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quarta-feira, 17 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19986: (Ex)citações (355): Mortes por afogamento - A morte por afogamento, sem recuperação do corpo, do 1.º Cabo Radiotelegrafista Manuel Andrade da CCAÇ 2701 (Mário Migueis da Silva)

1. Em mensagem datada de 17 de Julho de 2019, o nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), fala-nos das circunstâncias da morte, por afogamento no Corubal, nos Rápidos do Saltinho, em Agosto de 1970, do 1.º Cabo Radiotelefonista Manuel Andrade da CCAÇ 2701, cujo corpo não foi recuperado.

A morte por afogamento, sem recuperação do corpo, do 1.º Cabo Manuel Andrade, especialidade de Radiotelefonista, foi a única baixa fatal sofrida pela CCAÇ 2701 durante a sua comissão de serviço no Saltinho desde Maio/70 a Fev/72.

Segundo o José Sargaço, ex-1.º Cabo Operador Cripto, com o qual, por coincidência, estivera a falar sobre o afogamento do Andrade, duas horas antes da publicação do post de 15/07, tudo se passou assim:

O Andrade, dias após a chegada ao Saltinho, em Maio/70, foi, com um grupo de combate da CCAÇ 2701, destacado para Cansonco, tabanca em autodefesa situada a sensivelmente quinze quilómetros do aquartelamento, onde se manteve cerca de dois meses. Na tarde - seriam mais ou menos dezasseis horas - do próprio dia em que regressou de Cansonco, isto é, em 09/08/1970, o Andrade, ainda empoeirado da viagem, convidou o José Sargaço para irem tomar uma banhoca no rio (a Companhia dispunha de balneários, mas era aquela vontade de se refrescar no rio, tal como fizera antes).

Como, desde a ida do Andrade para Cansonco, o caudal do Corubal engrossara imenso (estava-se já em plena estação das chuvas - Maio a Novembro) e a corrente das águas era tremenda, eram eles dois os únicos elementos presentes junto ao rio e limitavam-se a ensaboar-se e a refrescar-se sentados numas pequenas pedras da margem. A certa altura, o Andrade, excelente nadador, talvez por ignorar a terrível força da corrente que se fazia sentir (quando partira para Cansonco, os rápidos eram ainda de grande mansidão), levantou-se e mergulhou num local em que a profundidade das águas não iria além de um metro. Só que, levado pela corrente, quando emergiu já estava nas proximidades dos pegões da ponte do Saltinho, sendo arrastado irremediavelmente naquele turbilhão tremendo, onde desapareceria para sempre.

Impotente para lhe valer, até porque o Andrade logo desapareceu sob as águas, limitar-se-ia o José Sargaço a alertar imediatamente os camaradas da Companhia. Mas, apesar das diligências efetuadas por nativos e tropas apeadas ao longo das margens do rio no próprio dia e no dia seguinte ao desaparecimento, sempre apoiados por um helicóptero, o corpo jamais seria recuperado.

Esposende, 16 de Julho de 2019
Mário Migueis


A bordo do Carvalho Araújo, rumo à Guiné, em Abril/70. Da esquerda para a direita: José Simão, 1º cabo escriturário (já falecido); José Sargaço, 1º cabo operador cripto; com a farda nº3, Manuel Andrade, 1º cabo radiotelefonista (morto por afogamento em 09/08/70).

Ainda a bordo do Carvalho Araújo, o José Simão, o José Sargaço e, mais à frente, o Manuel Andrade

Aspeto do Corubal, junto à ponte do Saltinho, durante a estação seca 

Aspeto do Coruba,l junto à Ponte do Saltinho, durante a estação das chuvas

A ponte do Saltinho
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Notas do editor:

Comentário de Mário Miguéis  no poste Guiné 61/74 - P19982: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: atualização: o caso do 1º cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, do BENG 447, afogado em 31 de julho de 1974, na ilha da Caravela e cujo corpo não foi recuperado

Por coincidência, hoje mesmo estive a falar com o José Sargaço, ex-1.º cabo operador cripto da CCAÇ 2701 (Saltinho), a propósito de uma fotografia por ele afixada no Solar do Marquês, em Cantanhede, onde, no mês passado, decorreu o último convívio da Companhia. 
Na foto, que vou remeter a/c do Vinhal, para eventual publicação, estão presentes três 1.ºs cabos da CCAÇ 2701, a bordo do navio que os levou à Guiné em Maio/70: José Simão, José Sargaço e Manuel Andrade. Este último é precisamente o morto por afogamento no R. Corubal em 09/08/70. Um abraço, 
Mário Migueis

Último poste da série de 16 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19983: (Ex)citações (354): como é que a máquina burocrática do exército fazia chegar, à família, a notícia funesta da morte ou desaparecimento em combate de um militar ? O caso do sold at cav nº 711/65, José Henriques Mateus, desaparecido no rio Tompar, afluente do rio Cumbjiã, no decurso da Op Pirilampo, em 10/9/1966 (Jaime Silva, seu colega de escola, no Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72)

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19982: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: atualização: o caso do 1º cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, do BENG 447, afogado em 31 de julho de 1974, na ilha da Caravela e cujo corpo não foi recuperado


Foto do 1.º Cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim
In: "Os eternos esquecidos". Almada, Trafaria, Junta da Freguesia da Trafariam, 2009. p.127


Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); 
coeditor do blogue desde março de 2018



ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974) - ACTUALIZAÇÃO
O CASO DO 1.º CABO HENRIQUE MANUEL DA CONCEIÇÃO JOAQUIM, DO BENG 447, AFOGADO EM 31JUL1974 NA ILHA DA CARAVELA
(CORPO NÃO RECUPERADO) 



Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1969 > Militares da CCS do BCAÇ 2856, atravessando um afluente do Rio Geba, durante uma operação de reconhecimento. In: Lugar do Real , com a devida vénia.


1. INTRODUÇÃO

No âmbito do projecto de investigação titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974) (*), deixei expresso no primeiro fragmento – P11979 – que os resultados entretanto apurados, através da consulta a fontes oficiais, poderiam vir a ser alterados em função de outros casos particulares, "estranhos" ou "não considerados" no domínio institucional.

Cabe neste cenário a situação do 1.º Cabo Henrique Manuel da Conceição Joaquim, militar pertencente ao Batalhão de Engenharia [447], sedeado em Bissau, com a especialidade de Pedreiro, que viria a morrer afogado em 31 de Julho de 1974, 4.ª feira, na Ilha da Caravela, Arquipélago dos Bijagós, cujo corpo não foi recuperado. 

Como este episódio ocorreu no CTIG, ainda que depois do "25Abr74", no período de retracção das nossas Unidades no terreno, porque não consta a morte (por afogamento) do camarada Henrique Manuel Joaquim no número de baixas oficiais do Exército?
O que terá acontecido?
Entretanto, a informação que abaixo de reproduz, e que serviu para estruturar a presente narrativa, faz parte do livro editado, em Setembro de 2009, pela Junta de Freguesia da Trafaria, pertencente ao Município de Almada, no qual constam pequenas biografias de militares, nascidos ou residentes naquela Freguesia, que estiveram nos diferentes "Teatros de Operações", como é o exemplo do camarada Henrique Manuel Joaquim.


Esta colectânea nasceu, como sucedeu noutros contextos, da conversa informal entre camaradas, ex-combatentes, onde vieram à "baila" histórias vividas por cada um, nas ex-Províncias Ultramarinas onde efectuaram o respectivo serviço militar.

No caso em análise, foi eleita uma Comissão, constituída por: Alfredo Pisco (CCaç 2321; Moçambique); António Oliveira Bentes (1946-2007 - CCav (?); Guiné): Euclides Soares (BA 12; Guiné); Ezequiel Pais (CArt 2521; Guiné); Ilídio Pinheiro (CArt 698; Angola - pesquisa e análise); João Freitas (BCP 31; Moçambique - coordenação gráfica); José Manuel Martins (AgEng; Moçambique) e Manuel Fernandes (PInt 2161; Angola).

Dessa conversa inicial e informal "começou a nascer a ideia, ainda que sem consistência, de fazer algo para homenagear todos esses bravos militares, apenas lembrados por familiares e amigos, (e eternamente esquecidos por todos os governantes) alguns dos quais, infelizmente, desaparecidos nessas terras longínquas.  Ao fim de muito trabalho e muitas pesquisas, foi-nos possível reunir todos os dados para começarmos a pensar na possibilidade de compor um livro". 

Este livro, publicado em Setembro de 2009 [, imagem da capa a seguir], "é uma homenagem a todos os militares falecidos em combate, e os que felizmente ainda vivem, nascidos ou a habitar na Trafaria há mais de dez anos" [na data em que a ideia foi aprovada].
Quem tiver conhecimento deste triste episódio, faça o favor de comunicar. Obrigado!


