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quinta-feira, 14 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25270: Memórias cruzadas: Referência ao António Lobato (1938-2024) em mensagem de 'Nino' Vieira para Aristides Pereira, em 1963 (voltariam a encontrar-se 36 anos depois, em Bissau)



António Lobato (1938-2024), maj pil av ref: no cativeiro (maio de 1963 / novembro de 1970) sempre recusou a liberdade em troca da denúncia, aos microfones da rádio, da guerra colonial. Mas em carta  à  mulher, datada de Kindia, 22/5/65, escreveu: (...) "Houve momentos de fraqueza em que quse me arrependi de ter recusado essa liberdade, hoje porém agradeço a  Deus o ter-me dado a força necessária para resistir" (pág. 125).


1. Releia-se a notável descrição do encontro do António Lobato com o já então  mítico  'Nino' Vieira, escassos dias a seguir à sua captura: vd. páginas de "Liberdade ou evasão:  o mais longo cativeiro de guerra", 1ª ed.  Amadora, Erasmos Editora, 1995, pp. 62/64).

(...) " Diz então, como quem se gaba dos poderes absolutos que detém, que poderia reenviar-me para Bissau ou que poderia até matar-me, mas que não irá fazê-lo pelo facto de há quinze dias atrás, ter recebido ordens de Amílcar Cabral, para fazer prisioneiros e dirigi-los a Conacri" (...) (pág. 63). (vd. no ponto 2 um excerto mais completo.)

'Nino' Vieira em mensagem posterior a Aristides Pereira, que a seguir se transcreve, faz referència a este encontro (no seu "quartel-general" em Darsalame):

(...) "Recebi a vossa carta com o  n/ camarada Seni, no qual tomei conhecimento de que o tal piloto  [António Lobato]  mudou da ideia que tinha quando  [se]  encontrava em n/ poder cá  dentro."... 

Segundo o tratamento arquivístico desta correspondència, pela Fundaçáo Mário Soares, isto queria dizer: "Recusa do piloto [António Lobato] de prestar uma declaração contra a guerra colonial"... 

É a única referència ao António Lobato que encontrámos até agora no Arquivo Amílcar Cabral. (*)

 Lemos no "Observador", num trabalho da jornalista Tânia Pereirinha,   que o Lobato e o 'Nino' voltariam a encontrar-se mais tarde, em Bissau, em 1999, trinta e seis depois:

(...) "Foi por isso mesmo que, em 1999, quando o então Presidente guineense Nino Vieira o convidou para almoçar, António Lobato não pensou duas vezes. Ao longo de um par de horas, conversaram e recordaram os tempos em que um tinha estado à guarda do outro. Dias depois, quando fez check-out do Hotel 24 de Setembro, a funcionar no local onde décadas antes tinha sido a messe dos oficiais portugueses em Bissau, o piloto descobriu que a sua estadia já tinha sido paga — nada menos do que pelo primeiro Presidente da República da Guiné Bissau.

“Depois, quando perdeu o mandato, fugiu da Guiné e veio para Portugal, os jornalistas perguntaram-lhe se tinha cá alguém conhecido e ele respondeu: ‘Tenho um amigo, o Lobato!’”, continua a recordar. “Isto não cabe na cabeça de ninguém, mas para ele eu era um amigo, um conhecido.” (...)



Camarada Aristides: 
Recebi a vossa carta com o  n/ cama-
rada Seni, no qual tomei conheci-
mento de que o tal piloto  [António Lobato] 
mudou da ideia que tinha
quando  [se]  encontrava em n/ poder cá 
dentro.

Junto segue com o Djaló
a camarada Ernestina [Titina]   Silá e
mais dois empregados, um da Casa
Gouveia e o outro da S.C. U.  [Sociedade Comercial Ultramarina].

Seguem mais três rapazes, que
devem apresentar os seus nomes,  [os] dos



seus pais, e mais 
 [h]abilitações que 
têm,  Todos eles têm [-se] dedicado muito 
bem no Partido. Um deles estva já
 [h] á 9 meses no mato juntamente 
connosco.

Como sabes,aqui encontra-
-se também nalús e sossos, mas
 [na sua maior] parte não têm instru-
ções necerssárias. 

Junto segue nomes de camaradas Jugaré Natchuta,
Quecife Nina, Sebastião Monteiro, 
Silvina Vaz da Costa, António
Araújo ou Insemba Juboté, Jaime
Nandia, filho da Jubana.



Agradeço fazer voltar Djaló ou o
seu companheiro [o]  mais depressa 
possível porque estamos com falta
de munições.

Tenho a participar do ataque 
feito a Calaque [na]  área de Cacine,
sob o comando do camarada 
Corona.  Um grupo dos nossos 
militantes teve um recontro 
com as forças portuguesas onde 
conseguiram  [a]bater 17 soldados e
um ferido. Esse recontro foi
no dia 13 às 19h30. Caíram





do nosso lado os camaradas Iembaná  [?] 
Fuam de Cassumba en Nhina;
Tunqué Nhaberama
e Tunga Naquedama que fica-
ram feridos.

Agradeço aumentarmos  [sic] mais materiais
para poder manter a nossa posição
defensiva em toda a área.

O que precisamos mais é de metra-
lhadoras ligeiras e pesadas. Mesmo
que mais 20, temos homens suficientes
para pegarem nelas. Do camarada
Marga  [nome de guerra de 'Nino' Vieira] .



 [Nomes propostos por 'Nino' Vieira, para;] 

Estado (sic) de segurança: Ingaré Natchuta,
Sebastião Monteiro,
Quecife Naina,

Bolsas de estudo:

Orlando Paulo Trindade,
António Tambó Nhanque,
Jaime Nandaim, filho de Iembaná  [?],
Ernestina [Titina]   Silá,
Gilda Silá,
Silvina Vaz da Costa,
Celestina Marques Vieira, minha irmã"] 

Cooperativas:

António Araújo ou Insemba Juboté,
Mamadu Camará,
Cristiano Vieira.




Agradeço mandar-nos oferecer 
capas e relógios e películas.

Marga

(Seleção, revisão / fixação de texto / negritos / parènteses retos: LG)

Fonte: Casa Comum | Instituição:Fundação Mário Soares | Pasta: 04613.065.057 | Assunto: Recusa do piloto [António Lobato] de prestar uma declaração contra a guerra colonial na Guiné. Participa que seguem com o camarada Djalo e Ernestina Silá, dois empregados da Casa Gouveia, um empregado da Sociedade Comercial Ultramarina e três rapazes. Nalús. Falta de munições. Comunica o ataque em Calaque (Cacine) sob o comando de Corona (Ansumane Sanha II). Segurança. Bolsas de estudo. | Remetente: Marga (Nino Vieira) | Destinatário: Aristides Pereira | Data: s.d. | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste) | .Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Correspondencia |

Citação (s.d.), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39139 (2024-3-14)



Guiné > s//l> s/d c. José Araújo e Nino Vieira, membros do Conselho Superior da Luta [José Araújo estava encarregue de acompanhar a delegação da UIE  c- dezembro de 1970 / janeiro de 1971].

Citação: Mikko Pyhälä (1970-1971), "José Araújo e Nino Vieira", Fundação Mário Soares / Mikko Pyhälä, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11025.008.026 (2024-3-14) (com a devidfa vénia...)
   


2. Vale a pena reproduzir a descrição mais completa o Lobato faz deste encontro como 0 'Nino' (excertos das pp.  62/64, da 1ª edição,  com a devida vénia):

(...) Uma vez do  outro lado [do rio Cumbijã ?]  encetamos uma marcha de cerca de duas horas,  através de uma zona pantanosa, enterrados na lama até meia perna. Paramos numa área a que chamam Dar-es-Salam  [Darsalame] , onde se encontra o acampamento do comandante da guerrilha da zona Sul, Nino Vieira.

Sentado no tronco seco de uma árvore, o jovem chefe guerrilheiro, vestido de caqui verde escuro, pés nus e espartilhados por sandálias de plástico, braços ornamentados com grossos anéis de madeira e couro, um pedaço de couro pendurado ao pescoço com uma tira de cabedal, mais parece a estátua inerte de um deus negro expulso do Olimpo, do que o temível turra a quem todos obedecem, porque é “imune às balas do tuga”.

