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sábado, 10 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22361: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (15): A religião, a fé e o medo

Cobumba - António Eduardo Ferreira - Saída do abrigo


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 8 de Julho de 2021:


A religião, a fé e o medo

Quando a religião, a fé e o medo se misturavam, por vezes, aconteciam coisas que ainda hoje me dão que pensar. Não sou a pessoa mais indicada para falar destes assuntos…, mas, posso e quero falar sobre duas situações a que assisti quando da minha estadia em Cobumba. A primeira teve a ver com uma missa, a única que por lá aconteceu e a que eu assisti. Estávamos ainda há pouco tempo naquele sítio. Um dia, apareceu lá um padre não sei como nem de onde veio, talvez de alguma companhia próximo dali.

Naquele local, onde a missa aconteceu, estavam dois pelotões da nossa companhia, quase toda a formação e ainda uma secção encarregada do morteiro que lá se juntou a nós… Todos os que estávamos por ali, disponíveis, fomos assistir à missa. Não sei se seria hábito de todos os que assistiram à cerimónia irem à missa nas suas terras na metrópole. Eu não era um grande frequentador… os domingos e dias santos eram para mim os principais dias de trabalho.

Apesar da missa ter acontecido junto a uma árvore, não muito grande, sem nenhumas condições, todos os que a ela assistiram, de pé, estavam com muita atenção, parecendo estar a viver intensamente aquilo ali que estava a acontecer.

Algum tempo depois num dia em que eu estava de serviço, de condutor, ao fim da tarde, com mais seis camaradas fomos até junto ao rio Cumbijã com a viatura, onde esperamos pela chegada do sintex com o pessoal que nele regressava depois de uma ida a Cufar, como acontecia algumas vezes. Estávamos já há cerca de meia hora à espera que eles chegassem, e ao mesmo tempo íamos vendo e ouvindo os Fiat que andavam por ali perto a bombardear, em que era fácil de os observar. Se noutro tempo… algumas vezes, eles chegavam a voar quase junto às árvores, depois da chegada dos mísseis Strela as coisas mudaram muito no que diz respeito à altitude em que efetuavam os bombardeamentos!... Durante a conversa que fomos mantendo enquanto esperávamos, alguém do grupo disse que a “Maria turra” de que todos nós ouvíamos falar, tinha dito que em breve nos iam atacar.

Era uma conversa normal que ouvíamos com frequência, na rádio, em que ela dizia que tinham feito grandes estragos em alguns sítios com flagelações em que tinham destruído abrigos e provocado baixas nas nossas tropas, em que grande parte dessas notícias eram falsas. Entretanto, os Fiat foram embora enquanto nós íamos esperando pelo pessoal que tardava em chegar.

Passados poucos minutos, dos Fiat terem abalado começamos a ouvir rebentamentos, não muito longe, a nossa primeira sensação foi de que seriam os Fiat que tinham voltado a bombardear, mas a realidade era outra, foram precisos breves instantes para nos apercebermos que agora quem estava a ser bombardeados éramos nós. 

Foi a flagelação mais intensa, à distância, com que fomos contemplados enquanto estivemos em Cobumba. Naquele dia, foram vários sítios de onde nos atacaram em que utilizaram três tipos de armas, o canhão sem/recuo, o RPG e o morteiro. 

A sorte naquela tarde esteve connosco, apesar de todo aquele arraial apenas um dos nossos apontadores de canhão sem/recuo sofreu ferimentos leves, ainda antes de disparar o canhão foi atingido por estilhaços de uma granada de RPG que rebentou próximo dele, em que o canhão ficou inoperacional. Com o morteiro eles fizeram fogo com uma precisão que se tem sido alguns minutos mais tarde podia ter resultado em graves consequências para nós… 

Desde o inicio da picada que tínhamos de percorrer do rio até ao ponto mais distante onde se encontravam as nossas tropas, eram cerca de quinhentos ou seiscentos metros, em linha reta, eles conseguiram colocar uma granada de cada lado ao longo da picada, com cerca de setenta metros entre uma e outra. As últimas duas caíram próximo do sítio onde nos encontrávamos, junto ao rio. 

E foi aí que uma vez mais a religião, a fé ou o medo, voltaram a fazer-se sentir. Alguns dos que estavam por ali, em condições normais, por vezes, até diziam mal dos padres da religião e de alguns que a seguiam. Mas, aquilo a que foi possível assistir, foi ver todos a entrar para dentro do leito do rio, naquele momento a água tinha descido muito o que era normal… e vê-los e ouvi-los a rezar em voz alta. Enquanto eu, cheio de medo, entretive-me a tentar fazer um buraco na lama dentro do leito do rio, para lá me deitar. Disparate meu, mas em situações assim… por vezes o disparate acontece! Por isso já me desculpei…

Algumas vezes, ainda sou levado a pensar na frase, que, com frequência ouvia falar, que a fé move montanhas. Não sei se move…, mas em conjunto com o medo, pelo menos, naquele caso mudou comportamentos. 