Capa do livro, editado em  Setembro de 2009, pela Junta de Freguesia da Trafaria, pertencente ao Município de Almada. Referência bibliográfica na PorBase: Os eternos esquecidos / comis. Alfredo Pisco... [et al.] ; colab. Câmara Municipal de Almada... [et al.]. - [Trafaria : s.n.], 2009 ([Charneca da Caparica] : Jorge Fernandes). - 173, [3] p. : il. ; 30 cm


Imagem de satélite do Arquipélago dos Bijagós, com a situação geográfica da Ilha da Caravela e Bissau, e da sua relação entre si.


2. OS DADOS DO "ENSAIO" ACTUALIZADOS (*)

- QUADROS ESTATÍSTICOS

Em função da alteração dos resultados anteriormente divulgados, organizados em quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, tomei a iniciativa de os corrigir, apresentando, de imediato, a respectiva actualização [gráficos e quadros], levando em consideração os objectivos que cada contexto encerra.



Quadro 1 e Gráfico 1 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974), e que constituíram a população deste estudo, é de 145. Verifica-se, ainda, que desse total, 113 (77.9%) eram soldados; 23 (15.9%) 1.ºs cabos; 7 (4.8%) furriéis; 1 (0.7%) 2.º sargento e 1 (0.7%) major. 




Quadro 2 e Gráfico 2 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974) cujos corpos não foram recuperados é de 64 (44.1%). Verifica-se, também, que desse total, 48 (75.0%) eram soldados; 11 (17.2%) 1.ºs cabos; 4 (6.2%) furriéis e 1 (1.6%) 2.º sargento. 




Quadro 3 e Gráfico 3 – Da análise supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974) cujos corpos não foram recuperados é de 64 (44.1% do total). Quanto aos corpos não recuperados, verifica-se que a CCaç 1790, com 26 (40.6%) casos, e a CCaç 2405, com 19 (29.7%) casos, foram as Unidades Militares que contabilizaram maior número, sendo estes consequência do acidente da «Jangada de Ché-Che» em que elementos das duas Companhias de Caçadores estiveram envolvidos. Segue-se o Pel Mort 980, com 3 corpos não recuperados, no Rio Cacheu, na «Operação Panóplia", e a CArt 3494, com dois, no Rio Geba (Xime), durante uma missão, não cumprida, a Mato Cão, situado na margem direita desse rio. Das 17 Unidades Militares que não conseguiram recuperar os corpos dos seus naufragados, 12 (18.8%) tiveram apenas um caso.



Quadro 4 e Gráfico 4 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "ano das mortes por afogamento", "corpos não recuperados" e "corpos recuperados". O estudo mostra que durante o período em análise (1963-1974) em todos os anos ocorreram mortes por afogamento. No final foram contabilizados cento e quarenta e cinco náufragos. Durante os doze anos em que decorreu o conflito, por quatro vezes (1/3) o número de mortes ultrapassou a dezena de casos, com destaque para o ano de 1969, onde os números ultrapassaram a meia centena, em consequência do «desastre da Jangada do Ché-Ché». Para esses valores globais muito contribuíram os "acidentes" nos rios da Guiné - Cacheu, Corubal e Geba.

Nota:

Para efeitos de comparação estatística devem ser consultados os P19679; P19710; P19788 e P19822 (*).

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.
05Jul2019.
___________

Nota do editor:

Vd. postes anteriores:

15 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19822: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (IV e última Parte)


Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); 
coeditor do blogue desde março de 2018


ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974)  - OS TRÊS ACIDENTES NA HIDROGRAFIA DA GUINÉ -  IV ( E ÚLTIMA) PARTE  



1.  INTRODUÇÃO

Na presente narrativa, a última do projecto de investigação titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974), apresentaremos a análise demográfica em falta, quantitativa e qualitativa, sobre os "casos da investigação" coletados, onde, ao longo dos diferentes postes, se procedeu à sua organização estratificada em dois grupos (amostras): "corpos recuperados" e "corpos não recuperados", com identificação das suas respectivas Unidades. 

Como apêndice à problemática de partida, e a exemplo da metodologia utilizada nos fragmentos anteriores, serão descritas as causas, factos e resultados que fazem parte da "história" dos três principais acidentes na hidrografia da Guiné, como foram os casos ocorridos no Rio Cacheu, em 05Jan65, durante a «Operação Panóplia» [abordado na Parte II (P19710)]; no Rio Corubal, em 06Fev69, na «Operação Mabecos Bravios», em Ché-Ché [abordado na Parte III (P19788)]; e no Rio Geba, no Xime, no âmbito de uma missão das NT, em 10Ago72 [a desenvolver neste poste].


2. ANÁLISE DEMOGRÁFICA DAS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-74) (UNIVERSO - n=144)

Recordamos que a análise demográfica que comporta esta investigação incidiu sobre os casos das mortes por afogamento de militares do Exército durante a guerra no CTIG (1963-1974), identificados nos "Dados Oficiais" publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II, Guiné; Livros 1 e 2; 1.ª Edição, Lisboa (2001).



Mapa da Guiné-Bissau, sinalizando-se, a branco, os três acidentes na hidrografia da Guiné de que resultaram cinquenta e oito mortes, por afogamento, de militares do exército durante a Guerra (40.3%).



Gráfico 1 – Distribuição de frequências segundo a variável "Posto" (n=144)


Quanto à distribuição de frequências relativas ao "Posto" militar dos náufragos, durante o período em análise (1963-1974), constata-se que 113 (78.4%) eram soldados; 22 (15.3%) eram 1.ºs cabos; 7 (4.9%) eram furriéis; 1 (0.7%) era 2.º sargento e 1 (0.7%) era major.



Gráfico 2 – Distribuição de frequências segundo a variável "corpos não recuperados por unidade militar" (n=63 - 43.8%)


Quadro 1 – Nomes dos restantes onze militares naufragados, e das suas respectivas unidades do Exército, apresentados por ordem cronológica, cujos corpos não foram recuperados no período entre 1964 e 1972 (ver gráfico 2; "outras").


3. OS TRÊS ACIDENTES NOS RIOS DA GUINÉ:  CONTEXTO DE CADA UMA DAS OCORRÊNCIAS



Gráfico 3 – Identificação dos anos em que ocorreram os acidentes nos rios da Guiné


Para a estruturação deste ponto, relativo a cada uma das três ocorrências identificadas no gráfico acima, foi relevante a consulta efectuada ao vasto espólio de informação disponível no blogue da «Tabanca». No caso particular do episódio do "Naufrágio no Rio Geba", foram recuperadas as narrativas escritas na primeira pessoa por duas testemunhas que nele estiveram envolvidos, como foram os casos de mim próprio [P10246 e P13494] e do nosso camarada António José Pereira da Costa que, à época, era o Cmdt da CART 3494, Unidade sediada no Xime [P13493].

Importa referir que esta opção apresentou-se-nos como a única possibilidade de dar conta do que efectivamente aconteceu, uma vez que nada consta, sobre esta ocorrência, nos documentos "Oficiais", publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II, Guiné; Livros II; 1.ª Edição, Lisboa (2015).

Por outro lado, tendo em consideração o tempo que já passou sobre este "acidente", nunca ninguém entendeu na CART 3494 as motivações (ou razões) que influenciaram a decisão de omitir, na HISTÓRIA DO BART 3873, este acontecimento marcante para todos nós, dele fazendo-se "tábua rasa", nomeadamente no seu 5.º fascículo referente às actividades/acções do mês de «Agosto-1972» [pp. 77/79; pontos 35/40]. O único apontamento que conhecemos está expresso no Capítulo III – Baixas, Punições, Louvores e Condecorações [pp. 15/165]. Na pg. 149; Agosto-72; 1.Baixas; pode ler-se na alínea d) "Por Outras Causas" [nome dos três camaradas naufragados] "… todos da CART 3494, mortos por afogamento, no acidente do rio Geba, em 10AGO72."


3.1. O CASO NO RIO GEBA EM 10AGO1972 = O TERCEIRO



Mapa da região do Xime, sinalizando-se no Rio Geba, a vermelho, o local do acidente com o "sintex" que transportava os militares da CART 3494, em 10Ago72, durante a sua travessia, de que resultaram três mortes por afogamento. Dois não foram recuperados.



Foto 1 (infografia do acidente no Rio Geba, em 10Ago72). O traço a verde refere-se ao trajecto do "sintex", durante a segunda tentativa da travessia do rio, iniciado depois da passagem do "macaréu". Sinalizam-se os locais de embarque e do acidente.


3.1.1. PREPARAÇÃO DA MISSÃO «TRAVESSIA DO GEBA» EM 10AGO1972

A preparação da missão supra, que consistia num patrulhamento a efectuar na margem direita do Rio Geba, foi iniciada na véspera com uma reunião entre o Cmdt da Companhia, Cap Art António José Pereira da Costa [hoje, Coronel aposentado e membro da nossa Tabanca], líder da CART 3494 entre 22Jun1972 e 10Nov1972, e o furriel Cláudio Ferreira do 1.º GrComb, estando prevista a inclusão, na acção, do Major de Operações do BART 3873, Henrique Jales Moreira.

