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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)



C. CAÇ. 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - I

Belmiro Tavares

A C. Caç. 675 continua viva! Apesar de fortemente “desfalcada”… quanto mais velha, melhor! Isto não acontece apenas com o Vinho do Porto. É caso para dizer que nada (ou quase nada) conseguirá impedir-nos de cumprir a nossa extraordinária missão… a não ser a morte… por enquanto. A essa ainda não conseguimos sobrepor-nos, mas… na nossa segunda vinda a este mundo, talvez não tenhamos… adversários invencíveis. Até lá… seja o que Deus quiser!

Passe a graça! É de graça!
Coloquemos, de novo, os pés no chão!

Ultrapassada a pandemia (dela ainda restam certos resquícios mais ou menos percetíveis) regressámos às nossas confraternizações anuais mas, agora, com mais genica. Dado que temos “companheiros” espalhados por todas as províncias do continente (temos também um “teimoso” que, de boa saúde, vive na Madeira) e porque a idade vai ditando as suas leis rígidas, decidimos organizar, anualmente, dois convívios: um para a “rapaziada” do norte e outro para os que vivem na zona sul. Não creiam que há sectarismo nesta decisão. Nem pensem! Cada um escolhe, de sua inteira e livre vontade, em qual pretende participar; por outro lado, todos podem estar presentes nas duas. Todos serão bem-vindos! Acima de tudo, que ninguém esqueça os familiares.

Acontece que nem só de convívios vive a nossa C. Caç. 675, a gloriosa. Voltámos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos companheiros que, entretanto, nos foram abandonando, para sempre. É a rígida lei da vida!

Esta é já a terceira série! No início dos anos setenta (século passado) colocámos as primeiras quatro lápides nas sepulturas dos três companheiros que morreram em combate, na Guiné (soldado Augusto, furriel miliciano Vilhena Mesquita e o soldado João Nascimento); como entretanto, faleceu o 1º cabo enfermeiro nº 2533, António Martins; morreu num acidente de viação, aquando da visita a sua mãe, em Tondela, a sua terra natal, depusemos também uma lápide na sua sepultura.
A partir de maio de 1966, terminada a comissão na Guiné, o Rato ficou a viver em Lisboa; exercia a profissão de enfermeiro num qualquer hospital da capital.

Falemos um pouco deste cabo enfermeiro que nos acompanhou na Guiné durante dois anos infindáveis e de quem se contam inúmeras brincadeiras inofensivas e engraçadas.
No dia a dia, era um desenrascado nato mas era igualmente corajoso e competente no desempenho das tarefas inerentes à sua especialidade – enfermagem.
Não defendemos que ele era melhor ou mais eficiente que os outros dois, pois todos eram bons, briosos e decididos. Acontece que, quando o doente (ou o ferido) confia plenamente em quem o trata (médico ou enfermeiro) se o profissional sabe insinuar-se e é bem aceite, é meio caminho andado para a total recuperação. Era o que acontecia com o “Rato”. Ele sabia penetrar no coração e na alma do doente e o este confiava, piamente no que ele dizia ou fazia.

Vamos contar duas façanhas acerca do “Rato”; ambas ocorreram em Guidage mas em épocas diferentes e sob as ordens de oficiais diversos.

A primeira ocorreu em março de 1965, quando o mui ilustre e digno “capitão do quadrado”, em cumprimento de ordens superiores, enviou para Guidage (um posto fronteiriço no norte da Guiné) o signatário destas linhas com o seu pelotão. Ao receber a ordem de partida, o alferes, mui respeitosamente, perguntou ao seu comandante qual era a sua missão naquele autêntico desterro. Seria preferível viver na sede da companhia com toda uma série de patrulhas frequentes e mais ou menos perigosas ou “morrer de tédio” na solidão de Guidage? Que venha o diabo e escolha!

O sábio capitão de Binta respondeu que, segundo informações da PIDE (polícia internacional de defesa do estado), um grupo de chefes políticos do PAIGC (partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde) iria deslocar-se a Sambuiá (uma base fortíssima a norte do Cacheu e a poucos quilómetros da fronteira com o Senegal) para apaziguar as chefias daquela base; havia, ali, desentendimentos graves entre os chefes. Seria urgente reverter a situação, enquanto era tempo. Nós pensaríamos o contrário: quanto mais desentendimentos… entre eles… melhor!

Quanto à PIDE, essa salazarenta organização policial de má fama, podemos dizer que, durante a mui longa e perigosa guerra colonial, ela prestou muitos e valiosos serviços às nossas Forças Armadas; em alguns casos, houve resultados notáveis. Lembremos apenas o apoio que os “pides” prestaram, durante anos, aos nossos prisioneiros, nos calabouços de Conacri e a sua posterior libertação – operação Mar Verde. Poderá dizer-se que, mesmo aquilo em que não acreditamos ou de que não gostamos ou até odiamos, pode proporcionar ajuda prestimosa às nossas cores, como é o caso. Esta é a face boa e patriótica da PIDE.

Durante vários anos, umas dezenas de militares portugueses penaram miseravelmente na prisão de Conacri (capital da Guiné ex-francesa), cujo governo apoiava, abertamente, a guerrilha da Guiné-Bissau que pretendia libertar-se do domínio português. Por incrível que possa parecer alguns conseguiram sobreviver ali, penando, durante bem mais de uma dezena de anos.
Graças a Deus, a PIDE não os abandonou!
Imagine-se os perigos que alguns “pides” correram para fazer chegar aos nossos prisioneiros lembranças e correspondência dos seus familiares. “Mascaravam-se” de comerciante, subornavam polícias e carcereiros para poder contatar diretamente aqueles prisioneiros infelizes, massacrados e abandonados. Faziam isto, duas vezes por ano, no mínimo.

A PIDE colaborou, abertamente, na operação “Mar Verde” que provocou a libertação daqueles portugueses e trouxe-os de volta a Portugal. Entre aqueles massacrados prisioneiros, havia pelo menos um piloto aviador de nome Lobato, creio.
Esta terá sido, talvez, a faceta mais apreciável e até louvável daquela “salazarenta organização policial”. A maior parte das grandes operações levadas a cabo durante a Guerra do Ultramar, teve por base informações da PIDE e a tropa ia agindo a contento.

A missão deste vosso alferes, junto à fronteira norte, era impedir a passagem dos tais chefes políticos, pelos nossos terrenos, nas imediações de Guidage. Mui respeitosamente, este alferes manifestou a sua opinião:
- Para cumprir, cabalmente, tal missão eu terei de montar emboscadas permanentes, ao longo da fronteira. Acontece que, durante a noite, os adversários podem passar bem perto das nossas barbas, sem que nos apercebamos de tão ousada e perigosa presença. Por outro lado, nem os meus soldados nem eu poderemos suportar, impunemente, tão desmesurado e perigoso sacrifício que, na pior das hipóteses, poderá tornar-se inglório por falta de resultados. Ninguém nos informa sobre o itinerário aproximado que eles vão usar nem sequer a hora de passagem. Eu preciso dos meus soldados (e eles necessitam de mim) até ao fim da comissão que ainda é quase uma miragem. Trata-se dum sofrimento enorme e, certamente, sem resultados condizentes e poderá marcar-nos, negativamente, para o resto da nossa comissão.

A resposta do inigualável capitão foi clara e… convincente. Ei-la:
- Como deve calcular, eu confio em si! Faça o que melhor entender para cumprir a missão, cabalmente, enaltecendo o bom nome da nossa C. Caç. 675 e das nossas Forças Armadas.
Você leva consigo o enfermeiro Martins que, a qualquer hora, é eficiente; leva também o Machado (um soldado atirador natural de Cheleiros, Mafra), que tinha ganas de ser enfermeiro; na prática, até foi.

