (António Rosinha / Valdemar Queiroz)

quarta-feira, 6 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25244: Historiografia da presença portuguesa em África (412): A Guiné numa publicação do Rio de Janeiro, estávamos na década de 1930 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
É sempre um prazer voltar à biblioteca da Sociedade de Geografia e ter uma surpresa à minha espera. Agora que estou a organizar "Guiné, Bilhete de Identidade" e precisava de um texto do historiador Joaquim Barradas de Carvalho sobre a Crónica dos Feitos da Guiné de Zurara, foi-me sugerido a leitura de toda esta revista, vale a pena meditar sobre o poucochinho que é dedicado à Guiné, dizem-se coisas assombrosas sobre as estradas, mas seguramente que de boa fé o funcionário António Pereira Cardoso, que escreveu para o governador em Bolama relatórios anuais que um dia virão a ser indispensáveis para o estudo da economia da colónia, exaltou os quilómetros de estradas como atrativo para possíveis investidores, estamos já numa década em que Bolama definha. Não volto aqui a falar sobre a história destes boletins, os pressupostos básicos para a sua criação, foram anteriormente referidos, o aspeto que me parece mais curioso é a atração que o Brasil já sentia há um século por este berçário africano; não menos curioso é a referência à presença da navegação holandesa e alemã e verificarmos que a CUF de Alfredo da Silva ainda não chegou com as suas linhas de navegação.

Um abraço do
Mário



A Guiné numa publicação do Rio de Janeiro, estávamos na década de 1930

Mário Beja Santos

Já aqui se falou do boletim da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e como este deu lugar ao boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. No início da publicação, em 1931, os governos de Lisboa e Rio aplaudiram a iniciativa, mas com o passar do tempo o Estado Novo ficou furioso com as colaborações, republicanos oposicionistas apareciam em força, zangaram-se as comadres. Confesso a satisfação que tive com algumas destas imagens, certo e seguro a redação do boletim brasileiro tinha acesso a muita informação oriunda de Portugal. E a prova está em dois textos que aqui vou referir. O primeiro está assinado por António Pereira Cardoso, era funcionário da administração em Bolama, encontrei nos reservados da biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa alguns relatórios assinados pelo seu punho, referentes a este período; ele era sócio correspondente da Sociedade Luso-Africana e escreveu um artigo intitulado “A Guiné Portuguesa, a sua situação económica, o seu estado financeiro e as suas possibilidades, presentes e futuras”, traz a data de 24 de janeiro de 1933, o seu teor é o seguinte:
“A Guiné, cujo nome certamente pela sua semelhança homográfica com a Guiána, causa ainda hoje nos espíritos timoratos, calafrios e tétricas visões: é, de todos os nossos territórios ultramarinos aquele que menos acarinhado tem sido pelo Poder Central. Dentro dos 36.125 quilómetros da sua área, no entanto, acolhe-se uma população de cerca de meio milhão de habitantes, constituída por dezassete raças e sub-raças que fizeram da Guiné, em tempos idos, o inesgotável celeiro de todos os negreiros europeus e de quem hoje descendem, tanto o preto do Brasil como o negro americano.
Pela sua constituição geológica, pelas facilidades de transporte e deslocação interterritorial, e pela sua relativa vizinhança com a metrópole, a Guiné Portuguesa anima e fortalece todas as iniciativas de caráter agrícola e pecuário, e sua respetiva industrialização.
Afora as ilhas que formam o arquipélago dos Bijagós, pertence também ao domínio português a ilha de Cateraque, situada ao sul, próxima à Ponta Cajete, que os franceses nossos vizinhos, certamente por engano, há anos vêm ocupando, até ao dia em que uma, inexplicavelmente arrastada, retificação de fronteiras, consiga reivindicar para nós, a sua posse definitiva.

Ocupa a nossa Guiné, em extensão, o terceiro lugar no nosso império colonial. Semelhante a um corpo humano sulcado de veias, os seus rios entretecem na extensa planura do seu solo ubérrimo e forte, uma complicada teia, de fácil acesso aos barcos de grande cabotagem, e o Atlântico, nas suas costas, constantemente borda, com os bilros das suas marés, a infindável renda dos múltiplos esteiros e braços de mar, que a penetram até muito distante do litoral e que Duarte Pacheco Pereira, há cinco séculos já estudou e percorreu.
Com uma riqueza pecuária avaliada em cerca 306 mil cabeças (das quais só as de gado vacum se pode computar em 80 mil), é incentivo bastante para um ensaio de concorrência, atinente à conquista do mercado metropolitano, com qualquer empresa que se queira habilitar à exploração desta indústria. Colónia essencialmente agrícola, os seus 2.800 quilómetros de ótimas estradas, são, juntamente com o grande número de vias fluviais, meios que bastam à drenagem dos 25 milhões de quilos de amendoim; 12 milhões de quilos de amêndoa de palma (coconote); 550 mil quilos de óleo de palma; 670 mil quilos de arroz; 16 mil quilos de borracha; 90 mil quilos de cera; 170 mil quilos de couros de bovinos e 500 mil quilos de outros produtos que, no valor de 30 milhões de escudos são exportados anualmente para Portugal, Alemanha, EUA, França e colónias, Inglaterra e colónias, Holanda e colónias portuguesas.
Todos estes números, porém, podem, no entanto, ser rapidamente excedidos e até duplicados, desde que às sociedades existentes, ou a estabelecer, o Estado conceda não só as facilidades necessárias, mas também o auxílio pecuniário indispensável. Com um orçamento rigidamente equilibrado, as receitas da Guiné atingem a apreciável verba de 22 mil contos, acusando a sua balança comercial números significativos na importação e exportação.
Campo aberto a todo o género de culturas, nela se desenvolvem, presentemente, entre outras, a cana sacarina, o algodão, o café, o cacau, o milho, a mandioca, o feijão, etc., etc. Eis aqui em largos traços o que é e o que vale a nossa colónia da Guiné, de extensas planícies e ricas florestas, da qual, desde 1755 a 1777 foi concessionada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão e que a figura prestigiosa e heroica do major Teixeira Pinto, em 1915, radicou de vez à nossa burocracia, castigando em combates sucessivos a intolerável rebeldia dos indígenas mancanhas, manjacos, oíncas, balantas e papéis, facilitando a ordem económica e do fomento dos governadores que se sucederam até à data.”


