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terça-feira, 9 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24301: Manuscrito(s) (Luís Graça) (224): Um pais pequeno e periférico que, até 2005, cabia em mil negativos do arquivo da Magum Photos


  • Foto de uma imagem de Koudelka (1976), exposta no CCB. Talvez o melhor retrato do Portugal que nascia e renascia. Exposição no CCB (Centro Cultural de Belém, Lisboa) > Espelho Meu: Portugal visto por fotógrafos da Magnum.  Data: 1 de Julho a 28 de Agosto de 2005. Comissariado: Alexandra Fonseca Pinho e Andrea Holzherr (Magnum Photos Paris). Produção: Centro Cultural de Belém e Agência Magnum Photos Paris. Texto e foto: Luís Graça (2005) (*)



 Um país pequeno e periférico que, até 2005, cabia em mil negativos do arquivo da Magum Photos 

por Luís Graça (*)


1. Um país tão pequeno e tão periférico (em relação ao centro do mundo, da notícia, do acontecimento, da história, da geopolítica, da economia global, da produção do conhecimento científico, da arte da guerra e de todas as outras artes, em suma, tão longe da objectiva do fotógrafo) que cabia em mil negativos do arquivo de uma das mais célebres agências de fotojornalismo do mundo: a Magnum Photos, criada em 1947 por Henri Cartier-Bresson, Robert Capa e demais cooperantes. (Nomes incontornáveis da história do fotojornalismo.)

Havia registos de 1955, da década de 60, do 25 de Abril de 1974, do PREC… Depois disso, os fotógrafos foram "assobiar" (neste caso, "disparar as objetivas")  para outro lado. Que o mundo é vasto e fotogénico, mesmo quando feio, horrível, mau, chato, sujo, violento e perigoso.

Portugal e os portugueses deixaram definitivamente de estar na moda quando a festa acabou. (Aliás, nada nem ninguém pode estar em festa permanentemente.) 

Os ratos abandonaram o navio. Na ressaca da festa, pá, ficaram os bêbados, os loucos, os marginais, os místicos, os poetas, os retornados, os deficientes das forças armadas, os cacimbados da guerra, os ex-soldados africanos alistados no exército colonial (e a quem Amílcar Cabral chamava os "cães do colonialismo")... Mais os desempregados da reforma agrária, os cães que ladravam à lua, as mulheres de preto, os descendentes de Vasco da Gama, enfim, os pobres, os velhos, os eternos perdedores…

Trinta anos depois era preciso "bater umas chapas" para fazer o upgrade do arquivo da Magnum Photos, Vieram cã a Susan Meiselas, o Miguel Rio Branco, o Joseph Koudelka. Com as suas credenciais da praxe, as suas obsessões de estimação, o seu portfólio, o seu prestígio, os seus mitos, os seus medos, a sua vaidade, o seu génio, os seus tiques e os suas "superzooms", mais o o seu código de ética e deontologia profissionais,   Afinal,são eles que entram pelas nossas ruas e casas e lugares e nos captam a alma... ( Os africanos não gostavam de ser fotografados, porque lhes roubávamos a alma.)


2. Não era de surpreender a desconfiança com que os meus passos eram seguidos enquanto percorria as ruas da Cova da Moura, mas na Cova são propriedade privada. Cada esquina tem uma personalidade distinta” (Susan Meiselas dixit).

A exposição, no CCB - Centro Cultural de Belém, começava nos Nos Kasa, a 10ª ilha de Cabo Verde, com seis a sete mil habitantes, incluindo gente oriunda de Angola e de S. Tomé e Príncipe, parte dela imigrantes ilegais. Com um fabuloso som de fundo: o coro das mulheres da Cova da Moura. Meiselas teve vontade de lá ir porque ouvira a notícia do "arrastão" na BBC ou noutra estação global qualquer.

De repente, Portugal dera de novo a volta ao mundo. O "arrastão" de Carcavelos (lembram-se ?) fora notícia...
Um "fait- divers".... à falta de Tsunami, vulcão, terramoto, atentado terrorista, regicídio,  prémio Nobel ou castigo divino. 