O alferes em causa e o seu pelotão lá foram até Guidage; no grupo seguiram o Rato (enfermeiro) e o Nhaca (ajudante ou aprendiz de enfermagem).
O enfermeiro Martins não perdeu tempo para iniciar a sua atividade, lá, quase sobre a linha de fronteira, onde o diabo perdeu as botas. Começou a dar consultas diárias, não só aos militares mas também aos civis que, vindos do Senegal, ali procuravam “mezinho” para todas as suas maleitas. Em Guidage, onde estava sediado um outro pelotão, praticamente não havia população civil; mais tarde… havia ali um bom número de “retornados” – portugueses da Guiné que, para fugir às agruras da guerra, se refugiaram no Senegal, junto dos seus irmãos étnicos (etnia mandinga) que viviam nos dois lados da fronteira.

Imaginando que os medicamentos ali distribuídos, gratuitamente, poderiam ir parar às “mãos” dos nossos adversários que tinham apoio do governo do Senegal, o alferes determinou que o “mezinho” teria de ser tomado, ali, pelos “doentes” e na presença do enfermeiro ou do seu ajudante.
O enfermeiro Martins, por seu lado, exigia que os “doentes” civis o chamassem por dr. Martins. Para terem direito a consulta gratuita e aos medicamentos “à borla”, os doentes teriam de trazer galinhas ou frangos para oferecer ao sr. Doutor. Era um João Semana… dos tempos modernos!

Sabendo que a população dava “apoio logístico” (ou a isso seria obrigada) aos guerrilheiros do PAIGC, o alferes informou os supostos doentes:
- Se, durante a minha permanência aqui, em Guidage, este quartel for atacado, eu enviarei umas morteiradas (granadas de morteiro, neste caso de calibre 81) sobre a vossa aldeia.
Todos negaram dar apoio aos combatentes, nossos adversários, mas nós sabíamos que a sua atuação (no mínimo a de alguns) era bem diferente do que nos transmitiam, amigavelmente.

Dias volvidos, o quartel de Guidage foi atacado (em modo soft); nós respondemos em força ao ataque dos adversários e, logo, duas ou três granadas de morteiro caíram na aldeia senegalesa. Conclusão:
1 – Não houve vítimas entre os civis – o que muito nos agradou;
2 - Durante uma semana não tivemos lavadeiras.

Como em Guidage não havia população civil, as mulheres senegalesas lavavam a roupa a cada um de nós, cobrando esc. 50$00 por homem/mês. Por outro lado, o nosso conhecido, “dr. Martins”, perdeu a clientela civil. Em breve tudo se recompôs: eles precisavam de tratamento médico e as lavadeiras faziam-nos uma falta do caraças. O dr. Martins (um enfermeiro autopromovido a doutor) recuperou a clientela e continuou a ser “remunerado” com galinhas e frangos.
No final das consultas, o enfermeiro Martins tinha de proceder à conferência do material utilizado - era tempo das vacas magras! Os descartáveis (usa e deita fora) ainda não tinham sido “inventados”. Um dia, faltava uma agulha da seringa; tudo era controlado ao centavo e ao centímetro. A falta de uma mísera agulha de seringa poderia dar origem a castigo severo se se provasse que houve dolo e/ou negligência. A balbúrdia (irresponsabilidade) surgiu entre nós, uns anos mais tarde, logo após a Revolução dos Cravos.

Por vezes podia-se driblar a justiça se houvesse inteligência e bons conhecimentos técnicos.
Vejamos: os caldeiros da nossa cozinha estavam irremediavelmente deteriorados; era tal a sua debilidade que já não “suportavam” a soldadura. Naquele tempo, tudo tinha duração estipulada, mas os materiais recentes não tinham a qualidade e a duração dos antigos. No entanto, o legislador “esqueceu-se” de colocar em prática a adaptação e a correção necessárias. O célebre capitão de Binta solicitou à Intendência que procedesse à substituição dos ditos caldeiros porque “já não cumpriam o fim a que se destinavam”. Pediram explicações. O capitão argumentou que a ruína prematura se devia ao uso excessivo dos caldeiros. Todos eram usados diariamente porque fornecíamos aos soldados sopa e um prato às duas refeições.

Eis a resposta dos entendidos (burocratas) da Intendência:
- O uso excessivo não justifica a ruína prematura!
Seria inútil argumentar porque… o chefe tinha sempre razão!

Volvidos poucos dias, os nossos adversários (os combatentes do PAIGC) colocaram uma mina na estrada de Guidage (mais precisamente na bolanha de Cufeu) a qual foi despoletada por um caminhão Mercedes. O motor da viatura “desencaixou-se” e desapareceu nas águas turvas e lodosas da bolanha. Apenas o condutor da viatura ficou ferido num pé; foi evacuado para Lisboa e… meses mais tarde, “passou à peluda”.

O nosso excelente capitão informou a Intendência que todos os caldeiros seguiam na viatura sinistrada e desapareceram nas águas pútridas da bolanha de Cufeu. Recebemos, imediatamente, caldeiros novos… em folha. Valeu a pena! É o que vale a burocracia!

Perante aquela falta duma mísera agulha de seringa, o enfermeiro alertou o seu ajudante:
- O Nhaca! (era a alcunha do soldado Machado) falta uma agulha da seringa! O Machado esbugalhou os olhos, bateu com a palma da mão na testa e saiu do “consultório” em corrida desenfreada, em direção à bolanha que servia de fronteira entre a Guiné e o Senegal; bolanha é um terreno alagadiço onde também se cultiva arroz. Abeirou-se duma “bajuda” (rapariga, “teoricamente”, virgem), levantou-lhe a saia (um tecido enrolado à cintura) e recuperou a tal agulha que ela levava espetada no traseiro.
Acreditem que é verdade!
Correu de regresso até ao aquartelamento e, esbaforido, disse, contente, ao seu chefe:
- Está aqui a agulha que faltava!

Meses mais tarde o mesmo enfermeiro e o mesmo ajudante voltaram a Guidage, exercendo as mesmas tarefas, mas agora integrados em outro pelotão. Os dias corriam modorrentos mas, de repente, tudo se complicou… e de que maneira!

Ao fim da tarde de determinado dia, dois soldados (o Coelho e o Artur José) saíram do quartel, espingardas na mão, para tentar caçar algo que lhes proporcionasse um bom petisco. Certamente, não terão avisado os seus superiores de tão inopinada saída. Entretanto, à hora pré-determinada, o sargento de serviço fechou o portão (uns fios de arame farpado) e armadilhou-o, como acontecia, a cada dia. Os “pretensos caçadores” voltaram, de mãos vazias. Não se lembraram que o portão poderia estar armadilhado, e abriram-no, displicentemente, para entrar. A armadilha funcionou. Cumpriu-se o aforismo: - “as nossas armadilhas nunca falham… contra nós!”
O Coelho foi atingido por uns tantos estilhaços (mini estilhaços)… nada de grave; o Artur, por seu turno, ficou com a veia femural desfeita numa extensão de sete centímetros.

A noite caía inapelavelmente! O helicóptero já não podia sair da base, em Bissau – não estava equipado com meios de orientação noturna. Era a guerra dos pobres!
Era imperioso que o Artur se “aguentasse” vivo até às primeiras horas da manhã e que a perna não gangrenasse. Noite de dor profunda! Noite de esperança! E a gangrena? Estaria de acordo? Podia ser fatal!
O Rato (enfermeiro e dr. Martins) iria ser confrontado com um dos momentos mais difíceis e fantásticos da sua vida; manteve-se ao lado do Artur, durante toda a noite, dando-lhe apoio moral… e medicamentoso para impedir que a gangrena “levasse a melhor”.