Quando os camaradas chegaram no Sintex, junto de nós, o ataque já tinha terminado, ainda bem que eles demoraram, assim safamo-nos de ter vivido aquela situação na picada no regresso… onde não havia sítios para nos abrigar, se tal fosse necessário.

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2017 > Guiné 61/74 - P17059: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (14): A minha ida ao Xime

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4644: In Memoriam (24): Maria da Glória Revez Allen Beja Santos: "Morte, onde está a tua vitória ?" (Mário Beja Santos / Luís Graça)

A encantadora Maria da Glória Revez Allen Beja Santos despediu-se desta vida, na passada 4ª feira, 2 de Julho de 2009. Deixa a todos, os seus pais, mana, familiares e amigos, uma imensa saudade. Foto gentilmente cedida por Vasco da Gama e editada por nós. Foi a enterrar no sábado, dia 5. Tinha 32 anos (LG).


1. Estive fora de Lisboa, desde 6ª feira. Sem internet. Domingo à noite, abri a minha caixa de correio profissional, e dou de caras com a brutal notícia da morte da Glória, dada em primeira mão pelo seu pai, o nosso camarada Mário Beja Santos.

É um extraordinário texto o que ele mandou, só para algum amigos, incluindo a minha pessoa, e que eu tenho o dever de partilhar, publicamente, com os seus/nossos camaradas da Guiné, que se reconhecem neste blogue, e que são seus amigos, uns, ou simples leitores, outros. É uma verdadeira oração fúnebre, um extraordinário documento humano e sobretudo um grande acto de amor paternal e uma belíssima homenagem póstuma à sua adorada Locas...

A Maria da Glória Revez Allen Beja Santos era a filha mais nova do Mário Beja Santos e da Cristina Revez Allen. Nascera em 1976, trinta anos e dois... A outra filha do casal é a Joana. A família, e sobretudo o Mário, nunca escondeu o problema de saúde que infernalizava a vida da Maria da Glória. Estiveram os quatro inclusive, num programa de televisão, da SIC, em Março passado - se não me engano - a falar da doença bipolar e a dar o seu testemunho, enquanto família. Por tudo isso, e pela sua enorme coragem e fé, o Mário é credor da nossa admiração, extensiva naturalmente à Cristina e à Joana (LG).


Ontem de manhã [, 2 de Julho de 2009], a minha Adorada Glória morreu. O que sempre pedi a Deus que não acontecesse (perder uma filha), aconteceu. A Glória sofria muito com a sua perturbação bipolar, diagnosticada em 2003 (seguramente com manifestações há muito mais tempo, que nós sabíamos interpretar), tomava medicamentos potentes, por vezes misturava-os com álcool, outras vezes abandonava a medicação, com consequências lamentáveis.

Voltara aos estudos, encontrara um namorado com quem estava feliz, estava com projectos (ia agora frequentar um curso livre na Universidade Nova). Quando estava estabilizada, enchia a nossa vida com alegria, manifestava orgulho nos pais e irmã, vivia intensamente a pensar no futuro, com pensamentos construtivos. Maravilhava-se com as coisas mais simples, íamos hoje ao teatro, domingo à ópera.

Num dos últimos telefonemas prometeu não se exceder no uso dos medicamentos nem misturar a medicação obrigatória com substâncias adversas. Foi uma criança dócil, meiga, discreta. Tornou-se uma mulher bela, qualquer roupa realçava a sua beleza.

A doença mudou alguns aspectos da sua personalidade, mas a nossa Locas impunha-se no nosso coração, vivíamos sempre preocupados com a sua autonomia possível e o seu bem-estar, quando nós, os pais, partíssemos deste mundo.

Passei os últimos anos à espera de um milagre, só pedia a Deus que lhe desse a possibilidade de viver aquela vida com permanente alegria, sem delírios, acompanhada de gente que estimasse as suas admiráveis qualidades.

"Morte, onde está a tua vitória?»

Agradeço as vossas orações, o amor e a ternura que por ela nutriram. A Locas irá esta tarde para a Igreja do Campo Grande.

Mário


2. Comentário de L.G.:

Já telefonei, em vão, à Cristina. Deixei-lhe, no atendedor automático, uma mensagem de solidariedade na dor e no luto. Ao Mário, vou arranjar corajem para lhe escrever, publicamente, estas palavras.

É devastador para qualquer mãe e qualquer pai a morte de um filho ou filha. É um dos acontecimentos de vida, mais brutais, que nos podem destroçar pura e simplesmemnte, ou deixar um rasto de amargura até ao fim dos nossos dias. Nada será como dantes, depois da perda de um filho ou filha... A lei natural da vida é que sejam eles, os nossos filhos, a enterrar-nos. Não o contrário.

A Glória não teve tempo de viver em pleno a vida a que tinha direito e que ela tanto amava, apesar do sofrimento, por vezes atroz, que a doença lhe causava. Há pouco mais de três meses tive o privilégio de a conhecer pessoalmente. Era uma mulher deslumbrante, que se fazia notar pela vivavidade do seu olhar, pela sua inteligência e pela beleza do seu porte.