À minha chegada, o chefe levanta-se e olha-me de frente durante alguns instantes, sem pestanejar e  sente-se de novo. Só então a sua voz quase feminina se faz ouvir: “senta”, diz ele.

Embora esteja farto de saber o motivo por que ali me encontro, convidam a fazer o meu próprio relato dos acontecimentos. Quando termino pergunta-me o que pretendo ao que eu respondo, voltar para casa

Diz então, como quem se gaba dos poderes absolutos que detém, que poderia reenviar-me para Bissau ou que poderia até matar-me, mas que não irá fazê-lo pelo facto de há quinze dias atrás, ter recebido ordens de Amílcar Cabral, para fazer prisioneiros e dirigi-los a Conacri,

A seguir, questiona-me sobre a minha família e fica a saber que sou casado há seis meses e que a minha mulher está em Bissau. Tira, então, do bolso da camisa um pedaço de papel e uma esferográfica. Estende-mos e diz que se quiser posso escrever uma carta à minha mulher que ele garanta sua entrega.

Não acredito nas suas palavras, mas como não tenho nada a perder, escrevo meia dúzia de linhas e de devolvo lhe o papel que ele repõe cuidadosamente no bolso (sete  anos e meio mais tarde, venho a saber que a carta foi entregue à minha mulher em Bissau, por um guerrilheiro que aí se deslocou durante a noite).

Passo três dias no acampamento de Nino Vieira, sem que alguém se atreve a molestar-me ou mesmo dirigir-me palavras insultuosas, como aconteceu nos dias anteriores.

O próprio Chefe. apesar da sua frieza no trato, esforça-se por demonstrar uma certa amabilidade, embora a carapaça endurecida por um embrear diário com a morte,  frustre as suas intenções de cordialidade. Ambos reconhecemos que existe entre  uma espécie de comunicação primária que denuncia a existência de um respeito mútuo.

(…) Neste quartel-general (um acampamento idêntico ao da ilha do Como) há uma movimentação constante de grupos de guerrilheiros que vão e vêm. É impossível determinar os efetivos reais desta força, sempre em movimento.

Ao contrário das noites silenciosas dos outros acampamentos, por onde passei,  aqui, a atividade noturna parece ser mais intensa que a diurna. Dorme-se pouco, fala-se também a voz, não se veem fogueiras. O pouco que há para comer, aparece quente. (…)

(Seleção, revisão / fixação de texto / negritos e itálicos: LG)

quarta-feira, 13 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25267: 20.º aniversário do nosso blogue: Alguns dos nossos melhores postes de sempre (3): "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra", de António Lobato (1938-2023) (excertos do livro e notas de leitura de Mário Beja Santos)

 

António Lobato (1938-2024), maj pil av ref  (*): 
É bem evidente a marca da catanada na região frontal, que lhe foi desferida em 22 de maio de 1963, na ilha do Como, por um habitante local.


O António Lobato entrevistado em 1996, num programa da RTP1, "Operação Mar Verde - Parte l", Série "Enviado Especial",  apresentado pelo  jornalista José Manuel Barata-Feyo,   em 7 de julho de 1997. Fotograma capturado e editado, com a devida vénia à RTP Arquivos. (Vídeo: 17' 38'').
 


I. é uma pequena homenagem do nosso blogue ao camarada maj pil av ref António Lobato (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024) (**). Reunimos aqui alguns excertos do seu livro "Liberdade ou Evasão: o mais longo cativeiro da guerra", que teve pelo menos 5 edições (entre 1995 e 2014). A maior parte dos nossos leitores nunca o leu. 

O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, recenbseou  aqui a 2ª (1996) e a 5ª edição (2014). Reunimos, entretanto, o essencial das suas notas de leitura: P20534, P20555, P20577 (com a devida vénia...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG)



Capa da primeira ediçáo (1995, Erasmios, Amadora)

´

Capa da quinta ediçáo (2014, DG, Linda-A-Velha)


1. A narrativa do major pil av António Lobato melhora de edição para edição, estou consciente que este aprimoramento vem da reflexão a que ele tem procedido, o que dá um caráter mais intimista à história do seu cativeiro. E, no entanto, somos agarrados sem qualquer possibilidade de despegar a nossa atenção tão avassaladora, veja-se logo aquela aterragem que lhe salva a vida em condições excecionais:  

"O ponto de contacto com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível de detectar - o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha, terreno preparado para a cultura do arroz. 

"Ao intradorso das asas do T-6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo. Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora dentro de si mesmo, ao longo do terreno".

E assim vai começar o cativeiro, o mais longo cativeiro da guerra. Um relato superior, de um homem que soube superar a adversidade, que procurou fugir, mas que teve que esperar pela Operação Mar Verde para ser restituída a liberdade. (...)
 

2. (...) No prólogo das diferentes edições do seu livro, dá-nos uma síntese dos acontecimentos e da situação que viveu, nestes termos precisos:

“Em 1963, no céu português da Guiné, dois aviões da Força Aérea colidem na sequência de uma missão de ataque ao solo e após um deles ter sido atingido por projécteis inimigos.

"Um dos aparelhos despenha-se em plena selva e o piloto morre; o outro, aterra de emergência numa bolanha e o piloto, depois de agredido à catanada pela população local é capturado por guerrilheiros do PAIGC e conduzido à vizinha República da Guiné Conacri. Aí, é-lhe facultado optar entre e deserção e a cadeia.

"Optando pela fidelidade aos princípios do seu povo, é encarcerado na temível Maison de Force de Kindia, com o rótulo de criminoso de guerra.

"Durante sete anos e meio é submetido a maus-tratos, subnutrição, isolamento e contínuas ameaças de morte pelos agentes de um governo pró-soviético chefiado por um dos maiores tiranos da África Ocidental – Sékou Touré.

"Tenta três vezes a evasão, mas só na última consegue respirar, durante uma semana, o ar fresco da liberdade. Percorre cerca de noventa quilómetros em plena selva, atravessando a cadeia montanhosa do Futa Djalon em direção à Guiné Portuguesa. Ao sexto dia, é recapturado e reconduzido à prisão de onde partira.

"Ao cabo de mês e meio de total isolamento, é transferido de prisão e libertado, tempos depois, durante a Operação Mar Verde, chefiada pelo Comandante Alpoim Calvão.

"É por instâncias de familiares e amigos, por dever de cidadania e para comemorar os vinte e cinco anos do regresso à liberdade que hoje se propõe condensar em curtas páginas, não apenas os horrores, mas sobretudo algumas das vias possíveis de sobrevivência no meio hostil e o consequente enriquecimento da pessoa humana, quando, perante situações-limite, consegue vencer-se a si próprio”. (...)

Não se irá aqui cotejar as inúmeras alterações introduzidas de edição para edição. O que se pretende relevar é a melhoria substancial da qualidade literária e a introdução de um processo intimista, em edição recente, António Lobato revela as estratégias de que se socorreu para que a tremenda solidão da clausura não o destruísse, pelo menos moral e psicologicamente.

Fala-nos da sua juventude  em Paderne, como se alistou jovem na Força Aérea, depois temos o curso de pilotagem em S. Jacinto, a fase básica na Base Aérea n.º 1 em Sintra, em 22 de maio de 1958, um acidente quase que o ia matando, após dois meses de imobilização, e ao fim de cerca de oito meses de treino intensivo, ei-lo pronto para voar mais alto. Tem 21 anos e é-lhe confiada a tarefa e a responsabilidade de ensinar outros a voar. E, como ele escreve, em 1960 rebenta a guerra colonial.

 A Força Aérea não possui na Guiné qualquer tipo de estrutura. Em julho de 1961, em companhia de um outro camarada, seguirá para a Guiné em missão de soberania. 