Outro texto que me parece de grande interesse é uma notícia intitulada “Breve resenha da aparelhagem económica da Guiné Portuguesa”, vamos ao seu conteúdo:
“Não há, nesta nossa pequena, mas riquíssima província africana, caminhos de ferro, o que facilmente se explica pelo facto das comunicações e dos transportes se realizarem através das suas magníficas e eficientíssimas redes de cursos de água (rios e canais) e de estradas de rodagem, as quais ligam entre si os centros de produção e de comércio.
A extensão das estradas na Guiné Portuguesa é de 2.809 quilómetros, e para darmos uma ideia sintética e clara do que isto representa como expressão de progresso, diremos apenas que a média em metros de estrada por quilómetros é de 78, enquanto na África Ocidental Francesa é tão somente de 7,15!
Possui também a Guiné Portuguesa uma rede de 685 quilómetros de linhas telegráficas, em contacto com treze estações, além de três de TSF e duas de cabos submarinos, sem contarmos uma linha telegráfica que serve diretamente para as comunicações com a África Ocidental Francesa. O seu porto mais importante é o de Bissau.
Os navios nacionais das Companhias Colonial e Nacional de Navegação visitam mensalmente os portos de Bissau e Bolama, onde também vão com regularidade os barcos da Holland West – Afrika Linie, da Woerman Linie, da Deutsche Ost-Afrika Linie, da Hamburg – Linie e a da Hamburg – Bremen Afrika Linie, assim como os cargueiros da Sociedade Geral de Indústrias e Transportes.”


Pretendeu-se dar ao leitor a apreciação do que era o noticiário reportado aos interesses luso-brasileiros, a Guiné estava praticamente omissa desta publicação, a informação superlotada era, como é óbvio, referente a Angola e Moçambique.


É obrigatório ficar intrigado com este brasão da Guiné, é quanto muito um elemento retirado da bandeira nacional, fica-se espantado como estes publicistas cariocas publicaram tranquilamente as cinco quinas dizendo que se trata do brasão da Guiné. São coisas…
O icónico edifício do município de Bolama, hoje em completa ruína, imagem que acompanhava um texto sobre a I Exposição Colonial Portuguesa que decorreu no Porto em 1934
Imagem porventura tirada por Domingos Alvão mostrando-nos aldeia lacustre que atraiu multidões ao Porto, em 1934, no recinto da I Exposição Colonial Portuguesa
O Marquês de Ávila e de Bolama na capa da revista "O Ocidente", de 20 de março de 1907
Um dos aspetos mais gratificantes de andar a folhear publicações em bibliotecas especializadas é encontrar esta imagem que só era possível ser publicada no Brasil naquela época em que Portugal tudo o que aqui se mostra e escreve era totalmente impensável ser dado à estampa
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25223: Historiografia da presença portuguesa em África (411): A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25223: Historiografia da presença portuguesa em África (411): A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Jamais em tempo algum tinha ouvido falar deste boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, dois investigadores brasileiros dão porquês para o seu aparecimento e falam da vida acidentada que a publicação teve, a maior colónia portuguesa no mundo ainda recebia afavelmente gente republicana, como Norton de Matos, e acresce que naqueles anos de 1930 os próceres do Estado Novo desconfiavam das doutrinas de Gilberto Freyre no que toca ao luso-tropicalismo. Tudo teve o seu tempo, mas acho que vale a pena dar uma vista de olhos ao que o escritor e jornalista Hugo Rocha publicou sobre a presença guineense na primeira exposição colonial portuguesa e é bom deixar no nosso arquivo as duas páginas com imagens de Bolama daquele tempo que era capital da colónia.

Um abraço do
Mário



A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro

Mário Beja Santos

Com a preocupação de vasculhar quanto a referências da Guiné portuguesa, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa alertaram-me para o Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, publicação que vingou entre 1932 e 1939, primeiro com o título de África Portuguesa e depois referenciada como Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Que pretendiam? No n.º 1 de África Portuguesa, janeiro de 1932, com o título a que vimos, faz-se a seguinte apresentação:
“A que vem África Portuguesa? Sentar praça nas hostes dos paladinos do Novo Renascimento Colonial Português. Este Novo Renascimento da expressão política devia-se a várias sacudidelas: a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa e às epopeias de Silva Porto, Serpa Pinto, Capelo e Ivens. E à ocupação efetiva: Mouzinho, Alves Roçadas, João de Almeida, António Enes, Norton de Matos. África Portuguesa vem contribuir com a sua quota parte, cá deste lado do Atlântico, para essa obra de ressurgimento colonial, proporcionando aos nossos patrícios e a todos quantos se interessam pelas coisas coloniais uma resenha dos principais acontecimentos e factos mais notáveis da vida das colónias. Enfim, pôr em relevo a obra colonizadora dos portugueses.”