Tinha já tido conhecimento da sua doença, através do Mário, que me falou dela, com a natural preocupação e solicitude de um bom pai. Ainda tive o privilégio de a conhecer numa das suas fases solares. Era também alvo de especial atenção e compaixão da sua mãe, Cristina, que tinha muito orgulho nela. Em conversa ao telefone, sugeriu-me inclusive que a convidasse para um próximo encontro do nosso blogue, para podermos ter a felicidade de ouvir a sua voz, excepcionalmente dotada para cantar o fado.

Há três ou quatro meses atrás, a Glória veio entrevistar-me sobre a história do nosso blogue, a sua génese e o seu desenvolvimento. Essa entrevista foi gravada. Esforcei-me por responder, detalha e demoradamente, às suas interessantes questões, que constavam de um guião de entrevista que ela seguiu com grande competência e segurança...

Essa entrevista serviu de base a um trabalho escolar, “A Guerra da Guiné vista pelos Ex-Combatentes Portugueses”, que eu prometi, ao pai, publicar no nosso blogue, desde que não houvesse qualquer inconveniente, tanto por parte da autora como da instituição, a Universidade Católica.

Achei a Glória feliz e em boa forma. Vinha acompanhada de um amigo. Em Maio o Mário deu-me feedback, que o trabalho tinha merecido uma boa nota (16 valores). Mandou-me inclusive uma cópia do original (**). Mais recentemente, talvez em princípios de Junho, encontrei o Mário, no Chiado, mais a sua Joana, que é psicóloga numa instituição militar, e que estava acompanhada do seu marido. Tinham acabado de casar, há pouco tempo. O Mário, embora cansado e sempre sobrecarregado de trabalho, era um pai feliz. Nada parecia prever esta tragédia de início de verão (***).

Para o nosso camarada Mário Beja Santos e para a nossa amiga Cristina Revez Allen, ambos membros da nossa Tabanca Grande, aqui vão os nossos sentimentos mais profundos de solidariedade na dor e no luto. Mário e Cristina, a morte só nos ganha se não formos capazes de honrar a memória dos entes queridos que ela, precoce e traiçoeiramente, nos leva.

Mário, a ti que te conheço um pouco melhor, que estivemos juntos nalgumas batalhas da guerra da Guiné, e que és um homem crente, a tua fé, hoje como ontem, vai dar-te um ajuda, vai dar-te mais força para conseguires lidar com esta situação-limite. Nenhum de nós está à partida preparado para a morte que irrompe, assim, tão brutal, sem pré-aviso, no nosso círculo íntimo, na nossa família... É uma perda irreparável, mas talvez a Glória quisesse também dizer-nos, muito simplesmente, que há limites, humanos, para o sofrimento, que às vezes na terra há muito mais inferno do que céu...

Vejo, em todo o caso, na célebre interpelação do Apóstolo São Paulo, no discurso aos Coríntios, que tu citas ("Oh, morte!, onde está a tua vitória" ?), a reafirmação e a assumpção da tua firmeza de carácter, e da coragem (física e moral) de que sempre deste provas, na paz e na guerra, a par da tua fé inabalável que sempre deste público testemunho, aqui e noutros lugares.

Não tendo ido ao funeral da tua/nossa querida Locas, gostaria, ao menos, de ir à sua missa do sétimo dia, eu e a Alice, e levar-te pessoalmente, a ti, à Cristina e à Joana, as manifestaçõs do nosso apreço, carinho, amizade e camaradagem, em meu nome, em nome da minha famíla, em nome dos teus antigos camaradas de Bambadinca (1968/70), em nome de toda a nossa Tabanca Grande, em nome dos leitores e admiradores que tens no nosso blogue. Luís Graça

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Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série: 1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4449: In Memoriam (23): Luís Cabral ou o respeito por um homem que lutou por um ideal (Virgínio Briote)

(**) A Glória era aluna da Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas, Curso de Comunicação Social e Cultural, 3º Ano, Turma 2. Fez um trabalho para a disciplina de História Contemporânea, intitulado “A Guerra da Guiné vista pelos Ex-Combatentes Portugueses”, e que irá ser oportunamente publicado no nosso blogue.

(***) Reprodução do meu mail, de 1 de Maio de 2009:

Mário: Recebi o trabalho da tua filha, que apreciei e vou publicar, se não houver 'conflito' com a Católica... (Não sei se já foi entregue, discutido, avaliado)... Dá-lhe os parabéns (e ao pai que lhe deu umas dicas, de resto fazemos tudo pelos nossos filhos...). Em relação à transcrição da entrevista, reconheço que não é fácil, há pequenas correcções a fazer. Não a queres trazer ao nosso encontro de 20 de Junho ? A mãe disse-me que ela tem uma excelente voz para o fado (...)... Do Porto com um abraço. Luís

Mail do Mário, de 16 de Maio de 2009:

Luís, Acabo de vir de férias. A Joana comunicou-me que ia casar depois de eu já ter pedido a vários amigos hospedagem em Paris, Namur e Bruxelas. Venho deliciado, e o casamento da Joana também foi muito bonito.

