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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25103: Blogoterapia (313): Irmãos de armas (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)

Dire Straits - Brothers In Arms - Frame do Youtube, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492/BART 3873, Xitole/Ponte dos Fulas; Pel Caç Nat 52, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão e CCAÇ 15, Mansoa, 1971/73) com data de 21 de Janeiro de 2024:

IRMÃOS DE ARMAS

E de repente extinguiu-se-lhe nos olhos o olhar!

Um daqueles que estava sentado à mesa, bastante mais novo do que todos os outros, ficou admirado e perguntou a quem estava ao seu lado o que se passava com aquele cujo o olhar se tinha alheado.

Respondeu-lhe o que era mais velho e tinha por lá passado:

- Não te preocupes, porque ele foi viajar ao equador, passear nas bolanhas do calor, visitar as matas do horror, caminhar nas picadas da dor e enfrentar a guerra do desamor.
Agora não está cá, está mais longe, está por lá! 
Mas não te preocupes que ele vai voltar, assim que a recordação o deixar.

Já ninguém olhava para ele, porque todos percebiam aquilo que com ele se passava.

Iam conversando, comendo, bebendo, as vozes elevavam-se por cima de tudo o resto e ele continuava com o seu olhar absorto, passeando por onde ninguém já se encontrava. Passado um pouco de tempo o seu olhar ausente, regressou ao presente. 
Havia nos seus olhos uma espécie de lágrimas, uma espécie de dor, uma espécie de torpor, que ele com um abanar de cabeça, quis afastar daquele momento, mas de tal modo, que um daqueles que estava a seu lado lhe perguntou:

- Estiveste por lá agora. não foi?

Ele respondeu com um tom decidido e afirmativo:

- Sim, andei a passear por aquelas picadas, aquelas bolanhas, aquelas matas, onde tantos de nós ficaram, mas onde se construiu a amizade entre nós, que eu ainda não sei explicar.

Olharam-se nos olhos e aqueles que estavam na mesma mesa perceberam o que se passava. Pois, porque os outros que não tinham vivido aquela guerra, não conseguiam perceber o que se tinha passado naqueles breves e profundos momentos.

Olharam-se, sorriram, os olhos marejaram-se de lágrimas e disseram uns aos outros:

- Que aqueles que lá ficaram, estejam connosco agora, enquanto nós aqui estamos celebrando o que passámos.

Todos perceberam que o coração os oprimia, os levava a viver aquilo que já não queriam viver, mas que tinham vivido um dia. Olharam-se nos olhos mais uma vez, pensaram nos que não percebem aquilo que por eles passaram, e num breve momento de silêncio, perceberam que todos eles falavam afinal a mesma língua.

Raios parta a guerra, disseram uns, e os outros anuíram dizendo:

- Raios parta a guerra, que nos mói por dentro, sem sabermos quanto e quando.

Aquele que tinha começado aquele momento, estava ainda meio afastado de tudo o que se passava, porque não sabia o que havia de dizer, não sabia o que tinha sentido, não sabia como se exprimir.

Então um deles, cheio de coragem, levantou a voz e disse:

- Nós somos muito mais do que nós próprios, somos muito mais do que a opinião dos que pensam mal de nós, somos muito mais do que aquilo somos, porque com estas mãos, com este sentido que temos, com este viver que vivemos, somos tudo aquilo que fomos, mais do que ainda somos, mais do que podemos sentir, porque no fundo, meus caros camaradas, nós somos tão só e apenas, verdadeiramente, Irmãos de Armas!

Marinha Grande, 21 de Janeiro de 2024

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24393: Blogoterapia (312): Noites de Santo António em Leça da Palmeira, marcadas pela saudade lá longe em Bissau (Ribeiro Agostinho, ex-Soldado Radiotelefonista / Condutor Auto e Escriturário da CCS/QG/CTIG, 1968/70)

Marchas Populares 2019 - Com a devida vénia a lisboa.pt

Nesta noite de Santo António, noite que eu vivia intensamente na minha Leça da Palmeira, nas Icas, Aldeia Nova e Corpo Santo, quis a tropa que eu lembrasse hoje outras épocas marcadas pela saudade. Eram marcantes os bailes em Leça da minha terra e a saudade quando estava longe.

Quando em Bissau, em 1969, passei por momentos fortes de grande saudade, e hoje recordo esses momentos vividos com companheiros que já cá não estão e outros que estão mas que não vejo, por serem emigrantes ou outros motivos.

Certo dia fui convidado por um amigo da tropa, de Aveiro, de nome Alfaro, que nunca mais vi ,a não ser numa reportagem na TV há vários anos, para o substituir no Restaurante O Nazareno, frequentado pela elite de Bissau e onde actuavam, o Marco Paulo, o Conjunto das Forças Armadas, o Fernando Milho, entre outros. O programa acontecia ao sábado à noite sempre com este elenco.

Aceitei o convite e o Alfaro foi-me apresentar aos donos do Nazareno. Ali fiz muitas noites de sábado, tendo como companhia alguns amigos leceiros que me iam ajudar a passar o tempo. Depois do fecho, íamos todos a cantar, pelas trevas das ruas de Bissau, nada do reportório do Marco Paulo mas do Fernando Milho (fadista lisboeta), de quem nunca mais ouvi falar:
"Bairro Alto aos seus amores tão dedicado
Quis um dia dar nas vistas
E saiu com os trovadores mais o fado
P'ra fazer suas conquistas."


Nesta noite de Santo António deu-me saudades dessas noites de sábado que eram Noites de Santo António à Fernando Milho.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24203: Blogoterapia (311): A sombra do jagudi (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24203: Blogoterapia (311): A sombra do jagudi (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

A SOMBRA DO JAGUDI

adão cruz

Acordei com um sol baço, esfreguei os olhos, espreguicei-me a todo o comprimento dos braços e bocejei a toda a largura da boca. Na rede mosquiteira, um grande insecto, enredado nas malhas, desesperava por se libertar, arrancando das asas um zumbido estridente de raiva e de agonia. Ainda ensonado, achei que era eu próprio a libertar-me da prisão onde me enfiaram.

Só tinha adormecido pela madrugada, com um peso no peito e um amargo na boca, deixado pela repetida leitura da carta da mãe da Sónia.

A Sónia vivia na África do Sul. Conheci-a em Lisboa, onde ela passava as férias com os pais, que eram amigos da família do meu colega Carvalho Santos. Era uma lindíssima miúda de vinte anos, cheia de sol e futuro. Com ela convivi durante os dias que precederam o meu embarque para a guerra da Guiné e o regresso da Sónia à África do Sul. O tempo suficiente para que dentro de nós se criasse uma linda relação e uma promessa de correspondência futura.

Entra a Guiné e a África do Sul, trocámos tantas cartas quantas o tempo e a distância o permitiram. Todas levavam e traziam as mais bonitas palavras que cada um de nós tinha dentro de si. Mas este fio de água cristalina que tão bem refrescava o calor da Guiné, subitamente secou. Durou metade da guerra. De um momento para o outro, as cartas deixaram de aparecer, como se no céu as estrelas se apagassem. A última que recebi foi da mãe da Sónia, dizendo que a filha morrera, vítima de um cancro da medula. Nunca de tal coisa a Sónia me falara. Nunca as suas cartas se escureceram. O estrondo que senti dentro do peito não foi menor do que o duma bazuca. Fugi para o meu quarto e encolhi-me até onde as carnes se dobraram. Dentro da carta vinha um pequenino alfinete de ouro, “a singela joia de que ela mais gostava” e que ainda guardo… mas não sei onde.

(Jagudi era o nome dos abutres, na Guiné)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23944: Blogoterapia (310): Não estou bem, e como anteriormente já dissera, voltei a ir para o "Corredor da Morte" (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA)

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23944: Blogoterapia (310): Não estou bem, e como anteriormente já dissera, voltei a ir para o "Corredor da Morte" (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Gaspar, ex-Fur Mil Art, Minas e Armadilhas da CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 2 de Janeiro de 2023:

Caros Camaradas Luís, Carlos e Todo o Blogue,
É do Vosso conhecimento que fui hospitalizado no Hospital das Forças Armadas (HFAR) em janeiro de 2022 e de 35 depois transferido para a Clínica de São José de Camarate.
Após Alta volto a ser hospitalizado em 25 dias em julho. Para cúmulo regressei ao HFAR no dia 30 de dezembro, encontrando-me hoje em casa, tendo de ser internado amanhã de Urgência no Hospital de Santa Maria.