Há males que vêm por bem, dirão uns. As fotos da Meiselas, penduradas nas janelas, nas varandas e nos estendais da roupa do gueto da Cova da Moura, acabaram por dar-lhe uma outra dimensão mediática e contribuir para a melhoria da sua imagem e da autoestima dos seus habitantes, náufragos do império, filhos de um deus menor...

Os jovens do bairro (e as suas associações, como a "Associação Moínho da Juventude") perceberam que a fotografia 
 e não apenas a cantiga...) podia ser uma arma Que uma foto de Meiselas (e da Magnum) valia mais do que uma presidência aberta ou o estafado discurso de um presidente da câmara.   Ou as promessas populistas dos partidos que se aventuravam a lá ir em campanha eleitoral....

As associações locais comentavam, por sdua vez,  que a notícia (da participação de jovens desta comunidade local no já famoso "arrastão" de Carcavelos), fora um "exagero", mas que acabou por ter um efeito positivo na socioconomia da ilha (que pouco ou nada conta para o PIB português).

Por 5 euros,  sem fatura, os estrangeiros passaram a poder entrar, sem passaporte, na Cova da Moura, com direito a visita guiada e guarda-costas. Por mais 7 euros e meio, o turista podia inclusive provar os sabores da gastronomia local, a melhor cachupa da diáspora crioula.  Ou ir aos  cabeleireiros do bairro. Ou até  aos videntes.

O período de tréguas, boa vontade e estado de graça, terá acabado no dia 17 de julho de 2005, mas a exposição do CCB continuou aberta até final de agosto desse ano da "sorte grande" de 2005..

Entretanto, a polícia veio depois dizer, pelo seu serviço de relações públicas, que afinal o "arrastão de Carcavelos" nunca existira: fora uma figura de retórica.... 

País de inventonas, de polícias que gostam de fazer notícia e de jornalistas que dão demasiado crédito aos polícias. País de minorias que a maioria nega, escamoteia, ignora, esconde em guetos como a Cova da Moura. Todos iguais, mas uns mais do que outros, não diz a Constituição.


3. Miguel Rio Branco (n. 1946), de ascendência lusitana, era o único dos fotógrafos que falava com o coração: 

“Portugal, o berço dos meus antepassados, das primeiras memórias com significado, dos meus primeiros amores, deixa-me sempre profundamente emocionado. Mais uma vez, procuro as raízes que perdi…”. 

E quem pode viver sem raízes, Miguel ? É preciso o trabalho do arqueólogo, do paleontólogo, do geólogo, do etnólogo, do antropólogo, do linguista, etc., para voltar a aprender a ler as sucessivas camadas que compõem a realidade (física e humana) de Portugal e dos portugueses: um coração talhado na pedra, a pedra, o chão, a sombra, a penumbra, as castanhas quentes e boas, o silêncio, a cruz, o mistério, o profano e o sagrado...

4. Também nada tinha de fotojornalismo puro e duro o olhar de Josef Koudelka… Aqui não havia mais tropas, tanques, botas a esmagar a primavera de Praga, os cravos checos. Aqui já não havia império, nem do mal nem do bem. Apenas uma paisagem calcinada pelos incêndios que lavravam desde o 25 de Abril de 1974 e que nunca mais se extinguiram. Portugal estava a arder em lume brando, em fogo lento. Portugal já havia ardido. Portugal era consumido por uma trágica paixão

Foi, pelo menos, a mensagem que eu li nas legendas que podiam ser em checo ou noutra língua qualquer, desde que falada pelos humanos:

 “Passei seis semanas em Portugal. Viajei de norte a sul, de este a oeste. Segui um caminho que eu próprio tracei. Tentei ver o máximo. Fiquei surpreso. Com o que Portugal mudou desde os anos setenta. Mas eu também mudei” (Josef Koudelka).

Todos nós mudámos, camarada checo (mas já não eslovaco, depois da dissolução,. pacífica da Checoslováquia, em 1993). E connosco, Portugal, a Europa, o mundo... Mas em 1979, cinco anos depois do poder ter sofrido "o risco de cair na rua", o que atraía o fotógrafo era a Ladeira do Pinheiro, a santa, a “Procissão dos milagres”, o Portugal no seu pior, o Portugal do (pro)fundo, o Portugal sacro-profano (Bruno Barbey, n. 1941). 