Falei há minutos com a Glória, teve 16, parece que houve lá hoje [ na Universidade Católica,] um colóquio com vários escritores, todos falaram no blogue (*). Sem querer perder o viço das férias, vou mergulhar no trabalho, tanto no profissional como na 'Mulher Grande' que quero concluir até Setembro.

Não tenho lido nada no blogue e fiquei surpreendido com esta data de 20 de Junho. Vou ver o que posso fazer. (...).

Desculpa ser breve, a ver se nos encontramos, Mário.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3237: Estórias cabralianas (39): O Marido das Senhoras (Jorge Cabral)

1. Mais uma das geniais estórias (ou histórias, como queiram) cabralianas... Cabralianas, de Cabral, Jorge Cabral, porventura o único combatente da Guiné que não sofre de stresse pós-traumático de guerra (*). Julgo que inclusive tem uma declaração psiquiátrica a atestar tal facto, e que anda sempre com ele na carteira. E nessa qualidade é porventura o único de todos nós que estaria apto para lá voltar, na outra encarnação... Como penitência, está-nos a pagar uma promessa de cinquenta contos. Este é o 39º... Só faltam 11, o que em euros dá qualquer coisa como 55 ... Não é muito mas, nos tempos que correm, dá-nos jeito. Na Guiné dá para comprar dois sacos de arroz e fazer feliz uma família durante um mês. Aqui vai a segunda das duas estórias que nos mandou há dias (**). Não se esqueçam de lhe dizer: Obrigado!

LG


2. Estórias cabralianas (39) > O Marido das Senhoras
por Jorge Cabral


Todos nós tínhamos uma fé. Os africanos eram na sua maioria muçulmanos, os europeus católicos e eu era tudo. Frequentava a mesquita e a igreja, mas também prestei culto aos Irãs balantas. Porque não?

O mais religioso de todos era porém o furriel Paiva (***).

No seu abrigo–quarto construíra um pequeno altar, onde colocou quatro imagens das Santas da sua devoção e, entre elas, o retrato de Salazar.

Sempre alumiado por uma vela, o local era visitado com respeito pelos Soldados Africanos, mulheres, filhos e demais população.

No final do mês de Julho de 70, logo de manhãzinha, o Milícia Demba informou-me compungido:
- O furriel Paiva está muito triste. Morreu o Salár.

Estremunhado não percebi:
– Quem? Quem morreu?
- Foi o marido das Senhoras! – respondeu-me convicto.


© Jorge Cabral (2008). Direitos reservados

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Notas de L.G.:

(*) Ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do
Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71 . Actualmente, jurista e professor universitário. Nasceu, trabalha e vive em Lisboa. O seu sonho, modesto, era voltar a ser chefe de tabanca; o seu sonho maior era poder ainda um dia ser convidado para reitor da Universidade de Fá-Mandinga...

(**) 23 de Setembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3225: Estórias cabralianas (38): O Alferes roncador e a almofada (Jorge Cabral)

(***) Aviso do autor (JC): "Quanto ao devoto furriel, claro que não se chamava Paiva"...

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > 1968 > Fotos Falantes II > Os dois primeiros mortos do Grupo de Combate do Alf Mil Torcato Mendonça: o Bessa (46) e o Casadinho (45)...

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Torcato Mendonça, com data de 20 de Junho último:

Luis Graça: vou ser rápido porque isto é o despejar de um impulso, de uma revolta sentida, de um flash vindo, demasiado rápido, do passado ao presente. Talvez um Psi conseguisse dizer, melhor que eu, o porquê. Li a morte de um Camarada em Madina (1). Sei que não eram relatados os pormenores à família. Sei a frieza da comunicação da morte dada aos familiares. Mas… eu conto-te, Camarada, eu conto-te e anexo – para dares uma vista de olhos – um escrito, creio que já enviado, O Natal, onde relato OS MORTOS DO MEU GRUPO, OS MEUS MORTOS.

Paro em tentativa de calma, calma com respiração funda e passa um pouco. Depois do ataque, fui apanhar o Bessa, subi ao palanque danificado, olhei à volta certamente com ódio, com vontade de acertar contas... De repente vejo, à luz amarelada das lâmpadas, algo a baloiçar e brilhando. Fixo o objecto, vejo um bocado de fio e um crucifixo, aperto os dentes, como neste momento o volto a fazer, dou uma palmada naquilo e solto um palavrão em blasfémia sentida. Ajudam-me e embrulham-no e limpam-no com carinho, revolta e choro contido, no local. Os homens também choram, porra, mesmo por dentro, dói, dói!

Passados tempos, alguém do meu Grupo e talvez da terra dele, perguntou-me:
-A família recebeu as coisas mas não o fio e o crucifixo.