Não estou bem, e como anteriormente já dissera voltei a ir para o "Corredor da Morte". A Medicina no meu caso falhou desde o início. Um exemplo: - Pesava em janeiro 100 quilogramas e após um mês tinha 58,5. Julgo estar neste momento com 70 quilos.
Em lugar de se virarem para o coração (sou cardíaco), foram à procura de outros problemas.

Camaradas, não entendo este nosso grande SNS.
Alimento-me, pessimamente, de iogurtes, queijo fresco, sopa e pouca fruta devido a diabetes.

Abraços para toda a Tabanca, em breve, se possível darei novas.
Mário Vitorino Gaspar

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23844: Blogoterapia (308): As desejadas férias e a angústia do regresso à Guiné (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23898: Boas festas 2022/2023 (6): As Mães e os anos da guerra... Feliz Natal, queridos companheiros (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 30 de Novembro de 2022:


As Mães e os anos de 1964/6!

Já passaram mais de cinco décadas, quase seis, no entanto, nenhum de nós companheiros, pode esquecer a jornada de ter sido combatente na Guerra Colonial Portuguesa em África, na então província colonial da Guiné Portuguesa, cuja guerra, principalmente nesta região, foi denominada "o Vietname de Portugal”. Era uma guerra terreste de guerrilha mortífera.

E agora, quase a chegar à época de Natal, constantemente nos vem ao pensamento os amigos de infância e a família de então, que deixámos na Europa, onde na escola da vila o professor nos repetia constantemente a história dos reis e rainhas e os tais “descobrimentos”, onde o professor se levantava, tal qual um actor representando, fazia desenhos de caravelas no quadro negro, declamando frazes mais ou menos: “Portugal descobriu novos mundos, enfrentando tempestades e fúrias dos dragões de mares distantes, subjugando outros povos e outras civilizações ao Reino de Portugal e dos Algarves”.

E nós ficávamos excitados com estas palavras sem todavia compreender o que eram os “novos mundos”, os “dragões” ou “mares distantes”, e claro, encobrindo sempre tudo o que nos pudesse dar o conhecimento do que existia lá por esses “novos mundos” ou essas tais civilizações que eram subjugadas ao reino de Portugal e dos Algarves.

Em outras palavras, era mais ou menos como “colocar a pele de ovelha ao sistema colonialista em que se vivia, no maldito e feroz lobo que lá morava dentro”. E mais, constantemente nos diziam que a nação era a nossa mãe. Infelizmente, hoje compreendemos que era uma enorme e horrorosa mentira.

A nossa mãe era uma personagem linda, carinhosa e bondosa, (aliás todas as mães para nós filhos, são lindas, carinhosas e bondosas), e a nossa mãe ILDA, era uma sofredora, contando-nos muitas vezes que nunca tinha sido menina, pois nessa idade já era uma mulher de tranças feitas ao domingo de manhã antes da missa, de saia de borel cardado pelas mãos da sua mãe, nossa avó, braços cansados de trabalhar na lavoura e de rodilha na cabeça para aguentar o peso dos molhos de erva que carregava para alimentar o gado, trabalhando de sol a sol e esperando a sorte de alguém a levar para a vila, “servir para casa de gente de posses”, pois seria menos uma malga de caldo para encher e uns tostões que chegavam a casa no final de cada mês, para ajudar no sustento dos seus pais, nossos avós.
E quando mais tarde, já avó, em conversa com os vizinhos, quase chorando dizia:
- “Tive quatro filhos e só um é que foi à guerra, mas felizmente voltou vivo para casa”.

Companheiros, somos sobreviventes de uma guerra horrorosa, que anos depois se verificou que era injusta, que não desejamos, em nenhuma circunstância, se volte a repetir, mas não resistimos em mencionar algumas passagens de relatos de textos anteriores, onde falamos da mulher mãe que nesta época de Natal mais recordamos.

Portanto cá vai:
“Na aldeia havia somente uma mulher, magra, já de uma certa idade, nua da cintura para cima, com algumas argolas em volta do pescoço, servindo de enfeite, talvez. Estava sentada, ao lado de um balaio de arroz com casca, com as mãos ao lado da cara, falando aflita, numa linguagem incompreensível, e de vez em quando, tirava as mãos da cara, fazia gestos para a frente, ao mesmo tempo que balançava o corpo para a frente e para trás. Na sua frente, estavam duas crianças, também magras e nuas. Estas três pessoas, eram no momento, os habitantes da aldeia.
Os soldados africanos, chamados pelo alferes, para traduzirem as palavras da mulher, diziam:
- Ela se lastima, por os militares lhe terem morto os seus dois filhos, e diz para se irem embora, que aqui não há mais ninguém. Também diz que tem quatro filhas, que desapareceram um certo dia pela madrugada, e que as visitam de vez em quando, pois neste momento eram guerrilheiras, transportadoras de material de guerra”
.

E agora, outro relato tirado de outro texto:
“Em Portugal visitámos a família deste militar, por diversas vezes. Era de uma aldeia da Serra da Estrela, tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava sempre vestida de preto e dizia:
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu Joaquim, que Deus lhe guarde a alma em descanso, e do meu António, que era a cara do pai, quando nasceu, e que foi dar o corpo às balas, e que morreu na guerra, lá na África. E mostrava sempre o farrapo do camuflado ensanguentado, que o Cifra lhe mandou, e a fotografia do António, que beijava e encostava ao coração”
.

Tenham um bom tempo neste mês de Natal, todos vós e vossas famílias, queridos companheiros e, já agora, que o ano que vem nos traga saúde e algum carinho, pelo menos da família.

Tony Borie, Dezembro de 2022.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23889: Boas festas 2022/2023 (5): Mensagens dos nossos camaradas e amigos: José Firmino; Ernestino Caniço; José Carlos Mussá Biai e Luís Fonseca

domingo, 4 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23844: Blogoterapia (308): As desejadas férias e a angústia do regresso à Guiné (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

1. Em mensagem de 1 de Dezembro de 2022, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), fala-nos das suas férias na metrópole e na angústia do regresso  Guiné.


As desejadas férias

Gozei os meus trinta e cinco de férias entre Outubro e Novembro de 1972.

As férias eram ansiosamente esperadas e assim eram, não muitas vezes, um pouco decepcionantes em relação às expectativas criadas. É como desejar muito uma coisa, que se transforma num balão e que esvazia lentamente. O facto de ter de regressar tirou muito do prazer de voltar a casa, abraçar os meus pais e irmãos, percorrer os locais beber um café na esplanada do Trindade, estar longe da bianda com estilhaços, das latas com cavala, da ração de combate, o pó da picada. Tudo sabia a ilusão estar ali.

Bem sei que praticamente todos os amigos da minha geração estavam a cumprir as suas comissões. Quando ia ao café,  era quase um estranho só os mais velhos ou mais novos me conheciam.

Por assim dizer a minha vida estava parada, não podia ou não queria ter esperança ou dar esperança, aos que me rodearam com todo o carinho e que tudo fizeram para não me sentir deslocado, mas de alguma forma eu também estava ausente como se não tivesse vindo todo no 727 da TAP . Parte de mim tinha ficado lá, junto dos camaradas nos dias tórridos, nos cheiros bem como nos sons que se expandiam pelo ar logo de madruga.

Hoje encontrei o recibo de uma prestação da minha viagem, 2.235$50 julgo que (pesos) escudos da Guiné. Uma pequena fortuna para aquele tempo, se fizer as contas custou todo o dinheiro que cá ficava depositado até à data.
Uma curiosidade era ter a data do meu desembarque e o fim da comissão para 17 de Setembro de 1973 . Uma espécie de futurologia falhada uma vez que só em finais de Março de 1974 o meu batalhão embarcou no Niassa de regresso a casa.

Vim mais o furriel Fonseca e um camarada do Dulombi a quem chamavam o “Espanhol”. Este camarada era uma pessoa extremamente alérgico a qualquer picada. Assim bastava ser picado por uma formiga daquelas pequeninas pretas para ficar complemente deformado. No avião sentiu-se indisposto e a hospedeira veio com um alka-seltzer. Bom, a reacção alérgica foi de tal ordem, que julgamos que ele não chegava vivo à ilha do Sal. Também viajou no mesmo avião o meu colega de escola primária, Augusto, que estava nos comandos.

Como todos imaginam foi uma festa com uns whiskies, porque o avião era coisa fina e não se bebia lá bejecas nem se comia mancarra.