Os recursos operacionais mobilizados para esta missão recaíram na "Secção de Bazuca" desse GrComb, da qual o furriel Ferreira era responsável, e por isso a sua participação na reunião, já que, de acordo com a escala de serviço em vigor, no dia seguinte o 1.º GrComb estava de «intervenção». De referir que esse grupo de combate tinha apenas três quadros de comando (furriéis): o Cláudio Ferreira, o João Godinho e eu próprio.

A travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por «Sintex», com motor fora de bordo, sendo sugerida, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro.

Durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que esta última expressão viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, dia 10 de Agosto de 1972, vai fazer em 10Ago2019 quarenta e sete anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem.

Tal como nos casos anteriores, o método utilizado na estruturação desta última parte foi organizado cronologicamente a partir de cada um dos diferentes momentos: o antes, o durante e o depois dos factos.


Foto 2 - Rio Geba (Xime; Ago'72) – Foto tirada uma semana antes do "Naufrágio". À direita é a margem esquerda do Geba (Xime). À esquerda é a margem direita (Enxalé).


3.1.2. O ACIDENTE NO RIO GEBA EM 10AGO1972

As actividades do 1.º Gr Comb para o dia 10Ago72, 5.ª feira, foram iniciadas com a concentração dos elementos destacados para a acção definida no dia anterior, grupo constituído por nove militares devidamente equipados, por mim próprio (em substituição do camarada Cláudio Ferreira que adoecera entretanto), com equipamento extra constituído por um rádio AVP1, a que se juntou, no Cais do Xime, o Cmdt da CART 3494, Cap. Pereira da Costa, o Alferes Sousa, em situação de Estágio Operacional e o Major de Operações Henrique Jales Moreira, totalizando treze elementos. A este número deve-se adicionar, ainda, o do barqueiro do sintex, perfazendo então um universo de catorze indivíduos a transportar no bote que, como referido anteriormente, era aconselhada uma lotação máxima de dez unidades.

Parecendo estarem reunidas todas as condições operacionais para o sucesso da missão, embarcámos para o sintex, distribuindo-se a totalidade dos elementos de modo equitativo, dando-se então início à navegação por volta das 09:00 horas.

Depois de percorridas algumas dezenas de metros, verificou-se que o plano de água não permitia o avanço da embarcação, uma vez que a hélice do motor batia no fundo do rio, pois estávamos ainda na situação de baixa-mar, pelo que era necessário aguardar pela passagem do «macaréu». Por isso regressámos ao local da partida, dando por concluída a primeira tentativa da travessia do Geba.

Uma vez que o Aquartelamento da CART 3494 distava do cais entre 250/300 metros, e a nossa presença não era necessária naquele contexto, decidimos ali regressar. Quando estávamos já no seu interior, muito perto da parada, depois de ultrapassada a porta de armas, ouvimos um sinal sonoro no nosso rádio AVP1, que atendemos. O conteúdo da informação recebida dava conta da passagem do «macaréu», pelo que se solicitava a presença de todos os militares no cais, para dar-se início a nova viagem.

Foi com algum espanto e muita perplexidade que recebemos a notícia da passagem do «macaréu», na medida em que conhecíamos mais ou menos bem a sua evolução no processo de enchimento da maré, devido à situação de proximidade com o rio, facto que suscitou em nós, desde o início, uma natural curiosidade pela observação deste fenómeno da natureza.

De regresso ao cais, as dúvidas suscitadas inicialmente quanto à oportunidade de dar-se início à travessia não se dissiparam, antes pelo contrário, elas ampliaram-se em função da qualidade de agitação da água do rio. Esta nossa avaliação era coincidente com a do Cabo Silva (um militar da Marinha, que durante mais de duas décadas, viveu as experiências das diferentes marés por onde andou, por ter estado ligado às actividades dos submarinos) e que naquela ocasião se encontrava no cais, dirigindo os trabalhos de carregamento de madeiras para a embarcação civil «CP-10».

À ordem de "avançar porque se fazia tarde" - a mensagem que circulou - entrámos pela segunda vez no bote Sintex, mantendo-se a distribuição anterior. A partida aconteceu no local indicado na foto da "infografia" acima (Cais do Xime), agora em ruínas. Com a navegação a cargo do barqueiro, com o motor em funcionamento e com as águas muito agitadas, certamente que cada um de nós se interrogou quanto ao sucesso da «aventura» em que tínhamos embarcado e que não tinha hipóteses de retrocesso.

Logo nas primeiras dezenas de metros, os "palpites" começaram a escutar-se, na medida em que a embarcação não podia tomar o rumo certo. Uma ordem foi pronunciada: "desligue-se o motor", o que foi acatada pelo barqueiro. Mas, mesmo assim, dava a sensação de que o bote continuava com o motor ligado, tal era a velocidade com que o mesmo deslizava naquelas águas revoltas.

O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do «macaréu», cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver – "eu não sei nadar" - no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. O cenário começava, então, a ficar cinzento, diria mesmo muito cinzento no sentido da cor negra, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.

A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos?

Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade de sobrevivência colectiva, apontando para uma "navegação o mais perto possível da margem esquerda", ou seja, a mesma donde partíramos.

Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos (alfaiates) se organiza em frisa apanhando os seus banhos de sol – eis que se escuta uma nova ordem: "haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster". Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas, o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e a lodo fosse de modo a facilitar a operação proposta.

Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes, primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio de peso que entretanto ocorrera (lei da gravidade).

Quanto a nós e na sequência do salto, ficámos de imediato enterrados no lodo até aos joelhos, procurando, mesmo assim, manter o controlo da embarcação através do uso da sua corrente, mas não por muito tempo. Face à diminuição da nossa resistência por via da força da maré, que nos conseguiu arrancar ao lodo arrastando-nos num espaço de alguns metros quase até à posição de «pino», não tivemos outra alternativa senão deixar o bote entrar à deriva.

Na água, a luta era extremamente desigual entre o poder do homem e o poder da maré. Cada um dos camaradas, equipado e vestido com o seu camuflado que lhe dificultava a mobilidade dentro de água, procurava chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorzes elementos. Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro (nome que nunca soube, pois era elemento da CCS), o Miranda (1.º cabo de dilagramas) que remando com a sua sacola das granadas permitiu recolher o Major de Operações Jales Moreira em situação muito difícil. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, sede do BART 3873. Os outros três elementos em falta eram: o José Maria da Silva Sousa, o Manuel Salgado Antunes e o Abraão Moreira Rosa, que acabariam por desaparecer nas águas barrentas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento.

No caso do José Sousa ainda o vi emergir três vezes. Mas como tinha em seu poder a bazuca e esta estava presa à paleta da camisa, provavelmente esta situação não lhe foi favorável, dificultando-lhe ainda mais os movimentos.

Para além de não se ter concretizado a travessia, de o grupo ter ficado fraccionado e com baixas, de termos ficado desarmados e sem meios de comunicar com a Companhia, tínhamos ainda pela frente um longo caminho a percorrer até chegarmos ao nosso Aquartelamento, no Xime.

Assim, os oito elementos que estavam aparentemente a salvo, mas ainda dentro de água tentando localizar alguma das armas perdidas, tinham ainda pela frente um "osso difícil de roer", passe a metáfora, uma vez que faltava transpor o obstáculo «tarrafo» até chegar a terra mais sólida. E a primeira dificuldade com que nos deparámos tinha a ver com a necessidade de percorrer cerca de quinze metros de lodo extremamente mole, num momento em que as águas continuavam a subir a um ritmo veloz, e em que o movimento de elevação de cada perna, correspondente a cada passo, era sempre maior que o anterior, fazendo lembrar que estávamos perante um contexto de areia movediça.

Após os primeiros passos, não nos restava outra alternativa senão tentar nadar/deslizar no lodo, agora cada qual em tronco nu mas com os seus objectos sob controlo (roupa, cinturão e carregadores). Na sequência de cada braçada, esses objectos eram arremessados para a frente, para depois se efectuar nova braçada e novo arremesso. Todo o nosso corpo era lodo: o cabelo, o rosto, a boca, os membros, etc., etc., etc..

Para percorrer os tais quinze metros de tarrafo, aproximadamente, foram gastos cerca de vinte e cinco minutos, o que diz bem das dificuldades sentidas. A meio da viagem, por efeito de estar verdadeiramente exausto, pensei que já não seria capaz de ali sair. A força e a energia tinham-se esgotado. Depois de um curto descanso a pedido do corpo e da mente, aconteceu um novo impulso antes da última transcendência (a morte), conseguindo então chegar ao fim da linha. Espalhados ao longo do lodo encontravam-se ainda os sete camaradas, cada um lutando para ultrapassar as suas dificuldades.