Em 19 de setembro de 1961 descola pela primeira vez da pista de Bissalanca aos comandos de um T-6. Descreve com incisão e economia todos estes acontecimentos, casa-se, regressa à Guiné com a mulher e em 21 de maio de 1963 parte em missão para a Ilha do Como, um acidente obriga-o a uma aterragem de emergência, aterra no Tombali, é ferido e levado por guerrilheiros do PAIGC para território da Guiné Conacri.

Não é despiciendo observar como naquela região do Tombali há população afeta ao PAIGC e os guerrilheiros movimentam-se com certo à-vontade. A guerrilha tinha capturado um barco da Sociedade Comercial Ultramarina, de nome Bandim, transportará Lobato para o cativeiro. 

É bem tratado em Sansalé, tem feridas graves na cabeça e num braço. Seguem no Bandim até Boké. Segue-se um prolongado interrogatório. É interrogado, pretendem saber qual o regime político em Portugal, o que ele sabe da situação colonial, Lobato remete-se ao silêncio, depois de ter dado os seus dados militares, depois de uma longa viagem entra na Maison de Force de Kindia 

(...) “Entramos num hexágono aberto para o céu, com duas portas em cada um dos seis lados. Encaminham-me para a direita e indicam-me uma dessas portas, em ferro maciço, com o número 7 ao centro, encimada por uma grelha, feita em varão de diâmetro não inferior a 3 centímetros. 

"Entro e a pesada porta fecha-se atrás de mim com aquele ruído sinistro das portas de todas as prisões do mundo. Dou quatro passos e chego ao fim do espaço de que posso dispor. 

"Do lado direito, fazendo corpo com a parede e até dois terços de comprimento, ergue-se, até à altura de sessenta centímetros, um bloco maciço de cimento armado sobre o qual assenta um velho colchão de pano cheio de palha. Depreendo que é a minha cama. 

"Não sei bem porquê, mas sinto um forte cansaço. Sinto-me deprimido como antes nunca me tinha sentido. Apetece-me chorar. Atiro-me para cima da palhaça e não consigo conter os soluços que me sufocam. Choro tudo o que tenho a chorar e adormeço no cume da infelicidade”. (...)

Segue-se a descrição do dia-a-dia, ele é o prisioneiro da cela n.º 7, falam-nos do currículo de Sékou Touré e como ele mantém o seu regime de terror; vamos saber como é a sua cela, a degradação a que vai ser sujeito, o início da sua luta para se manter corajoso. 

A condição física começa a dar sinais de ruína, como ele próprio comenta:  

(...) “Porque não como uma boa parte das magras refeições, sinto que vou perdendo, lenta mas seguramente, toda a pujança da juventude; porque não me é fornecido qualquer tipo de medicamento, começa a ter fortes ataques de paludismo; porque a alimentação é pobre demais, a cárie dentária torna-se num flagelo; porque permaneço imóvel horas sem fim, começo a ter problemas de bexiga, a urinar pus e a sentir dores de barriga e cólicas insuportáveis. 

"Os ataques de paludismo surgem a uma cadência semanal e manifestam-se por acessos de frio, que me obrigam a bater os dentes durante horas, seguidos de vagas de calor, que me deixam exausto e banhado em suor. As dores de dentes, por vezes são tão intensas que me perturbam a visão e provocam vómitos e tonturas próximas do desmaio. A degradação do meu estado físico, se, por um lado, é dolorosa e me perturba a mente, por outro, prende-me o pensamento ao corpo e não me deixa grandes hipóteses de fuga em busca de recordações bem mais amargas que as dores da carne”. (...)


3.  (...) Descreve primorosamente a luta para se manter racional, para ir resistindo a um corpo que perde tonicidade, ocupa a mente e um dia vem até ao pátio, o recluso pode conviver.

Começam as peripécias, com todos os riscos: escreve à família, dá a sua localização, várias vezes procura a evasão, sempre sem sucesso. A liberdade irá chegar a 22 de novembro de 1970, no decurso da Operação Mar Verde. 

O seu regresso deixa-o atordoado, não pode falar do seu cativeiro, vai à televisão contar umas patranhas. E volta ao seu mundo dos aviões. E terminará o dia numa conferência citando o personalista cristão Emmanuel Mounier:

"Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão".

Não se entende como esta obra não encontrou um editor comercial, é um testemunho único. Vamos agora à edição de 2014, o agora Major Lobato remexeu na obra, deu-lhe outra palpitação sem renegar o escopo inicial. Esta edição catapulta o testemunho de Lobato para o patamar das grandes obras da literatura da guerra da Guiné.


4. Estamos a seguir de perto a edição de 1995, mais tarde tomar-se-á em conta as edições introduzidas na 5.ª edição, de janeiro de 2014, ver-se-á como o testemunho do Sargento Lobato ganhou em vibração literária, em intimismo, em vigor sobre a reflexão de um cativeiro. Ele é o preso da cela n.º 7, em Kindia, Guiné Conacri. 

Procura aperceber-se de quem são os outros presos, vai-se cronometrando com as rotinas, o dia que começa com várias portas de ferro a ranger nos gonzos, as latrinas fétidas removidas das celas, Lobato tem dois baldes, um deles serve de sanita, o outro contém água para beber, para se lavar e para substituir o papel higiénico. 

Põe a mente a funcionar, é preciso resistir à loucura ou ao embrutecimento. Os sentidos afinam-se, a sua capacidade de sobreviver também. O almoço é constituído por quatro bananas cozidas. Pesquisa à volta, põe os sentidos a funcionar, passa por um estado de dormência.

(...) “A minha cabeça está dorida e muito sensível. O simples toque dos dedos nos cabelos parece fazê-los enterrar-se, como espinhos, pelo crânio dentro. Este voltar do meu interesse para o corpo diz-me que continuo consciente da realidade vulgar, mas alerta-me também para outra realidade, muito mais real: é que bastou um simples avivar de sentimentos, provocado por um olhar para o firmamento, para desfazer a ilusão em que sempre tenho vivido de que o corpo sou Eu”. (...)

Põe os ouvidos à escuta, adapta-se às rotinas da prisão, às orações dos muçulmanos, toma consciência de que perde tónus, surgiu a cárie dentária, há momentos de grande desânimo:

(...) “Há cerca de três meses que oscilo entre o ser e o nada. Ou enlouqueço, ou me anulo, ou faço qualquer coisa para sobreviver até onde for fisicamente possível. Este estado caótico dentro de mim chegou ao limite do suportável. Isto que agora me tritura a alma, deve chamar-se desespero”. (...)

Dá luta aos percevejos, vai descobrindo a resiliência, tudo faz para se manter lúcido, doseia a plena atenção com o entorpecimento:

(...) “Quando o coração já não é mais que uma chaga e nem sequer reage aos golpes do punhal da lembrança; quando já não posso mais porque o cérebro, extenuado, se recusa a pensar por mais tempo e a evocar ou a lembrar-se; então a besta reclama, atiro-me para cima do catre e adormeço profundamente. 

"Ao acordar, tudo renasce, recomeço a evocar, a lembrar-me, de novo a sofrer mas com resignação. Consolo-me com a vitória de ter enfrentado a dor, de a ter vencido, de não lhe ter fugido e de ter ganho qualquer coisa de muito preciso que me ajuda a crescer”. (...) 

Depois de um ano de isolamento, é-lhe facultada uma hora de recreio todos os dias, pode agora observar seres humanos e aperceber-se melhor de tudo quanto se passa dentro da prisão. Encontra leprosos, tuberculosos, sifilíticos, gente que vai morrer. 

Então encontra alguém que se chama Chambord Lambert Joseph Alexandre Raymond e que lhe abre espaço para escrever para o exterior. Em 28 de novembro de 1964, da sua cela vedada com cimento e ferro, sai um código e o relatório da missão do dia 22 de maio de 1963, junta informações sobre a prisão em que se encontra, dedica alguma poesia a pessoas que ama profundamente, é de uma extrema beleza a mensagem que manda à mulher:

(...) “Durante toda esta ausência que tanto nos faz sofrer, neste abismo de miséria que submerge, nas horas que tudo me abandona, a fé inclusive, é sempre a tua imagem que me ajuda a flutuar, que me impede do naufrágio irreparável”. (....)