Mas pode-se apurar mais quanto aos intentos deste projeto, veja-se um artigo de Mateus Silva Ikolaude e Marçal de Menezes Paredes sobre as questões da lusofonia no n.º 48 da Revista Portuguesa de História, Coimbra, 2017.
Escrevem os autores:
“Na década de 1930, Portugal e Brasil constituíram na esfera diplomática importantes espaços de aproximação política. Se, por um lado, em Portugal existia um colonialismo com pretensões nacionalistas e que pensava o exemplo brasileiro como referências às colónias africanas, por outro, no Brasil havia nacionalismo que mobilizava componentes internacionais para com África e para com Portugal. O Rio de Janeiro constituía-se no principal centro de emigração portuguesa do mundo e a colónia lusitana organizada buscava afirmar e recriar a sua identidade a partir de duas estratégias principais: o associativismo e a imprensa. A visão do Brasil enquanto obra máxima da ação colonizadora portuguesa refletia-se na representação assumida pelos emigrantes residentes na antiga colónia, ao passo que a constituição da maior comunidade portuguesa fora de Portugal, em pleno século XX, reforçava simbolicamente os laços estabelecidos historicamente de uma predestinação lusitana. No dia 22 de maio de 1930 foi fundada a Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Em 1934, a tiragem da revista era de dois mil exemplares que eram gratuitamente distribuídos para intelectuais, políticos, além de escolas, centros culturais e prefeituras.”

Haverá inúmeras tensões com o Estado Novo, basta pensar que uma das figuras mais admiradas na colónia era Norton de Matos, opositor do novo regime, curiosamente na década os próceres dos Estado Novo olhavam de viés as doutrinas de Gilberto Freire sobre o luso-tropicalismo, a doutrina será recuperada com a questão colonial posta nos anos 1950 e 1960.

No número dedicado à primeira exposição colonial portuguesa, que decorreu no Porto em 1934, o escritor e jornalista Hugo Rocha prendeu-se de amores com a Guiné e redigiu um apontamento digno de reflexão:
“Ontem, a meio da tarde, para matar saudades, fui ao Palácio ver os pretos e buscar assunto para esta reportagem à margem do noticiário quotidiano. E a primeira impressão, forte, dominadora, absoluta, foi a de que entrara em pleno território colonial. Desde há poucos dias, 63 pretos e pretas da Guiné fazem vida africana em pleno recinto da Exposição Colonial Portuguesa. Fulas, Bijagós, Mandingas, Balantas. A melhor, a mais completa representação etnográfica que a Guiné, guarda avançada de Portugal na África, podia enviar à metrópole.
Pronta para receber tão imensa embaixada, a aldeia da Guiné, que é a mais típica do certame, porque é lacustre como grande parte das aldeias da Guiné e porque se situa entre uma paisagem admirável, não chegou, todavia, para acomodar todos os indígenas. Houve que dividir, como soe dizer-se, o mal pelas aldeias. E, assim, no bosque, em sítio escuso, de aspeto tropical, novas cubatas houve que erguer. E fez-se nova sanzala. E 20 negros – 18 homens e 2 mulheres – de raça Fula, passaram a habitar, ali, dando-se, também, a ilusão de que não estão no Porto, de que estão na Guiné…”


Interrompo aqui a citação para referir que há uma conversa entre Hugo Rocha e um guineense a quem ele chama Mony, fala-se do tempo em Portugal e na Guiné, e há para ali uma alusão maliciosa, Mony era casado com aquelas duas mulheres, uma delas estava a pentear um dos homens, para o observador havia para ali uma cena de sedução e perguntou-se a Mony se ele não tinha ciúme, a resposta foi portentosa, Mony não sabia o significado da palavra ciúme… E vamos continuar com o texto de Hugo Rocha:
“Henrique Galvão, com admirável sentido prático pelo que deve ser a preparação do certame, não quer que os indígenas da Guiné estejam ociosos. Sendo, alguns deles, trabalhadores excelentes, o melhor sistema de os tornar úteis ao certame, enquanto as portas não se abrirem ao público, era, evidentemente, empregá-los nas obras.
E assim, mal chegados, os negros começaram a faina, auxiliando os trabalhadores brancos que labutam, ali. Acarretam. Limpam. Auxiliam. Elas, enquanto os homens não perdem o seu tempo, estabelecem o ménage. Transportam lenha para as fogueiras, águas para a cozinha. Ao fim da tarde, quando eles estão disponíveis, a ilha oferece o quadro mais completo da Guiné que possa conceber-se. Quase todos vestindo – despindo será melhor dito… - à boa usança do sertão, eles estendem-se pelo chão, sobre as esteiras ou na terra dura. E elas, com uma paciência de Job, penteiam-nos, engorduram-nos, fazem das suas carapinhas baças um emaranhado inextrincável de fios embebidos de tacula, que parecem, pronto o toucado, barretes avermelhados e um tudo nojentos…

Depois, o batuque. Horas seguidas, enquanto a multidão de empregados e operários forma barreira compacta no continente, defesa como é a entrada na ilha, o tantã soa entre as árvores, a que uma ou outra palmeira, refletindo-se no lago, dá o ar tropical…
E a algazarra do dialeto, que ninguém entende, e as risadas sonoras, e o cheiro pronunciado a sertão, e aqueles corpos negros, nus e besuntados, que se agitam como se aquele fosse o seu verdadeiro meio, dão, a quem olhar a cena e a considerar, atentamente, a sugestão completa, farta, dominadora, de África…”


Foi o único artigo sobre a Guiné que encontrei. No entanto, dei com imagens de Bolama e seis imagens do interior da primeira exposição colonial portuguesa que aqui vos mostro.