Amanheceu! A vitória daquela dupla (Martins e Artur) era uma realidade! A gangrena e a morte foram vencidas! Como terá o Martins conseguido aquela estrondosa vitória? – Não sabemos! Ninguém sabe, como tal aconteceu! Apenas ele saberia e já não consegue dizer nada. Desgraçadamente, o Martins foi o nosso primeiro morto, após o regresso da Guiné. Faleceu numa deslocação que fez a Tondela, a sua terra natal, para visitar a sua mãe. Faltou-lhe ali, certamente, um “enfermeiro Martins” para que não perdesse a vida em um miserável acidente com uma motorizada.

Logo pela manhã, o helicóptero levou o Artur para o HM 241, em Bissau. Ao aperceberem-se do seu estado tão melindroso, os médicos “afiaram facas e cutelos” para amputar a perna do Artur sem ter em devida conta o esforço, a dedicação, o saber e o profissionalismo do Rato e o enorme sofrimento do Artur.
Por sorte, encontrava-se ali um médico, que vivera, durante uns anos, nos EUA, trabalhando num hospital onde eram tratados muitos mutilados da guerra do Vietname. Ele alegou que: “para amputar, há sempre tempo”. Pela primeira vez, em Portugal, “um tubo de plástico” foi usado para substituir sete centímetros de uma veia femural que se encontrava destruída nessa extensão. Graças a Deus!

O Artur continua de boa saúde, no Monte da Estrada, nas imediações de Relíquias, a sua terra natal; continua a servir-se da perna que Deus lhe deu. Na zona, onde a artéria femural fora substituída por um mísero tubo de plástico (não seria, certamente, um plástico qualquer), a coxa tem ainda um perímetro, significativamente, inferior ao da outra mas… é a sua perna, graças a Deus… e também às artes mágicas e milagrosas (quase) do enfermeiro Rato.
Que a terra lhe seja leve!

Diz o nosso povo que “a conversa é como as cerejas” (engatam-se umas nas outras) e com razão. Vejamos.
Dois soldados da C. Caç. 675 eram naturais de Relíquias, concelho de Odemira; um é o Artur José (seu nome completo) de quem temos vindo a falar; o outro era o Manuel José (é também o seu nome completo); faleceu há já uns anos. Acontece que, apesar do que ficou aqui expresso, não pertenciam à mesma família. Mas há mais estranhezas: ambos eram “filhos de mãe incógnita”.

Nunca entendemos esta situação! Sabíamos o que era o “pai incógnito” mas nunca tínhamos ouvido falar de “mãe incógnita”… ultrapassava o nosso entendimento.
O 1º sargento da companhia, Antero dos Santos, apresentou uma explicação algo estapafúrdia… que não nos convenceu.

Na verdade, é obra! Dois rapazes nascidos na mesma povoação, têm o mesmo sobrenome, não pertencem à mesma família e, para cúmulo, ambos são filhos de “mãe incógnita”. Mas há mais! Nasceram no mesmo ano, foram para o mesmo quartel, pertenciam à mesma companhia e ao mesmo pelotão - o primeiro, comandado pelo alf. Costa (já falecido) e que, tal como os dois soldados, era também alentejano. Era natural de Beja!… Por mero acaso… não era de Relíquias!
Um caso assim, só poderia pertencer à C. Caç. 675.

Na sepultura do Rato (enfermeiro Martins) bem como na do Manuel José, já se encontram as respetivas lápides da C. Caç. 675.

O furriel enfermeiro José Eduardo Reis de Oliveira, mais conhecido por JERO (o acrónimo elaborado com as iniciais de seu nome) fez questão de estar presente, em Tondela, pois o Rato seria seu colaborador mais dileto. Aliás, o JERO esteve presente na colocação de outras lápides.

Um dia partimos para o norte com seis lápides na mala do carro. No 1º dia colocámos cinco – quando acabámos de depor a última (furriel Mesquita, em Famalicão) já era noite escura. A irmã e o sobrinho (Drª Teresa Mesquita e seu filho Dr. Francisco Mesquita) do malogrado Álvaro Mesquita, tiveram a amabilidade de nos oferecer um lauto jantar… no restaurante, “O Tanoeiro”, em Famalicão. Por sinal, o dono era nosso amigo, de longa data E por falar em lápides…
Vila Nova de Famalicao > Cemitério local > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto da campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.

Uns anos após a colocação das quatro primeiras lápides, já nos anos 80/90 (século passado) encomendámos uma nova série de 45 lápides. Para que isto se tornasse realidade, calcorreámos outros tantos cemitérios de norte a sul, ou seja, desde Caldas das Taipas (bem no extremo norte do país) onde jazem os restos mortais do sold. corn. 2444, António da Silva Lopes, até Vila Real de Santo António onde repousa o sold. cond. auto, 2466, João Alexandre de Jesus Alexandre. Este foi ferido num pé, aquando do rebentamento estrondoso duma mina, na bolanha de Cufeu, estrada de Guidage, como acima foi referido.

Nós temos apregoado aos ventos que, tendo em conta as várias facetas das nossas vidas, fomos uma companhia positivamente diferente de todas as outras. Em tempos idos, através do blog luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, perguntámos:
- Quem tem vindo a fazer reuniões anuais para recordar a nossa passagem por aquela malograda guerra miserável?
A melhor resposta que nos chegou referia uma companhia que falhou apenas um ano.
À pergunta: - Quem trasladou os seus mortos, durante a guerra? Apenas duas unidades responderam afirmativamente.

Nota: o governo da época não pagava a urna de chumbo para a trasladação; apenas fornecia o transporte (os navios vinham vazios). À época, uma urna própria para esse fim custava esc. 8.000$00 (oito mil escudos); na Guiné, um alferes auferia um vencimento pouco superior a 6.000$00.

À pergunta: Quem colocou lápides nas sepulturas dos seus mortos em combate? Ninguém respondeu, afirmativamente.
Não seria necessário perguntar se alguém colocou lápides, tal como nós, nas sepulturas dos antigos combatentes, que morreram após o regresso.

Sempre defendemos que a C. Caç. 675 era… diferente pela positiva, de todas as outras.
Hoje, tendo em conta que ninguém perpetuou a memória dos seus mortos durante o pós-guerra, podemos afirmar, sem receio de errar, que somos uma companhia única.

Perto de um milhão de jovens participou na guerra colonial; em mais de seis mil companhias (cada companhia era constituída por cerca de cento e sessenta mancebos) apenas uma companhia - a gloriosa C. Caç. 675 - cometeu tal proeza.
Tudo isto se iniciou na Guiné, onde, sob um sol tórrido, e no meio dos maiores perigos, começámos a ser diferentes:
- Os nossos soldados distinguiam-se pelo aprumo e pelo seu comportamento garboso;
- Pacificámos a nossa zona – algo mais de 400 km2 (quatrocentos quilómetros quadrados);
- Lutámos também à procura da paz (na nossa zona, claro)
- Cerca de dois milhares de guineenses abandonaram o Senegal onde viviam em grande penúria, passando a viver em liberdade e a produzir riqueza à sombra da nossa companhia e da nossa Verde/Rubra. Nunca, mesmo em tempos idos, aquele povo recebeu tanto “patacão” (dinheiro) pelo amendoim que produziu. Para isso, foi mesmo necessário controlar (dominar) a ação perniciosa (criminosa) dos funcionários das grandes empresas comerciais que ali compravam amendoim. “Manga de patacão” clamavam os chefes de família quando venderam a mancarra (amendoim) que produziram, em 1965. Eles sabiam que produziram mais que em outros anos; também sabiam que naquele tempo não havia “desvios”!