Encontra outro soldado português capturado, António Lauro, de Sernancelhe. Recebe propostas do PAIGC para denunciar a guerra colonial e partir para o exílio, tudo recusa. Aparecem dois graduados portugueses, Rosa e Vaz. Rosa é alferes miliciano e foi capturado em Bissássema, virá a escrever o seu testemunho, cuja recensão existe no blogue. O testemunho de Lobato vai falar das tentativas de fuga e os seus insucessos, na última andará uma semana a monte.

E em 22 de novembro de 1970, acontece a liberdade. Durante a Operação Mar Verde, um grupo assalta a prisão e liberta os 23 cidadãos portugueses, prisioneiros de guerra. Atravessam Conacri e embarcam num vaso da Armada, Lobato é apresentado a Alpoim Calvão, este está inquieto, teme que os aviões MIG, que não tinham sido destruídos, possam vir no alcance dos navios da Armada. Mas nada acontece, o contingente regressa até à ilha de Soga, daqui Lobato é transportado para Bissalanca.

Em 26 de novembro, todos os prisioneiros de guerra aterram na Portela e vão no autocarro para o Forte de Catalazete, estão oito dias consecutivos trancados numa sala com luz artificial e guardados por dois inspetores da DGS. 

Lobato interroga-se se saiu de uma prisão para entrar noutra. Ao fim de oito dias, aparece um coronel da Força Aérea com a missão de propor a liberdade desde que se comprometa a guardar segredo sobre o que sabe do desembarque em Conacri e ir à televisão contar uma evasão fictícia. Lobato está estarrecido, tem que aceitar.

Finalmente vai encontrar-se com a família, segue com a mulher e os pais para Melgaço, onde é recebido apoteoticamente

Passam-se meses sem que a Força Aérea o convoque, Lobato escreve uma carta a Marcello Caetano, é então chamado a Lisboa onde o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea o recebe com gritaria e ameaças. 

O importante é que Lobato volta aos aviões, termina o seu relato falando de uma conferência que fez na Academia da Força Aérea e onde referiu que o choque que o indivíduo sofre quando é brutalmente retirado do seu ambiente habitual e colocado em condições precárias de sobrevivência coloca-o frente a frente consigo como se de duas pessoas distintas se tratasse. 

É uma luta transfigurante, tão intensa como a dialética interior à procura de uma fresta que mantenha o homem no limiar da razão. Lobato conseguiu fundir numa união racional aquilo que prevalece do homem social com o indivíduo.

(...) “A partir do instante em que há passagem do ponto crítico com luz à reconciliação, acede-se a um estado de paz interior, a uma lucidez parente próxima da clarividência, a um racionalismo em que nada existe de insignificante. O que ainda resta da emotividade, reflete-se apenas em esporádicas euforias provenientes de um sentir, revelador da aquisição de qualquer coisa nova que nos sobredimensiona e que Mounier (filósofo francês, criador do personalismo cristão) exprime melhor do que ninguém:

- ‘Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão’.” (...)


5. Na última parte  iremos abordar as adições que acabam por valorizar este testemunho e tornar o depoimento de Lobato uma das memórias mais impressivas de toda a guerra colonial que os portugueses viveram entre 1961 e 1975.

António Lobato mexe e remexe no seu poderoso testemunho, de edição para edição:

 (....) Verificam-se aprimoramentos que, é o meu pensar, tornam este documento imorredoiro na história da literatura da guerra da Guiné, pegam-se em duas descrições, uma a fulgurante aterragem depois do acidente aéreo no regresso da Ilha do Como, é de uma vivacidade impressionante, incluindo não só os gestos necessários à pilotagem mais adequada às circunstâncias como o texto faz fé ao estado de alma de quem vai procurar sobreviver; o segundo texto é uma narrativa de cativeiro, releva o macabro da sordidez do presídio, o macabro e o nauseabundo de toda aquela escravidão a que estavam submetidos os adversários de Sékou Touré.

6. (...) Temos agora uma narrativa ainda mais vigorosa e em muitos pontos ganhou intimismo, espelhando os altos e baixos de um cativo que descobre força anímica para acreditar em si próprio e tentar escapar ao degredo.

A primeira descrição relaciona-se com o acidente aéreo, tem mais detalhe, dinâmica, a clara perceção do risco, a mestria da operação para aterrar em condições excecionalmente hostis:

(...) “O meu avião continua a vibrar como que sacudido por uma peneira gigante, devido ao desequilíbrio provocado pelo hélice todo torcido. Nestes casos, o procedimento para evitar o descontrolo total é parar o motor e saltar em paraquedas, ou então tentar uma aterragem de emergência sem motor.

"Num relance de olhos para o exterior, vejo uma clareira no meio da mata onde me parece que sou capaz de meter o avião. Como o motor está parado, sei que tenho de guardar uma velocidade tal que me permita manter o avião a voar como um planador e fazer uma avaliação muito correta de aproximação ao início da clareira, tão baixa quanto possível, mas sem bater nas árvores que a circundam.

"A quem não está familiarizado com os assuntos de aerodinâmica e pensa que a um avião com o motor parado só resta cair, devo esclarecer que, enquanto houver altitude suficiente para descer e manter uma velocidade de planeio, este voa normalmente até chegar ao solo.

"Perante a rapidez de decisão que a situação exige, o afluxo de adrenalina é tal que todas as faculdades passam a ter uma acuidade várias vezes superior ao normal. Todas as mnemónicas aprendidas há cinco anos atrás, ainda na fase da formação, para fixar procedimentos de emergência, afluem à memória com um rigor e uma fidelidade alucinantes.

"Nos escassos segundos que me separam do contacto com o solo, enquanto vigio e controlo com a cabeça, com as mãos e com os pés, não só o valor sagrado daquela velocidade mínima que ainda permite voar, mas também a altitude, a direção e as manobras de glissagem, perigosas mas necessárias para encaixar o avião no início da exígua clareira, vou simultaneamente executando os restantes procedimentos que contribuem para o sucesso de uma aterragem de emergência, tais como: apertar cintos, abrir cabine, desligar combustível, mistura e magnetos, desligar bateria e assumir uma atitude de corpo e alma bem encostados à cadeira.

"O ponto de contato com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível detetar – o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha.

"Ao intradorso das asas do T6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo.

"Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora sobre si mesmo, ao longo do terreno”.(...)

E é com esta chave explicativa, em pleno clímax, que Lobato sai incólume e vai ser capturado, ao princípio ainda acredita que quem com ele vem dialogar o ajudará a percorrer as duas dezenas de quilómetros para chegar a Catió, é brutalmente ferido, o calvário vai começar.

Lobato já está na cela n.º 7 na Maison de Force de Kindia, Guiné Conacri.

Vai-nos contar o início do dia nessa cadeia de segurança onde jazem inimigos de Sékou Touré:

(...) “Não resisto à curiosidade de ver o que se passa no exterior e penduro-me nas barras de reforço da porta para elevar a cabeça a uma altura que me faculte uns metros de horizonte.
O que vejo aterroriza-me! O pátio é hexagonal, um espaço a céu aberto para onde se abrem quatro portas de ferro, totalmente opacas, bem mais baixas que a minha e sem grades a encimá-las, vai-se enchendo de negros de todas as idades, descalços e quase nus, manifestamente subalimentados, que saem por aquelas portas como rebanhos escorraçados por uma fera invisível que os persegue.

"No centro do pátio, chicote em riste e porta de carrasco, um guarda sem expressão facial, tão ameaçador quanto esquelético, orienta para o grande portão de saída aquela enxurrada de negros totalmente desprotegidos, distribuindo chicotadas à direita e à esquerda, vociferando insultos apenas intercalados por nojentas cuspidelas num chão de cimento muito irregular.

"Junto ao portão de saída para o exterior, alinhadas ao lado de cada uma das ombreiras, duas colunas de homens armados. Nos pés trazem sandálias de plástico coloridas pela terra avermelhada dos caminhos que percorrem. Vestem calças engelhadas, de um caqui esverdeado, e uma camisa sem mangas, do mesmo tipo de tecido. À medida que os prisioneiros saem para as GMC que os esperam à porta, vão sendo contados pelos soldados.