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Nota do editor

Último post da série de 21 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
O Tenente Costa Oliveira estava muito longe de ser um ilustre desconhecido na Guiné. Antes de ser nomeado comissário para a demarcação das fronteiras, o que ocorreu em 1888, acompanhara as obras do presídio de Bolor e, como se verá num texto posterior, trabalhou a cartografia da Guiné, dedicou mesmo um artigo sobre a matéria ao seu amigo Luciano Cordeiro. O que ele descreve em jeito de considerações finais e conclusão, e que dita o final do seu trabalho, que aqui se resumiu, tem muita matéria para reflexão, fica-nos mesmo a impressão de que se estava a candidatar a governador: pronuncia-se sobre os efetivos militares indispensáveis para manter os indígenas a respeito, propõe mesmo embarcações à prova de bala, é a favor da mudança da capital para Bissau, sugere concretamente nomes de locais a ocupar, antevê a prosperidade económica da colónia na cultura do amendoim. E nas conclusões emite mesmo um juízo drástico: a Guiné ou é rica ou não é, ou se aposta no seu florescimento ou ela continuará a ser um sorvedouro de dinheiros e um matadouro de funcionários - neste caso o melhor é ofertá-la à França, é potência próspera, está ali mesmo à volta, será perda indolor. Para que conste, também assim se pensava em 1888

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhe um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, Comissário do Governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa. Depois de curta estadia em Bolama, seguiu para o Casamansa. No final do seu importantíssimo documento vai tecer considerações e elaborar uma conclusão que nos deve merecer a melhor atenção.

As suas observações decorrem do facto de ser um conhecedor da realidade guineense, anteriormente a esta missão da demarcação de fronteiras já estivera na Guiné. Agora as suas considerações são tanto de caráter político-militar como deixa explicitamente recados ao modelo de desenvolvimento do território que muda em Portugal a imagem da colónia. Em termos militares dirá coisas como esta:
“Geba, Farim e Cacheu são Praças de guerra só no nome, pois com as suas muralhas rotas, peças de ferro em deplorável estado e apeadas, guarnecidas por meia dúzia de soldados indisciplinados e mal-armados, estão completamente à mercê do gentio, admirando-nos até como o nosso prestígio, e não outra coisa, tem contido em respeito as tribos próximas.”

Reportando-se à natureza das embarcações indispensáveis para a navegabilidade dos rios, escreve:
“Permitam-me agora descrever rapidamente as lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, devem satisfazer as seguintes condições: 1) Demandar desde 30 até 50 centímetros de águas; 2) Terem fundos chatos por causa dos encalhes; 3) Poderem conduzir até 50 praças com o respetivo armamento, etc.; 4) Terem velocidades superiores a 8 milhas por hora; 5) Terem duas máquinas independentes e separadas por uma divisória longitudinal, acionando duas rodas na popa; 6) Um aparelho de luz elétrica; 7) Costado de aço impenetrável às balas de qualquer espingarda, com tombadilho e castelo, e o intervalo entre estes protegidos também por chapas de aço; 8) Guarita couraçada para abrigo do comandante e homem do leme; 9) Armamento – metralhadores e peças de tiro rápido; 10) Finalmente, que possam queimar indiferentemente lenha ou carvão.”

Nas considerações gerais, dá prioridade à escolha da capital da província, é contrário à opinião que a capital esteja no rio Grande de Bolola, é a favor de Bissau, e explica porquê:
“Está situada no ponto mais central da província e na embocadura do rio Geba, de cujas margens e dos sertões por onde corre se deve esperar toda a prosperidade da colónia; tem um porto excelente e de fácil acesso para navios de grandes dimensões e tonelagens, com um ilhéu fronteiro, o ilhéu do Rei, de salubridade incontestável e cuja situação eminentemente favorável deve ser aproveitada para se construir ali o sanitarium, enfermaria militar, aquartelamentos, etc.; com outro ilhéu próximo, o de Bandim, onde se deve instalar o lazareto.” E propõe mesmo medidas para modificar as condições climatéricas de Bissau, desde arrasar o muro que cerca a vila até proibirem-se os correios e chiqueiros dentro dela, havendo de fazer o plano da nova cidade, ele não deixa de fazer sugestões sobre praças ajardinadas e como deve ser a residência do governador.

Há alguns aspetos curiosos das suas sugestões, por exemplo:
“Em Cacheu ou Buba fabricava-se tijolo e telha. Julgamos indispensável fazer renascer essa indústria para acudir às necessidades da província. Todos sabem que nos plainos da Guiné não há pedra; mas a Holanda também a não tem, e o tijolo é quem a substitui até nos passeios laterais de algumas ruas de cidades formosas e importantes. Também se nos afigura convenientíssimo montar em Cacheu uma serração de madeiras. Assim que a nova Bissau estiver nas condições de receber o chefe de província e de mais funcionários, a sede do governo será transferida de Bolama, ficando ali só a ala esquerda do batalhão, e delegações da Alfândega, Capitania dos Portos e Correio. Haverá que proceder a ocupações: ocupar S. Belchior e mandar pôr o forte em condições de poder resistir a qualquer ataque pelo gentio, depois tomar posse de Sambel-Nhantá e cuidar de Geba, bem como ocupar um bom número de povoações no Corubal".

Mas o Tenente da Armada Real não se fica por aqui. Tem opiniões próprias sobre as alfândegas, a Capitania dos Portos, as missões, as cadeias, os hospitais e enfermarias, o dispositivo militar. Não se compadece com a míngua do que existe na agricultura, indústria e comércio, é a favor de todo o apoio à cultura da mancarra, mas também da purgueira, cana do açúcar, tabaco e algodão. Recorda que no anexo do seu relatório vem o traçado completo da delimitação do território tal como foi definido pela convenção luso-francesa. Recorda a quem o lê que se impõe atuar em continuidade para que haja paz no território, e escreve:
“Para tranquilidade da Guiné, e para se poder desenvolver agrícola e comercialmente, deve o chefe da província obstar por todos os meios ao seu alcance, incluindo os da força, às guerras entre as tribos que povoam o território chamado português. Desde que se delimitaram as fronteiras da província, as suas condições políticas mudaram consideravelmente; por exemplo, outrora não convinha por forma alguma intrometermo-nos na política gentílica, atualmente é uma necessidade. Os Fulas ocupam há muito terrenos pertencentes aos Biafadas; o bom senso aconselha que se convide Mamadu Paté, atual chefe do Forreá, a abandoná-los, e como esta ocupação não se poderá fazer sem Mudi-Yaiá pugnar os seus imaginários direitos sobre aquele território, será conveniente ouvir a França que também deve desejar fazer iguais arranjos.” O tenente da Armada Real tem uma tese muito própria sobre a independência do Forreá, era a favor da independência do Forreá português e francês, havia também que delimitar os territórios dos Biafadas e Nalus, auxiliando aqueles que se mantivessem sossegados e fiéis à nossa bandeira, castigando os conflituosos, demitindo o prendendo os chefes, e nomeando outros à nossa escolha.