Já em 2023, recomeçámos o nosso fadário; encomendámos mais 25 lápides, e no dia 16 de abril, colocámos as primeiras cinco, nas sepulturas de outros tantos companheiros:
- Em Caldas da Rainha, colocámos a primeira – eram 09:00 – na sepultura do Joaquim Lopes Henriques (o Caldas), soldado nº 2225. Estavam presentes a viúva e o filho. Não foram parcos nos agradecimentos. Os seus olhos brilhavam de alegria!
Seguimos para Alcobaça, a terra natal do furriel miliciano enfermeiro, Oliveira, mais conhecido por JERO. Estavam presentes: a viúva, os filhos e um generoso grupo de bons amigos do nosso companheiro. O silêncio (e o respeito) era audível! Grande camaradagem!
- Partimos para Batalha, cemitério de Jardoeira. Aqui repousam os restos mortais do J. Santos Frazão, soldado atirador 2236. Não compareceu nenhum familiar! O Frazão não tinha filhos e a viúva, quando se viu sem o seu marido, voltou à sua terra natal – Arouca. Já consegui o seu contato e informei-a do que fizemos para que ela não viesse a ser colhida de surpresa.

No mesmo cemitério está sepultado o Carlos Agostinho Vieira, o 1º cabo R. M. 2645; era o encarregado das munições, em Binta. Toda a família esteve connosco: viúva, filhos, filhas, noras, genros e netos. Aliás já quase todos tinham participado das nossas reuniões anuais. No fim da cerimónia, a família do Vieira convidou-nos para almoçar. Logo informei que o convite seria aceite mas cada um pagaria a sua parte. Por artes de magia pura, o repasto foi oferecido pela família do Carlos Vieira. A todos, os nossos sinceros agradecimentos! Em resposta, uma boa parte da família esteve presente na reunião deste ano, em Benavente. Presentearam-nos com uma “box” de vinho que o Vieira fabricou… antes de “partir”. Foi a sua última colheita! Tratou-se de um gesto de grande simpatia para com a nossa rapaziada.

A viúva do Vieira tomou parte no funeral do Lua; ela decidiu ir connosco para nos indicar o caminho para o cemitério onde o José Pires Carreira (o Lua) está sepultado; era o soldado atirador 2244. A viúva e uma filha estavam presentes. Ficaram extremamente contentes por terem ali os companheiros de seu marido e pai.
Só encontrámos boa gente! Todos rejubilaram com a nossa presença e pela atitude da C. Caç. 675. É ela que nos move.

Neste dia, 16 de abril, a “equipa de colocação de lápides” foi chefiada pelo nosso mui querido general, Alípio Tomé Pinto; era coadjuvado por um alferes (o Tavares), por dois furriéis (Luís Moreira e Mogo Miguel; este era o acordeonista privativo da C. Caç. 675) e pela condutora civil – Ana Luisa – filha do alferes Tavares.
Pela primeira vez, eu “convoquei” o nosso general para estas tarefas pois temos obrigação (pelo menos moral) de preservar o nosso adorado chefe. Aconteceu desta vez porque o nosso general nutre uma consideração especial pelo furriel Oliveira, por ser o nosso cronista-mor e, além disso, foi o seu padrinho de casamento.
O nosso general vinha radiante e surpreendido pela alegria, simpatia e carinho com que aquelas gentes nos receberam; prometeu estar presente noutras colocações de lápides.

No dia 21 de maio, colocámos mais duas lápides, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa: uma no jazigo onde está guardado o corpo do nosso querido médico, dr. Martins Barata; outra foi colocada junto dos restos mortais da Srª Dª Maria Lucília Pinto, a mui digna esposa do nosso general. Surpresa? Não! Todos se lembram, certamente, que a srª Dª Lucília sempre nos acompanhou desde janeiro de 1964, quando a C. Caç. 675 foi formada, no RI 16, em Évora; mesmo quando a saúde começou a abandoná-la, ela fez sempre questão de estar presente nas nossas confraternizações. Por tudo isto, o mínimo que poderíamos fazer era: - chamar-lhe mãe.
Por outro lado, se a companhia tem um pai, o nosso general - deveria, também, ter uma mãe; mais ninguém teria precedência neste assunto. É caso para dizer que, agora, nós somos órfãos de mãe.

Neste dia, a nossa equipa era constituída por: o nosso general, a viúva e a filha do fur. Mil. enf. Oliveira, um filho do dr. Barata, o Tavares, o Moreira, o Mário Cardoso e o Filipe.
Que Deus nos dê vida, saúde e ânimo para levar mais esta nossa tarefa a bom porto. Acontece que o último de nós a morrer ficará sem lápide. Ou talvez não! Aguardemos!

Brevemente, retomaremos a nossa tarefa mui nobre. Desta última série, falta colocar 18 lápides. Serão depostas em vários cemitérios desde Maia (Porto), Gonçalo (Guarda), Covilhã, Alcanena, Idanha-a-Nova e Serpa. Há vários em cemitérios diferentes do distrito de Setúbal.

Acabámos de saber que o Vítor Bramão, soldado atirador 2032, sepultado em Faro, não pode “receber” a lápide que até já foi elaborada. Os seus restos mortais passaram à vala comum; a família não os reclamou, porque não foi avisada. Quando se apercebeu, já era tarde. Lamentamos, profundamente!

Aconteceu o mesmo com o soldado Ap. Metre. 2041/63, António Manuel Rola Garrido, que foi abatido, em Monsanto, por forças extremistas, pouco depois da Revolução dos Cravos. Afinal… fez-se a Revolução e os mortos continuaram. Ele era guarda prisional e foi morto a tiro, quando conduzia um “criminoso” ao tribunal. Foi vítima da “politiquice” de extremistas!

Damos por terminado o relatório desta nossa tarefa… até esta data. Dentro de alguns meses, depois do verão, haverá mais.

Lisboa, julho de 2023

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sexta-feira, 3 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24114: Notas de leitura (1560): "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques; Edições Vieira da Silva, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Não é usual alguém, mesmo solidário com amigos antigos combatentes, e com livro já publicado sobre a guerra colonial, pretenda homenagear aqueles jovens que andaram em diferentes teatros de operações, recolhendo múltiplos depoimentos, aliás não esquece em In memorium o José Eduardo Reis de Oliveira, que era para nós o Jero, de saudosa memória, temos aqui algumas histórias pícaras, tudo rescende ao feitiço africano, mesmo quando a narrativa está focada em dor e sofrimento. Uma iniciativa que nos merece muito respeito.

Um abraço do
Mário



Quando o escritor se arvora em recolector de guerras alheias

Mário Beja Santos

É, acima de tudo, uma antologia de muita escuta e camaradagem, um ajuntamento de pequenos textos elaborados por antigos combatentes nos três teatros de operações. Há narrativas assinadas sob pseudónimo, por vontade dos seus autores. São lembranças de uma juventude sofredora, observa o recolector, que tanto deu a Portugal sem regatear, sem nada exigir em troca: "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques, Edições Vieira da Silva, 2023. Iremos aqui cingirmo-nos aos relatos que se prendem com a Guiné, encontrei inclusive um nosso confrade, Belmiro Tavares.