Fazendo uso da faca de mato que usávamos presa ao cinturão, procedemos ao corte de alguns troncos dos arbustos existentes na zona, arremessando-os na sua direcção, visando facilitar a mobilidade nos últimos metros da tortura. Os pequenos troncos, porque foram colocados sob os corpos, funcionando como estrado, acabariam por provocar ligeiros ferimentos, particularmente no peito e zona abdominal, devido às suas saliências e por efeito da fricção.

Tendo saído vitoriosos da primeira batalha, outra seguir-se-ia, mas esta sem alvo pré-definido, uma vez que o itinerário era desconhecido, impondo-se, então, uma decisão quanto ao rumo a tomar (sentido de orientação). Estávamos, então, no início de uma bolanha e tanto quanto o horizonte visual nos permitia enxergar, não víamos alma nem qualquer vestígio da presença humana. Avançámos de forma empírica corrigindo a direcção por simpatia, sabendo-se, no entanto, que aquela zona estava sob controlo das NT, e que provavelmente estávamos em presença da bolanha de Nhabijões, o que se veio a confirmar depois.

Durante a caminhada, sob um sol abrasador e com uma temperatura a rondar os 35/40 graus (a estação da época era a das chuvas), a resistência de cada um de nós voltou a ser, uma vez mais, posta à prova, concluindo-se que o Ser Humano não conhece os seus limites. A exaustão e a desidratação eram compensadas com um mergulho na bolanha a cada dez metros, distância suficiente para fazer secar os corpos e a roupa.

Passado algum tempo não cronometrado - esse detalhe era o menos importante naquela situação - avistámos ao longe umas chapas de zinco brilhando por efeito do sol, tendo seguido nessa rota. Estávamos então nas traseiras da Tabanca de Nhabijões. Aí chegados, impunha-se conquistar uma merecida sombra e a ingestão de líquidos e de alguns alimentos. Na falta de outros recursos, bebemos água e eu comi uma lata de salada de frutas de conserva que jamais esquecerei.

O Cmdt da força aí residente estranhou a nossa presença, pois não sabia do que nos tinha acontecido. E foi a partir desse momento que sinalizámos a nossa existência na rede de comando, solicitando uma viatura para nos transportar até ao Xime, onde chegámos ao princípio da tarde. À chegada, foi-nos confirmado o desaparecimento dos três camaradas anteriormente referenciados, bem como a ancoragem do sintex no Cais de Bambadinca transportando os três elementos que nele entraram para uma viagem única em que foi aproveitada a força da maré.



3.1.3. AS DECISÕES QUE FORAM TOMADAS PARA RECUPERAR OS CORPOS DOS MILITARES NAUFRAGADOS EM 10AGO1972 NO XIME


Os conteúdos relacionados com este ponto foram retirados do livro «A Minha Guerra a Petróleo», da Editora Chiado, Fev/2019, da autoria do camarada António José Pereira da Costa, na qualidade de sujeito envolvido neste acidente. Tratou-se de um tema que foi, sem surpresa minha, abordado durante a sessão de lançamento desta obra, realizada na sede da A25A, em 17 de Abril último, quer durante a sua apresentação, a cargo do Coronel Carlos Matos Gomes, quer por parte do seu autor.


Foto 3 (Lisboa; A25A, 17Abr2019) – A mesa que presidiu ao lançamento do livro "A Minha Guerra a Petróleo". Da esq/dtª: os coronéis Carlos Matos Gomes, Vasco Lourenço e Pereira da Costa, todos eles ex-combatentes no CTIG.

A propósito das memórias que guarda deste episódio, o autor do livro declara:

"O acidente ocorrido no Rio Geba, a 10 de Agosto de 1972 (quinta-feira), terá sido o momento de toda a minha vida em que mais estive em perigo, assim como todos os que me acompanhavam. Foi certamente um dos meus momentos de sorte. Mas outros houve… felizmente."

Depois da boleia proporcionada por uma coluna da CCAÇ 12, comandada pelo segundo comandante, major Sousa Teles do BART 3873, dirigimo-nos ao Xime, onde deixei o pessoal que estava comigo.

De seguida sei que fui a Bambadinca e, à chegada, vi que já lá estava um helicóptero que serviria para fazer um reconhecimento à área do acidente. Ainda tinha a ilusão de que algum dos três desaparecidos estivesse perdido e exausto no tarrafo. Fiz o reconhecimento aéreo e, de novo em Bambadinca, sugeri ao comandante que batêssemos a zona a pé, à procura de sobreviventes. Pedida autorização à Base Aérea 12, fui largado com o furriel Domingos (das Trms; homem muito generoso e empenhado na tarefa que tínhamos de executar) e três soldados da CCAÇ 12, nas imediações do local do naufrágio.

É de referir que o piloto do helicóptero era meu ex-colega do Liceu Passos Manuel – o Luís Cabanelas – que, em vez de nos largar à altura acima do solo "prevista no regulamento", deixou-nos a cerca de um metro de altura. (…) Eu levava apenas a espingarda e os carregadores emprestados pelo comandante do BArt, sem qualquer outra espécie de equipamento.

Batemos a margem do rio para montante e jusante do local onde tudo tinha sucedido e não encontrámos o menor sinal de vida. Entretanto, o helicóptero partira e nós começámos a cortar ramos do tarrafo para podermos chegar o mais à frente possível sobre o lodo, quando o sintex nos viesse recuperar. Era o que esperávamos. Porém, nada, nem ninguém apareceu…

Entretanto, por razões que não foi possível determinar, perdeu-se o contacto com o comando do BArt. A noite começou a cair e, falhado o contacto rádio com Bambadinca, chamei a minha companhia e procurei fazer sair um grupo de combate que viesse recuperar-nos pela estrada. Contava poder orientar-me pelas luzes das viaturas que viessem ao nosso encontro. Porém, subitamente, as comunicações com Bambadinca restabeleceram-se e recebemos ordem de para ali nos dirigirmos. O percurso a fazer era maior do que para o Xime ou mesmo para os Nhabijões, mas começamos a progressão debaixo de uma chuvada tropical, acompanhada daquela trovoada que ainda deixa o céu iluminado, de um tom róseo, durante segundos, depois de a faísca ter caído.

Aproximámo-nos de Bambadinca num percurso em que mal se via o caminho e orientando-nos somente pelas luzes dos aquartelamentos. Já perto do quartel fomos recolhidos por um pequeno grupo da CCAÇ 12, sob o comando do capitão Bordalo Xavier, que, com um petromax à cabeça, nos ia orientando. (…) Como entrei no quartel não me lembro… Tomei uma bica no bar de oficiais… e, depois, sentado no chão do quarto do major Sousa Teles, estou a despir-me revoltadíssimo com o modo como tudo se passou e ele a tentar acalmar-me. Regressei ao Xime, já noite alta e com uma farda n.º 2 que o major Sousa Teles me emprestou.

Depois, foi elaborado, no BArt, o relatório da acção, que eu contestei, enviando a minha versão às mesmas entidades que o tinham recebido na versão do Batalhão. Redigi a contestação com base nas achegas que o alferes Sousa e o furriel Jorge Araújo me deram. Foi pelo Sousa que fiquei a saber que os três desaparecidos tinham caído à água simultaneamente, no momento em que o sintex bateu na margem." (Op. Cit. pp 94-97).

Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime (foto 4). Era o do José Maria da Silva Sousa (o bazuqueiro). O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, o que é natural neste tipo de ocorrência.

O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos. Éramos oito a tirá-lo de lá… assumindo o alferes Manuel Gomes (1948-2014) a missão de tentar extrair do corpo a água que impediu o malogrado Sousa de ser sepultado dentro de um caixão.


Foto 4 (Cais do Xime; Ago'72) – Foto com a indicação do local onde foi recuperado o corpo do camarada José Maria da Silva Sousa (1950-1972).

Dois dias depois procedemos à realização do seu funeral, numa tarde de autêntico dilúvio, com as Honras Militares a que tinha direito, ficando o corpo sepultado no cemitério de Bambadinca.

Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os restantes corpos, mas em vão… para sempre! Nem tampouco os seus nomes constam no 8.º Volume da CECA… É inadmissível!



Em 07Dez1973, fomos convocados para comparecer no Tribunal Militar Territorial, em Bissau, para participar no acto de julgamento do processo, tendo como Réu o ex-Major Henrique Jales Moreira, e na qualidade de testemunhas oculares, eu próprio e o 1.º Cabo Miranda. Tratou-se de uma nova aventura e de uma grande experiência que não gostaríamos de repetir, em função do ambiente em que decorreu.

O veredicto final do Tribunal Militar determinou a absolvição do Réu.

Fontes consultadas:

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 2; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-304.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
19Mai2019.
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19788: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Os três acidentes na hidrografia guineense (Parte III)

Foto 2 - Rio Corubal (Ché-Ché; 06Fev1969) durante a «Op Mabecos Bravios». Entrada e saída de viaturas na jangada que fazia a travessia do rio entre as margens sul e norte. [in P5866: Ainda o desastre de Cheche, em 6Fev1969 (5): uma versão historiográfica (?) (Luís Graça). Imagens do Arquivo Histórico-Ultramarino. Fonte: Carlos de Matos Gomes e Aniceto Simões - Os Anos da Guerra Colonial - Vol 10: 1969 - Acreditar na vitória. Matosinhos: QuidNovi. 2009, p 23 (com a devida vénia).