Fui padrinho de casamento do meu irmão e assim à medida que se aproximava o regresso mais fechado eu me tornei e para os últimos dias eu só desejava desaparecer dali para fora e, já que tinha que ser regressar a Galomaro, que fosse o mais depressa possível.

Parece triste para quem tanto desejou a minha companhia saber que eu não conseguia viver com aquela espada suspensa sobre a cabeça.

Chegado a Bissau, outro problema se pôs que foi o de regressar a Galomaro,  o que não era fácil porque a grande via de acesso era o Geba e não se podia ir a nado. Após alguns dias consegui transporte numa LDG até ao Xime onde fui recolhido por uma coluna do meu batalhão.

Por estranho que pareça senti-me seguro como se o que acontecesse não fosse o esperado.
Foto da festa do meu regresso. Nessa noite atacaram Campata com pelo o menos seis mortos confirmados entre os guerrilheiros, dois milicias e varios feridos entre a população. Na foto estão o Ivo, o Catroga, o Silva, eu, o Passos, o Silva e o Ferreira.

Assim regressei a tempo de infelizmente assistir ao período mais difícil do meu destacamento, com ataques a aldeias em auto-defesa, com minas, com o primeiro morto na picada do Saltinho, com a morte do alferes Mota e por fim com o ataque ao arame no dia 1 de Dezembro.

Quando regressei de vez, voltei aos mesmos sítios e encontrei os que já tinham regressado. O ar era mais leve porque a minha ansiedade tinha desaparecido após deixar o Niassa, agora era para ficar.

Um abraço
Juvenal Amado

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23835: Blogoterapia (307): Nós e eles (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23835: Blogoterapia (307): Nós e eles (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 30 de Novembro de 2022:


Nós e eles

C
ompanheiros, continuamos a escrever porque participámos “nela” e entendemos que este é o meio de fazer uma ampla gama de relatos ou histórias, que no fundo, no fundo, fornecem uma janela única para as complexidades de uma guerra que foi algo injusta e controversa e que nunca devia de ter existido.

No entanto, hoje, todas estas narrativas oferecem-nos um registo que talvez vá contribuir no futuro para que não se voltem a repetir, porque o profundo impacto da vivência numa guerra, embora isto sejam só memórias, algumas até distorcidas pela própria memória por vezes emotiva, pois foram cenas passadas há mais de meio século, mas representam a história que não deve de ser apagada, embora autobiográfica, contando o impacto tanto político com social de quem escreve, com a empatia de humanização, única e simplesmente.

E, fazendo hoje uma reflexão sobre o horror de um bombardeamento a uma aldeia rural, onde valia tudo, virava a cabeça a qualquer ser humano, porque horas depois, a terra ainda estava quente, havia alguns corpos queimados e tudo ao redor eram ruinas, nada restava daquela que tinha sido a residência de um guerrilheiro e o lugar onde estava a criar a sua família. Este cenário, dava-lhes uma força moral interior, quase sem limites. Essa era uma das razões porque os guerrilheiros lutavam pela libertação e independência do seu território, que era correr com os Europeus para fora de África.

E o mesmo se passava do nosso lado, quando de uma qualquer mortífera emboscada ou de um frequente ataque ao nosso aquartelamento e estar próximo da explosão de uma granada de morteiro calibre 90 e algum tempo depois ouvir o som do bater das lâminas de um helicóptero, que pousava no nosso aquartelamento, recolhendo o que restava do corpo de um combatente, nosso amigo e com o qual poucas horas antes tínhamos falado e convivido e…, agora seguia para a capital Bissau, embrulhado num camuflado sujo com o seu próprio sangue.

Resumindo, hoje um dos nossos principais argumentos é que, os jovens, que podem ser de ambos os sexos, podem ir para a guerra e lutar uns contra os outros, mas ainda assim, talvez tenham esperanças e sonhos semelhantes para um futuro, mas depois de se envolverem em combate, começam a compreender o desenvolvimento de uma perspectiva crítica fatal, com mortos e feridos para ambos os lados, sobre a qual eles podiam não ter pensado antes.

Em conclusão e numa última análise, a plataforma de narrativas tal como vamos fazendo, procuramos sempre afastar-nos dos debates sobre a moralidade da guerra, onde não existe moralidade nenhuma, e em vez disso, tentamos explorar questões de como os seres humanos podem compartilhar sentimentos de medo, angústia ou empatia e examinar as maneiras como a guerra se inscreve nas histórias de vida de pessoas como nós, indivíduos simples e comuns, que passaram pelos horrores da guerra e precisam de se reconciliar enquanto avaliam o que encontraram por anos e anos, após o fim daquele maldito conflito.

Porque quando voltámos à Europa, embora afectados, nunca o governo Português se lembrou de nós, nunca foi reverenciado o nosso retorno, ficámos refugiados, significativamente talvez piores, e nunca nos foi oferecida qualquer reeducação, aliviando o trauma passado naqueles dois longos anos num angustiante cenário de combate, que nos deixou muitas cicatrizes.

Enfim, lamentamos a maneira como o governo Português e algum publico há muito nos esqueceu, todavia, e muito pior, foram os deslocados pela guerra, que ainda hoje se envolvem constantemente com memórias de guerra, ao reassentamento e deslocamento a que foram obrigados para reconstruirem as suas vidas e identidades após uma migração forçada, como em parte foi o nosso caso, que acabámos refugiando-nos deste lado de cá do Atlântico.

Tony Borie,
Dezembro de 2022
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23780: Blogoterapia (306): Comando de Agrupamento N.º 16 (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

domingo, 13 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23780: Blogoterapia (306): Comando de Agrupamento N.º 16 (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)



1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 10 de Novembro de 2022, falando-nos da sua Unidade:


Comando de Agrupamento N.º 16

É verdade que já lá vão mais de 58 anos que tudo isto se passou, no entanto, ocupamos o precioso espaço deste ainda resistente blog, dirigido pelo Luis e pelos seus dedicados colaboradores, que continua a descrever algumas passagens da guerra colonial na então província da Guiné, e claro, seguindo sempre o princípio de que esperamos ter aprendido algo com o dia de ontem, porque amanhã é a coisa mais importante da nossa vida e oxalá chegue a meia-noite de hoje limpa e sem problemas, porque é perfeito quando ela chega e se coloca nas nossas mãos. Sim, mais agora nesta avançada idade.

Continuando, vamos descrever o que foi o nosso Comando de Agrupamento, que era uma “unidade coordenadora de acções de logistica e de combates, sobretudo na organização e nos pormenores das operações militares na zona do Oio e do Cacheu” a que pertencíamos, sendo o primeiro Agrupamento a chegar àquela então província, quase quando do início da guerra de guerrilha que pelo menos naquela época, dois grupos armados desenvolviam no norte e que levaram à independência do seu território.
Assim, este Comando de Agrupamento, embora sendo um comando desarmado, dava ordens que podiam matar pessoas ou destruir aldeias consideradas inimigas. Foi constituído no Regimento de Infantaria n.º 1, na então vila da Amadora, sob o comando do Tenente-Coronel de Infantaria José Augusto Henriques Monteiro Torres Pinto Soares. (antigamente era assim, as pessoas que se diziam nobres tinham 7 e 8 nomes, e nós, os tais que diziam que era “carne para canhão”, tínhamos 2, o máximo 3, onde muitos de nós por lá ficaram, chamando-se António, Manuel, Joaquim ou José, cujo segundo nome era simplesmente, Jesus).

Continuando, como Chefe de Estado-Maior teve o Major de Infantaria António Coelho da Silva, sendo mais tarde substituído pelo Major de Artilharia Raul Pereira Baptista, e este Agrupamento adoptou a Divisa de “Juntos Venceremos”. Os oficiais foram para aquela província todos de avião e nós soldados, cabos, sargentos e milicianos, embarcámos no dia 23 de Maio de 1964, no cais de Alcântara em Lisboa no navio de carga “Ana Mafalda”, porque era o único que naquela época podia encostar ao cais do Rio Geba em Bissau, onde chegámos no dia 30 desse mesmo mês e ano.

Não havendo espaço para nós no Quartel General, ficámos instalados em tendas, numa parte deserta ao norte do cais, onde a sobrevivência se tornava um pouco difícil, sem latrinas e água potável, e com a presença contínua dos malditos mosquitos, junto de pântanos e lama, e onde já lá estava acampado um Batalhão composto por militares de combate, (esses sim, sofreram), que tinha chegado uns dias antes de emergência, desviados para a Guiné, porque o seu destino era Angola.