Abre as hostilidades Carlos Matos Oliveira, capitão miliciano, recorda o telefonema de António Silva, cabo-enfermeiro da CCAV 1617/BCAV 1897, é telefonema que se repete pelo S. João, vem a propósito da operação Espadeirar, que se realizou no Oio em 23 de junho de 1967, quem comandava a operação era o capitão Alarcão, da CCAV 1616. Chegaram a um objetivo que era a base de Cã Quebo, na região do Oio; não houve resistência, encontrou-se uma pistola CESKA e duas granadas, seguiram pelo trilho que levaria à estrada Mansabá-Bissorã, aqui começaram os problemas, veio fogo de morteiros, o capitão foi ferido, o radiotelegrafista atingido mortalmente, sem que fosse avistado pelos camaradas, ficando no terreno com o rádio e os códigos; o autor foi ferido por um estilhaço de rocket, o enfermeiro dava-o como morto, respondeu-lhe com um palavrão. Lá se pediu ajuda à aviação. E remata a sua recordação dizendo que voltaram a Cã Quebo mais duas vezes, de lá saiu com estilhaços num braço e nas costas.

Augusto Silva, que foi alferes miliciano, vem contar o que passou com as formigas, não ficamos a saber em que lugar se deu a ocorrência, o que interessa é que houve uma emboscada durante um patrulhamento e o comandante do pelotão, o alferes Saldanha Antunes, ordenou que se abrigassem atrás de ninhos das formigas bagabaga; finda a emboscada, por ali andava o alferes Antunes aos berros com as ferroadas dolorosas das formigas nas partes íntimas…

A história seguinte remete-nos para a CCAV 5398, assina um tenente-coronel com as letras A. A., a unidade militar estava sediada entre Bafatá e Gabu, o comandante, capitão Crispim Malaquias acompanha uma força que vai fazer um patrulhamento ofensivo, perto do Senegal, começam a chover as morteiradas, quem abriu fogo está bem municiado, foi necessário pedir apoio aéreo, quando surge o Fiat, o piloto pede referências pois diz só haver dezenas de gazelas em fuga, há um soldado que solta um palavrão, é nisto que o piloto viu a saída do morteiro da força do PAIGC e foi até lá largar umas bombas, antes de se retirar para Bissau quis saber quem é que lhe tinha chamado uma certa insolência, semanas mais tarde haverá um encontro e o piloto dirá a quem o imprecou: “Deixa lá, a tua sorte é que eu não sou casado”.

Segue-se uma história intitulada A mão de vaca, tem a ver com uma unidade estacionada no Boé, aquela gente andava tão faminta de uma comida caseira quando um grupo veio de férias logo se lançou em busca de almoço, a ementa era escassa mas todos se sentiram feliz a pedir mão de vaca, e assim se conta:
“O odor da comida quase pronta já chegava ao nosso olfato e passados momentos a única empregada de mesa do restaurante depositava os três pratos pedidos de mão de vaca, e que era como descrevo: uma mão de vaca inteira em tamanho natural com os dois dedos do animal voltados para nós e que ultrapassava os limites da travessa-prato, tendo como acompanhamento uma pequena mão cheia de feijão branco. A surpresa foi tal que boquiabertos ficámos, sem palavras, mas passados minutos lá nos atirámos ao petisco que acabou por nos saber muito bem.”

Entra em cena agora o nosso confrade Belmiro Tavares, estamos em finais de abril de 1966, uma companhia é enviada de Bissau para Farim totalmente desarmada, ir-se-á recordar com bom humor do uso do capacete em toda a atividade operacional, alguém será salvo pelo seu uso e fala-se na madrugada de 3 de dezembro de 1965, a missão era na zona de Sanjalo, alguém se apresentou sem capacete, o alferes reponta, o cabo radiotelegrafista regressa devidamente equipado, há tiroteio pelo caminho, resultam três feridos que serão recambiados para Bissau de helicóptero, é no regresso que o cabo radiotelegrafista mostra ao alferes o capacete com um sulco com certa de quatro centímetros de comprimento e um milímetro de fundo, afinal o capacete salvava vidas.

Não falta uma história de amor, quem assina é J. Monteiro, furriel miliciano. Houve para ali uma patrulha acidentada, ao atravessar uma zona de palmeiral e bananal, uns babuínos faziam grande algraviada, atirava todo o tipo de projetos, não faltavam dejetos. Lá chegaram a uma tabanca e pediram água para se lavarem. Entra em cena uma menina de vinte anos, apresentada como uma beleza serena e africana, de pele castanha e com uns olhos enormes, vivos e muito pretos. A menina deu-lhe para a paixão e disse ao furriel que ele tinha que ir lá mais vezes pelo caminho dos macacos para ela o lavar. Paixão correspondida, passaram a viver juntos com discrição. Houve despedida sem rancores, despeitos ou mágoas:
“Dei-lhe o meu fio de ouro com um crucifixo de pendente, para que sempre se recordasse de mim. Coloquei-lhe no anelar da mão esquerda uma aliança de ouro que comprei em Bissau. Passados estes anos todos, continua viva dentro do meu coração, e quando faço oração peço a Deus que esteja feliz na sua Guiné.”

Belmiro Tavares foi engenheiro de pontes improvisado, o Capitão Tomé Pinto mandou reconstruir a ponte de Genicó, antes de partir para cumprir a missão andou a fazer uns gatafunhos, fizeram-se duas “cavas” de cerca de vinte centímetros de profundidade, derrubaram-se umas palmeiras, cujos troncos foram cortados à medida da largura do ribeiro, feita a ponte arranjou-se uma “placa de sinalização” a avisar que havia perigos de morte, ora colocaram-se ali umas granadas para fazer estragos, explosão houve, nunca mais os guerrilheiros, até ao fim da comissão da CCAÇ 675 procurou destruir a dita ponte de Genicó.

Esta antologia de narrativas alheias tão ternamente recolhidas termina com um conjunto de poemas de Carlos Miranda Henriques e de Augusto Silva. Uma bonita ideia, recolher depoimentos e fazer-nos recordar.


Belmiro Tavares
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Noita do editor

Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste:




sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21824: (In)citações (179): Lembranças de JERO e do seu legado literário (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2021:

Caríssimo,
O JERO vai fazer falta a todos, ficará na memória de muitos e o seu irrepetível legado literário será peça obrigatória que os investigadores, no futuro, não deixarão de esmaltar como caso único de um cronista que deu voz coletiva a um grupo de jovens que seguiu incondicionalmente um inesquecível comandante de companhia.

Um abraço do
Mário


Lembranças de JERO e do seu legado literário

Mário Beja Santos

C
onheci o JERO quando tive a oportunidade de ler o "Diário da Companhia de Caçadores 675"[1], ele era assumidamente o responsável pela narrativa, não escapava ao leitor o tom de exaltação pela figura do Capitão Tomé Pinto (que ficaria conhecido como o Capitão do Quadrado) e as vicissitudes desta unidade durante o ano, por Binta e arredores. Trata-se do primeiro diário de uma unidade militar, tem um escrivão dotado de fala coletiva, teve seguramente acesso aos dados da atividade operacional de uma companhia que chegou a um local, em 1964, infestado pela guerrilha, havia mesmo o desplante da população afeta ao PAIGC fazer descaradamente lavras a escassos quilómetros do quartel. Há momentos impressionantes deste diário de JERO, tenho repetidamente observado aquela descrição em que o capitão é ferido e até ser evacuado para Bissau foi alvo de transportes de um afeto, de uma solidariedade impressionantes pelo que continham de genuíno, de uma afabilidade sentida.