Foto 1 - Rio Corubal (Ché-Ché) – Jangada utilizada na travessia do rio. Foto de José Azevedo Oliveira; in P5920 “Ainda o desastre do Ché-Ché, em 6 de Fevereiro de 1969: Missão da Liga dos Combatentes resgata corpos”, e P15713 (com a devida vénia).

Foto 3 - Rio Corubal (Ché-Ché; 06Fev1969) urante a «Op Mabecos Bravios». Entrada e saída de viaturas na jangada que fazia a travessia do rio entre as margens sul e norte. [in P5866: Ainda o desastre de Cheche, em 6Fev1969 (5): uma versão historiográfica (?) (Luís Graça). Imagens do Arquivo Histórico-Ultramarino. Fonte: Carlos de Matos Gomes e Aniceto Simões - Os Anos da Guerra Colonial - Vol 10: 1969 - Acreditar na vitória. Matosinhos: QuidNovi. 2009, p 23 (com a devida vénia).



Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); 
coeditor do blogue desde março de 2018



ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974): OS TRÊS ACIDENTES NA HIDROGRAFIA DA GUINÉ (PARTE III)



1. INTRODUÇÃO

Nos dois primeiros fragmentos – P19679 e P19710 – demos a conhecer alguns dos resultados globais já apurados neste projecto de investigação titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974). 

Ainda que continuemos a expandir os campos de consulta fora do âmbito das fontes "Oficiais", a presente análise demográfica, quantitativa e qualitativa, reporta-se aos "casos da investigação" já coletados, onde se procedeu à sua organização estratificada em dois grupos (amostras): "corpos recuperados" e "corpos não recuperados", com identificação das suas respectivas Unidades.
No primeiro fragmento, a análise estatística foi apresentada com quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, em função das variáveis categóricas ou quantitativas relacionadas com os objectivos de cada contexto. No segundo, o método seguido foi a representação gráfica de distribuição de frequências, simples e acumuladas, expressa através de gráficos de barras ou de gráficos circulares, metodologia que continuaremos a utilizar no presente.

Como complemento à introdução estatística, a que corresponde um segundo ponto em cada um dos fragmentos, serão descritas as causas, factos e resultados que fazem parte da "história" dos três principais acidentes na hidrografia da Guiné, como foram os casos ocorridos no Rio Cacheu, em 05Jan65, durante a «Operação Panóplia» [já abordado no P19710]; no Rio Corubal, em 06Fev69, na «Operação Mabecos Bravios», em Ché-Ché [a desenvolver na presente narrativa]; e no Rio Geba, no Xime, no âmbito de uma missão das NT, em 10Ago72 [a incluir no próximo poste].


2.  ANÁLISE DEMOGRÁFICA DAS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-74) (n=144)

Recordamos que a análise demográfica que comporta esta investigação incidiu sobre os casos das mortes por afogamento de militares do Exército durante a guerra no CTIG (1963-1974), identificados nos "Dados Oficiais" publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II, Guiné; Livros 1 e 2; 1.ª Edição, Lisboa (2001).


Quadro 1 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "ano das mortes por afogamento", "corpos não recuperados" e "corpos recuperados".

O estudo mostra que durante o período em análise (1963-1974) em todos os anos ocorreram mortes por afogamento. No final foram contabilizados cento e quarenta e quatro náufragos. Durante os doze anos em que decorreu o conflito, por quatro vezes (1/3) o número de mortes ultrapassou a dezena de casos, com destaque para o ano de 1969, onde os números ultrapassaram a meia centena, em consequência do «desastre da Jangada do Ché-Ché». Para esses valores globais muito contribuíram os "acidentes" nos principais rios da Guiné – Cacheu, Corubal e Geba – como foram os três casos referidos na introdução, equivalente a 40,3% (n=58). Quanto aos "corpos não recuperados", estes representam 43,8% (n=63), contra 56,2% (n=81) dos "recuperados". Sobre esta cifra não se consideraram os "corpos recuperados" no Ché-Ché, por desconhecimento do número exacto, ainda que no P6073 se refira que foram onze (23,4%).


Gráfico 1 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "mortes por afogamento e "corpos não recuperados"

Da análise global ao quadro e gráfico acima, verificou-se que nos anos 1963 (n=3), 1971 (n=8), 1973 (n=6) e 1974 (n=5), todos os náufragos foram "recuperados". Durante o segundo triénio (1966-1968), dos vinte e sete afogamentos, só três, um em cada ano, não foram "recuperados" (1,1%). Em sentido contrário está o caso do ano de 1969, pelas razões já analisadas anteriormente, com 96,1% (n=49).


Gráfico 2 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "Corpos recuperados! e "corpos não recuperados".


Gráfico 3 – Distribuição de frequências segundo a relação entre as variáveis "Posto" e "corpos recuperados".


3. OS TRÊS ACIDENTES NOS RIOS DA GUINÉ: CONTEXTO DE CADA UMA DAS OCORRÊNCIA


Gráfico 4 – Identificação dos anos em que ocorreram os acidentes nos rios da Guiné

Para a estruturação deste ponto, relativo a cada uma das três ocorrências identificadas no gráfico acima, foi relevante a consulta efectuada ao vasto espólio de informação disponível no blogue da «Tabanca». No caso particular do episódio da "Jangada do Ché-Ché", ocorrido no âmbito da «Operação Mabecos Bravios", existem algumas dezenas de referências, onde se cruzam os dois conceitos, por exemplo, as dos PDXXVI [P526]; P509; P5778; P5858; P5866; P5954; P6063 e P6073 (as mais antigas) e P12136; P18871; P19473 e P19474 (as mais recentes). Para além desse significativo contributo, e mantendo a metodologia anterior, os conteúdos utilizados neste capítulo têm por base os documentos "Oficiais", publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II, Guiné; Livros II; 1.ª Edição, Lisboa (2015).


3.1 - O CASO NO RIO CORUBAL EM 06FEV1969 = O SEGUNDO 

Vd. Fotos nº 1, 2 e 3 (acima)


Infogravura (Rio Corubal). No estuário do Geba (a Oeste) vem desembocar, entre a Ponta Varela e Gampará, um dos mais importantes cursos de água da Guiné, talvez mesmo o maior. É o Corubal (traço a vermelho). Este rio nasce a cerca de 160 kms da fronteira, no maciço de Mali, pertencente ao grupo de montanhas do Futa-Djalon, na sua parte norte, recebendo vários tributários importantes, até que entra no território da Guiné pelo norte de Cadé, servindo aí de fronteira entre Candica e os rápidos de Chibata. […] Inflecte então para oeste, passa através de alguns rápidos e vaus, desviando-se finalmente para noroeste até desembocar no Geba. Na parte inferior do seu curso, até ao vau de Ugui [onde há a possibilidade de passagem a pé através do rio, dada a sua escassa profundidade], é navegável. Aí fica a Tabanca de Xitole, na margem direita. Este rio tem para montante várias secções navegáveis por canoas, o que facilita as comunicações com o Forreá [Aldeia Formosa /Mampatá/ Chamarra] e as demais regiões ricas que atravessa. Contudo, os seus rápidos e secções de perfil diferenciado tornavam impossível a navegação por embarcações um pouco maiores.

Fonte: João Freire (2018) – A Colonização Portuguesa da Guiné (1880-1960): Contributos sobre o papel da Marinha - com dois apêndices sobre Cabo Verde e São Tomé e sobre a caça aos negreiros de Angola. Lisboa. Edição: Comissão Cultural da Marinha. Maio de 2018, p. 242.


3.1.1 - O CONTEXTO DA «JANGADA DO RIO CORUBAL» EM 06FEV1969

Na sequência do trágico acidente no Rio Corubal, em 06 de Fevereiro de 1969, uma das datas mais dramáticas vividas pelas Forças Armadas Portuguesas durante a Guerra do Ultramar, ou da Guerra Colonial, foi elaborado pelo Cmdt da CCAÇ 1790, Cap Inf José Alberto Ponces de Carvalho Aparício [hoje, TCor Apos.], um relatório [classificado de "NOTA"] do qual retirámos a seguinte passagem sobre a "história da Jangada" [vd. Foto nº 1, acima].

"Na Guiné [Bissau] nos anos 60 [do século passado] a travessia do Rio Corubal para a região do Boé era feita [como naquela data] junto à povoação do Ché-Ché onde durante a guerra se encontrava ali em permanência uma força militar de um pelotão de infantaria, reforçado com uma secção de morteiros 81 mm.