Não me lembro mas creio que houve uma resposta a tentar suavizar a situação... Não faltava só o fio… parte DELE não foi também recebido… Dizia-se áà família? Creio que era duro demais, nós sentimos demasiado aquela morte. Meses depois, quando da Op Lança Afiada, veio de héli o Comandante do PAIGC Braimadicô (2). Levei-o para o meu abrigo… pois ouvi logo o nome do Camarada morto, repetido por uns e por outros.

Respeitei os meus Homens e levei-o para outro lado. Eles também não esqueceram e, certamente não sabem perdoar. Hoje, trinta e oito anos depois é difícil. O que seria naquela altura. Sabes, penso que não se podia ou era preferível, esconder certos pormenores às famílias. Só se provocava mais sofrimento. Devia era haver uma postura mais humana por parte das Forças Armadas. Análise posterior com calma.

Queria ser mais breve, alonguei-me. Senti a falta de partilhar isto, com o meu Grupo, agora… recordarmos, reflectirmos. Mas eles merecem descansar, recordar ou não. Falar nisto é doloroso ainda HOJE.

Amigo, um abraço,
Torcato Mendonça

2. Estórias de Mansambo (5) > Natal, Ano Novo, dias normais

por Torcato Mendonça (3)

Os militares da CART 2339 só passaram um Natal na Guiné. Partimos, no Ana Mafalda em meados de Janeiro/68 e regressámos em Dezembro/69 no Uíge. Portanto só o Natal de 68 lá foi passado.

Espero que a memória me não atraiçoe e eu tenha arte e engenho para vos descrever tão faustosas festas. Ou seja, as Festas do Natal e Passagem do Ano de 1968/1969. Os Salões engalanaram-se; os Mestres Cozinheiros esmeraram-se e, digo mesmo, em salutar competição guardaram em segredo os menus; as Fardas de Gala foram engomadas…

E..., bom!... Não fantasiemos, pois a realidade era outra. Estávamos em Mansambo, na guerra estúpida e dura, não pertencíamos a grupo de privilégio, fantasia ou outro. Passámos por isso, o Natal e Ano Novo como muitos milhares de militares. Uns melhor outros pior por questões de afectos perdidos, por sentirem mais ou menos a falta das mulheres e filhos, das famílias e de quem gostavam.

Pessoalmente lastimo mas de pouco me lembro. Já estava acima da normalidade, chamemos-lhe assim, para sentir menos o Natal e mais a segurança. Tenho, nestes dias, pensado nisso e infelizmente deve ter sido assim. Socorro-me do Historial, de duas pequenas agendas e tento recordar.

É com esses auxiliares que vou relatar, o mais fielmente possível, aqueles dias.

Não posso dissociar o Natal do Ano Novo. Eram datas festivas, tempos com maior probabilidade de ataques do inimigo, necessidade de nos sentirmos mais ocupados. O ócio fazia-nos voar para outras paragens.

Havia, como é natural, uma maior quebra anímica. Por isso, todo esse período de tempo deveria ser ocupado com diversas tarefas. Seriam, contudo, preservados, o mais possível, os dias festivos.

Assim:

A 23 e 24 de Dezembro de 1968 houve uma Operação/patrulhamento à zona de Biro e Galoiel. Leve troca de tiros com o IN. Fuga deste, missão cumprida e regresso a Mansambo.

Véspera de Natal: os pensamentos longe, cada vez mais longe daquele lugar. Homens a pensarem nas mulheres e filhos, nas namoradas, nos pais e noutros familiares, nos amigos, no frio, nas lareiras e nas luzes a enfeitarem, ruas e presépios, na Pátria distante. Outros, muito poucos, mantinham-se atentos num desligar, mais aparente que real, virando a atenção, o cuidado para o inimigo em hipotética espreita, para lá do arame farpado.

A maioria era do Norte. A religiosidade da data era, talvez, mais sentida por eles. Mas o Natal é festa de família, penso eu. Hoje sinto-o mais assim. Parece que jantei com o meu Grupo, o tradicional bacalhau. Creio mesmo que o Capitão deu uma volta pelos vários abrigos.

Em Mansambo vivíamos em abrigos. Houve certamente o convívio possível. Não me recordo bem. O dia de Natal foi diferente certamente, com pensamentos a irem para junto dos que, lá ao longe, o faziam em sentido contrário. Talvez se tenham encontrado e abraçado a meia distância, em viagens imaginárias, com os deuses a apadrinharem. Talvez!

Entre os dias 28 e 30 de Dezembro houve coluna-auto ao Xitole. Mas o itinerário foi Bambadinca, Galomaro, Quirafo (?), Saltinho e Xitole. Uma coluna formada por bastantes viaturas civis e militares. A Intendência era responsável pela carga. Nós, um Grupo reforçado por picadores e alguns Milícias, éramos os responsáveis pela segurança e bom andamento, daquele enorme comboio com vários tipos de viaturas.

Impusémos regras rígidas. Levámos dois ou três mecânicos o que se veio a revelar de grande utilidade. Um dia de viagem para lá, outro para cá. Merecia ser relatada esta viagem. As avarias, o pó e toda uma loucura quase indescritível. Fizemos, duas ou três centenas de quilómetros (ida e volta) devido à estrada – Mansambo/Xitole – cerca de vinte quilómetros, estar ainda fechada [ou interdita].