E que nos davam suporte no alojamento, com direito a uma marmita cheia de café negro feito de água fervida e turva do pântano e um biscoito pela manhã e duas embalagens de ração de combate por dia, iniciando-nos no normal “tráfico de influência entre companheiros combatentes”, onde os biscoitos eram moeda de troca por cigarros. Mais tarde, por mensagens recebidas, tivémos conhecimento de que houve neste acampamento um suicídio de um militar que infelizmente, talvez desanimado e deprimido, não suportou estas condições de alojamento.

Adiante… Duas semanas depois, quando ainda nos encontrávamos em Bissau, já instalados no Quartel General, o Agrupamento assume a responsabilidade da Zona Norte/oeste, que abrangia os sectores dos Batalhões instalados em Bula, Farim e Mansoa, que anteriormente dependiam do Comando Territorial, assim como todos os Comandos de Batalhão.

Assim, organizados dentro da maior desorganização que por lá havia, instalámo-nos em Mansoa no final do mês de Julho de 1964, na tal Zona Norte/Oeste, na região do Oio, no entanto, ainda instalados em Bissau, já o Agrupamento tinha criado o sector de Mansabá, onde no início as tropas portuguesas tinham ordens para assumiram uma postura defensiva, limitando-se a defender territórios onde ainda não havia muita barafunda, no entanto, essas operações defensivas algumas vezes foram devastadoras para as nossas forças, que eram regularmente atacadas fora das áreas povoadas por uns guerrilheiros agressivos, e aí sim, havia mortos e feridos.

Mais tarde com o desenrolar de frequentes combates, entre Outubro e Novembro, já no ano de 1965, o Agrupamento criou o sector de Teixeira Pinto, na região do Cacheu, porque por lá também já havia aqui e ali alguma insurreição e havia notícias de que pela noite havia colunas de mulheres guerrilheiras, que transportavam armas e munições vindas da fronteira, protegidas pelos grupos de guerrilheiros e que os reabasteciam, e claro, era necessário incrementar a zona operacionalmente, onde começaram as primeiras operações navais anfíbias, que foram instituídas para superar alguns dos problemas de mobilidade inerentes às áreas pantanosas.

Entretanto e com o correr do tempo, e as normais tropas portuguesas sendo constantemente fustigadas em ataques contínuos, foi criado um Grupo de Comandos em Bissau, treinado quase especificamente para esta guerra de guerrilha, composto por muitos africanos mas, pelo menos no seu início, eram comandados por militares europeus, e assim, juntamente com os próprios Comandos de Fuzileiros e tropas Paraquedistas como forças de ataque, eram frequentemente chamados para socorrer ou para combater ao lado das normais forças de combate portuguesas, onde alguns por lá ficaram mortos e enterrados no lodo dos pântanos para sempre.

Mas continuando, a actividade operacional foi mais direccionada, especialmente para as regiões do Morés, Mansabá, Bissorã e Olossato, que começaram a ser constantemente fustigadas por ataques dos guerrilheiros que recebiam apoio dos países vizinhos, utilizando corredores específicos de que só eles tinham conhecimento, onde se refugiavam e recebiam treino específico de guerrilha, assim como material de combate já mais moderno. Nesta zona, principalmente no Morés, periódicamente já actuava em cenário de combate um avião que voava de Bissau, lançando bombas, incendiando aldeias suspeitas, assim como as forças especiais de combate entretanto criadas e já acima mencionadas.

Todas estas povoações acima mencionadas eram visitadas por nós ou pelos nossos companheiros “cifras” no fnal de cada mês onde levávamos aos comandos das forças ali estacionadas, o tal material classificado de cifrar, cujo código era modificado todos os meses, viajando ou em colunas militares ou na avionete do correio e aí sim, “éramos um militar na guerra, mas desarmado”.

Depois… passámos dois longos anos naquele cenário de uma guerra terrestre de guerrilha, onde como acima já explicámos, éramos o “Cifra”, um soldado desarmado, onde a disciplina de um campo de batalha não era lá muito eficaz para a nossa sobrevivência, onde um pequeno descuido ou desleixo, onde os ataques ao aquartelamento que ajudámos a construir, as emboscadas, minas ou fornilhos, nas viajens de fim de mês, podiam a qualquer momento fazer com que a nossa alma nos abandonasse, na procura de uma qualquer galáxia distante.

E onde uma tijela de arroz ou um naco de pão era mais importante do que uma ração de combate, onde os campos abandonados da plantação de arroz, se transformaram em pântanos perigosos, onde as notícias recebidas nas mensagens que pela mão nos passavam, descrevendo o volume e o ruído do fogo inimigo, nos trazia a todos nós estarrecidos, onde só talvez, o excesso de álcool nos dava algum miserável conforto.

Fomos sobrevivendo e, finalmente ao fim de dois longos anos, embarcámos de regresso à metrópole, no dia 13 de Maio de 1966, no navio “Uige”, que estava ancorado ao largo no rio Geba em Bissau, sendo transportados em lanchas do cais ao navio, onde tal como muitos companheiros, continuando com o excesso de álcool, agora já dentro do navio, roubou-nos a recordação da partida e do cenário de onde o rio Geba desaguava, no tal “oceano que para nós estava longe do mar” e, ainda hoje não sabemos se o Geba, tal como o Mansoa, eram rios ou canais de água salgada.

Tony Borie
Novembro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23742: Blogoterapia (305): A Boina (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 24 de Outubro de 2022:


...A boina

Já faltava pouco tempo para regressarmos à Europa, assim, a nossa mente andava um pouco ocupada, mas não tanto para que não se reparasse na falta de recursos daquelas pessoas. Quando livres das nossas tarefas, continuávamos andando por ali, visitando algumas aldeias próximas do aquartelamento levando comida e pão que roubávamos no aquartelamento, assim como rebuçados que comprávamos na loja do Libanês.

Não compreendíamos a alegria nos rosto daquelas pessoas ao ver-nos chegar. Viviam na mais profunda miséria, mas aparentavam sentir-se bem naquelas casas térreas, cobertas com folhas de colmo, com toda aquela falta de utensílios domésticos. Uma simples lata vazia de conserva, que levávamos do aquartelamento, era guardada como se fosse uma coisa preciosa. Não havia água potável, era suja de lama, pó, lixo em tudo o que fosse lugar, improvisando quase tudo e, nunca ouvimos da boca daquelas pessoas uma pequena lamúria.

Mas agora recordando aquele miserável conflito armado em que estivémos envolvidos em África, sabíamos que os objectivos eram provar que a força encontrava a força e, para qualquer dos vencedores, era uma conquista fútil, era uma agressão errada, pois num conflito armado não existem vencedores, os que perdem nunca esquecem, transmitindo a mensagem à próxima geração de família, portanto está provado que um conflito armado, simplesmente não funciona.

E, para nós havia diversos rostos. Talvez o primeiro fosse o verdadeiro conflito armado, o das emboscadas mortíferas, do terror, dos tiroteios, dos ataques do inimigo aos aquartelamentos com as armas morteiro calibre 90 ou das bombas de napalme lançadas pelos aviões das nossas forças que destruiam aldeias e, dos soldados cansados, alguns desmotivados por verem os seus companheiros morrerem ali mesmo, junto de si, os quais, quando era possível, ajudavam a embrulhar no seu própro camuflado o que restava dos seus corpos.

Talvez o segundo rosto da guerra fosse a busca de uma solução política, ou seja, a diplomacia política, mas naquele tempo, com um primeiro-ministro, que se considerava um pai da nação, que tinha falado ao seu povo que devíamos "ir para a guerra e…, em força", sabendo que ia traumatizar uma geração de jovens que, práticamente foram abandonados, assim que se procedeu à independência das ditas Colónias em África, possívelmente envergonhando-se que essa geração era uma geração de combatentes, que defenderam a bandeira do país Portugal, ignorando a legenda que diz: "País que não respeita o passado, não pode ter um bom futuro”.

Não nos querendo alongar, talvez um terceiro rosto da guerra que vivemos em África seja a mais trágica. Era a necessidade humana, onde existia o doente abandonado, a família faminta, a criança analfabeta, centenas, talvez milhares de homens, mulheres e crianças abandonadas, sem abrigo, vestidas com farrapos, lutando pela sua sobrevivência, numa terra muito rica.