"Esta travessia era então obrigatória para a rendição das forças militares portuguesas estacionadas em Madina do Boé e Beli, e ainda para o reabastecimento daquelas forças que na época das chuvas (cerca de seis meses) ficavam completamente isoladas. Por isso, durante a época seca realizavam-se normalmente duas colunas por mês, cada uma escoltada por uma companhia reforçada com um pelotão de autometralhadoras "Fox" ou "Daimler" e com protecção aérea permanente. Cada Coluna era constituída por um elevado número de viaturas, cerca de 20 a 30, carregadas com munições e reabastecimentos.

"A travessia do Rio Corubal era então feita por uma jangada constituída por uma plataforma sobre duas canoas; um longo cabo ligando dois pontos fixos instalados em cada margem corria numa roldana instalada na plataforma; a impulsão necessária para mover a jangada erar dada pela força braçal dos militares puxando manualmente o cabo. Como segurança do movimento, uma embarcação "Sintex" com motor fora de bordo acompanhava lateralmente cada movimento de vaivém, pronta para qualquer emergência." (Op. Cit; 6.º Vol, p 353).



3.1.2 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS QUE LEVARAM AO ABANDONO DAS FORÇAS INSTALADAS EM MADINA DO BOÉ E NO CHÉ-CHÉ

Com a chegada a Bissau, no início de Junho de 1968, do então Brigadeiro António Sebastião Ribeiro de Spínola [1910.04.11-1996.08.13], em substituição do General Arnaldo Schulz [1910.04.06-1993], são elaboradas pelo novo Governador e Comandante Militar da Guiné [promovido a General em 04Jul69], as primeiras directivas.

A primeira Directiva – a n.º 1/68, de 08Jun – tinha em vista a remodelação do dispositivo na região do Boé. Determinava a transferência do aquartelamento de Madina do Boé para local mais adequado, na região do Ché-Ché. Ordenava a recolha imediata a Madina do Boé do Destacamento de Béli, devendo ser destruídas as instalações e material que não fosse recuperável. Determinava, ainda, o reconhecimento da região do Ché-Ché, em ordem a escolher o local do novo aquartelamento, devendo satisfazer as seguintes condições: situar-se em "área-chave" da região do Ché-Ché, de modo a permitir o lançamento de acções dinâmicas na região do Boé e na margem norte do Rio Corubal. Se possível, que desse garantias de segurança à passagem deste rio no Ché-Ché (Ibidem. p.175).

Uma outra Directiva – a n.º 59/68, de 26Dez – mandava executar a manobra esquematizada na Directiva anterior – a n.º 58/68, de 16Dez – onde se determinava a execução de diferentes acções/missões no Sector Leste, entre elas: (i) - Exercer acções de reconhecimento, em ordem a detectar eixos de infiltração do IN na faixa fronteiriça com a República do Senegal e República da Guiné-Conacri até ao "marco 49" e a norte do Rio Corubal a partir deste "marco", com especial incidência nos regulados de Pachisse, Maná e Chanha. (ii) - Reforçar o efectivo das NT na ponte do Saltinho, com vista a garantir a defesa efectiva da ponte e a exercer acção dinâmica no regulado do Corubal. (iii) - Consolidar o esforço de autodefesa nas tabancas marginais da estrada Bambadinca-Xitole-Saltinho. (iv) - Retirar as forças instaladas em Madina do Boé e em Ché-Ché, minando e armadilhando as instalações para que possam ser utilizadas pelas NT em fase ulterior da manobra de contra-subversão. (…) (Ibidem. p 206).

Para a execução da manobra prevista nas Directivas acima mencionadas, foi organizada uma operação, designada por «Mabecos Bravios», a levar a cabo entre 02 e 07Fev1969. Para esse efeito foram mobilizadas as seguintes Unidades militares: CCaç 1790, CArt 2338, CCaç 2403, CCaç 2405, CCaç 2436, CArt 2440, 1 GC/CCaç 5, PMil 161, PAMetr "Daimler" 1258, PSap BCaç 2835, com APAR, as quais efectuaram uma escolta no itinerário Nova Lamego - Madina do Boé - Nova Lamego. (…) Na travessia do Rio Corubal, um acidente com a jangada que transportava forças de segurança da retaguarda provocou a morte de quarenta e sete militares das NT (2 sargentos, 43 praças e 2 Milícias). (Ibidem. p 353).

Sobre o desenrolar desta operação, no relatório acima citado, elaborado pelo Cap Inf José Carvalho Aparício [hoje, TCor Apos.], Cmdt da CCAÇ 1790, é referido o seguinte: 

"Em Fevereiro de 1969, após a decisão do Comando-Chefe da Guiné de abandonar todo o Boé – Beli já tinha sido abandonado meses antes retirando para Madina do Boé todas as forças ali estacionadas – foi desencadeada a operação "Mabecos Bravios" sob o Cmd do Agr 2957 [sedeado em Bafatá]. Uma enorme coluna com cerca de 50 viaturas pesadas escoltadas por duas CCaç's, e dois pelotões de autometralhadoras, e com apoio aéreo permanente, chegou a Madina do Boé na tarde de 05Fev69.

[Vd. Foto nº 2, acima]

[Antes] a esquadra de helicópteros simulou durante a tarde lançamento de forças nas colinas de Madina para tentar evitar as habituais flagelações por morteiros e canhões sem recuo. Durante toda a noite desse dia as viaturas foram carregadas com toneladas de munições, armamento pesado, e todo o equipamento e material aproveitável ali existente. Na manhã de 05Fev iniciou-se o movimento para o Ché-Ché, onde a coluna chegou no final da tarde desse dia. Por decisão do comandante da operação [TCor Hélio Augusto Esteves Felgas (1820.8.25-2008.6.23)], o número de dias previsto para a sua realização foi reduzido de vários dias, para libertar os meios aéreos empenhados; e a travessia do Rio Corubal iniciou-se logo de seguida, com inúmeras travessias efectuadas durante a noite com muitas dificuldades e problemas no embarque na jangada das viaturas carregadas ao limite." (Ibidem. pp 354-355).

[Vd. Foto nº 3]

O relatório refere ainda:
"Para a realização da operação de evacuação do Boé foi contruída uma jangada nova, maior que a anterior, com um estrado sobre três canoas. Em vez da corda inicial, o movimento da embarcação era garantido pelo "Sintex" com motor fora de bordo amarrado à jangada, do lado de jusante do rio, e operado por um sargento da Marinha requisitado para o efeito. A velha jangada esteve sempre acostada na margem direita. Nas travessias do rio durante a noite, com as viaturas foram também indo passando secções dos militares empenhados. No início da tarde de 06Fev69, na última e fatídica viagem, embarcaram a parte que restava dos militares das CCAÇ 2405 e da CCAÇ 1790, cerca de 80 a 90 militares. A meio do rio, uma aceleração brusca do motor do "Sintex" fez erguer a frente de bombordo da jangada, tendo sido dada logo ordem para reduzir a velocidade, a jangada fez o movimento pendular inverso, desta vez mergulhando ligeiramente no rio a frente de estibordo, as canoas ficaram cheias de água mas o tabuleiro ficou flutuando, com os militares a bordo com água pelos tornozelos. Chegados à margem direita, ao proceder-se à contagem constatou-se a falta de quarenta e sete militares das duas Companhias". (Ibidem. p 355). [sendo: 26 da CCAÇ 2405, 19 da CCAÇ 1790 e mais dois milícias, conforme se indica nos dois quadros abaixo]:





No final, o relatório refere que "o acidente em causa deu origem a um Auto de Corpo de Delito, e a longas e complexas averiguações, incluindo todos os aspectos da operação, que em 1970 terminaram em julgamento em Lisboa, no 3.º Tribunal Militar Territorial, que durou várias sessões e que terminou com a absolvição do único réu, o alferes miliciano comandante do Destacamento estacionado no Ché-Ché." (Ibidem. p 355).


3.1.3 - AS DECISÕES QUE FORAM TOMADAS PARA RECUPERAR OS CORPOS DOS MILITARES NAUFRAGADOS EM 06FEV1969 NO CHÉ-CHÉ

Em reunião de Comandos realizada em Bissau, o Comandante-Chefe Militar entregou ao CDMG [Comando de Defesa Marítima da Guiné] e ao CZAGCV [Comando da Zona Aérea da Guiné e Cabo Verde], com data de 19Fev, a Directiva n.º 16/69, determinando a realização de uma «Operação no Rio Corubal», constituída por quatro pontos, a saber:

1 – Confirmando a ordem verbal dada em reunião de Comandos, determino a realização de uma operação no Rio Corubal, com o fim de recuperar os corpos dos militares mortos no trágico acidente de 06Fev69, que se encontram à superfície das águas.

2 – A operação deve realizar-se na base do helitransporte de uma vaga de "Fuzileiros Especiais", fortemente apoiada por meios aéreos.

3 – Os corpos devem ser agrupados e enterrados no local, devendo as campas ser assinaladas com cruzes de ferro.