"Terminada a tarefa do embarque para trabalhos forçados, os grandes portões fecham-se e tem início outra tarefa, atribuída aos inaptos para o trabalho no exterior e àqueles que alguma vez tentaram a fuga.

"De cada uma daquelas quatro portas opacas, ainda abertas, saem agora pequenos grupos que se movem com alguma dificuldade. Uns são leprosos a que já faltam partes do corpo, sobretudo das mãos e dos pés; outros tossem convulsivamente e expelem escarros amarelos para aquele chão meio desfeito; outros, ainda, apoiam-se às paredes para não tombar e arrastam-se com dificuldade em direção a uma outra porta que entretanto se abriu e dá acesso a uma área de recreio.

"Os menos afetados por doença ou caducidade sustentam nos braços metades de bidões de duzentos litros que transbordam de fezes e outros dejetos. Acompanhados por um guarda, saem pela porta principal. Minutos depois, oiço-os nas traseiras da minha cela a despejar os imundos recipientes.

"Todos os dias, após esta operação, o mau cheiro engrossa como se de coisa sólida se tratasse e põe a prisão a transbordar de nojo. O trágico amanhecer não fica por aqui. O encetar de uma terceira operação obriga-me a descer do meu posto de vigia, mas ainda bem que isso acontece, porque já tenho os braços dormentes de estar tanto tempo suspenso.

"O guarda começa a abrir as portas das sete celas que também dão para o pátio hexagonal. Dois negros estropiados retiram do interior de cada cela um balde de zinco que a seguir despejam num bidão colocado para o efeito num dos ângulos do pátio.

"Também eu tenho aqui dois baldes, sendo um deles substituto da sanita e outro servindo de contentor de água para todos os fins, isto é, para beber, para lavar e para substituir o papel higiénico que por estas paragens é desconhecido”. (...)

A transcrição destes dois textos é um convite para que se releia António Lobato, um jovem sargento piloto-aviador capturado no Tombali, em maio de 1963 e libertado durante a “Operação Mar Verde”, em novembro de 1970.

Foi considerado herói nacional e voltou ao ativo até ter passado à reserva em 1981. Exerceu outros cargos, posteriormente.

É um dos mais impressionantes documentos de vida em cativeiro, senão mesmo o mais impressionante de todos. De leitura obrigatória.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste 10 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25259: In Memoriam (50): António Lobato, maj pil av, ref (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024), autor de "Liberdade e Evasão: o Mais Longo Cativeiro": Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão, escreveu ele, citando o filósofo Emmanuel Mounier. A sua vida foi também ela uma luta contra o esquecimento e a ingratidão. Repousa, finalmente, em paz, em Rio de Mouro.

domingo, 10 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25259: In Memoriam (50): António Lobato, maj pil av, ref (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024), autor de "Liberdade e Evasão: o Mais Longo Cativeiro": Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão, escreveu ele, citando o filósofo Emmanuel Mounier. A sua vida foi também ela uma luta contra o esquecimento e a ingratidão. Repousa, finalmente, em paz, em Rio de Mouro.


Capa do livro do António Lobato, "Liberdade ou evasão: o mais longo cativeiro da guerra" (5ª edição, DG  Edições, Linda-A-Velha, 2014, 276 p.).





Capa da Revista do Expresso, de 29 de Novembro de 1997 (pormenor). Uma notável reportagem do jornalista José Manuel Saraiva , que conseguiu juntar em Lisboa 16 dos 25 militares portugueses, presos em Conacri, às ordens do PAIGC, e libertados na sequência da Op Mar Verde, em 22 de Novembro de 1970. Trata-se, sem dúvida, de um documento para a história.

Imagem: Digitalização feita por Henrique Matos, da capa da revista, a partir de um exemplar, pessoal, que ele comprou e guardou no seu arquivo. Foi através desta já famosa capa que ele localizou o seu antigo fur mil Jão Neto Vaz, do Pel Caç Nat 52. 

Neste grupo de dezasseis, está também o António Lobato (que nos parece ser o último da segunda fila, à esuerda,  de cabelo branco).



1. Morreu no passado dia 8,
 no hospital onde estava internado.  o nosso camarada da FAP,  António Lourenço de Sousa Lobato: ia fazer 86 anos, amanhã,  dia 11.  Foi hoje inumado no cemitério de Rio de Mouro.

 família, aos amigos e aos camaradas da FAP manifestamos aqui a  solidariedade na dor por parte dos editores, colaboradores e demais mais membros da Tabanca Grande (*)

O nosso camarada nasceu em Sante, freguesia de Paderne, concelho de Melgaço. Era major piloto-aviador, na situação de reforma...  Tem 17 referências no nosso blogue.

De 22 de maio de 1963 a 22 de novembro de 1970 foi prisioneiro do PAIGC. Seguramente o mais célebre, o mais inconformado e o mais resistente dos militares portugueses que passaram pelos cárceres do PAIGC na Guiné-Conacri. Foi libertado na sequència da Op Mar Verde. A sua história é publicamente conhecida.

Escreveu um notável livro de memórias do seu longo cativeiro, um grande documento humano, que já tem várias várias edições e pelo menos em duas versões (1995 e 2015) , "Liberdade ou Evasão",  e de que temos vários notas de leitura publicadas no blogue.(*).



Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > 7 dde Março de 2008 > Último dia do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Mensagem do Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, para  o nosso camarada da FAP, hoje major piloto reformado, António Lobato, que esteve prisioneiro em Conacri, sete anos, de 1963 a 1970.

Vídeo (1' 36''): © Luís Graça (2008). 

Vídeo alojado em: You Tube >Nhabijoes.

2. Reproduz-se de novo o depoimento gravado por Luís Graça, em Bissau, no Hotel no dia 7 de Março, por voltas 13h11, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) (**)

As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo. Joseph Turpin era um dos históricos do PAIGC, juntamente com Carmen Pereira e Carlos Correia, que estiveram presentes no Simpósio. Pediu-nos para mandar uma mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, aprisionado pelo PAIGC na sequência da queda, por acidente,  do seu T 6  em 22 de maio de 1963, na Ilha do Como. 

Levado para a Guiné-Conacri,  permanecerá sete longos e penosos  anos de cativeiro, com várias tentativas, frustradas, de evasão. Eis uma alguns excertos da mensagem do Joseph Turpin, 

"Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta. 

 Neste curto vídeo, o Turpin recorda os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade... 

"Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... 

Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar  em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. 

"Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao teu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada... 

 O Joseph Turpin insistiu comigo para entregar pessoalmente ao António Lobato esta mensagem.  Nunca tive nenhum contacto pessoal com o António Lobato, que só vi uma vez, por ocasião da estreia do filme-documentário As Duas Faces da Guerra, de Diana Andringa e Flora Gomes, e em que ele  é dos participantes.   

Para o António Lobato na alt7ura, em 2008, deixámos registada,  em nome pessoal,  dos demais editores, bem como de toda a nossa Tabanca Grande, "uma palavra de respeito, camaradagem, solidariedade e apreço". ~~

Presumimos que sim, mas nunca saberemos ao certo se esta menagem chegou ao seu destinatário. Quatro anos depois o único "feedback" que tivemos foi o da filha de Joseph Turpin (***)

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segunda-feira, 4 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25234: 20.º aniversário do nosso blogue: Alguns dos nossos melhores postes de sempre (1): Um dos episódios mais trágicos da nossa guerra, no decurso da Op Lenda, em 7/10/1965, Gamol, Fulacunda


Rui A. Ferreira, alf mil,  CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67)...
Com um chapéu "turra". Cortesia do autor.