Mas se esse Portugal não tinha raça nem fotogenia, tinham-nas, uma e outra, os ciganos, as minorias, os marginais. Registe-se as cenas de um casamento cigano, em 1998 (Bruce Golden, n. 1946). Havia ainda o olhar, eslavo, franco-russo, de Georgui Pinkhassov (n. 1952), sobre o Barro Alto, o Chiado, Alfama (1998), a Lisboa saloia, mourisca, judaica, cristã, exótica, pitoresca, labiríntica, que sempre seduziu o olhar do outro, o estrangeiro, desde os francos, os cruzados, o Bráulio no Séc. XVI ou o Byron no Séc. XIX.

5. Afinal, o único núcleo temático desta mostra (decepcionante, nalguns casos; provocadora, irritante, estimulante, noutros) que se podia qualificar de fotojornalismo propriamente dito era o do 25 de Abril de 1974.

Portugal despertava a curiosidade (romântica ? voyeurista ? oportunística ? interesseira ?) dos fotógrafos e de alguns revolucionários profissionais, sem esquecer os perdedores do Chile de Allende, da França do Maio de 68, da contestação à guerra do Vietname, dos cientistas da revolução social…

Guy de Querrec (n. 1941), Jean Gaumy (n. 1948) e Gilles Peress (n. 1946) eram os três fotógrafos da Agência Magnum que estavam de serviço ao Portugal do PREC de 1974/75.

Venez, copains et copines, il ya une révolution qui marche, là bas au Portugal. Viva Portugal, o laboratório social! ... Devem-se ter fartado de depressa das sardinhas assadas no pão e dos copos de très de vinho tinto em tascas cheias de moscas.

A fotografia que melhor retratava os anos sombrios de 1976,  tão sombrios como o day-after de todas a s euforias, de todas as orgias (sociais, sexuais, guerreiras...) em todas as épocas e sociedades, ainda era  a de Koudelka, a do homem, o n"maneta", que saía do mar, enquanto uma "criancinha" berrava ao colo da mãe que teimava em levá-la ao banho (vs. foto acima).  

O Portugal futuro, parafraseando o Ruy Belo, em confronto com o do passado, que acabava de ser "liquidado"… Confronto ? Nem isso, havia um Portugal que saía de cena, o do "maneta", e outro que entrava, a da "criança" que tinha a fobia do mar… Medo de entrar na água ? Mais do que medo, diria que era pânico. O pânico de ter que lidar com o futuro, o "buraco preto" do futuro, as suas oportunidades e as suas ameaças, . 


6. O alemão Thomas Hoepker conheceu o Portugal dos anos 60. Um certo Portugal, o da minha, nossa, adolescência. Trás-os-Montes, que eu só conheci mais tarde. Quem viajava nessa época ? Por que estradas ? "A salto", para França, por terras de Espanha, usando os trilhos dos contrabandistas. 

Havia, nessa época já lonmgínqua,  uma revolução silenciosa, em marcha, que nenhum fotojornalista da Magnum captou.  Mas também se viajava de comboio, pela calada da noite, desde o Campo Militar de Santa Margarida até ao barco que nos esperava no cais Conde de Óbidos. Destino: o Ultramar, Angola, a jóia da coroa, depois da perda dos brasis, das índias. Mas também a Guiné ou Moçambique... A minúscula Guiné, colónia de Cabo Verde...

Em 1964, era ainda o que restava  do Portugal rural, pobrezinho, mas feliz q.b., tão bem retratado nas fotos do casamento popular ou do latifundiário, sozinho que nem um cão rafeiro, sentado à mesa. Ou ainda do "fascismo serôdio", o "fascismo dito "portuguès suave",  tão podre que iria cair da cadeira com o seu velho criador, uns anos depois. Ainda em 1964, os padres (católicos, não havioa outros) entronizavam as criancinhas nos ritos e ritmos patrioteiros da Mocidade Portuguesa. Que a Pátria (n)os chamava: “Para Angola, rapidamente e em força!”...