Onde as árvores, deixando-as em paz, cresciam com fruto, o peixe dos rios era abundante, havia animais nas savanas, florestas e pântanos e se houvesse paz cresciam e, sobretudo com um solo que era muito fértil.

No entanto, esta última vertente da guerra, trazia-nos angustiados, pois infelizmente alguns, mesmo nos dias de hoje, não querem o fruto das árvores para comer, procuram única e simplesmente, os frutos materiais das árvores.
Voltando de novo às aldeias e ao povo que vivia naquela profunda miséria, quando comiam, chamavam os cães magros e famintos, que por ali andavam, repartindo o pouco que lhe levávamos. Estas cenas ainda nos davam mais angústia, fazendo-nos lembrar os valores morais da nossa civilização, que repousa na natureza de sermos úteis ao próximo e, não procurar a guerra em que estávamos envolvidos, que naquela época era uma ameaça àquelas pessoas que viviam uma vida de sobrevivência.

No entanto, e este escrito é dedicado a ela, havia por lá uma criança, que não nos largava, sempre vinha em nosso redor agarrando-nos na mão, queria carinho e talvez rebuçados, pois imediatamente nos colocava a mão no bolso. Nós, às vezes embaraçados, não sabíamos com agir para nos despedirmos dessa criança, os seus olhos falavam, eram humildes, dizendo tudo o que lhe ia na alma, não necessitava abrir a boca, aqueles olhos falavam todos os idiomas do mundo.

Ao regressar à Europa, deixámos as botas de cabedal e parte da roupa da farda, assim como algum dinheiro a essa família, mas a criança, não queria a roupa da farda, queria a boina e o emblema. Nós, quase chorando, entregámo-la com um grande beijo, mas a criança sorriu, tirou o dedo da boca, limpou o ranho do nariz com as costas das mãos, deu uma gargalhada, mostrando um sorriso que dispensava palavras, pois a sua alegria falava todos os idiomas do mundo.

Tony Borie,
Outubro 2022.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23707: Blogoterapia (304): Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23707: Blogoterapia (304): Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 5 de Outubro de 2022:


Éramos um combatente da “farda amarela” e… desarmado!

É tão difícil unir todos os pedacinhos das memórias, os destroços e juntá-los na construção de um todo para os companheiros combatentes que felizmente ainda andam por aqui, mesmo sabendo que traduzindo à letra os nossos pensamentos, corremos o risco de às vezes não sermos lá muito bem entendidos, ou seja, dando a entender que “a liberdade de sermos quem quisermos, agindo ou falando sem filtros é quase uma anarquia”, o que na verdade para nós, não é, pois entendemos que expondo ideias ou expressão nas palavras de diferente maneira é muito saudável e, temos muito respeito por todos vós e pelo que viveram, sobretudo em África.

Continuando, lembramos que na Guerra Colonial, as nossas tarefas eram cifrar e decifrar mensagens. Assim, passáva-nos pelas mãos mensagens contendo substância horrivel e secreta de possíveis operações ou de ataques sofridos pelo contacto com as forças inimigas compostas pelos guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território.

E, tal como alguns de vocês companheiros combatentes, chegámos em Maio do ano de 1964, passando dois longos anos no interior da então província colonial da Guiné Portuguesa, rodeados de savanas e pântanos, participando numa guerra de guerrilha, contra um inimigo armado, treinado e equipado, que sempre recebeu apoio substancial de portos seguros em países vizinhos como o Senegal e a Guiné-Conacri, cuja proximidade eram excelentes para fornecer superioridade táctica nos seus ataques transfronteiriços e sobretudo se reabastecer.

Mas voltando à tal “farda amarela”, que dá o título a este escrito, não sabemos quem foi o “designer” de moda popular ou militar, que a projectou, mas sabemos, porque a usávamos, que era demasiado quente para o clima húmido da então Guiné Portuguesa e, que na altura era usada por outros militares de alguns países, principalmente os envolvidos em conflitos em África!.
Todavia, estar estacionado em África, uma região quente e húmida entre outras anomalias climáticas, dentro daquela “ganga amarela”, onde a princípio, antes de ser lavada, uma, duas, três, talvez só à quarta vez, largava aquela “goma” que parecia “cola” e, quando isso acontecia, pouco mais durava, começando por o tecido se dissolver, principalmente na zona onde a transpiração mais se fazia notar!.

Agora voltando de novo ao conflito armado e como acima já explicámos, dada a nossa especialidade, éramos um soldado desarmado. No entanto, fizémos coisas, passando por momentos horríveis de desespero, angústia e medo quando de ataques e emboscadas ao local onde estávamos estacionados ou passávamos, tomando conhecimento oficial de relatos angustiantes, onde explicavam como iam deixando por lá companheiros enterrados em cenários de combate, porque não os podiam resgatar e, que hoje ainda nos assombram.
Porquê? Porque muitas vezes, as tropas Portuguesas encontravam-se na pior posição para avançar e identificar com precisão a sua localização no terreno, onde ou existia selva cerrada, pântanos ou canais com água, lama e tarrafo e frequentemente, pelo menos quando atravessavam os rios ou canais, havia os “macaréus”, algumas vezes até animais perigosos, como crocodilos, onde em algumas situações o inimigo, tirando vantagem, surgia de todos os lados, atacando, disparando, sem dar qualquer oportunidade para que se recuperasse os nossos mortos ou feridos.
E nós, além de mal alimentados, (cuja alimentação era confecionada à base de alimentos sem proteínas e repetida quase todos os dias, razão pela qual ainda hoje gostamos de amendoins), sem assistência médica, com equipamento militar absoleto, fomos dos primeiros a entrar e ficar estacionados em zona de permanente combate, usando o tal uniforme “amarelo”.

Assim, além de outras, o nosso moral era triste e a desmotivação e o cansaço eram realidades que minavam os alicerces de quem com elas convivia, numa situação “onde podíamos morrer de amarelo”, dentro de uma vestimenta padronizada e regulamentada, diziam “eles”, que contribuía para a elevação e auto-estima, potencializada pela manifestação de força, com que nos educaram num breve treino específico de recruta, convencidos de que éramos a força de combate mais letal do mundo.
Onde, além de irmos para África lutar contra pessoas que não conhecíamos e nada de mal nos tinham feito antes, íamos transmitir a tal manifestação de força mas, talvez sem os responsáveis pelo governo colonial de então em Portugal saberem, que a nossa educação de família era potencializada por um ideal de paz e igualdade, com que fomos quase todos nós, independentemente de origem ou condição, educados no nosso lar.
Enfim, hoje as imagens do possível passam-nos na mente como se tratasse de um filme arrumado no sótão da nossa existência e, aquele aquartelamento militar que ajudámos a construir e que poderíamos considerar um “Posto Avançado”, ou seja, um lugar onde os militares de combate, tomavam conhecimento das primeiras savanas, florestas, rios, riachos e pântanos, que eram as trilhas frescas usadas pelos guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território, continuam bem vivas na nossa memória.
E, tudo isto se passou quando ainda éramos quase crianças, (pois no regime que então se vivia, só éramos adultos aos 21 anos de idade), onde estivémos longe da família, noutro continente e sacrificando a nossa liberdade. E fizémos tudo isto porquê? Porque mesmo sabendo que a desumanização da sociedade continuava uma realidade, onde às vezes parecíamos que éramos todos ilhas à deriva, nós, “éramos quase uns soldados sem um país”, no entanto, fizémos um juramento à bandeira desse país onde nascemos e, viveremos por este juramento até ao dia da nossa morte, porque hoje somos e, seremos sempre um veterano de guerra.

E também acreditamos que às vezes é necessário retornar aos pensamentos da infância, aos amigos ou ao seio da família, o único porto de abrigo, tal como quando regressámos a casa, uns anos depois já como veteranos de guerra, passando por algumas experiências de vida mais traumáticas que se possam imaginar e, os amigos e a família que nos receberam, sabiam, notavam imediatamente que alguma coisa estava mal connosco, pela nossa linguagem, maneira de se comportar, que estávamos diferentes, talvez um pouco loucos e algo agressivos.

Esta é a verdade, que não podemos nunca ocultar.

Tony Borie, Outubro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23680: Blogoterapia (303): A maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23680: Blogoterapia (303): A maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 5 de Outubro de 2022:

Olá companheiros de jornada.