Senegal > Dacar > 15 de março de 1968 > PAIGC > Entrega de 3 prisioneiros de guerra, portugueses, à Cruz Vermelha do Senegal: o José Vieira Lauro, o protagonista desta história, é o segundo do grupo. O PAIGC (leia-se: Amílcar Cabral)  habilmente tirou partido da situação, em termos mediáticos, propagandísticos e diplomáticos... O Lauro foi prisioneiro de guerra cerca de 30 meses, desde 10 de outubro de 1965 até 15 de março de 1968... (LG)


Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 05224.000.037 | Título: Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal | Assunto: Amílcar Cabral e Osvaldo Lopes da Silva por ocasião da entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal, em Dakar  [Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco]. Data: Sexta, 15 de Março de 1968 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral |b Tipo Documental: Fotografias  (Com a devida vérnia..:)
 
Citação: (1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44074 (2024-3-3)



"[Da esquerda para a direita:] Eduardo Dias Vieira, José Vieira Lauro e Manuel Fragata Francisco, prisioneiros de guerra portugueses entregues pelo PAIGC à Cruz Vermelha do Senegal, na sede em Dakar."  (Reproduzido com a devida vénia...)

Citação:
(1968), "Entrega pelo PAIGC de prisioneiros de guerra portugueses à Cruz Vermelha do Senegal", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44076 (2020-4-5)



1. Para dar início à série do "2o.º aniversário do nosso blogue: alguns dos nossos postes de sempre", nada como republicar este excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003) (pp. 37/40) (*).

"Rumo a Fulacunda" era o grito de guerra da CCAÇ 1420, em cujas fileiras ingressou o alf mil Rui Ferreira, em rendição individual, substituindo um camarada "desaparecido em combate" (o seu corpo nunca foi recuperado), o Vasco [Nuno de Loureiro de Sousa] Cardoso,  lisboeta, mas  criado em Angola, como o nosso saudoso Rui Alexandre Ferreira (Benguela, 1943-Viseu, 2022).

"Rumo a Fulacunda" foi escolhido como título para o seu primeiro livro de memórias. Rui A. Ferreira, regressado de Angola (onde fez uma terceira comissão, depois de duas na Guiné), acabou por ir viver para Viseu, em 1975, e lá morreu, na sequência de uma longa e brava luta contra uma doença degenerativa. Era ten-cor inf ref, condecorado com duas cruzes de guerra (1ª e 2ª classe), por feitos em combate.

Neste seu primeiro livro,  em 4 páginas notáveis (pp. 37/40) conta-nos o cruel episódio de guerra, passado no decurso da Op Lenda,  em Gamol, Fulacunda, em 7 de outubro de 1965, envolvendo as CCAÇ 1420 / BCAÇ 1857 (Fulacunda, 1965/67)  e CCAÇ 1423  / BCAÇ 1860 (Tite, 1965/67). 

Seis militares (um oficial e cinco praças), perdem-se do grosso das NT,  divididas em três colunas de progressão, na sequência de uma forte emboscada IN, no mat0, esse próprio dia, no decurso da Op Lenda.

O Rui reconstituiu, com maestria e grande tensão narrativa, as trágicas circunstâncias em que o alf mill Vasco Cardoso, à frente de um pequeno grupo de homens, perseguidos durante três dias por um numeroso grupo IN, foi o último a ser abatido.

O sexto elemento, o soldado José Vieira Lauro, rendeu-se e  foi feito prisioneiro, em 10 de outubro de 1967:  levado para a Guiné-Conacri, para a "Maison de Force" (Casa de Reclusão), de Kindia, será mais tarde, ao fim de penosos 30 meses, já em 15 de março de 1968,  libertado, e entregue em Dacar à Cruz Vermelha do Senegal. 

Foi o único do grupo que restou, para nos contar esta, que é uma das mais trágicas histórias da guerra da Guiné.

Ao reavivar esta história, queremos homenagear, mais uma vez, as vítimas mortais mas também a quem soube preservar a sua memória (o José Vieira Lauro, sobrevivente e prisioneiro, e claro  o Rui A. Ferreira, que deu a essa memóra letra de forma, e que infelizmente já nos deixou também).

Os protagonistas desta histórica trágica da guerra da Guiné foram, por ordem alfabética:
  • Armando dos Santos Almeida, natural de Queiriga, Vila Nova de Paiva, sold at inf, CCaç 1423 ;
  • Armando Leite Marinho, natural de Jugueiros, Felgueiras, sold corneteiro, CCAÇ 1420;
  • Fernando Manuel de Jesus Alves, natural de Leiria, 1.º cabo aux enf, CCaç 1423; 
  • José Ferreira Araújo, natural de Povolide, Viseu, sold at, CCAÇ 1423;
  • José Vieira Lauro, natural de Granjal, Leiria, sold, CCAÇ 1423.
  • Vasco Nuno de Loureiro de Sousa Cardoso, natural de Lisboa, alf mil, CCaç 1420.
Com exceção do José Vieira Lauro, que se rendeu aos seus perseguidores, os restantes militares morreram. Os seus corpos nunca foram recuperados.


2. Comentário do editor LG:

Esta é claramente uma daquelas situações-limite, de vida ou de morte, comuns em cenários de guerra ou de catástrofe, em que o ser humano é obrigado a fazer escolhas radicais: resistir, lutar, matar, morrer... ou render-se. 

Possivelmente nenhum destes destes nossos camarada, mesmo o angolano Vasco Cardoso (embora nascido em Belém, Lisboa), estava em condições de sobreviver a este brutal acontecimento: acossados como animais, com dois cantis de água (no máximo) e uma ração de combate, possivelmente já com poucoas munições, depois de um violenta emboscada horas depois da saída do quartel (em Fulacunda), impossibilitados de dormir ou descansar, sofrendo de fome, sede, insolação e angústia permanente, desorientados, não conhecendo o terreno (nem muito menos o inimigo) estavam mal preparados para resistir, lutar, sobreviver... Para mais, eram duas unidades de quadrícula, "periquitas"...

Nenhum de nós consegue imaginar-se na pele do alf mil Vasco Cardoso, o militar mais graduado, ou dos seus camaradas que com ele se perderam do grosso das NT...

O Rui A. Ferreira diz que a operação teve início na madrugada de 7 de outubro... Confirmámos, noutro poste [sobre a atividade operacional do BCAÇ 1860]  que a Op Lenda, na zona de Gamol,  subsetor de Fulacunda, teve início nesse dia, e envolveu as CCaç 1420 e 1423. 
(**).

Sabemos o nome de código da operação, mas falta-nos informação mais detalhada... A emboscada terá sido nesse dia. E nesse mesmo dia, à tarde, as NT terão regressado a Fulacunda... onde só então deram conta da falta de seis elementos... Pergunta-se: voltaram ao local da emboscada?... 

Parece que sim, no dia seguinte, realizou-se a Op Busca, envolvendo forças da CCaç 797, 1420 e 1423, na zonas de Gamol e Ganjetrá... Mas as buscas terão sido, segundo o Rui A. Teixeira,  apressadas, incompletas e infrutíferas. Houve ainda, a 18Out65, a Op Ovo, nas zonas de Gamol, Bária e Sancorlá, com forças das CCaç 797, 1420, 1423, 1424 e CCav 677.

A agonia dos nossos camaradas ter-se-á prolongado "durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias" (sic), num trágico jogo do gato e do rato, "em manifesta desigualdade"... 

Quatro dias, quer dizer, 7, 8, 9 e 10... Tudo indica que a última morte, a do alf Vasco Cardoso, terá ocorrido a 10 de outubro de 1965, bem como a rendição do sold José Vieira Lauro.

[Segundo a reconstituição feita por uma equipa do portal UTW - Ultramar TerraWeb - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, a primeira baixa do grupo seria o Fernando Manuel de Jesus Alves, morto no dia 8; a segunda vítima, a 9, terá sido o José Ferreira Araújo; o  Armando dos Santos Almeida, morre a 10; o Armando Leite Marinho, morre a seguir,  possivelmente afogado, também no dia 10; o último a morrer, nesse dia, é o alferes Vasco Cardoso.]

Fica aqui a nossa sentida homenagem a estes camaradas, que tiveram sortes diferentes: 5 morreram (2 alegadamente por suicídio) e um acabou por render-se ao grupo do PAIGC que os perseguiu durante quatro dias (de 7 a 10 de outubro de 1965).