O fim do ano aproximava-se e o dia 31 aí estava. O meu Grupo, depois do regresso do Xitole, preparava uma saída para Candamã no primeiro dia de Janeiro.

Talvez, na noite de passagem de ano, se tenha batido a zona com os [obuses] 10,5 e os [morteiros] 81 e bebido mais um copo. Mantínhamo-nos contudo bem atentos. Lá fora, poderia estar alguém pronto a estragar qualquer princípio de festa.

De repente um tiro e gritos. O Pimenta, do meu Grupo, ferira-se com a sua própria arma. Felizmente um tiro de raspão na zona abdominal. Era um faz tudo, por isso e pelo cansaço, estava encarregado dos geradores Lister que forneciam a electricidade ao aquartelamento. No dia seguinte foi evacuado para Bissau e, mais tarde, para a Metrópole. Ainda o visitei no Hospital em Bissau, dias depois, antes da minha ida para férias.

Começava o ano com um ferido, mesmo por acidente, no meu Grupo. Não gostei dos sinais. Depois da evacuação partimos para Candamã. Missão: reconstruir o pontão da Chanca na picada para Dulo Gengele. Nós fazíamos, a segurança e a ajuda, se necessária, a uma secção de engenharia de Nova Lamego, comandada pelo Furriel Zamite.

O trabalho teria que ser feito com rapidez. Questão de eficácia e principalmente segurança. Moto-serras a trabalhar no mato… não era saudável. Com a ajuda de todos, população incluída, e o saber do pessoal da engenharia, no final do dia 2 de Janeiro estava a missão cumprida.

Começamos a aprontar o material para a saída na madrugada seguinte. Um descuido, azar ou outro motivo qualquer, fez com que o Casadinho sofresse uma queimadura ligeira numa perna.

Faço aqui um parêntese para contar breve história deste militar [, o Casadinho]:

Era o Bazuqueiro do grupo. Alentejano de S. Matias, aldeola quase encostada a Beja. Cerca de dois ou três meses, após a chegada à Guiné, soube do nascimento da filha. Os meses passaram, o desgaste era grande e, como era necessário um militar da Companhia ir para Bissau – serviços de apoio logístico – foi indicado o Casadinho. Pouco tempo lá esteve. No dia 3 de Outubro, a dois meses do embarque, faleceu vítima de um desastre de viação na estrada para Bissalanca. Depois de quase dois anos de mato, muitas horas debaixo de fogo, morre, estupidamente, num acidente. Repousa no cemitério da sua terra natal. Nunca conheceu a filha.

Quando lá passo, no IP2, o carro, todos os carros que, ao longo destes anos tenho tido, abrandam sempre, aceleram e travam um pouco, num engasgar de soluço, de modo a que eu me possa voltar na direcção dele e o cumprimente. Nunca tive coragem de procurar a viúva ou a filha. Um dia…

Voltando á Guiné, a Mansambo, aos primeiros dias de Janeiro de 1969:

No dia 3, abandonámos Candamã e regressãmos à nossa Base. Havia correio fresco á nossa espera e a natural alegria. Nesse dia, após o jantar, fui ao meu abrigo. Na sala, à volta da mesa, a malta lia o correio, escrevia ou passava o tempo de outra forma. O Bessa partilhava uma garrafa de bagaço acabada de receber. Ofereceu-me um copo. Agradeci e entrei no abrigo. Ele foi para o palanque do posto de sentinela. Segundos depois um rebentamento. Aí estava mais um ataque ao aquartelamento. O estrondo inicial foi de uma roquetada que acertou no Bessa.

Durou talvez meia hora o tiroteio. Só que o meu Gr Comb sofreu o primeiro morto e o 1º Grupo um ferido grave. Terminado o ataque fui apanhar o Bessa. Embrulhei-o num lençol e não relato os pormenores. Ainda hoje os tenho bem vivos na memória. Ainda hoje aperto os dentes. Nunca esquecerei aquela morte, qualquer morte de um camarada. Por má formação, além de não esquecer, nunca perdoarei.

Ao terceiro dia, do novo ano – 1969 – o meu Grupo sofreu um morto e dois feridos, embora um muito ligeiro. No dia seguinte fizemos uma coluna para Bambadinca. Acompanhei o fechar da urna com o Soldado Bessa lá dentro. Já não regressei a Mansambo. Afoguei a raiva bebendo e dando uma volta à tabanca á procura de um amigo…

Devo ter tido um acordar difícil no dia seguinte. Não sei bem. Lembro-me que o [sargento piloto aviador] Honório me deu boleia, na sua avioneta, até Bissau com passagem por Bigene, onde consegui dar um abraço a um conterrâneo.

Dias depois, embarcava para a Metrópole para gozar o meu segundo período de férias.