7. Cartier-Bresson e Inge Morath tinham fotografado os portugas de 1955, o Portugal ronceiro dos campos e o Portugal engravatado do salazarismo, recauchutado e recuperado pela NATO, três anos antes do furacão chamado General Sem Medo, Humberto Delgado:”Obviamente, demito-o” (referia-se a Salazar). 

Os fotógrafos da Magnum não voltaram: tinham mais que fazer do que documentar o simulacro de eleições livres para a presidência da república das bananas. A estética do realismo social fixava, enquadrava, recortava, emoldurava, aquilo que era o Portugal very typical do Secretariado Nacional da Propaganda (mais tarde, Informação), ainda e sempre pela batuta do 'modernista' António Ferro, amigo de Pessoa, admirador de Salazar.   Enfim, os estereótipos, a Nazaré, o Toinho, de pé descalço, a Maria das sete saias… 

É ainda e sempre esta pobreza envergonhada dos pobres envergonhados que um dia, expulsos da terra e engolidos pelo mar,  ousaram sonhar ser donos dos Oceanos e da Terra.

8. Paralelamente à exposição, era exibido um vídeo (uma reportagem que já passado na RTP há alguns anos) sobre os documentários (quatro dezenas) que foram feitos por estrangeiros sobre o PREC (o período que vai do 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975). Vários dos jornalistas e realizadores são entrevistados: Robert Kramer, Thomas Harlan… Já o tinha visto na altura. Mas não desgostei de o rever. 

Registe-se a intervenção do cineasta Thomas Harlan, que filmou o processo de ocupação da Torre Bela, e que veio falar em “suicídio” das forças armadas portuguesas. Nunca se tinha visto isso. Uns meses antes, no Chile, um exército de estrutura prussiana, nazi, esmagava Allende e subjugava o seu próprio povo. Esse suicídio (colectivo, institucional), a ter acontecido, aconteceu ou teria começado a ser preparado na Guiné. 

Mas a Magnum nunca esteve, com os seus fotógrafos, na Guiné Portuguesa, hoje Guiné-Bissau.... Não estava na Guiné para testemunhar o princípio do alegado suicídio coletivo das Forças Armadas Portuguesas. Só Deus podia estar em todo o lado... Mas nem Deus estava lá. Nessa época também Ele devia andar muito distraído.

PS - Apetece-me, no fim, depois de ter (re)visitado  a exposição  e (re)lido o que escrevi sobre ela, citar o Álvaro de Campos / Fernando Pessoa:

(...) Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes. (...)

In Opiário (1914)

In: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 135. (citado por Arquivo Pessoa > Obra Édita)


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Notas do editor:

(*) Originalmente publicado no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (I Série) > 24 de julho de 2005 > Socio(b)logia - XVII: Espelho Meu... ou os portugas vistos pelos fotógrafos da Magnum...

Revisitado/revisto nesta data, 9 de maio de 2023.  Eliminaram-se os links, que é a coisa mais irritante que há  na Net, porque ao fim de algum tempo estão quebrados...

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15252: Recortes de imprensa (75): "Guiné-Bissau, um dia de cada vez", fotorreportagem de Adriano Miranda, Público -Multimédia, 11/10/2015... Quatro dezenas de fotos, a preto e branco, que nos emocionam e interpelam (António Duarte, ex-fur mil at, CART 3493 e CCAÇ 12, dez 1971/jan 1974)


"Guiné-Bissau, um dia de cada vez", uma fotorreportagem de Adriano Miranda, publicada no jornal Público... São 4 dezenas de fotos, a preto e branco, do duríssimo quotidiano dos guineenses, fotos que nos emocionam e interpelam, a nós,  ex-combatentes da guerra colonial, que conhecemos aquela terra, verde e vermelha, e as suas gentes fantásticas e generosas, há 50 anos atrás... Quod vadis, Guiné ?"... Para onde vais, Guiné ?... "Um dia de cada vez", respondem os nossos amigos, guineenses... Uma oportuna sugestão de leitura do nosso grã-tabanqueiro António Duarte.