Ficha técnica do livro:

Autor: Rui Alexandrino Ferreira
Título: Rumo a Fulacunda
Editora: Palimage Editores.
Local: Viseu.
Ano: 2000. [1ª ed., 2000, 2ª ed., 2003; 3ª ed., 2016].
Colecção: Imagens de Hoje.
Nº pp.: 415.
Preço: c. 20€.

Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce no Lubango (antiga Sá da Bandeira), Angola
1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.
1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso, dado  como  desaparecido em combate [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67].
1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].
1973 - Regressa a Angola em outra comissão.
1975 - Retorna a Portugal.
1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir, é ten cor ref.
2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra  (***)
2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné (2014), igualmente sob a chancela da Palimage.
2017 - Lança um 3º livro,  A Caminho de Viseu,  nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.
2022 - Ano da morte


Guiné > Região de Quínara > Carta  de Fulacunda (1955) / Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gamol e Ganjetrá, a oeste de Fulacunda.  A norte, o rio Geba, a leste, o rio Corubal. (Em linha reta, de Fulacunda Gamol serão 6/7 km).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Excerto do livro de memórias "Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra", do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira (2003), pp. 37/40 (*). 

(Subtítulos: L.G.;  seleção, parênteses retos, itálic0o, nergritos, revisão / fixação do texto para efeitos de edição no blogue: VB / LG).


(...) Na madrugada do dia sete de outubro [de 1965], lá iniciaram a marcha para o objectivo, de início em bicha de pirilau, uma com a outra logo a morder-lhe os calcanhares.

À medida que o tempo ia passando e o aquartelamento ia ficando mais longe, o passo foi-se tornando mais lento, os ouvidos mais apurados, os olhos mais atentos, todos os sentidos em alerta permanente, numa concentração profunda.

Pausadamente!... Penosamente, lá iam avançando... Subitamente, com o inesperado habitual, deflagrou o tiroteio. O cantar característico das costureirinhas turras (pistolas metralhadoras PPSh) feria os ouvidos e eriçava os nervos.

Milagrosamente não houve nem mortos nem feridos a lamentar, de início. Na frente, que entretanto já havia sido, pelo capitão Pita Alves, dividida em três colunas de progressão, a que se encontrava mais à direita, onde se integrava o alferes Vasco Cardoso, diretamente visada pelo ataque, ficou, imobilizada, retida pelo fogo das armas ligeiras e metralhadoras do inimigo.

−  Tomar posições de defesa!  
gritou o alferes.

 
−  Reagrupar à retaguarda!  −  comandava bem lá de trás o maior da 23 [a CCAÇ 1423], capitão de infantaria [e não de artilharia]  Pita Alves, estratega e comandante-em-chefe da operação.


[Quinta-feira, 7 de outubro de 1965: ] 
Seis homens isolados e perdidos na frente

No meio da confusão que se instalou e que a diversidade das pseudo ordens, opiniões, alvitres e sugestões que se seguiram mais agravou, as colunas viram-se partidas em vários segmentos. Numa das frentes, o alferes e mais cinco homens fixados pelo intenso tiroteio turra, não conseguiam juntar-se à retaguarda ou reintegrar-se na força.

Por seu lado, ninguém ali conseguia esboçar qualquer tipo de reacção. Sufocados pelo tiroteio, desorientados, metidos cegamente na boca do lobo, impreparados para um confronto tão desigual, sem que alguém tivesse conseguido pôr ordem naquela periquitada, o grosso das companhias retirou da zona, dispersa e desordenadamente.

Os seus elementos foram chegando a Fulacunda, desfasados no tempo e em pequenos grupos isolados. Uns quantos agora..., outros tantos tempos depois..., ainda mais alguns quando já se pensava no pior.

Isolados frente aos turras,  permaneciam ainda vivos os seis transviados. Batiam-se com o desespero e a raiva de quem luta pela sobrevivência. 

Nado e criado em África, Vasco Cardoso [alf mil, CCAÇ 1420], era dos elementos mais válidos da companhia. Habituado ao calor e à humidade, entendia-se perfeitamente com o clima e não estranhava o mato. Nele se movia, habitualmente, com o desembaraço dum lisboeta no Chiado. Apaixonado caçador como quase todo o bom africano, este era-lhe familiar. O instinto de conservação levava-o, debalde, à busca de uma qualquer solução.

Ia adiando o desastre que já pressentia, fazendo a um tempo pagar bem caro o preço da sua vida e dando oportunidade a que algo sucedesse. Poucos que eram, mantinham ainda em respeito o mais que numeroso grupo inimigo, esperançados na ajuda que certamente lhes prestaria alguma das companhias. Que nunca chegou!... Foram-se esgotando as munições. Aos poucos... Aos poucos foram entrando em desespero...

Numa tentativa suicida para inverter a situação, romperam o contacto em louca e desorientada correria. Tendo conseguido estabelecer alguma distância entre o minúsculo grupo que constituíam e o numeroso efectivo que o perseguia, a trégua de pouco lhes serviu.

E é pelo relato do Soldado José Vieira Lauro [da CCAÇ 1423], único sobrevivente daquele grupo, que se pode aquilatar a vastidão do desastre.


Perdidas as noções do tempo e das distâncias, perseguidos, acossados, encurralados, cercados, sem pausas para pensar ou tentar coordenar ideias, sem rumo e sem direcção, completamente desorientados, sem saber sequer onde estavam, na maior confusão sobre a localização do aquartelamento, indecisos para onde ou por onde progredir, durante quatro longos, sacrificados, penosos e infernais dias jogaram tragicamente ao 'gato e ao rato' em manifesta desigualdade.

Desigualdade que se foi agravando com o desenrolar do tempo e com a passagem dos dias, cada vez mais sujeitos à hostilidade dum mar verde que os envolvia, tolhia e amedrontava, cada vez mais rejeitados por uma selva que os não reconhecia e onde não tinham lugar.

Sem hipóteses de sobrevivência, facilmente referenciados dada a impossibilidade de integração ou mesmo de dissimulação no meio ambiente que os rodeava, pressionados pela perseguição feroz que o inimigo lhes movia, foram-se desgastando fisicamente e vendo definhar a pouca força moral que ainda restava.

 [Sexta feira, 8 de outubro de 1965: ] 
A  primeira baixa  do grupo

A própria fé que um acordar redentor fizesse com que, em vez da trágica realidade, da dura e cruel situação em que se encontravam, nada mais fosse que um tremendo pesadelo, se desvaneceu.


Afastada por inverosímil e absurda essa hipótese, sem o menor sinal de ajuda, sem a mínima sombra dum apoio, sentiam que o mundo donde provinham, completamente alheado das suas fraquezas, se tinha esquecido das suas angústias e mais grave ainda já duvidava das suas existências.

Abandonados, isolados, completamente entregues a si próprios e às desventuras que o destino lhes reservara, vencidos pelo desânimo, vergados pelo infortúnio, progressivamente se quebrou a pouca resistência que sobrava.

Já só um milagre os salvaria da morte. Milagre que não aconteceu... Sustidos pelo rio que lhes barrava o caminho, encerradas assim as já poucas saídas que lhes restavam, tudo começava a consumar-se.

Uma bala mais certeira trespassou, no segundo dia [sexta-feira, 8 de outubro de 1965], um deles, provocando a primeira baixa no grupo...

O corpo para ali ficou abandonado, repasto para os bichos!...

 
 [Sábado, 9 de outubro de 1965: ] 
A  segunda baixa   


Ao terceiro dia [sábado,  9 de outubro de 1965] caiu o segundo. 

Mais um despojo que para ali ficou esquecido a marcar tragicamente a transitoriedade da vida. Tal como o primeiro,  o seu corpo para ali ficou de qualquer maneira, insepulto.


[ Domingo. 10 de outubro de 1965:] 
O desespero leva a dois suicídios 


No último dia [domingo, 10 de outubro de 1965,] em que funestamente tudo se consumou, um dos sobreviventes entrou em desespero. Não conseguindo suportar todo aquele sofrimento, toda aquela imensa pressão, no limite do controlo sobre as já pouco lúcidas faculdades mentais, em absoluta crise emocional, sem conseguir sequer imaginar uma saída redentora, só a morte se lhe afigurava como solução libertadora. 