E chegamos assim às conclusões: "pretendemos demonstrar que a Guiné portuguesa, apesar de tudo quanto dela se diz, é uma colónia de futuro comercial brilhante, se cuidarmos da sua organização interna. O nosso país é pobre, bem sei e não pode nem deve arriscar capitais imprudentemente; todavia, deste dilema ninguém poderá sair – ou a Guiné é rica ou não é. Se é rica e pode ter ainda um futuro brilhante, dê-se-lhe o que for preciso para a fazer desenvolver, prosperar. Se não é rica e o défice cresce anualmente em progressão assustadora, e é um sorvedouro dos dinheiros da metrópole e um matadouro de funcionários, ceda-se à França".

Em suma, não se pode dizer que este documento escrito por quem foi não tem algo de profético e ressuma uma mentalidade muito própria do seu tempo, um olha imperial onde não falta o empirismo, o conhecimento científico e um inequívoco fervor, apostando no futuro da Guiné. Resta esclarecer o leitor que voltaremos a Costa Oliveira e a um outro importante documento, a cartografia da Guiné.
Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

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Nota do editor

Último post da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois de percorrer longamente a região Sul, o tenente da Armada Real identificou a nova porção de território da Guiné portuguesa, a península de Cacine, voltou a Bolama, aproveitou para fazer inventário, seguiu para o Casamansa, região que descreve primorosamente, mesmo recorrendo a documentação do colega francês, naquela data é hasteada a bandeira francesa, Portugal perde qualquer influência na região do Casamansa. Mas o tenente Costa Oliveira não se irá despedir de qualquer maneira, refere a importância de Bolor, está em ruínas, fará imensas considerações sobre o modo de desenvolver a Guiné, escreve com elegância, revela-se um observador atentíssimo. Pena é que este registo histórico não seja alvo de revisitação, que um estudioso procedesse a comentários à luz da atualidade, o mínimo que se pode dizer de tão precioso relatório é que ele faz parte do bilhete de identidade tanto da Guiné portuguesa como da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: Viagem à Guiné Portugueza, por Costa Oliveira (6)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesa da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

É um relato quase em forma de diário, percorre-se toda esta zona do Sul, no fundo a comissão francesa faz a entrega histórica à comissão portuguesa da região de Cacine e percorrem-se territórios da fronteira do lado ocidental. Regressa-se a Bolama e o relato agora é sobre o Casamansa, é a vez da comissão francesa ir tomar formalmente conta da região. Costa Oliveira cita o seu colega francês M. Brosselard, ele começa por enaltecer a importância de Ziguinchor, e temos depois comentários da descida do rio Casamansa e Zinguichor, aqui se deixa o registo dado o seu inegável interesse:
“Acima de Sedhiou (Selho, em português) pode subir-se a algumas milhas além de Dianah. Deste porto às origens a distância não pode ser vencida senão por canoas ou pirogas de fundo chato. De Adeane a Dianah as duas margens são revestidas de uma luxuriante vegetação e árvores gigantescas, principalmente em Yatacounda, onde as únicas clareiras que se encontram são ocupadas pelas aldeias. A enchente vai até Selho e facilita a navegação de cúteres e goletas da ilha de Gorée. Um vapor vai em doze horas da embocadura do rio a Selho, as embarcações de vela gastam três dias.”

A missão francesa voltou a 24 de abril no aviso Goëland a Ziguinchor e tomou posse da aldeia portuguesa que tinha sido evacuada alguns dias antes. O pavilhão francês foi arvorado no dia seguinte de manhã na presença dos principais habitantes e saudado com 21 tiros de peça regulamentares. Mas voltemos às observações do tenente da Armada Real.

Em Ziguinchor as habitações confortáveis são raras, o mais que se pode encontrar são três ou quatro casas de negociantes construídas à europeia, as outras habitações são cubatas bastante elevadas. A ocupação de Ziguinchor regula a questão da posse do Casamansa, que se tornou de facto num rio francês. Antes de tomar posse da aldeia portuguesa, os vapores vindos da Europa descarregavam em Gorée, onde recebia os produtos do Casamansa. Doravante, estes vapores virão diretamente às pontes de Ziguinchor, esta é uma pequena colónia que parece ser destinada a capital do distrito de Casamansa; Selho conservará a sua importância militar e Carabane será o posto aduaneiro do rio. Costa Oliveira continua a invocar dados de M. Brosselard e há aqui uma observação bastante curiosa:
“A população muitas vezes mostrou a respeito do seu governador uma antipatia que se traduzia por atos de revolta. Entretanto, os portugueses manifestavam grande tolerância, haviam mesmo deixado subsistir costumes e usos pouco admissíveis sob a proteção da bandeiro de uma nação civilizada; também um dos meus primeiros atos foi suprimi-los.”