1. Mensagem do nosso camarada António Duarte:

Data: 14 de outubro de 2015 às 11:40
Assunto: Link com fotos do "Público" sobre a Guiné-Bissaiu


Bom dia,  Camaradas

Na leitura do "Público", feita em suporte digital, deparei com um conjunto de fotografias, de autoria do Adriano Miranda, sobre a "nossa" Guiné-Bissau. 

Na minha opinião trata-se de uma pequena obra de arte, que nos leva de novo aquela terra, sentindo-se até os cheiros, que por certo todos ainda sentimos quando pensamos nas situações por nós vividas, seja a atravessar uma bolanha, seca ou molhada, seja a fazer aquelas intermináveis picagens, para garantir a segurança possível às colunas.

Assim segue o link para consulta de quem tiver curiosidade, visitando a atual Guiné, mas refrescando os nossos pensamentos de quando por lá andámos. 

http://www.publico.pt/multimedia/fotogaleria/guine-353898

Abraços para todos

António Duarte
Ex-Fur Mil Atirador - CART 3493 e CCAÇ 12
Dez 71 a Jan 74


2. Comentário do editor:

Adriano Miranda (n. Aveiro, 1966) é fotojornalista do Público e professor de fotografia. Expõe regularmente.

"Adriano Miranda é um fotógrafo de pessoas que só se sente bem a fotografar no meio delas. Admite que valoriza mais a estética do que a técnica. E diz que nunca pensou em ser fotógrafo. Ah, e deixa um conselho: nunca apaguem nada!" (entrevista à revista Zoom - Fotografia Prática, 28/7/2011).

Não podendo inserir aqui as fotos do Adriano Miranda, por respeito (ético e legal) à propriedade intelectual, permito-me contudo, e com a devida vénia, reproduzir as suas palavras que servem de preâmbulo à sua notável fotorreportagem:

"Guiné-Bissau, um dia de cada vez", por Adriano Miranda

"Saímos do aeroporto Osvaldo Vieira, em Bissau, e sentimos o bafo quente que nos faz transpirar. Há malas, caixotes, caixas, sacos, homens, mulheres, polícias, militares. E há uma explosão de cores e de um cheiro doce. O trânsito é feito ao som da buzina, sempre a fugir do próximo buraco. Gente e mais gente num labirinto desorganizado. Muitos sentados nas soleiras das portas, outros correndo, outros vagueando. 

"No Mercado de Bandim, no centro da capital e um dos maiores mercados a céu aberto do país, tudo se mistura e de tudo se vende. Camas, espumas, bananas, panos, detergentes, telemóveis, peixe, cadernos, tijolos, ferros, martelos, sapatos, pomadas, água pura, ovos, ventoinhas, jornais e até carneiros. O fim do Ramadão é uma ocasião especial e a comunidade muçulmana termina o jejum com uma grande festa. Depois da reza é tempo de compensar o estômago. Nada melhor que um inofensivo animal. Chamam-lhe a Morte do Carneiro. Todos de todas as etnias se embelezam com uma vaidade cuidada: muçulmanos, papéis, balantas, mandingas, manjacos e fulas. Na cidade, todas as ruas são picadeiros para mostrar a camisa branca ou o vestido colorido. E o Monumento ao Esforço da Raça, inspirado na art déco e que fica mesmo em frente ao Palácio Presidencial, é local de eleição para namorar quando não há luar.

"Quase tudo é decadente. Os prédios, as ruas, a limpeza, os carros, os táxis, as lojas. Tudo menos as pessoas. Orgulhosos do que é seu, do que têm e não têm. A Guiné-Bissau é um país sempre em convulsões. Desde o dia 12 de Agosto que não tem Governo. Voltou a faltar a luz. A escola ainda não começou. As poucas obras públicas pararam. O dinheiro falta e os funcionários públicos podem não receber o salário. Mas enquanto as cúpulas discutem o futuro do Governo e da nação, os guineenses constroem um dia de cada vez." 

(Fonte: Público - Multimédia, 11/10/2015. Com a devida vénia).