Pedi para falar com JERO, havia algo de estranho naquele diário, era facto que se tratava de uma edição do ano seguinte, mas as comissões são mais prolongadas, o Capitão Tomé Pinto partira para um curso que lhe daria a promoção a major, a CCAÇ 675 acusou a falta daquela figura icónica, aquele verdadeiro traço de união que metia valentia, lucidez e muito tempero na liderança. JERO, bem como o seu afável camarada Belmiro Tavares, explicaram que aquele ano marcara a memória de todos, tudo o mais fora uma sucessão de obrigações.
Este tipo de observações seriam confirmadas pelo livro seguinte de JERO, "Golpes de Mãos"[2], o antigo furriel-enfermeiro sentia-se liberto para ter uma escrita um pouco mais desabrida e descrever os factos circunscrevendo-se à sua própria leitura dos acontecimentos. Fiz a recensão da obra, o General Alípio Tomé Pinto fez questão de nos reunirmos, o que aconteceu num restaurante ali para os lados da Avenida da República, em Lisboa, vieram algumas explicações sobre aquele diário truncado. E conhecedor como sou do que mais significativo se escreveu e compõe a literatura da guerra da Guiné, guardei para os meus livros os adjetivos de admiração deste diário, obra única de voz coletiva pelo punho de um cronista que nunca alardeia qualquer gabarolice, eleva a épica de uma unidade de caçadores que em escassos meses limpa a sua zona de ação, sem desfalecimentos, e às ordens de um destemido capitão.

Encontrámo-nos recentemente, e a afabilidade era a mesma. Estava a preparar o livro "Nunca Digas Adeus às Armas", o ponto de partida era um poeta popular que cantava as lides do BCAV 490, e em dado momento cruzam-se as vidas do batalhão de Farim e os homens de Binta, havia esclarecimentos, o Belmiro Tavares promoveu o encontro a três, de novo contei com a afabilidade de JERO, a rememorar factos. Tínhamos aprazado um encontro para a apresentação do meu livro no Palácio da Independência, obviamente que convidara o General Alípio Tomé Pinto e os seus camaradas, não se efetivou devido à pandemia, conversámos ao telefone, era tudo questão de aguardar uma nova oportunidade. Não haverá nova oportunidade de me encontrar com JERO, mas o seu legado literário, a sua serenidade, o facto de ele ser um guardião de memórias como nenhum outro, faz com que eu o guarde na lista das grandes cordialidades, sabedor como sou do seu diário é obra incontornável da literatura da guerra da Guiné. E assim me curvo respeitosamente diante do cronista de olhar sempre iluminado e basto sorriso.
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Notas do editor

[1] - Vd. postes de:

21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

25 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9094: Notas de leitura (305): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

28 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9107: Notas de leitura (306): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (3) (Mário Beja Santos)
e
2 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9128: Notas de leitura (307): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

[2] - Vd. poste de 26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8822: Notas de leitura (277): Golpes de Mão's, Memórias de Guerra, por José Eduardo Reis de Oliveira (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de Janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21819: (In)citações (178): Até já, José Eduardo!... (Joaquim Mexia Alvez, régulo da Tabanca do Centro)

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20395: Notas de leitura (1241): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (34) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Retoma-se o Diário de JERO e algumas das suas páginas mais emocionantes e sintetiza-se alguns dos títulos significativos da história do BCAV 490 na sua zona de ação, aspeto bem curioso não muito distante por onde começou a sua atividade operacional, antes de ser lançado na batalha do Como.
Recorda-se Amândio César e até de uma sua visita a Binta. Procura-se escavar este período da guerra da Guiné e dói a falta de documentação ou relatos fundamentados. A mágoa é tanto maior quanto se sabe que à volta desse "homem providencial" de nome António de Spínola tudo se procurou deixar publicado, desde as suas primeiras diretivas, as suas viagens ao mato, as suas entrevistas, as suas aparições mediáticas nos Congressos do Povo, e o mais que se sabe. Com Louro de Sousa e Schulz é bem o contrário, parece mesmo que se procurou construir a imagem de que foram líderes impreparados para o turbilhão da luta armada. E não deixa igualmente de ser curioso que quem anda a historiografar nunca cite as instruções mais importantes destes dois oficiais-generais que estão publicadas em diferentes volumes da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África.
Enfim, muito caminho há a percorrer para se chegar à verdade histórica e a uma justa cronologia de toda aquela guerra.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (34)

Beja Santos

“Tivemos 3 feridos
o Sousa cego ficou.
José dos Santos Pascoal
muito sangue derramou.

À tardinha trabalhando
para estarmos descansados
fazendo recuar os malvados
que nos cordéis vão tropeçando.
Vamos granadas armando
nos sítios mais escondidos
para ver se os bandidos
não nos vêm atacar,
mas um dia, com azar,
tivemos três feridos.

Um grande desastre se dava
ao espoletar uma armadilha:
o 407 afrouxou a cavilha
e nisso não reparava.
Ao Alferes Monteiro a entregava
e o percutor desarmou.
Neste momento rebentou
levando-lhe dois dedos de uma mão.
E nesta mesma ocasião
o Sousa cego ficou.

A 13 de Outubro se seguia
quando uma mina explodiu,
o António de Sousa se feriu,
às 16 horas do dia.
No helicóptero se metia,
directamente para o Hospital.
Com seus colegas, muito mal,
tudo foi evacuado
e com o corpo estilhaçado
José dos Santos Pascoal.

Neste mês aconteceu
outra coisa amargurada:
Emídio bom camarada
no dia 25 morreu.
Uma úlcera lhe apareceu
que a morte originou.
Essa nascença rebentou,
foi grande a infelicidade
até ir para a eternidade
muito sangue derramou.”

********************

O bardo continua a desfiar o seu rosário de desditas, volta-se àquela bela página contida no diário de JERO, o “Diário da CCAÇ 675”, onde se descreve a retirada do Capitão do Quadrado para o Hospital Militar 241, cercado pela ternura dos seus militares.
É um texto pleno de sinceridade e ternura:
“Embora necessariamente combalido, o nosso capitão enquanto caminhava tranquilizava os que o acompanhavam que se sentiam manifestamente impressionados pelo acontecimento.
Renovado o penso e depois de estancada a hemorragia que tinha voltado a surgir durante a caminhada até à coluna, pediu-se helicóptero para evacuação urgente já que não se podia avaliar da extensão do ferimento e da sua gravidade. O estilhaço tinha penetrado profundamente e poderia ter lesado algum órgão importante.
Organizada a coluna, voltaram-se as viaturas já com todo o pessoal montado, iniciando-se o regresso o mais depressa possível pois o estado do nosso Capitão inspirava sérios cuidados.
Recusando-se a tomar sedativos que lhe aliviariam as dores mas que o tornariam inconsciente, continuou a dar ordens que eram transmitidas pelo furriel-enfermeiro.
Apenas uma centena de metros tinham sido percorridos quando, no meio de uma mata fechadíssima, um inimigo emboscado atacou. Um tiro de pistola inicial e depois rajadas de pistola-metralhadora. As viaturas pararam imediatamente, os ocupantes ripostaram o fogo inimigo.
Por duas vezes o Alferes Santos, que deve ter sido referenciado pelo inimigo por ter dado ordens em voz alta, foi particularmente visado, passando uma rajada de pistola-metralhadora bem perto da sua cabeça.
De salientar no momento, a calma e sangue-frio do nosso Capitão que foi sempre transmitindo ordens, insistindo pelo afastamento da coluna o mais rapidamente possível da zona de morte da emboscada. Com frequência, soldados abeiravam-se do Unimog onde seguia o nosso Capitão perguntando pelo seu estado, não conseguindo ocultar uma lágrima teimosa que descia pelos seus rostos sujos de terra e suor.