Voltemos agora ao discurso direito do Costa Oliveira, ele também se deu ao trabalho de se pronunciar sobre o Casamansa:
“A barra do Casamansa é desabrigada, cheia de escolhos, de difícil acesso a todas as embarcações, particularmente às da vela. É por isso que toda a navegação de cabotagem é feita pelos rios Cajinolle e Elinkin, e principalmente por este, mais profundo e largo do que aquele. É também por este rio, o Elinkin, que facilmente se consegue introduzir contrabando na Guiné portuguesa, como vamos explicar. Nenhum português, desconhecido daquelas tribos, se atreve a desembarcar em Bolor, e com maior razão as autoridades aduaneiras, militares ou civis. Sendo assim, como é, qualquer negociante, de Cacheu, por exemplo, pode estabelecer os seus depósitos ou armazéns, na certeza de que o fisco não o irá perturbar com as suas exigências legais! Estabelecidos os depósitos longe da ação fiscal, o resto é simples e pertence às canoas que de noite, ocultas pelas sombras dos mangais, vão rio acima descarregar os artigos que pretendem furtar aos direitos, nas pequenas sucursais espalhadas pelas margens dos rios e esteiros.”

Ocupada Ziguinchor, reunidas as comissões, e depois de longos debates, assina-se finalmente o processo verbal, Costa Oliveira regressa a Bolama e fica à espera de um paquete que o conduza a Lisboa. É neste compasso de espera que ele vai omitir opiniões e apresenta propostas, é talvez um dos pontos altos em que se revela o seu poder descritivo:
“Naquele país sem outeiros nem vales por toda a parte se navega por entre muralhas impenetráveis de viçosíssimos mangais que tapam as margens, sotopostas às verdes palmeiras de dez castas diferentes, aos corpulentos poilões, aos elevados cedros e mil outras espécies de árvores tão antigas como o solo aonde prendem. A perspetiva exterior da Guiné é, pois, encantadora; mas assim como entre essas ramagens floridas se aninham venenosas serpentes, também à sombra desse arvoredo parado se aspiram miasmas que ameaçam morte; tudo está em resistir ao primeiro combate: a vitória fica segura para sempre.
É nesses plainos intermináveis e paludosos da Guiné portuguesa que correm os rios de S. Domingos, de Geba, do Corubal, o Grande de Bolola, o Tomboli (certamente o rio Tombali), o Cubac (?), o Combilham (Cumbijã) e o Cassini (Cacine).

Na embocadura do rio S. Domingos, em Chão de Felupes e no extremo de uma extensa praia de areia que para ali se estende desde a aldeia Jefunco, veem-se ainda hoje as ruínas do presídio de Bolor, que era formado por dois meios redutos horizontais e céspede e fachina sobre estacaria… miseravelmente tem caído em ruína pelo completo abandono em que tem estado aquele ponto, e, contudo, não merece tal desprezo: de toda a nossa Guiné é esta a posição mais saudável e para lá vão convalescer os doentes de Cacheu, por ser um solo de areia desassombrado de matas em derredor e exposto às virações frescas do mar; pela sua situação já indicada é ali que deveria estar a alfândega de Cacheu e talvez a força, como queria Gonçalo de Gamboa; embora ficasse Cacheu como está, uma feitoria fortificada, os habitantes aqui viveriam em perfeito sossego e livres dos contínuos rebates a que em Cacheu estão sujeitos, nada tendo a recear do gentio Felupe, que adora os brancos; além do muito arroz que se faz anualmente neste chão e de que se sustenta a praça de Cacheu (a qual morreria de fome se lhe faltasse o arroz de Bolor), concorre a este ponto todo o trato de cera e couros da grande região dos Felupes, e o da mata de Putama, o comércio de Ziguinchor por aqui passa forçosamente para ir a Cacheu e também é aqui a escala entre Bissau e Cacheu.”


O relato do tenente da Armada Real vai agora prosseguir com uma descrição muito rápida das lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, seguir-se-ão ainda mais observações e, por fim, as conclusões, está praticamente no seu termo o relato admirável de alguém que foi assistir à chegada de uma porção de território, a região de Cacine, e ao fim da presença portuguesa no Casamansa.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