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14931: Recortes de imprensa (74): Informação Oficial, publicada no jornal "A Província de Angola", sobre o desastre do Cheche aquando da travessia do Rio Corubal em 6 de Fevereiro de 1969 (José Teixeira / José Marcelino Martins)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6604: Agenda Cultural (81): Kola San Jon, na Cova da Moura, a 10ª Ilha de Cabo Verde, na Buraca, Amadora, 19 de Junho de 2010: Manga di sabi... (Luís Graça)







Anúncio da festa do "Kola San Jon", sábado, dia 19 de Junho de 2010, no bairro da Cova da Moura, freguesia da Buraca, Concelho da Amadora...  Fonte: Sítio Cova da Moura (com a devida vénia...)


O que o Kola San Jon ? Um surpreendente festim cultural, onde se misturam sons, sabores, ritmos, música, dança, ronco, comida, erotismo, corpos, ritos de fertilidade, história, memória, Portugal, África... O profano e o sagrado...

Segundo a Associação Cultural Moínho da Juventude (criada no princípio dos anos 80, e que é a entidade promotora do evento), "o Kola San Jon é um cruzar de culturas dos escravos africanos e dos portugueses que colonizaram as ilhas, como se pode testemunhar no cortejo, pela presença dos barcos que simbolizam as caravelas portuguesas e os barcos de pirataria que assolavam as ilhas, pelos 'rosários', pelo ritmo frenético dos tambores, pela dança erótica, pelas oferendas.

"O cortejo é uma demonstração da criatividade e do 'Djunta Mon' (juntar as mãos) desta comunidade que manteve viva esta valiosa expressão cultural, que transpôs fronteiras e que hoje é uma festa de todos nós".




No final do dia, às 21h00 será projectado o filme "Ilha da Cova da Moura", de Rui Simões.  Infelizmente, não poderei estar presente neste evento. Estarei fora de Lisboa. Mas convido os amigos e camaradas da Guiné a dar um salto à Cova da Moura, um bairro de 18 hectares, às portas de Lisboa, onde vivem cerca de 6 mil pessoas, na sua grande maioria, portugueses, de ascendência caboverdiana... Costuma-se dizer que é a 10ª maior ilha do arquipélago de Cabo Verde. Infelizmente, ainda vítima de alguma discriminação e estigmatização. Há tamnbém um pequena comunidade, islamizadam, de guineenses, a par de brancos retornados de África, europeus de leste e outras minorias...

O documentário de Rui Simões (Ilha da Cova da Moura, Portugal, 2008, 108') está em exibição no CinemaCity Alegro Alfragide, sito no Centro Comercial  Alegro Alfragide; aceita marcações: Telef.  214221030. Sessão  na sala Cinemax, às 19h25. A não perder.

Sobre o filme, diz o Público (Cine Cartaz): "Realizado e produzido pelo documentarista Rui Simões ("Deus Pátria Autoridade", "Bom Povo Português", "Ensaio Sobre o Teatro", "Ruas da Amargura"), um filme sobre o bairro da Cova da Moura, localizado na periferia de Lisboa. Nele se tenta encontrar, não tanto a violência e insegurança tantas vezes conotada ao lugar, mas antes as razões de as coisas serem como são. Analisando o dia-a-dia dos seus moradores, o realizador tenta, assim, estudar a cultura cabo-verdiana nas suas diversas manifestações, tantas vezes em confronto com a cultura portuguesa, e a forma como a exclusão social é perpetuada de geração em geração".

Já vi o filme duas vezes, a primeira no IndieLisboa'10 (onde estreeou)... No meu bloco de notas, fui rabiscando algumas palavras-chave ou descritores para um futuro texto de leitura crítica:

O amanhecer, a cidade grande, o vermelho do céu, a fome de terra, um homem e uma mulher transportando cachos de bananas e milho, de repente uma nesga de África na Grande Lisboa,  um jovem mediador intercultural (sic) mostrando o bairro, "São todos bem-vindos. na Cova da Moura só não entra quem não quer", Restaurante Coqueiro, Moínho da Juventude, "coração do bairro", empregadas domésticas, "Ir abaixo o bairro ? Faz muita confusão", amor ao bairro, medo de melhorar (de fazer obras), "mapa mental" do carteiro (correio), emaranhado de ruas e ruelas, casas sem nº de polícia,  vendedeiras de peixe na Ribeira, 2h da madrugada/13h da tarde, comboio, crianças na rua,  papel social e cultural do Moínho,  cozinham todos dias mais de 400 refeições, o ciclo da violência, história de uma família  ("quem com ferro mata com ferro morre"), retornados de Angola, retornados mais caboverdianos, brancos, cultura própria, mix, estigmatização, "Cova da Moura tem má fama, mas eu não troco a minha casa por um andar",  "pais de rapariga branca não aceitam genro de cor", "filho de macaco" (sic), "mãe já aceita, pai não", "bandido, marginal, preto" (sic), estereótipos, racismo, arbitariedade da polícia,  falta de maturidade e de competências técnicas à PSP,  "reis da Cova da Moura",  bodas de prata, igreja da Buraca, rua como espaço público (onde se cozinha, dança, namora, come, se faz o choro...), terrenos da Santa Casa da Misericórdia da Amadora,  história do bairro, origens, conflito inicial com ciganos,  malandros, convívio, festa, manhã, autocarro, limpeza de escritórios, pequenos almoços e almoços para as crianças e as amas do bairro (4 crianças por ama),  creche familiar,  trabalham para o Moínho, histórias de vida, papi embarcadiço, vida de mulher caboverdiana ("sabe como é, é preciso ter sorte com o marido, o meu é trabalhador"), operadora de caixa no Modelo, "não conheço vizinhos no meu prédio, na Cova da Moura tinha tudo",   entreajuda, solidariedde, relações de vizinhança, pequena empresária, caboverdiana, mora nas Mercês, emprega 16/17 mulheres, capitalista, "gosto de ajudar os meus",  mercearia, arroz perfumado, guineense, muçulmano, mesquita, pequena comunidade, orações,  jovens, "um dia irá mudar", "bófias, tou farto deles" (sic),  grogue,  droga, socialização, "mulher aqui não é problema, problema é união", melhores condições, Moinho da Juventude, a história do casal holandês que são figuras tutelares do bairro,   biblioteca, grupo Batuque,  grupo Kola San Jon, a cultura como identidade, o crioulo, energia, pilar o milho, fritar o milho, rua, velório, choro, enterro,  festa Kola San Jon, Kola de coladeira, happening, orgia de cor, som, corpos, de repente o fado batido em Lisboa por volta de 1830/40 (e proibido por indecente!), 18 hectares, 1617 habitações, 6 mil habitantes, sobretudo caboverdianos, mais de 45% com menos de 20 anos... "Às vezes mandam-me para a minha terra... Ora eu nasci em Portugal... Como diz meu pai, Português preto, isso não existe" (jovem mulher, líder local, a força telúrica africana,  5 estrelas)...

Um documentário "soft", "cool", "politicamente correcto", "romântico ma non troppo" , "etnográfico", "voyeurista" ?... Há um brilhozinho nos olhos do Rui Simões, um "homem de causas",  quando fala da sua "ilha"... Há um brilhozinho nos olhos dos moradores locais agora promovidos a estrelas de cinema... Eu achei lindo... E agora, juventude ? O que vamos fazer com esta "forcinha" ? Já em 2005, as fotos da fotojornalista Susan Meiselas deram uma forcinha...

"De repente, Portugal dera de novo a volta ao mundo. O arrastão de Carcavelos em 2005 , fora notícia, à falta de Tsunami, vulcão, terramoto, atentado terrorista ou castigo divino. Há males que vêm por bem, dirão uns. As fotos da Susan Meiselas, da Agência Magnum, penduradas nas janelas, nas varandas e nos estendais da roupa do gueto da Cova da Moura, acabaram por dar-lhe uma outra dimensão mediática e contribuir para a melhoria da sua imagem e da auto-estima dos seus habitantes, náufragos do império, filhos de um deus menor" (*).

Outro tanto fez (ou está a fazer, em 2010) o filme do Rui Simões (produção  Real Ficção). Acredito na força da imagem e da palavra: podem ajudar a mudar o mundo, pelo menos a nossa casa e o que a rodeia...