Cerca do meio-dia, quando seguíamos na região de Sansancutoto, surgiu dos lados de Binta o helicóptero pedido para a evacuação do nosso Capitão que, já há cerca de duas horas ferido, começava a sentir-se enfraquecido e com dores que os solavancos da viatura tinham aumentado.
Montada a segurança em círculo, o helicóptero desceu em manobra perfeita numa clareira junto à estrada.
O momento que se seguiu não mais será esquecido por todos aqueles que o viveram.
Alguns daqueles homens de camuflado que poucos quilómetros atrás tinham zombado das balas inimigas, desprezando a morte com um sorriso altivo nos lábios, choravam agora como crianças despedindo-se do seu capitão.
Não menos comovido, este, deixava correr livremente pelo seu rosto marcado pelo sofrimento, lágrimas de que um homem não se envergonha.
Todos queriam pegar na maca para o transportar até ao helicóptero; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca do helicóptero; outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate; outro ainda quase que o obrigava a beber a água do seu cantil. Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa.
Será difícil para um mortal comum cujas emoções fortes nunca passaram além da discussão com um polícia por causa do estacionamento do carro ou de um momento mais emotivo de um desafio de futebol ou de uma tourada, avaliar do que se sente num momento destes, quando se vê sofrer um homem, que além de um chefe de excepção, é um amigo a quem se quer como a um pai e pelo qual todos nós daríamos um pedaço da nossa vida, um pouco do nosso sangue.”

E de Binta e de um ferimento que felizmente não trouxe graves consequências ao Capitão do Quadrado retorna-se à história do BCAV 490. Se nos é lícito fazer uma síntese, recorde-se que partiram para a Guiné em julho de 1963, onde permaneceram cerca de dois anos. Haverá um número substancial de alterações nos Comandos no decurso da comissão, farão inicialmente um conjunto de operações na região do Oio, partem depois para a Operação Tridente, que durou 71 dias. Após um período de recuperação em Bissau, o BCAV 490 sedia-se em Farim, o seu campo de ação não será minimizável: Farim, Jumbembem, Cuntima, Binta, Bigene, Barro, Guidage, Canjambari, viu-se que a CCAÇ 675, em Binta, foi confrontada com o inimigo que praticamente se passeava pela sua zona, o PAIGC precisava de transportar gentes, armamento e munições, abastecimentos de toda a ordem, através de corredores que saíam do Senegal e que apontavam primordialmente para a região do Oio. A história da unidade detalha minuciosamente as diferentes operações, a partir de junho de 1964, recorde-se a operação realizada à região de Farincó-Mandinga, em 24 de setembro de 1964, de que resultou captura de material e foram destruídas cerca de 37 casas de mato. Igualmente aqui se fez referência ao grave acidente sofrido em 5 de janeiro de 1961 pelo Pelotão de Morteiros 980. Sucedem-se as operações em que se destroem algumas casas de mato e se captura material, emboscadas, nomadizações, como é timbre na guerra de guerrilhas, vai-se da falta de resultados a sucessos inesperados. Foi o caso da Operação Vouga, realizada pela CCAV 487, em 31 de maio de 1965, não longe de Farincó e Fambantã, entrou-se num acampamento, houve reação de fogo, o inimigo resistiu e depois retirou, apreendeu-se bastante material, e escreveu-se no relatório que o inimigo persistia em permanecer na área, mudando de lugar. Em junho desse ano, deu-se a rendição do BCAV 490, foram-se deslocando de Farim para Bissau e de Bula para Bissau, ficaram aquartelados em Brá até ao embarque para Portugal. A história da unidade elenca os efetivos, as baixas sofridas, condecorações e o resumo do material mais importante apreendido às forças do PAIGC.

É tempo de voltar ao escritor e jornalista Amândio César e ao seu livro “Guiné 1965: Contra-Ataque”, Editora Pax, 1965.
É o seu regresso à Guiné para fazer reportagens, fala de Bissau e da sua evolução, da variedade de etnias que se espalham pelo território, a natureza da guerra subversiva conduzida por Amílcar Cabral, elenca os progressos no sistema educativo, faz o balanço de um ano de governo do General Arnaldo Schulz, as batalhas vencidas na doença do sono, da lepra e da tuberculose, as belezas do artesanato, recorda com saudade o falecido Capitão Francisco Torres de Meireles, falecido na região do Xime em junho desse ano, visita o régulo de Pachisse Sené Sané, acredita piamente que Bolama recuperará o esplendor do passado, visita o Chão Felupe, onde assiste a uma luta livre ao lado do Rei do Caruai, comove-se com o Juramento de Bandeira em Nhacra e visita Binta, onde foi recebido pelo Capitão Tomé Pinto e os seus oficiais.
Dedica alguns parágrafos a Binta, elogiosos:
“Diga-se desde já que quando a tropa aqui chegou encontrou apenas 38 pessoas nas tabancas que constituem Binta. A recuperação vai-se verificando dia após dia. O Capitão Tomé Pinto apresenta-nos o professor de Binta. Binta tem para mim um estranho significado: aqui deixou a vida o filho de um velho amigo meu – o Furriel Vilhena de Mesquita – que, em seis meses de Guiné, fora duas vezes gravemente ferido e morreu ao deflagrar de uma mina na estrada de Binta a Bigene. Vi partir o Furriel Vilhena de Mesquita para a Guiné e depois acompanhei o seu pai – o jornalista Rebelo de Mesquita – quando os despojos do filho chegaram a Lisboa”.

É um relato eivado de propaganda, contudo fala-se prudentemente da guerra, mais do desenvolvimento, dedica-se alguma atenção à história da imprensa na Guiné, à indústria no Ilhéu do Rei, dedica todas as suas reportagens aos soldados da Guiné, pela sua coragem, pelo seu sacrifício. Como atrás se disse, Amândio César fará uma segunda visita à Guiné, não se cansará de elogiar o trabalho de Arnaldo Schulz, considera que a subversão está a ser detida e a generalidade da população mantém-se fiel à soberania portuguesa.
Veremos adiante numa diretiva de Schulz datada de 1 de dezembro de 1966 que ele tece previsões muito sombrias para o futuro da Guiné.

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 22 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20371: Notas de leitura (1238): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (33) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20381: Notas de leitura (1240): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (3): “Tiago Veiga”; Publicações Dom Quixote, 2011 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 entrou num torvelinho de operações e ocupa território, dá segurança às populações, faz renascer a vida. É o que Armor Pires Mota nos conta na sua passagem para Jumbembem. Há terríveis acidentes, virou-se um bote de borracha a caminho da península de Sambuiá, um pelotão de morteiros perdeu oito praças. É nisto que o acompanhante do bardo deu um salto no plinto da memória e foi até Guidage, a Guidage do cerco onde Salgueiro Maia nos deixou um relato dos mais pungentes que aquela guerra ofereceu. A história da unidade também refere uma companhia que faz parte da quadrícula, a CCAÇ 675, a companhia do Capitão do Quadrado, ele está em Binta, chega e vai metodicamente arrumando a casa, fez-se respeitar pela guerrilha, deu proteção a quem dela precisava, abriu itinerários até então intransitáveis.
Vamos contar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (29)

Beja Santos

“Na cabeça foi atingido
este amigo e companheiro
João Félix na flor da idade
foi morto por um bandoleiro.

Era um homem operacional
que de nada tinha medo
e no meio daquele arvoredo
teve este golpe fatal.
Foi evacuado para o hospital
num transporte que foi pedido;
coitado, deu muito gemido,
quando o seu sangue perdia,
pois às 5 horas do dia,
na cabeça foi atingido.

Eram muitas as rajadas
para cima da nossa gente.
Ele levantou-se de repente,
jogando algumas granadas,
quando as tinha já acabadas
pediu mais granadas de morteiro,
e houve então um bandoleiro
que um tiro no rapaz deu
e logo nessa noite morreu
este amigo e companheiro.