Profundamente deprimido e a caminho da alienação total, pôs termo à vida e ao sofrimento, com um tiro na cabeça.

No auge do desespero e numa tentativa suicida, à partida absolutamente condenada ao fracasso, um tentou a salvação através do rio, por onde se meteu... para nunca mais ser visto.

 Jaz com certeza morto, algures... E se não teve por benção e por morte o afogamento, serviu de repasto aos crocodilos no que certamente terá sido um final dramático.


[ Domingo. 10 de outubro de 1965:] 
A morte do alferes Vasco Cardoso 
e a rendição do soldado José Vieira Lauro

O alferes foi o último a ser abatido e o soldado Lauro, largou a arma e entregou-se… 

De nada lhe serviria o sacrifício da vida. Teve início então o longo calvário que se seguiu.

A caminhada rumo à fronteira, só atingida ao fim de vinte e dois dias de marcha, onde as canseiras, a dor e o sofrimento lhe causavam bem menor mágoa que o sentimento de culpa, o profundo abatimento e a vergonha de se sentir prisioneiro. 

A esse angustiante estado de alma se aliava o enorme desconforto motivado pelo receio do desconhecido, agudizado pela incerteza do futuro.

Só, inacreditavelmente só, como nunca se tinha sentido, possuído por uma tristeza mais negra que a pele dos próprios captores que o conduziam, caminhava como se fosse um autómato. 

Da fronteira para Conacri, o transporte em viatura, a entrevista com o próprio Amilcar Cabral, a recusa em ler para a rádio Argel, onde alguns compatriotas então brilhavam, fosse o que fosse contra Portugal, a clausura numa prisão, num antigo forte colonial francês, na cidade de Kindia, cerca de uma centena de quilómetros a nordeste de Conacri.

Aí, onde sob o enorme portão fronteiriço se podia ler "Maison de Force de Kindia", foi encontrar o 1.° sargento piloto-aviador Sousa Lobato, primeiro militar português que o PAIGC aprisionou quando, no sul da província, teve de efectuar uma aterragem de emergência numa bolanha, corria o ano de 1963.

Permaneceu em cativeiro, trinta longos meses. Foi libertado num gesto de boa-vontade, em 1968 e entregue à Cruz Vermelha Internacional que o fez chegar a Lisboa. (***)

Não esqueceu os tempos maus que por lá passou mas nunca foi alvo de procedimentos vexatórios ou de maus tratos. Era um prisioneiro de guerra, assim foi considerado e como tal tratado. 

Nesse aspecto e unicamente reportando-me à Guiné, se alguém teve razões de queixa, não foi seguramente a tropa portuguesa. 

O próprio Amílcar Cabral nunca se cansou de afirmar que a luta era contra o Regime Colonialista que então detinha o poder em Portugal e nunca contra o povo português.

Entretanto em Fulacunda, procedia-se ao rescaldo da operação. Formadas as companhias já a meio da tarde, quando se começou a recear que mais ninguém conseguisse regressar, contavam-se os efectivos.

−  Seis! Faltavam seis homens! Dois da [CCAÇ] 1420 (o Alferes Vasco Cardoso e o Soldado-telefonista n.º 1020/64 Armando Leite Marinho) e quatro da [CCAÇ] 1423 (o 1.° Cabo Fernando de Jesus Alves e os Soldados José Ferreira Araújo, Armando Santos e José Vieira Lauro. (...)  (#)
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(#) Vd. também CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 1 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pág. 324.

(...) - Sector Sul 1
Em 7 de Outubro de 1965, foi levada a efeito a operação "Lenda" por forças das CCaç 1420 e 1423, constando de um golpe de mão a um acampamento a sul de Gamol; o lN flagelou por 3 vezes as NT, sofreu 6 mortos, tendo sido capturada uma pistola metralhadora.

Na retirada, desapareceram um oficial e 5 praças. Apesar da intensa actividade desenvolvida, quer nessa zona quer nas mais prováveis linhas de trânsito ln para o sul, não foi possível recuperá-los.

Na área de Fulacunda, fizeram-se imediatamente a eguir as operações "Busca", "Ovo" e "Eco".

Em 14Dez, o BCaç 1860, através das CCaç 797 e CCaç 1420, realizou a operação "Onça", na península do Gampará. O ln opôs resistência durante o desembarque das forças da CCaç 797 em Ganquecuta; emboscou por 2 vezes as mesmas forças na região de Gambachicha, causando 3 feridos e flagelou forças da CCaç 1420, perto de Tumaná, sofrendo 5 mortos. As NT
fizeram 10 prisioneiros e capturaram 1 espingarda, 2 pistolas, 2 "longas", carregadores e outro material.

(...) Sobre as duas companhias envolvidas:

A CCAÇ 1420, mobilizada pelo RI 2, partiu para o CTIG em 31/7/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Fulacunda, Bissorã e Mansoa. Comandantes: cap inf Manuel dos Santos Caria; cap inf Humberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil inf Adolfo Melo Coelho de Moura.

Pertenceu ao BCAÇ 1857 (Bissau, Mansoa, Mansabá, 1965/67).

A CCAÇ 1423, mobilizada pelo RI 15, partiu para o CTIG em 18/8/1965 e regressou a 3/5/1967. Esteve em Bolama, Empada e Cachil. Comandantes: cap inf Artur Pita Alves; cap inf João Augusto dos Santos Dias de Carvalho; cap cav Eurico António Sacavém da Fonseca;

Pertenceu ao BCAÇ 1858 (Bissau, Teixeira Pinto, Catió, 1965/67). (...)
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(... ) Comentário do nosso coeditor Virgínio Briote: 

Rui: Ao publicar o artigo que o Santos Oliveira me enviou sobre a história do BCaç 1860, reli o que escreveste sobre o caso dos desaparecidos, que é como a história do Batalhão retrata, rapidamente, o caso.

Duas imagens me saltaram. A primeira, foi a leviandade com que a ausência dos nossos Camaradas foi sentida. Quatro longos dias, abandonados. E o Batalhão  na sua história, neste caso pequena acrescento eu, foge do assunto, de tão notórias lhes são devidas responsabilidades.

A outra é a História que, com base nos depoimentos do Lauro, tu contaste. Como se fosses tu o encarregado de acrescentar a História deles à história do BCaç 1860, para além dos nomes dos desaparecidos com que os escribas da hitória do Batalhão os homenageou.

E é assim, caro Rui, que a tal História, a de todos nós se vai fazendo, já que com as histórias das unidades não iríamos muito longe, se é que queremos contar a tal História com verdade.

Sim, nós sabemos que há sempre duas histórias. A oficial, escrita, e a outra feita destas Histórias, que tão bem descreveste.

Um abraço, Rui, e um obrigado por nos teres possibilitado prestar esta pequena homenagem à memória dos Nossos Camaradas desparecidos, ou mais propriamente abandonados.
vb


(***) Vd. poste de 19 de julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1972: Prisioneiros de Conacri: Jacinto Madeira Barradas (Alter do Chão) e José Vieira Lauro (Leiria) (Benito Neves)

(...) Um outro camarada.  ex-prisioneiro de Conacri foi o José Vieira Lauro, que já era prisioneiro em Conacri quando o Jacinto Barradas lá chegou (...).

Foi um dos que mais tempo esteve aprisionado e, na prisão, cabia-lhe a tarefa de distribuir a comida pelos restantes prisioneiros. Na maior parte das vezes (segundo o Jacinto Barradas) apenas era distribuído arroz porque, das poucas vezes em que a refeição trazia alguma carne de galinha, esta era roubada pelos guardas.

O José Vieira Lauro vive na região de Leiria - telef. 244 881 695; telem. 919 086 150. (...)


Vd. também poste de 18 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1967: Prisioneiros em Conacri, capa da Revista do Expresso, 29 de Novembro de 1997: o que é hoje feito deles ? (Henrique Matos)