(continua)
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Último post da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25144: Historiografia da presença portuguesa em África (408): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25144: Historiografia da presença portuguesa em África (408): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Demorou a descobrir este precioso texto redigido pelo tenente da Armada Real que esteve à frente da demarcação das fronteiras da Guiné portuguesa, trabalho conjunto com a comissão francesa, a quem por vezes dispara ásperos reparos, não por falta de galhardia das pessoas mas por saberem que as autoridades de Paris tudo estão a fazer para enfraquecer a posição portuguesa, bloqueando as vias comerciais para o Futa, estrangulando o comércio português no Casamansa ou no rio Nuno. O Tenente Costa Oliveira devia ser metódico, o que ajudava muito à sua capacidade de observação, o seu documento é praticamente relatório, faz uma análise rigorosa da guerra do Forreá, impedido durante alguns dias de viajar para o Casamansa aproveita para trabalhar no inventário das povoações de Bolama. Mouzinho de Albuquerque escreveu um dia que a Pátria é uma obra de soldados, mas incontestavelmente (direi eu) a Guiné é obra de marinheiros e soldados, foram os primeiros que fizeram levantamentos científicos inultrapassáveis para garantir a presença portuguesa, deram alguns dos melhores governadores, desde Pedro Inácio de Gouveia a Sarmento Rodrigues.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A comissão luso-francesa está de regresso a Buba, seguirá depois para Bolama e daqui para o Norte, até ao Casamansa. Depois de ter observado os resultados dramáticos do sanguinário conflito que avassalava o Forreá, o tenente da Armada Real faz a sua análise quanto às consequências das guerras entre Fulas e Biafadas e ao abandono do rio Grande, outrora pujante de feitorias e de comércio:
“Vamos explicar este nosso modo de dizer, talvez nebuloso para quem não conhece a História da Guiné.
É facto sabido que os Fulas pretos vergaram sob o peso da escravidão dos Fulas forros, seus diretos senhores, e que o território circunvizinho a Buba, povoado por Biafadas, era ardentemente cobiçado por aquelas tribos.
Um dia rompem-se as hostilidades entre Fulas e Biafadas, e estes têm de recuar e evacuar quase todo o seu território naquela região. Receosos de serem vencidos em novo conflito, conformam-se com este estado de coisas e continuaram a agricultar os terrenos, enquanto que os Fulas forros fortificam primeiramente os pontos conquistados, e depois é que se entregam à lavora e criação de gado bovino, a sua principal riqueza.
Estavam as coisas neste pé e Buba via entrar quotidianamente as caravanas, vindas do Futa, carregadas de produtos indígenas e aumentar consideravelmente os seus réditos, quando o país, sempre pronto a sacrificar-se pelos princípios humanitários, insiste na abolição da escravidão!
A propaganda invade todo o sertão habitado pelos Fulas pretos, e estes desejosos da sua liberdade, correm a Buba em grandes massas e agarram-se à bandeira! Os Fulas forros, espantados com a fuga dos seus melhores auxiliares, e vendo a proteção que o governo da praça lhes dava, declaram-lhes a guerra, causa primordial da decadência de Buba!
Vencidos, como não podia deixa de ser, faz-se a paz geral e os Fulas pretos alcançam a sua independência relativa.
Os Biafadas, antigos possuidores daqueles territórios, vendo as tribos inimigas enfraquecidas pela independência de uma delas, aproveitam tão bela ocasião e declaram a guerra, e ora vencidos ora vencedores, desde 1880 até esta data ainda não cessaram as guerras mortíferas e prejudicialíssimas ao nosso bom nome e desenvolvimento comercial.
Um outro erro importante da administração colonial foi consentir a expulsão dos Biafadas do sertão de Buba, porque ficaram ipso facto nossos inimigos, e se não nos declararam positivamente a guerra atacaram as feitorias do rio Grande, exigindo grandes tributações aos agricultores e negociantes ali estabelecidos, que não podendo satisfazê-las, por exageradas, nem tendo força para repelir os indígenas, viram-se na dura necessidade de abandonar as suas propriedades.
Este abandono, porém, foi parcial. Algumas feitorias puderam resistir a estes contratempos, e somente o diminuto valor da mancarra nos mercados da Europa e a derivação do comércio sertanejo para território francês (como não podia deixar de acontecer, visto que os Fulas forros e Futa fulas ficaram nossos inimigos, por termos imprudentemente auxiliado a independência dos Fulas pretos), determinaram ultimamente o desamparo completo das fazendas agrícolas e feitorias.”


De Buba viajam até Bolama, onde fundeiam na noite de 27 de março. Enquanto aguarda transporte para o Norte, o autor enceta uma série de pequenas explorações no interior da ilha de Bolama, visitou doze povoações, deu-se ao trabalho de as numerar e marcar. Chega, entretanto, uma visita, o Fula Mahmadi, que viera expressamente de Kadé cumprimentar o governador da parte de Mudi-Yaiá e trazia-lhe presentes. Foi Mahmadi que conseguiu que se assinasse em Buba o tratado de paz de 1886.

Viajam para o Norte até à ilha de Carabane: “É pequena e pantanosa. Ao NE, e sob areia fina e branca, edificaram os franceses, em 1836, a povoação, que pouco tem prosperado. Apenas se notam uns três edifícios construídos à europeia, o posto ou residência do administrador, as casas Blanchard, Maurel Frères & Co., e a residência do missionário. Na retaguarda do posto estende-se um vasto pântano, exalando continuamente miasmas paludosos. Os navios têm que ancorar longe da praia por causa da natureza do fundo, e, como há quase sempre grossa mareta, as cargas e descargas fazem-se com dificuldade.”

E prossegue as suas observações:
"A barra do Casamansa é mal dividida em dois canais por numerosos baixos de pedra, cita M. Brosselard que fez o reconhecimento da importância estratégica de Ziguinchor: “No percurso do rio os grandes navios não encontram senão um ancoradouro digno desse nome. É o de Ziguinchor. Ali encontram um fundo de sete metros junto à praia. Com um calado de água de dois metros pode atingir Sédhiou (em português, Selho) a 170 quilómetros da embocadura.”

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 31 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Foi uma viagem de demarcação de fronteiras onde não faltaram peripécias de todo o tipo, desde ataque de formigas, a beber água com sanguessugas, carregadores velhacos com ameaças, o Tenente da Armada Real não vacila perante todo aquele resplendor vegetal, o reconhecimento das riquezas, põe várias hipóteses para intensificar a presença portuguesa neste território que passou a ter fronteiras demarcadas, só vê vantagens no estabelecimento de alianças com os potentados locais, já chegaram a Buba, não esconde o seu assombro com a paisagem fascinante, e, como veremos seguidamente, dar-nos-á uma interpretação de como a que fora tão florescente economia das feitorias do rio Grande de Buba caíra no mais completo declínio, a que se seguiu o abandono, era insuportável mercadejar no meio de tão sanguinária guerra entre Biafadas e Fulas.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A missão luso-francesa está de regresso a Buba, partirão mais tarde de Bolama para o Casamansa. Viajam por itinerários separados. O grupo português saiu de Damdum e acampa na margem direita da ribeira Tucumen, logo uma observação: “No arvoredo frondosíssimo das suas margens abundam os macacos-cães que toda a noite nos incomodaram com os seus guinchos, tão semelhantes ao latir dos cães.” E logo a seguir passamos para um episódio turbulento, um tanto cómico:
“Alta noite fomos acordados pelos gritos da nossa gente. Quando abrimos os olhos ficámos surpreendidos com o que se passava no acampamento! Os carregadores seminus, as raparigas Fulas, o Maia, mal alumiados pela chama vacilante das fogueiras, pareciam dançar uma dança desesperada, infernal, acompanha de gritos e movimentos desordenados! Não pude conter o riso, e assentado num leito de viagem interroguei os mais próximos. Ninguém me respondeu! Alguns indígenas, correndo para as fogueiras, fazendo esgares, dando saltos, gritando, largando a linha, para se esfregarem e sacudirem. Foi então que pude compreender e ver o que se passava. Perto do meu leito movia-se um grosso cordão formado por milhões de formigas. No seu caminho, sempre em ziguezague, encontraram deitado um desgraçado carregador, que atacaram com violência. Tudo se resolveu com cinza quente e depois todos voltámos ao sono.”