Pela nossa Pátria querida
este soldado lutou,
muito sangue derramou
dando a sua própria vida.
Tanta fera enraivecida,
que só tem ruindade,
foi com grande barbaridade
que este crime praticaram.
De Samora Correia mataram
João Félix na flor da idade.

As suas famílias gritavam
quando dele se despediram.
Foi a última vez que o viram,
parecia que adivinhavam,
mas maiores gritos lançavam
ao chegar-lhes junto o carteiro.
Ele acalmou-os primeiro
e leu-lhes a má comunicação:
seu filho do coração
foi morto por um bandoleiro.”

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A história da unidade refere efetivos, a disposição e quadrícula e as operações. Em 12 de julho de 1964 houve uma ação nas matas de Ponta Caeiro, houve fogo intenso, do lado do efetivo comandado pelo Capitão Rui Cidrais houve vários feridos evacuados e ligeiros. Em 20 de agosto houve uma operação realizada a Sanjalo, incendiaram-se casas de mato, temos aqui uma referência à CCAÇ 675, a do Capitão do Quadrado, a que mais adiante se fará referência, o relatório é assinado pelo comandante, Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, ele esclarece que na área do objetivo foram encontrados terrenos recentemente cultivados. Em 24 de setembro temos uma operação realizada à região de Farincó-Mandinga, houvera referência a um acampamento de guerrilheiros com cerca de 16 casas de mato, intervieram pelotões da CCAV 487 e 488. O relatório é também assinado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro que em dado passo escreve o seguinte:  
“A marcha para a zona do objectivo decorreu conforme o previsto. Em consequência do perfeito conhecimento que o guia tinha do terreno e das notícias referentes à localização do acampamento inimigo, a companhia conseguiu chegar a trinta metros dele sem ser detectada. O inimigo surpreendido reagiu pelo fogo, só não tendo êxito devido à acção das 2 secções da vanguarda do dispositivo, que carregaram sobre o acampamento, obrigando o inimigo a tentar escapar desorientado, abandonando material de guerra”.

No início de 1965 decorrerá a Operação Panóplia, ficará associada a um grave acidente de que falecerão oito praças. O objetivo era a região de Sambuiá. Veja-se este aspeto curioso respigado do relatório quanto às casas de mato localizadas em Simbor:
“Estão junto à margem do rio Sambuiá entre a ponte e a povoação. Neste rio estão estendidas cordas que permitem ao inimigo agarrar-se a elas mantendo-se submerso, com parte da cara fora de água para respirar, quando a região é sobrevoada pela aviação; as mulheres e as crianças escondem-se no tarrafo ou nos cemitérios dos Mandingas de Sambuiá, ocultando-se nas sepulturas. O inimigo encontra-se em força nesta região e consta que tem oito metralhadoras com suporte antiaéreo. Em Talicó, o inimigo monta diariamente um serviço de vigilância com um serviço de 37 indivíduos”.

O relatório descreve os planos estabelecidos para a ação, como a mesma se desenrolou, chegou-se a Sambuiá, onde a CCAÇ 675 entrou em força. Verificou-se entretanto o acidente sofrido pelo Pelotão de Morteiros 980[1], que era constituído por 33 homens. Entrara numa lancha, o transporte seguiu pelo rio Cacheu.
Escreve-se o seguinte no relatório do acidente que ocorreu em 5 de janeiro de 1965:  
“Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o pelotão desembarcou para o bote de borracha no qual se faria o desembarque na península de Sambuiá. Embarcaram para o barco de borracha 25 homens, entre os quais o seu comandante, bem como o material e armamento. Como seria mais seguro não embarcarem todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, o comandante do navio pôs à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do Pelotão de Morteiros. Os dois barcos seriam rebocados pela lancha, de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na península onde se efectuaria o desembarque. Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco, onde eram transportados os 25 homens, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo. O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior rebentou, pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo comandante da lancha, e depois por mim, que em caso de emergência o cabo devia ser largado imediatamente. Depois de se navegar alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo para qualquer reacção, afundou-se rapidamente”.

Comunicado da imprensa de 1965
O Alferes José Pedro Cruz recomendava no seu relatório que seria de evitar nas operações em rios homens que não soubessem nadar e que nunca se devia rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios tripulantes do mesmo barco.

Inadvertidamente, vem-nos a recordação não do acidente desta gravidade mas uma situação de calamidade como aquela que se viveu no cerco de Guidage. Como se sabe, deve-se ao Capitão Salgueiro Maia um depoimento sem paralelo sobre este cerco e a sua chegada a Guidage, quadro de tragédia mais pungente não pode haver.

Salgueiro Maia
Antes porém ele conta-nos na sua “Crónica dos feitos por Guidage” um ataque com um pelotão da sua companhia que estava num destacamento.
Salgueiro Maia parte em seu auxílio:
“Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir na direcção certa, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível.
Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saber se era verdade ou não. Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direcção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel-enfermeiro e um cabo-maqueiro. Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provém-lhe da perna. Tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. 
Começo a sentir raiva".

Como o dia estava a tombar, e como era impossível recorrer a uma evacuação por helicóptero, depuseram-se os feridos nas caixas dos Unimog, entretanto o PAIGC volta a atacar com foguetões 122 mm. O ferido da perna morre.
E Salgueiro Maia escreve: “Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque em sessenta homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros-socorros: fazer um garrote”. O capitão por ali anda a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, reage, tal como vai escrever: “Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhos. Olho para a minha obra e também não entendo”.

O pesadelo maior vem depois. No dia 22 de maio de 1973, Salgueiro Maia recebe instruções para seguir para o Norte, o PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, um autêntico cerco, minara estradas, trouxera mísseis terra-ar, havia um verdadeiro campo de minas anticarro e antipessoal na estrada Guidage-Binta. O Comandante-Chefe, perante a gravidade da situação, reage com a Operação Ametista Real. No meio daquele pandemónio, Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e seguir depois com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, o objetivo era rasgar o cerco, chegar a Guidage. Deixou-nos uma descrição memorável, é uma peça espantosa, única, sobre os desastres da guerra, viaturas a acionar minas anticarro, feridos e mortos, a progressão da coluna a corta-mato, mais explosões e ao fim do dia entra-se em Guidage, assemelha-se a um panorama lunar, preside a irrealidade.
É tudo dantesco por excelência, o que parece absurdo deixa de o ser, nenhum outro relator da guerra da Guiné foi tão ao fundo da banalização do horror:
“A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento-enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense, que ficou sem uma perna, uma farda n.º 3, que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da Madeira quase cheia no meio de tudo partido. Com isto, fiz uma pequena festa com 3 ou 4 homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau, ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.
Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera 4 mortos e 3 feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 milímetros de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão e sem saber de onde ele tinha vindo”.

Não se atina como é que a memória nos faz passar de meados dos anos 60 para aquela catástrofe de 1973, mas fala-se de Binta, de Guidage, de Farim, de Sambuiá. Dera-se uma evolução fenomenal, em poucos anos, o equipamento do PAIGC suplantara o das forças portuguesas, modificara-se a condução da guerra de guerrilhas, numa mistura de guerra convencional e de ataque surpresa. Agradece-se à memória agir assim, temos muitas vezes o condão de nos fixarmos numa data e esquecer completamente que nenhuma análise pode prescindir da sequência cronológica: fomos todos protagonistas, mas em tempos diferentes, o que uns viram de uma maneira, mais adiante os outros acrescentaram novos pontos de vista.

(continua)
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Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5077: Fichas de Unidades (5): História do Pelotão de Morteiros N.º 980 (José Martins)

Poste anterior de 18 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20254: Notas de leitura (1227): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (28) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)