4 – Desejo ser helitransportado ao local, conjuntamente com um capelão para assistir à cerimónia fúnebre, e colocar nas campas e lançar ao rio coroas de flores com a legenda "A Pátria agradecida". […] (Ibidem. p 317).



Sobre esta "Operação", no P6073, como indicado no ponto 2, o camarada Rui Ferrão, acrescenta que "foi do seu Destacamento de Fuzileiros Especiais – o 10.º - que saíram duas secções, passados alguns dias [?], para o local do acidente, com a missão de recolher os corpos a boiar no referido rio. Dos 47 afogados, foram resgatados 11 cadáveres, que foram sepultados com todas as honras militares na margem do rio. Os restantes [?] ficaram dispersos pelo rio à mercê dos crocodilos e doutras espécies afins." […]

Entretanto, como complemento desta informação, o camarada Vítor Oliveira, ex-1.º Cabo Melec, BA 12 (1967/1969), na sua narrativa no P5853, a que chamou "O desastre do Cheche visto do ar", afirma no ponto 7º: "passados uns dias [?] com uma DO 27 o TCor Pilav Costa Gomes, um Ten Pilav, do qual não recordo o nome, e eu, sobrevoámos o rio e vimos cenas horríveis, os corpos a boiar e os crocodilos à volta deles. O TCor Pilav Costa Gomes entrou em contacto com os Fuzileiros para recolher os corpos. Creio que fizeram um pequeno cemitério próximo do Cheche onde colocaram os corpos."

Eis, em suma, algumas das memórias que fazem parte da "historiografia" deste trágico acidente, impregnado de dor e sofrimento, não só para os sobreviventes, como para todos os camaradas que nele estiveram envolvidos directamente, ou indirectamente, os familiares e amigos de todos aqueles jovens que pereceram nas águas do Rio Corubal.

[Continua]


Fontes consultadas:

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2015).

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 2; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-304.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
10Mai2019.
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de abril de 2019 >  Guiné 671/74 - P19710: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Parte II - Os três acidentes na hidrografia guineense

terça-feira, 23 de abril de 2019

Guiné 671/74 - P19710: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Parte II - Os três acidentes na hidrografia guineense


Foto nº 1 > Rio Cacheu > Fonte: http://www.gbissau.org/wp2013/blog/2014/04/25/as-tarrafes-do-rio-cacheu-2/ (com a devida vénia).




Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018


ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974): Parte II - OS TRÊS ACIDENTES NA HIDROGRAFIA DA GUINÉ - 



1.  INTRODUÇÃO

Na sequência do texto de apresentação deste novo projecto (P19679) (*), estruturado em quatro partes, titulado de "ensaio" sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974), acrescentamos que esta questão surge do interesse pessoal pelo seu aprofundamento, onde, na altura própria, teremos a oportunidade de recordar uma experiência única, muitíssimo emotiva e impregnada de uma dor imensa, que teima em não passar, vivida por mim no Rio Geba, em 10Ago1972, acidente considerado como um dos três mais graves registados pelas NT na rede hidrográfica da Guine, durante o período em análise. 

Por outro lado, considerando que estão decorridas mais de quatro décadas desde o seu termo, é de acolher o conceito de que o actual quadro historiográfico, onde consta o que aconteceu, o que foi feito e o que foi dito, muito deve aos textos elaborados, na primeira pessoa, pelos ex-combatentes, ao longo dos últimos quinze anos [faz dia 23], de que são prova pública os cerca de vinte mil postes partilhados na «Tabanca Grande» pelos seus membros. 

Acreditamos que esse quadro vai continuar a ser alterado/actualizado/alterado com a adição de outras "memórias" ainda não divulgadas.  Parabéns por tudo isso… e pela OBRA já construída… PARABÉNS À TABANCA!

Entretanto, os resultados que iremos dando conta ao longo dos diferentes fragmentos são corolário da consulta a diferentes fontes "Oficiais", onde o tema foi tratado, mas não serão as únicas, pois continuaremos a alargar os campos de consulta. Pelo exposto acima admitimos a possibilidade dos "casos da investigação" já coletados poderem vir a ser alterados/corrigidos por via da identificação de situações particulares que já estejam, ou não, consideradas. Por outro lado, quanto aos valores já apurados, procederemos à realização de uma análise demográfica, quantitativa e qualitativa. Essa análise, que terá uma dimensão global, apresentar-se-á, ainda, estratificada em dois grupos (amostras), como são os casos dos "corpos recuperados" e "não recuperados" e as suas respectivas Unidades.

Por razões metodológicas e estruturais do desenvolvimento do trabalho, a análise estatística apresentada no primeiro fragmento foi organizada exclusivamente por quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, conforme se indicou em cada um dos títulos. Em cada um desses quadros relatam-se os valores quantitativos dos diferentes elementos das variáveis categóricas ou quantitativas relacionadas, tendo em consideração os objectivos que cada contexto encerra.
No presente fragmento, esses mesmos quadros terão agora uma representação gráfica de distribuição de frequências, simples e acumuladas, expressa através de gráficos de barras ou de gráficos circulares.

Por último, serão descritas as causas, factos e resultados que fazem parte da "história" de cada um dos três principais acidentes na hidrografia da Guiné, como foram classificados os casos do Rio Cacheu, em 05Jan65, durante a «Operação Panóplia»; no Rio Corubal, em 06Fev69, em Ché-Che, e em 10Ago72, no Rio Geba, no Xime.

Cada uma destas ocorrências será tratada individualmente e em fragmento separado.

2.  ANÁLISE DEMOGRÁFICA DAS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-74)



Gráfico 1 – Distribuição de frequências segundo a variável número de mortes por afogamento (1963-1974)  (n=144 )
 

Recordamos que a análise demográfica que comporta esta investigação, e as variáveis com ela relacionada, incidiu, como referimos no ponto anterior, sobre os casos das mortes por afogamento de militares do Exército durante a guerra no CTIG (1963-1974), identificados nos "Dados Oficiais" publicados pelo Estado-Maior do Exército, elaborados pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II, Guiné; Livros 1 e 2; 1.ª Edição, Lisboa (2001).

O estudo mostra que dos indivíduos que constituíram a população deste estudo, em 81 (56.2%) dos casos de mortes por afogamento os corpos foram recuperados, enquanto 63 casos (43.8%) tal não se concretizou. 


Gráfico 2 – Distribuição de frequências segundo a variável de mortes por ano  (n=144)

O estudo mostra que durante o período em análise (1963-1974) em todos os anos ocorreram mortes por afogamento. Os valores mais baixos foram verificados em 1963 (n=3), 1970 (n=4) e 1974 (n=5). Durante os doze anos em que decorreu o conflito, por quatro vezes (1/3) o número de mortes por afogamento ultrapassou a dezena de casos. Para estes valores muito contribuíram os "acidentes" nos rios da Guiné – Cacheu, Corubal e Geba – como foram os três casos seguintes:

(i) em 05Jan1965, no Rio Cacheu, durante a «Operação Panóplia», com oito mortes do Pel Mort 980;

(ii) em 06Fev1969, no Rio Corubal, em Ché-Che, com quarenta e sete mortes, pertencentes à CCaç 1790 (n=26), CCaç 2495 (n=19) e ao PMil 149 (n=2);

(iii) em 10Ago1972, no Rio Geba, em Xime, com três mortes da CArt 3494.



Gráfico 3 – Distribuição de frequências segundo a variável "Posto" (n=144)


No que concerne à distribuição de frequências relativas ao "Posto" militar dos náufragos, durante o período em análise (1963-1974), constata-se que 113 (78.4%) eram soldados; 22 (15.3%) eram 1.ºs cabos; 7 (4.9%) eram furriéis; 1 (0.7%) era 2.º sargento e 1 (0.7%) era major.


3. OS TRÊS ACIDENTES NOS RIOS DA GUINÉ: CONTEXTO DE CADA UMA DAS OCORRÊNCIA

Para a elaboração deste ponto muito contribuiu o vasto espólio de informação disponível no nosso blogue. Contudo, as maiores dificuldades foram sentidas na obtenção de relatos relacionados com o acidente ocorrido no Rio Cacheu, em 05Jan1965, envolvendo o PMort 980, uma vez que esta unidade não consta no índice de "marcadores". Mas conseguimo-las ultrapassar após termos localizado o P3313 (de 14Out2008), um trabalho do camarada Virgílio Briote, a quem desde já agradeço.

Com efeito, a sequência da apresentação será cronológica com início no acidente no Rio Cacheu, seguido do ocorrido no Rio Corubal e, finalmente, o caso no Rio Geba, conforme se dá conta no gráfico abaixo (elaborado a partir do gráfico 2). 