Há já alguns anos que não vamos dando notícias, no entanto, sempre estiveram no nosso coração, porque foram vocês que nos ouviram e compreenderam em determinado momento da nossa vida quando tentámos tirar de cima de nós o peso de todas aquelas recordações da maldita guerra colonial que todos nós vivemos nas savanas e pântanos da então província da Guiné.

O dedicado companheiro Carlos Vinhal, sempre lembrou o dia do nosso nascimento e no último, agradecemos lembrando que naquela época andávamos por lá confusos, não sabendo se o o “oceano estava longe do mar”. Era verdade, porque infelizmente saímos da nossa aldeia do interior para ir participar nesta horrível guerra com a cultura dos livros aos quadradinhos que líamos, e que eram os únicos a que tínhamos acesso e eram as tais histórias do Mandrake, do Kit Carson, do Robin dos Bosques ou do Tarzan.

Esta era a nossa cultura até entrarmos no mercado da emigração. Depois, felizmente tivémos ascesso a outras escolas onde tivémos conhecimento da realidade do que foi a História de Portugal com a então África Portuguesa, não ficando lá muito espantados com que íamos aprendendo, como por exemplo o relacionamento e o porquê da presença de Portugal em África.

E as coisas começaram a clarificar-se. Assim compreendemos hoje o País Portugal estar a ser em parte colonizado por pessoas que antes foram colonizadas. É a vida, dizem alguns. Mas talvez seja a história a repetir-se agora em sentido inverso. É a tal frase onde dizíamos que o “oceano estava longe do mar”.

Sabiam que o comércio transatlântico de escravos guardava os segredos mais sombrios que, o para nós herói Infante D. Henrique, o Navegador de Portugal, ajudou a tornar o país Portugal em líder do comércio e na exploração, inclusive em África?

Que a escravidão entre as nações e tribos africanas existia muito antes de Colombo chegar ao Novo Mundo? E que África tinha uma robusta economia escravagista, sendo os escravos capturados e negociados por várias tribos e governantes africanos? E que foram vendidos a comerciantes oriundos de Portugal nos portos africanos, em troca de mercadorias que incluíam tecidos tingidos, armas de fogo, ferramentas e, às vezes, ouro?

Que Portugal se tornou no líder europeu no tráfico de escravos? Os seus navios e comerciantes aliaram-se ao Reino Africano do Kongo no século quinze, permitindo-lhes controlar a maior parte da costa de África e que o comércio entre europeus e africanos foi imposto aos últimos, com condições vantajosas para os primeiros?

Embora hoje as evidências sugiram o contrário, dizendo que várias tribos africanas ditavam os termos de comércio para os europeus, reforçados por combates armados ocasionais, tudo isto à medida que Portugal começou a explorar a sua então colónia do Brasil no tal Novo Mundo e onde precisava de uma força de trabalho.

Assim, o comércio tornou-se bastante lucrativo para os comerciantes e carregadores portugueses, financiados por um consórcio bancário que nem era português, tinha a sua origem em Génova. E mais, tinham as suas fortalezas e os seus portos estabelecidos na África, onde observavam os escravos capturados por seus parceiros africanos e, muitas vezes, os africanos estavam presos há meses, pois queriam garantir uma carga pronta quando os navios chegassem. Isso porque nenhum comerciante queria uma estadia prolongada na costa de África, numa época repleta de doenças.
Hoje tudo isto é história, no entanto naquela época, Portugal era dono de quase toda a costa de África e, o governo colonizador de Portugal de quando éramos jovens, queria continuar a sê-lo, obrigando-nos a ir combater, vendendo a “alma ao diabo”.

E nós, jovens oriundos da Europa, com uma educação de aldeia, onde os princípios honestos de família vinham de há séculos, fomos combater num horrível cenário, onde muitas vezes a angústia, o desespero e o medo, nos colocava numa situação horrível, onde entre outras coisas o álcool nos aliviava a mente, pelo menos por momentos, pois este cenário estava lá, estava sempre presente, era a cara da guerra, com feridos e mortos em combate para ambos os lados, incluindo a população civil desarmada.

E tudo isto para quê? Naquela época os famintos, os doentes, os analfabetos e a miséria eram constantes e, infelizmente continuaram, mesmo depois, quando parecia que já havia paz, fazendo-nos lembrar que de facto saímos de África físicamente, mas possívelmente não trouxémos as armas, as bombas e as balas, deixando lá apenas, como seria nossa inteira obrigação, todas as maravilhosas armas da paz do século XX.

E como o destino não perdoa, os antes colonizados estão agora aí a colonizarem um país que foi colonizador, e nós, antigos combatentes, que lutámos em outro continente, num cenário horrível e miserável, estamos a ser constantemente vítimas dessa nova colonização.

Para todos, queridos companheiros combatentes, desejo que continuemos muitos e muitos anos por cá, e com saúde, porque infelizmente, devido à idade avançada, vamos desaparecendo, todavia o corpo e a mente de um veterano de guerra, reage automáticamente aos disparos da memória, sentindo de novo em certos momentos, as feridas, o medo e o horror que por si passaram, enquanto presente num cenário de combate.

Porque a maldição de um veterano de guerra, é que nunca esquece. Contudo, já o dissemos em algumas vezes, o medo ou talvez coragem, que nos ajudou a sobreviver num campo de batalha, não funciona muito bem agora, nesta avançada idade, mas ainda vai sendo possível assumir o control dessa horrível vivência e, vamos continuando a expulsar alguma energia positiva que nos resta, daquela que nos foi roubada, pelo desastre da Guerra Colonial Portuguesa em África.

Tony Borie
Outubro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23393: Blogoterapia (302): Uma história verídica com o seu quê de humano (José Colaço, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557)

terça-feira, 28 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23393: Blogoterapia (302): Uma história verídica com o seu quê de humano (José Colaço, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 557)

1. Mensagem enviada pelo nosso camarada José Colaço, ex-Sold TRMS da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), com data de 26 de Junho de 2022, trazendo até nós...

Uma história verídica com o seu quê de humano

Eu no Cachil, Ilha do Como, na Guiné, a tratar de dois tecelões que tinham caído do ninho numa noite de tempestade, do embondeiro,  que quase tinha mais ninhos que folhas, todos aqueles pontos mais escuros são ninhos. Ainda bebés, nem sequer abriam os olhos, por esse motivo quando viram a luz do dia eu era o seu querido progenitor. O que era difícil compreender é que eles não estavam em cativeiro, gaiola fechada, iam ter com os outros pássaros e à hora para comer e dormir regressavam à gaiola que tinha sempre a porta aberta.

"Batizeios" por "Xico 1" e "Xico 2". O Xico 2 não chegou a sair do Cachil, adoeceu e morreu.
O Xico 1, que a seguir à morte do irmão passou a ser só Xico, veio comigo para Bissau e foi para Bafatá onde teve um fim triste, um gato vagabundo filou-o e foi um adeus ao Xico.

O Xico tinha um óbi, rasgar papéis, prendia-os com uma pata e era um ver se te avias, eu pessoalmente tinha que ter muito cuidado com as mensagens que recebia via rádio para o Xico não fazer a sua tradução.
Também tinha muitas participações de camaradas que vinham ter comigo a fazer "queixa":
- Colaço o teu "pardal" tecelão rasgou-me o aerograma.

O sacana do passarinho era maroto, quando nós estávamos a escrever punha-se à espreita e logo que nós nos distraíamos dava uma bicada no papel e lá ia ele todo feliz com um bocadinho de papel no bico, voando para longe.

Nota: - Publiquei esta história na minha página do facebook e o Virgínio Briote incentivou-me que a enviasse para o blogue, porque na guerra também se passa o oposto e com mais gosto. Se vos parecer que deve ocupar um espaço no blogue, publiquem.
José Colaço

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23025: Blogoterapia (301): E a montanha pariu um rato... (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23025: Blogoterapia (301): E a montanha pariu um rato... (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 22 de Fevereiro de 2022:


E A MONTANHA PARIU UM RATO

Caros camaradas já recebi o tão esperado cartão.

Gostei de receber a medalha, o cartão e também já cá canta a insígnia. Não quero que me julguem um ingrato.

Que desculpem, mas não vejo para que serve na verdade, por enquanto, a menos que esteja mal informado.

Os combatentes de África, não estão todos no mesmo patamar económico e assim, há os muito necessitados e os que não precisam dos benefícios do cartão para nada a não ser, como prova de que lá estiveram e que aqueles tempos foram duros também para eles.

A titulo e exemplo falaremos dos que auferem reformas de muitos milhares e dos têm uma reforma de poucas centenas euros.