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Notas de L.G.:

(*) Vd. I Série do nosso blogue, poste de 24 Julho 2005 > Socio(b)logia - XVII: Espelho Meu... ou os portugas vistos pelos fotógrafos da Magnum (Luís Graça)

(...) 1. Um país tão pequeno e tão periférico (em relação ao centro do mundo, da notícia, do acontecimento, da história, da geopolítica, da economia global, em suma, tão longe da objectiva do fotógrafo) que cabe em mil negativos do arquivo de uma das mais célebres agências de fotojornalismo do mundo: a Magnum Photos, criada em 1947 por Henri Cartier-Bresson, Robert Capa e demais cooperantes.

Havia registos de 1955, da década de 60, do 25 de Abril de 1974, do PREC… Depois disso, os fotógrafos foram assobiar para outro lado. Que o mundo é vasto e fotogénico, mesmo quando feio, horrível, mau, sujo e perigoso.

Portugal e os portugas deixaram definitivamente de estar na moda quando a festa acabou. Os ratos abandonaram o navio. Na ressaca da festa, pá, ficaram os bêbados, os loucos, os marginais, os místicos, os poetas, os retornados, os deficientes das forças armadas, os cacimbados da guerra, os ex-soldados africanos ao nosso serviço, os desempregados da reforma agrária, os cães que ladram à lua, as mulheres de preto, os eternos perdedores…

Trinta anos depois era preciso bater umas chapas para fazer o upgrade do arquivo. Vieram a Susan Meiselas, o Miguel Rio Branco, o Joseph Koudelka. Com as suas credenciais da praxe, as suas obsessões de estimação, o seu portfólio, o seu prestígio, os seus mitos, os seus medos, a sua vaidade, o seu génio, o seu código de ética e deontologia profissionais.

2. “Não era de surpreender a desconfiança com que os meus passos eram seguidos enquanto percorria as ruas da Cova da Moura, mas na Cova são propriedade privada. Cada esquina tem uma personalidade distinta” (Susan Meiselas).

A exposição, no CCB, começa nos Nos Kasa, a 10ª ilha de Cabo Verde, com seis a sete mil habitantes, incluindo gente oriunda de Angola e de S. Tomé e Príncipe, parte dela imigrantes ilegais. Com um fabuloso som de fundo: o coro das mulheres da Cova da Moura. Meiselas teve vontade de lá ir porque ouviu a notícia do arrastão na BBC ou noutra estação global qualquer.

De repente, Portugal dera de novo a volta ao mundo. O arrastão de Carcavelos foi notícia, à falta de Tsunami, vulcão, terramoto, atentado terrorista ou castigo divino. Há males que vêm por bem, dirão uns. As fotos da Meiselas, penduradas nas janelas, nas varandas e nos estendais da roupa do gueto da Cova da Moura, acabaram por dar-lhe uma outra dimensão mediática e contribuir para a melhoria da sua imagem e da auto-estima dos seus habitantes, náufragos do império, filhos de um deus menor.

Os jovens do bairro (e as suas associações, como a Associação Cultural Moínho da Juventude) perceberam que a fotografia pode ser uma arma. Que uma foto de Meiselas (e da Magnum) vale mais do que uma presidência aberta ou o estafado discurso de um presidente da câmara. As associações locais comentam que a notícia (da participação de jovens desta comunidade, local no já famoso arrastão de Carcavelos) foi um exagero, mas que acabou por ter um efeito positivo na sócio-economia da ilha.
Por 5 euros, os estrangeiros passaram a poder entrar, sem passaporte, na Cova da Moura, com direito a visita guiada e guarda-costas. Por mais 7 euros e meio, o turista podia inclusive provar os sabores da gastronomia local, a melhor cachupa da diáspora crioula. O período de tréguas, boa vontade e estado de graça acabou no dia 17 de Julho, mas a exposição do CCB continua aberta até final de Agosto.

Entretanto, a polícia vem agora dizer, pelo seu serviço de relações públicas, que afinal o arrastão [de Carcavelos] nunca existiu: fora uma figura de retórica. País de inventonas, de polícias que gostam de fazer notícia e de jornalistas que dão demasiado crédito aos polícias. País de minorias que a maioria nega, escamoteia, ignora. Todos iguais, mas uns mais do que outros. (...)