Resumo:

O Natal e Ano Novo foram dias muito normais;
Operação na véspera de Natal;
Coluna ao Xitole, por Galomaro; Na noite de passagem de Ano feri
do o Pimenta;
No dia de Ano Novo ida para Candamã, fazer segurança á reconstrução de um pontão;
Findo o trabalho, dia 2, o Casadinho ligeiramente queimado numa perna;
Regresso a Mansambo, ataque ao aquartelamento e morte do Bessa;
Dia 4, em Bambadinca, fechada a urna do Bessa;
Dia 5, com passagem por Bigene, vinda para Bissau;
Dia 8 embarquei de férias para a Metrópole. Cortei as barbas a contragosto, do Capitão Vaz, da 1746, meu companheiro de viagem. A PIDE/DGS falava mais alto…

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 20 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1862: 42 anos depois, com emoção e revolta, sei das circunstâncias horríveis em que morreu o meu irmão... (Adelaide Gramunha Marques)

(2) Vd. post de 5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1152: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Braimadicô, o prisioneiro que veio do céu

(3) Vd. 14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

domingo, 24 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1873: Reflexão sobre Fátima, o drama da guerra e o conflito com a Fé que nos inculcaram (Zé Teixeira)

Mensagem do nosso camarada Zé Teixeira, de 7 de Maio último:

Comandante e comandante adjunto para quem faço votos de bom, profícuo e agradável trabalho: Saúde, paz e felicidade!

Junto um texto sobre a Fé dos nossos militares e familiares e a forma como a punham em prática durante a guerra.

Se entendereis que merece ser publicada . . . o prazer será meu.

Fraternal abraço
J.Teixeira
Esquilo Sorridente


O drama da Guerra e o conflito com a Fé que nos inculcaram


Ontem, dia seis de Maio, ao passar na IC1, perto de S. João da Madeira, tive oportunidade de apreciar um espectáculo deslumbrante. Uma procissão de gente, talvez milhares, que na berma da estrada caminhavam em peregrinação, com destino a Fátima.

Gente nova, menos nova, velhos, mulheres e homens, com bom calçado, de chanatos ou descalços. Em grupos organizados, com carros de apoio, ou colados. Gente de Fé, caminhava a passo firme e apressado para chegarem a tempo no dia 12 e participarem nas cerimónias religiosas. Alguns em silêncio (promessa de não falar), outros fazendo alguns dias a pão e água, outros rezando e cantando. Ainda outros em amena cavaqueira com algum conhecido na jornada. Movidos por razões de Fé, muitos em cumprimento de promessas que, não podendo aceitar, pois com Deus não se negoceia, não contesto, pois sei que perante as dificuldades, os problemas, e sofrimento, as reacções que a fé imprime a cada um, só ele as sente. Daí o meu o profundo respeito.

Ao apreciar este profundo movimento de Fé, a minha mente saltou para os anos 60/70.

Para a minha avó que em 1965, com 70 anos partiu no dia 2 de Maio, de uma aldeia, algures a 40 Km a norte do Porto, com o mesmo destino e os mesmos objectivos. Dar graças a Deus, pela intercessão da Virgem Maria, pelo facto do meu irmão mais velho, ter regressado da tropa sem ter ido à guerra (expressão que ela usava). Da sua promessa de repetir a façanha, se eu tivesse a mesma sorte e ou pelo menos regressasse são e salvo. Da sua atitude de quando eu parti para a tropa, ir, ao Domingo assistir a duas missas: uma por ela e a outra por mim, pois segundo afirmava, eu era um bom malandreco e facilmente me iria esquecer do meu compromisso de cristão. Passou a ser para mim o meu anjo da guarda o que muito a envaidecia.

Da sua morte em 1968, quando eu pensava estar quase safo da ida ao ultramar, pois a escola de enfermeiros da incorporação seguinte estava a sair. Desapareceu o meu anjo da guarda e oito dias depois estava mobilizado para a Guiné.

A divagação dolorosa continuou a perseguir-me.

Quantas avós, mães, pais, esposas, namoradas, prometeram trilhar estes caminhos, na esperança de que Deus por intermédio da Virgem os (as) ia atender. Quantas avançaram até Fátima ou outro Santuário, dos muitos espalhados por este País, para mais perto de Deus, aí fazerem as suas orações de acção de graças e os seus pedidos e promessas.

Quando parti para a Guiné, ainda no Niassa, fiquei impressionado ao ver muitos companheiros da viagem com o terço pendurado ao pescoço, qual amuleto ou talismã protector, ou então a medalhinha a quem se dava devotados beijos.

Ao chegar à Guiné, mais propriamente a Ingoré, apreciei e comecei a acompanhar um grupo razoável de velhinhos que se reuniam à noite no refeitório para rezarem o Terço. Ao qual se foram juntando outros elementos da minha Companhia.

A Fé que me foi transmitida gerava um agudo conflito dentro de mim, pois fora sempre um desafio à construção da paz entre os homens e eu aceitara, como o cordeiro que vai para o matadouro, partir e viver uma guerra que em consciência rejeitava, mas que o dever para com a Pátria (tal como me tinha sido inculcado, quer na escola, quer na família) me obrigava a fazer a guerra.