A diferença é tão grande como os que sempre andaram de autocarro, metro ou eléctrico, e os que nunca andaram nem precisam, até embirram com esses meios populares de transporte onde se pode usar o dito cartão.

A diferença é entre os que têm acesso a tratamentos de saúde privados, quando e onde querem e os que só têm direito quando têm sorte, após por vezes esperem pela sua vez, independentemente da gravidade da sua doença.

Quantos milhares de combatentes não têm reformas dignas?

Quantos precisam de ajuda na verdade, porque vivem abaixo do limiar da pobreza?

Tendo em conta a nossa idade, quantos podem recorrer a tratamentos de um fisioterapeuta? (que até me dava jeito por causa da ciática que me aflige há quase dois meses) à falta dos ditos ando carregado de anti-inflamatórios e também por cá passaram 12 injecções de Relmus e Voltaren.

Quantos podem usar dos benefícios de umas termas, que as há óptimas para quase todas as maleitas dos portugueses?

Quantos podem ir ao dentista a não ser quando é para arrancar um malvado que os não deixa dormir?

Quantos não estão nas listas de espera para realizar as tão necessárias cirurgias?
Quantos vivem sozinhos num total abandono?

Quantos vivem na rua?

Ora criaram um cartão como se todos tivessem reformas ao nível dos que não precisam dele para nada.

Podem sempre dizer que é um cartão democrático pois é igual para todos, mas nós não somos todos iguais na vida nem na morte, atendendo à qualidade do caixão que nos está destinado.
Agradeço pela luta encetada por milhares de camaradas pelo reconhecimento do nosso papel no passado, mas quanto ao presente seria de esperar que os mais necessitados tivessem apoio, que não fosse caridade, mas direito como cidadãos de pleno direito, pelos serviços prestados como povo fardado, bem com uma vida inteira de trabalho em prol desta nossa Pátria que não é justa para todos.

Desculpem o desabafo enquanto rufam novamente os tambores da guerra, mas quanto ao assunto, esperarei sentado.

Um abraço a todos camaradas
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22939: Blogoterapia (300): O tempo passa, mas as suas marcas ficam (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493)

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22939: Blogoterapia (300): O tempo passa, mas as suas marcas ficam (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493)

1. Mais um artigo do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) para a nossa série Blogoterapia, enviado ao nosso Blogue em mensagem de 24 de Janeiro de 2022:


O tempo passa, mas as suas marcas ficam

Foi no dia 24 de janeiro do ano de 1972, faz hoje meio século, que fiz a minha primeira viagem de avião rumo à Guiné, depois de na condição de militar ter passado um ano menos um dia na metrópole.

As voltas a que a vida tantas vezes nos obriga!
Na madrugada do dia 22 fui levar a minha esposa à maternidade do hospital da Nazaré, onde naquela manhã nasceu o meu filho. À tarde fui lá vê-los… sem me ter despedido… na manhã do dia seguinte apanhei o autocarro que me levou até Lisboa, onde ao início da tarde eu me fui apresentar no DGA, enquanto eles continuavam na maternidade.

No dia 24, a manhã ainda vinha longe quando o avião em que viajei levantou voo do aeroporto militar de Figo Maduro. Depois de uma viagem lenta… chegamos a Cabo Verde.
Em Lisboa, quando embarcamos, a temperatura era de cerca de quatro graus, quando chegamos ao aeroporto dos Espargos, na Ilha do Sal, estavam trinta.
Depois de lá termos estado durante algum tempo, não muito, voltamos a levantar voo para concluir a viagem até ao aeroporto de Bissalanca, na Guiné. Se eu já ia completamente baralhado… quando lá cheguei fiquei ainda mais, o que talvez fosse normal… Para mim tudo aquilo era novo, começando pela minha primeira viagem de avião (logo a caminho da guerra…) onde seguia também uma senhora envergando traje militar, soube depois que era uma enfermeira paraquedista, alguém disse que ela estava a regressar depois de ter ido acompanhar um ferido.
Eu desconhecia que existiam enfermeiras nas forças armadas…

Desde que saí do aeroporto de Bissalanca até chegar aos Adidos, para mim, era como se tudo fosse um mundo novo… tal era o excesso da minha ignorância em relação aquilo com que ali estava a ser confrontado.
Depois de ter passado quase um mês nos Adidos, uma nova viagem de avião, agora até Bafatá, e nova surpresa, o Dacota em que viajei tinha os bancos em madeira, iguais aos das viaturas. Depois de termos chegado a Bafatá, eu e mais alguns que tinham viajado comigo, seguimos um novo rumo - agora em viatura para Bambadinca, a que se seguiu mais uma viagem no mesmo dia até Mansambo, onde, junto com os velhinhos, já se encontrava a Companhia que eu fui integrar.

Daquilo que fiz ontem, algumas dessas coisas, hoje, eu já não tenho a certeza. Mas estas continuam a manter-se vivas na minha mente. Ainda que há já muito tempo as tenha arrumado… só as visito quando eu entendo necessário.
Para alguns dos mais novos, e mesmo de outros menos velhos, talvez pensem que nós éramos tontos, ou atrasados, por termos seguido por aqueles trilhos… Mas os tempos eram outros. Aconteceu a alguns que estavam no estrangeiro, quando chegava o seu tempo regressavam ao nosso país para cumprir o serviço militar. Não porque gostassem de lutar contra alguém, muito menos sabendo que iam para a guerra. Mas sim porque gostavam da sua terra e dos seus.

Alguns tinham saído clandestinamente do nosso país, no início da guerra, e gostavam de poder regressar para estar algum tempo junto da família e dos amigos, mas não podiam… Porque se voltassem, alguém que não desejavam se podia encontrar com eles.

Era assim naquele tempo!...

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22427: Blogoterapia (299): Ter muita gente por perto não significa sempre estar-se acompanhado (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493)

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22427: Blogoterapia (299): Ter muita gente por perto não significa sempre estar-se acompanhado (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493)

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 21 de Julho de 2021:

Amigo Carlos
Faço votos para que te encontres de boa saúde.
Hoje, vai mais um pequeno texto que não tendo nada a ver com a guerra, tem a ver com a vida de muitos que lá foram. Vou publicar no facebook. Se entenderes que merece ser publicado, pública.

Recebe um abraço

António Eduardo Ferreira

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Ter muita gente por perto não significa!...

Não é novidade para ninguém que existem algumas pessoas que se aproximam de nós quando delas não precisamos e se afastam quando necessitamos da sua ajuda.
Para que essas situações possam ser evitadas, é necessário procurar saber de onde vêm e o porquê dessas aproximações!... Nem sempre é fácil agir assim, mas é a única forma de evitar acontecimentos, por vezes bastante desagradáveis.
Existem pessoas que sem saber muito bem porquê, gostam de ter sempre muita gente por perto. Outras, mesmo no meio de muita gente, chegam a sentir-se sós.
Já aconteceu a alguns que estando sozinhos, a sentirem-se confortáveis à sombra fresca de uma árvore, aparecerem junto deles várias pessoas. Assim que o sol encobriu… eles voltaram a ficar como antes!... Quando tal acontece, antes de se afastarem, alguns ainda dizem que têm de ir embora... Outros, vão e nada dizem.

Afinal, mesmo com muita gente por perto… nem sempre significa estar-se acompanhado.

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22387: Blogoterapia (298): "Safety, first"?... Então eu não posso partilhar os meus "contactos pessoais" com aquele ou aqueles camaradas que deles precisam? (João Crisóstomo, Nova Iorque)

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22387: Blogoterapia (298): "Safety, first"?... Então eu não posso partilhar os meus "contactos pessoais" com aquele ou aqueles camaradas que deles precisam? (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Fonte: Cortesia de Luso-Americano, 19 de janeiro de 2018


 1. Mensagem de  João Crisóstomo [Foto à direita: o nosso camarada e amigo luso-americano, natural de Torres Vedras, que, como ativista social, tem, dado a cara por muitas e boas  causas, como a da autodeterminação de Timor Leste, gravuras de Foz Coa, Aristides Sousa Mendes... Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque; é casado, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracun]
 
Date: domingo, 4/07/2021 à(s) 12:00
Subject: contactos pessoais

Caro Luís Graça,

Às voltas, "visitando" pelo computador os nossos "camaradas da Guiné", fui dar com duas frases, comentários teu e do Valdemar Queirós. Dizes tu, a 6 de Abril deste ano, Post 22078,  em comentário a outro comentário do Valdemar que dizia  "Sem o computador que faz de livro, jornal de notícias, sala de cinema e teatro, troca de conversas com familiares, amigos e camaradas da Guiné, e sem poder sair de casa"... Etu respondeste: "se alguém quiser telefonar-lhe, que me peça o número: dá-lo-ei, com todo o gosto... Sabe tão bem ouvir uma voz amiga quando se está doente e sozinho, em casa!"... (*)

Em resposta, vou-te já telefonar para me dares o número dele. Para mim, mais do que uma simples "acção benfazeja" de estender a mão a quem quer dela necessita, é uma obrigação fazê-lo quando as circunstÂncias o permitem fazer. E mais razão ainda quando estes por qualquer motivo fazem parte do nosso círculo de amigos, como são todos aqueles a quem as mesmas experiências e vivências na Guiné e outros TO fizeram deles meus / nossos irmãos.