Gráfico 4 – Identificação dos anos em que ocorreram os acidentes nos rios da Guiné (n=144)


3.1. O CASO NO RIO CACHEU EM 05JAN1965 = O PRIMEIRO

Foto 1 (Rio Cacheu) [imagem acima].. Este rio encontra-se na região norte da Guiné, perto da fronteira com o Senegal. O rio tem 150 kms de extensão, em grande parte é navegável e o seu caudal aumenta drasticamente durante a estação chuvosa, entre Maio e Novembro. O seu estuário é fascinante. A grande extensão do sistema de mangais fez com esta área se tenha tornado no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu. Apesar de ser uma área muito interessante, não é muito frequentada por turistas. No entanto, é um porto seguro para muitos animais como crocodilos, hipopótamos, golfinhos, peixes-boi, gazelas pintadas, macacos verdes e local de acolhimento periódico de aves migratórias.


O CONTEXTO DA «OPERAÇÃO PANÓPLIA» EM 05JAN1965

No âmbito das responsabilidades que recebera de Bissau, após a sua participação na «Operação Tridente», o Batalhão de Cavalaria 490 [BCav 490], sob o comando do TCor Cav Fernando José Pereira Marques Cavaleiro (1917-2012] segue para Farim, em 23MAI64, com a superior missão de preparar a organização, deslocamento e instalação das forças no «Sector 2», que abrangia os subsectores de Cuntima, Jumbembem, Bigene e Farim (a sede), aos quais se juntou, em 24Jun64, o de Binta, então criado.

Contemplado no calendário das acções previstas para aquele Sector, foi planeada para o dia 05Jan1965, 3.ª feira, a «Operação Panóplia», envolvendo as forças da CCaç 461, CCaç 675, CCav 487 e PMort 980, com o objectivo de agir sobre as Tabancas de Sambuiá, Malibolom, Ujeque e Talicó, e respectivos itinerários circunvolventes.

Como apoio logístico às forças terrestres, este contingente contou com a participação da Lancha de Fiscalização Grande [LFG] «Orion», sob o comando do 1Ten Rui Vasco de Vasconcelos e Sá Vaz (comissão: 24Out64/03Dez66), e o oficial Imediato da Reserva Naval; 2Ten RN Virgílio Cabrita da Silva, 6.º CEORN (comissão: 24Out64/02Jun66).



Foto 2 – A LFG «Orion» no Rio Cacheu. Esta Lancha de Fiscalização deixou Lisboa em 01Dez64 com destino a Bissau onde chegou a 13 do mesmo mês, depois de ter escalado os portos do Funchal, S. Vicente de Cabo Verde e Praia. Até ao final do ano de 1964 esteve em patrulha e fiscalização no Rio Cacheu. Fonte:  blogue Reserna Naval, do nosso camarada Manuel Lema Santos, com a devida vénia

Durante o desenrolar da «Operação Panóplia», aconteceu um acidente "grave" no Rio Cacheu, que teve como consequência a morte, por afogamento, de oito militares do Pel Mort 980. Como instrumento de avaliação daquela ocorrência, o Cmdt desta força, Alf Inf. José Pedro Cruz elaborou um «Relatório", que abaixo se reproduz, e cujo original faz parte da História do Batalhão de Cavalaria 490, pp 66-67.

Relatório da ocorrência elaborado pelo Cmdt do PMort 980 – Alf José Pedro Cruz
O PMort 980 participava na «Operação Panóplia» que se realizava na Península de Sambuiá, entre o Rio Cacheu e o Rio Talicó.

Para dar cumprimento à missão, o PMort 980 embarcou na LFG [Lancha de Fiscalização Grande] «Orion» às 05h00 como estava previsto e foi transportado por este meio na direcção E-W pelo Rio Cacheu. Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí, o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o PMort 980 desembarcou para o bote de borracha pertencente ao Exército no qual se faria o desembarque na Península de Sambuiá.

Embarcaram para o barco de borracha do Exército 25 militares entre os quais se encontrava o Cmdt do PMort 980 [Alf Inf José Pedro Cruz]. Embarcámos também para esse barco todo o material e armamento necessário para se realizar o desembarque, Como seria mais seguro não embarcaram todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, tendo o Comandante do navio posto à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do PMort (oito), assim como o restante material. Os dois barcos seriam rebocados pela «Orion», de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na Península onde se efectuaria o desembarque, junto ao Rio Cacheu. Segundo notícias, essas sentinelas existiam. Os barcos onde eram transportados os homens do PMort 980 seriam afastados da «Orion» ao passarmos pelo local onde se realizaria o desembarque.

Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco onde eram transportados os 25 militares, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo.

O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior, rebentou pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens [militares] que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo Cmdt da «Orion» e depois por mim [Cmdt do PMort] que, em caso de emergência, o cabo devia ser largado imediatamente. Foi nessa altura que eu [Cmdt do PMort] chamei a atenção dos homens [militares] para a conveniência de se chegarem o mais possível para a ré, pois o barco rebocado teria a tendência a baixar a proa. Os homens [militares] assim fizeram.

A marcha recomeçou, não podendo eu [Cmdt do PMort] avaliar a velocidade da «Orion», pois ela, necessariamente, difere bastante (aparentemente), devido às diferenças de tamanho da «Orion» e do barco rebocado. Depois de se navegar nestas condições alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Coisa sem importância, pois isso seria natural devido à ondulação provocada pela deslocação do navio rebocador [a «Orion»].

Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens [militares] se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo a qualquer reacção, afundou-se rapidamente. Alguns homens [militares] que se encontravam dentro do barco sinistrado não sabiam nadar e, então, o pânico foi enorme.

Nadei para junto do barco que se encontrava voltado e icei-me para ele. Seguidamente e auxiliado por um soldado, fui aconselhando calma e ajudando alguns homens [militares] a içarem-se para o barco voltado. Foi feito todo o possível para salvar o maior número de homens. Alguns não chegaram a vir à superfície uma única vez, talvez devido ao grande peso do equipamento, armamento e munições. Entre estes, dois eram bons nadadores.

Verifiquei então que se aproximava rapidamente um barco de borracha da Marinha tripulado pelo próprio Cmdt da «Orion» [1TEN Rui Sá Vaz], a qual se encontrava parada, afastada do barco sinistrado cerca de 80 metros. Depois de se efectuar o transporte de todos os sobreviventes para bordo do navio, efectuaram-se pesquisas em todos os sentidos e recolheu-se todo o material que se encontrava a boiar.

Verifiquei imediatamente que tinham desaparecido no desastre alguns homens [militares] do meu PMort 980 e variadíssimo material.

Ao subir para a «Orion» fui informado que dois homens [militares] se salvaram por terem ficado agarrados ao cabo do reboque, o que prova que o mesmo cabo não foi largado como foi aconselhado para o fazerem em caso de emergência.



Foto 3 - Citação: (s.d.), "Guerra da Guiné: exército português em operações.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114441, com a devida vénia.


Conclusões:

1 – O desastre [acidente] deu-se, em grande parte, devido ao pânico de que os homens [militares] se apossaram.

2 – O pânico foi devido à entrada da água pela proa do barco. Pânico natural, por muitos não saberem nadar.

3 – Que a água entrou devido à ondulação provocada pelo deslocamento do barco rebocador e ainda devido à tendência do barco em baixar a proa, visto o cabo do reboque não ter sido passado por baixo do barco mas sim por cima, indo agarrado pelos próprios tripulantes do barco rebocado.

Recomendações:

1 – Tanto quanto possível evitar, nas operações em rios, homens [militares] que não saibam nadar.

2 – Nunca rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios homens do mesmo barco.

3 – Sempre que possível, evitar reboques por meio de navio de peso elevado e de elevada velocidade.

Comentário do Cmdt do BCav 490 – TCor Fernando Cavaleiro

Concordo com as conclusões e recomendações apresentadas. N que respeita à escolha dos homens [militares] que saibam nadar, creio que infelizmente é bastante teórica pois na maior parte dos casos terão que ser utilizados os efectivos disponíveis. Aliás, não basta saber nadar, pois como se verificou dois dos desaparecidos eram até bons nadadores. A única solução parece-me que será dotar as Unidades de meios próprios para desembarques.

No caso presente é possível que o acidente se tivesse evitado se não tivesse havido necessidade de tomar medidas motivadas pela grande vulnerabilidade do barco de borracha.

O barco tem sido utilizado inúmeras vezes, nomeadamente no percurso Farim-Binta e na travessia do rio Cacheu em Farim, deslocando-se pelos próprios meios e transportando até cargas mais elevadas, sem que a sua estabilidade desse lugar a reparos.

Quartel em Farim, 10 de Janeiro de 1965.

O Comandante do BCav 490, Fernando Cavaleiro


Relatório da ocorrência elaborado pelo Cmdt do PMort 980 – Alf José Pedro Cruz



Incluído na História da Unidade do Batalhão de Cavalaria 490
NOTA FINAL:
A missão definida para a «Operação Panóplia» prosseguiu, dela fazendo parte as restantes forças mobilizadas: CCaç 461, CCaç 675 e CCav 487.

Continua…
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Fontes consultadas:
 Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002); pp 253-254.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 2; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-304.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

21ABR2019.
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