É um exímio contador de peripécias, vejam esta:
“Quando chegámos a Saála mandámos à ribeira encher um garrafão de água e como viesse muito fresca e eu estivesse sequioso, despejei uma porção num copo de ferro esmaltado e bebi sem olhar, contra o meu costume. Imediatamente senti uma grande picada na faringe, e como que um objeto ali agarrado, tomo um pouco de licor de Kermann e gargarejo! Nada! Repito a operação e a dor não desaparece, bebo alguns goles, a mesma coisa! O chefe de Saála que assistia, espantado, a esta cena muda, pergunta-me o que tinha. Não sei, respondi-lhe eu, bebi água da ribeira e suponho que tenha agarrado à garganta um grande bicho.
O homem sorria, fez sinal para eu sossegar e esperar, e desapareceu. Passado pouco tempo, volta trazendo na mão a metade de uma cabaça com uma água acinzentada, cheia de grumos escuros, malcheirosa e repugnante, e entregando-ma, convida-me a tomar aquela poção. O estômago tocou a rebate, e eu sem refletir recusei! O chefe escandaliza-se, e chamando o seu herdeiro apresenta-lhe a cabaça, que ele leva à boca, bebendo metade aproximadamente do seu conteúdo. Então, levei a cabaça à boca e bebi o resto daquela beberragem. Mas, ó caso maravilhoso, logo ao segundo gole senti desprender-se da garganta o que quer que era, ficando-me apenas uma impressão dolorosa que durou horas. O bicho, que se havia agarrado à faringe, era uma sanguessuga, e o remédio um soluto de sabão indígena!”


Avança-se para Buba, o oficial rende-se ao esplendor da natureza:
“É formosíssimo o sertão de Buba! Quem vê a Guiné de fora, e conhece os seus mangais e os lodos das suas extensas planícies morbíficas e pestilenciais, não pode imaginar sequer as belezas que o seu interior encerra. Cursos de água cristalina correm em todas as direções e sentidos; grandes manadas de gado vacum pastam sossegadamente a era viçosa e fresca dos seus vastos prados; matizados pelas cores variegadas de mimosas boninas; campos cultivados pela mão de mulher africana que, com o filho às costas envergada sobre o peso de cestos cheios de maçaroca de milho, lá vai a caminho da povoação; florestas impenetráveis onde abundam o ébano, o mogno, o pau-sangue e tantas outras madeiras apreciadas na Europa.
E dizem ser pobre Guiné!
Pois será pobre um país onde a vegetação é tão vigorosa e rica; aonde há milhares de cabeças de gado bovino e lanígero; aonde vive o elefante em numerosos rebanhos, aonde há mel, cera e oiro nativo, aonde a árvore da borracha é vulgaríssima, e como que a completar todo este esplendor rios enorme e navegáveis por onde se podem conduzir todas as riquezas às suas capitais? Não, não pode ser! A Guiné é rica, muito rica, mas… desconhecida, e tanto basta!”


É agora na marcha para Kolibuiá que temos mais um episódio que podia ter terminado em tragédia, os carregadores tinham aceitado a contratação, mas pelo caminho começaram a fazer longas paragens e a reclamar mais dinheiro, a equipa de Costa Oliveira chegou a temer serem roubados ou assassinados, tudo terminou em bem porque apareceu inopinadamente um enviado de Mudi-Yaiá. Costa Oliveira explica a falsidade da reclamação dos carregadores que tinham ameaçado não continuar a marcha se não se pagasse mais por dia, tanto a homens como a mulheres, e tece um comentário amargo: “Ouvindo, admirados, esta proposta, no fundo um ultimato, compreendemos imediatamente a velhacaria dos negros e a razão por que haviam descansado tantas vezes. Quiseram distanciar-se, e distanciar-nos dos carregadores permanentes e soldados, que caminhavam apressados, sem se lembrarem que nós, ficando sozinhos com aqueles patifes, podíamos ser roubados e até assassinados se resistíssemos!”

É nesta situação críticas em que estavam resolvidos a vender cara a vida que apareceu o tal enviado de Mudi-Yaiá, que sabendo da presença da comissão portuguesa tão perto de Guidali, vinha de propósito cumprimentar-nos em nome do seu soberano. Resolvida esta situação de tão desagradável mal-estar, Costa Oliveira apresenta-nos Kolibuiá: “É uma povoação pequena, situada na margem esquerda da ribeira Tenheleol. Foi uma estação comercial importante, mas está hoje completamente abandonada pelos negociantes europeus, como atestas as ruínas das suas feitorias". É neste quadro de prestes a entrarem em Buba que Costa Oliveira nos deixa um texto primoroso sobre o abandono das fazendas agrícolas e feitorias do rio Grande dos portugueses. Primeiro a chegada:
“Cobertos de pó e lodo, com o fato esfarrapado pelos acerados espinhos das florestas e extenuados de fadiga entrámos em Buba, aonde éramos esperados pelos membros da comissão francesa, comandante da praça e destacamento.” Como é habitual do seu espírito de observação, apresenta-nos esta povoação histórica da presença portuguesa:
“Buba, cabeça de concelho de Bolola, magnificamente situada na margem direita do rio Grande, defendida pelo lado de terra por forte paliçada e onze peças de artilharia e duas metralhadoras – mas sujeita a qualquer insulto pelo lado do rio – com clima relativamente saudável, foi uma estação comercial florescente quando a mancarra era cultivada naquela região.”

E dá-nos um quadro primoroso, sucinto, da guerra do Forreá.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)