Para mim, pessoalmente , eu sinto que, apesar de todos os facebooks, blogues, twitters e tantos meios digitais, nada chega a uma chamada telefónica em que se ouve do outro lado da linha a voz de alguém, seja um familiar ou mesmo alguém que até nem se conhece, mas que naquele momento é o melhor amigo a dar um abraço tão preciso e apreciado em momentos de solidão e quem sabe de sofrimento físico e mental?

Puxa vida, Luís. Não haveria maneira de, sem prejuízo da privacidade de ninguém, podermos ter os contactos telefónicos daqueles camaradas que não se importam, e até gostariam, de receber uns telefonemas pessoais e directos , especialmente quando estão por qualquer razão confinados, "sem poder sair de casa"?

Por mim, já mais do que uma vez deixei os meus contactos, de email e telefónicos. Não hesites em os partilhar, pessoalmente ou mesmo no blogue se assim entenderes. Eu sei - várias vezes tenho sido avisado - que é preciso cuidado etc.,  etc.,  mas por outro também sei que de "amigos" eu não preciso de ter medos. 

E se alguém que não é amigo meu mas apenas "amigo da onça" quiser os meus contactos?… Hoje em dia é possível encontrá-los. Eu não sei encontrar contactos sem ser por meios directos e pessoais, mas por muitas experiências já vividas pessoalmente, verifico que os meus contactos foram parar a indivíduos que não são meus amigos nem o são de ninguém. E não são estes cuidados e precauções nossas que os impedem de obter as nossas informações e contactos pessoais.

Abraço grande,
João
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Nota do editor:

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22078: Blogoterapia (297): Obrigado, a todos, por se terem lembrado de mim no dia dos meus anos... sozinho em casa, com o computador nos "cuidados intensivos" e agarrado à máscara de oxigénio por causa do pó do Saara... (Valdemar Queiroz, Agualva-Cacém)


Cacém > PC-Doctor > Rua Marquês de Pombal,nº 89, loja, esquerdo... Tem página aqui. (Passe a publicidade, mas é uma informação que pode ser útil para os camaradas da Tabanca da Linha)


1. Mensagem do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; tem mais  de 120 referências no nosso blogue, e é um activo e incansável comentador]:


Date: terça, 6/04/2021 à(s) 23:58
Subject: Obrigado, Luís Graça


Luís, muito obrigado pelo teu telefonema.

Já estou um pouco melhor, embora agora com uma ciática (?) numa perna, e deu para ir buscar o meu computador que já está pronto para mais umas viagens.

Embora com algum atraso, já fiz um comentário no post do meu aniversário no nosso blogue. (*)

Teve piada o meu computador ter estado em cuidados intensivos na loja dum PC-Doctor, indicado pelo meu filho por terem sido colegas no Secundário.

E cá vamos andando.
Abraço
Valdemar

PS - Anexo uma foto do consultório do PC-Doctor


2. Comentário do Valdemar Queiroz, no poste P22050 (*)


Obrigado a todos.

Não é por ser meu hábito, mas só agora estou a agradecer a atenção pelo vossos Parabéns no dia do meu 76º. aniversário. Fico muito sensibilizado.

Este atraso de agradecimento deves-se ao facto do meu computador não ter escapado a mais um vírus e ter de ser internado nos cuidados intensivos num PC-Doctor com internamento de 24/03 até 05/4/2021. Afinal não era propriamente um vírus, era mais um problema da idade avançada com necessidade de substituição dumas peças (, afinal até nos humanos assim acontece).

Mas, com a saída,  expus-me às ditas poeiras/areias do Saara e fiquei bastante enrascado com o meu problema DPOC [doença pulmonar obstrutiva crónica] e foram dias seguidos a máscara de oxigénio, incluindo o dia dos meus anos.

Sem o computador que faz de livro, jornal de notícias, sala de cinema e teatro, troca de conversas com familiares, amigos e camaradas da Guiné, e sem poder sair de casa, deu para voltar a ler "Viagem a Portugal", de José Saramago, e reler algumas "Vida Mundial" e uns Suplementos Literários do "Diário de Lisboa" que, com uns filmes do Estúdio do Cinema Império, faziam parte da 'militância de ser culto' para fazer boa figura em tertúlias de mesa de café... naqueles belos anos sessenta.

Obrigado, Cherno Baldé, o que será feito dos outros Embalós?
Obrigado, Luís Lomba, nunca mais voltaremos a passar naquela inesquecível Ponte Caium.
Obrigado, Gaspar, não te esqueças de quem nos lixou aqueles belos anos sessenta.
Obrigado, Luís Graça,  pela amabilidade do teu telefonema.
Obrigado,  Duarte, para o mês de Junho não pode faltar a nossa sardinhada.
Obrigado a todos.
Os meus Parabéns ao António Graça Abreu e à Rosa Serra.
Para o ano há maís.

Abraços
Valdemar Queiroz

6 de abril de 2021 às 23:22

3. Comentário do editor LG:

A gente às vezes pensamos que somos "os mais coitadinhos do mundo"...Basta dar uma vista de olhos pelas salas de espera dos nossos hospitais, centros de saúde, consultórios... Cada um, cada uma, mergulhado/a na "sua dor"... Enfim, basta ouvir as conversas, agora mais mitigadas pelas restrições impostas pelo confinamento: ai a minha perna, ai o meu braço, ai o meu problema de saúde que é muito maior do que o teu, ai os meus medicamentos que são muito mais caros do que os teus... 

Mas adiante, não vim falar de mim... nem do meu umbigo, parafraseando o nosso camarada Alberto Branquinho (que tem andado arredado do nosso blogue). Venho, sim, dizer que fiquei, há dias, sensibilizado com a situação d0 nosso camarada Valdemar Queiroz que vive há anos sozinho na sua casa em Agualva-Cacém, e tem que saber lidar com uma doença crónica tramada, uma DPOC (**)... Foi o Renato Monteiro, outro portador de uma DPOC, que me deu o seu nº de telemóvel. 

Fiquei a saber que o Queiroz divide os 365 dias do ano entre a Holanda (onde tem filho e netos) e Agualva-Cacém... O clima da Holanda é tramado para um portador de DPOC, razão por que passa cá uns meses... E aqui só sai para o estritamente necessário, tem o carro à porta, mas é de uma autonomia impressionante. Está habituado a (e gosta de) cozinhar. E tem um sentido de humor que o ajuda a superar as dificuldades e contrariedades... 

Há dias o seu PC "pifou" e foi preciso ir ao PC-Doctor... Valeu-lhe o filho, na Holanda, que à distância lhe deu umas dicas... Meteu-se o Queiroz ao caminho até ao consultório do PC-Doctor, mas em mau dia, com a atmosfera carregada de pó do Saara... Resultado: teve uma crise dos diabos...

No dia dos anos, não consegui que ele me atendesse. Consegui ontem, e ele ficou sensibiizado. Até o gesto de pegar no telemóvel lhe custa.

Conversámos um pouco, não quis maçar. O meu respeito por ele aumentou. Já estava a ficar mais aliviado, depois de uma crise de vários dias. E estava entusiasmado porque o PC estava pronto e ia buscá-lo. É a sua ligação ao mundo, para mais neste tempo de não-tempo de Covid. 

Fico feliz por saber que ele também já pode voltar ao nosso convívio na Tabanca Grande. E se alguém quiser telefonar-lhe, que me peça o número: dá-lo-ei, com todo o gosto... Sabe tão bem ouvir uma voz amiga quando se está doente e sozinho, em casa!... (***)
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