No meu Diário escrevi um dia:

...Senti mais uma vez a presença do Senhor em mim quando ia na coluna. Muito calmo, com atenção a todos os lados, sempre nos rodados das viaturas para não ser atingido por uma 'bailarina'.

As Vossas orações valem imenso. Quando sinto as balas e granadas passarem por alto pergunto a mim mesmo se não são as vossas orações.

Odeio.. Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles...

O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...

Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de 'bom biaje', se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?

Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro, porque mata.

O Evangelho foi feito só para brancos ? Como poderei amar os homens onde só existe o ódio !


Via os nossos soldados, com o amuleto do terço, que não rezavam, pois muitos deles eram agnósticos ou as obras que a verdadeira fé exige, era algo que não lhes dizia nada, quando saíam para o mato, beijarem a medalhinha que traziam ao pescoço, ou a cruz do terço, benzerem-se toscamente e darem um beijinho na mão, tal como hoje os jogadores de futebol continuam a fazer e cujo sentido religioso continua a ser para mim um enigma, pois não vem nos cânones nem nos catecismos.

Em Fátima a hierarquia religiosa alimentava a oração e o sacrifício, pela paz no Mundo, em especial na nossa Pátria, fechando-se teimosamente os ouvidos ao troar das metralhadoras, ao ribombar das minas e armadilhas que ambos os contendores escondiam traiçoeiramente e das bombas que os canhões faziam vomitar das suas bocas de fogo, pela acção malévola dos homens e dos aviões que destruíam aldeias completas produções agrícolas e matas, para que o inimigo na sua própria terra morresse se não da guerra que lhe fazíamos, pela fome.

Da nossa banda eram jovens, a flor da nossa pátria que tombava. Os naturais , donos da sua terra, viam quantas vezes, as mulheres, as crianças, os velhos, tombarem debaixo do fogo de uma e outra frente ou devido à fome e miséria a que eram votados, pela acção militar dos portugueses.

E em Fátima continuava-se a rezar pela paz. . . .

O próprio Papa Paulo VI, veio a Fátima em 1965, rezar pela Paz no Mundo. Ele que pouco antes tinha recebido os três líderes das frentes de combate, que lutavam da outra banda, pela libertação, dos seus povos. Sinal bem claro de que o mundo cristão estava consciente e reconhecia a existência de uma guerra em que Portugal tentava pela força calar a voz dos povos que em África entendiam que a sua felicidade passava pela autodeterminação e independência.

Os povos que ousavam fazer-nos frente também tinham a “sua Fé”, os seus Santos a quem se agarravam nos momentos difíceis, os amuletos que lhes víamos à cintura. Também tinham avós, pais esposas, namoradas. Algumas, na frente de guerra, combatiam lado a lado, outras na retaguarda, sofriam como as nossas mães, os nossos familiares.

Pensei no Kebá, a quem tive o enorme e gratificante prazer de reencontrar em 2005. Nas duas mulheres que tinha e que fugiram com os filhos ou foram apanhadas pelo IN. O seu esforço para as recuperar, entranhando-se na mata entre dois fogos para as localizar. O desgosto por elas não aceitarem segui-lo no seu regresso a Empada. A sua recusa em usar arma, para não matar, como ele dizia minha fidjo.

Pensei em quantos de nós não regressaram. Tantos em que o amuleto do terço, as suas convictas orações, a fé e as orações dos seus familiares, não bastaram. Uma bala traiçoeira, um estilhaço de uma mina ou de uma granada fez o seu sangue correr e regar aquela terra vermelha, levando-lhes a vida, ou marcando-os pelo sofrimento e pela invalidez.

Pensei nos que regressámos. Tantos convictos que foram as suas orações e as orações dos seus familiares. A fé forte que os animava e faziam dela razão da sua luta para sobreviver. . . matando, se necessário.

Quantos de nós aceitaram o desafio que a Pátria lhes impôs, em luta com a sua própria consciência. Quem não sentia isso mesmo, nas expressões e orientações dos furriéis e oficiais milicianos e mesmo em alguns dos que conheci pertencentes ao Q.P. quando estavam a dar as suas ordens, na forma como procuravam proteger o seu pessoal e furtar-se ao contacto com o IN.

Conheço outros e conto-me entre eles que aceitando ir para a frente de combate, tomaram por opção não fazer fogo, não dar um tiro, mesmo especialistas da G3 (atiradores).

E . . . com este desabafo, crie mais uma frente de conversa, que espero tenha continuidade.

Ressalvo que não é de modo algum minha intenção provocar ou ferir susceptibilidades. Quer em questões de ordem religiosa, quer de ordem patriótica. É apenas o resultado de uma reflexão pessoal que me pareceu merecer ser posta em comum, nesta altura que Fátima- altar do Mundo, se vai encher de novo para orar pela paz no Mundo e em especial na nossa Pátria.

Zé Teixeira