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segunda-feira, 26 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24433: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (2): Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!

A granada de mão defensiva
m/63, que equipava o dilagrama 
(**)


Contos com mural ao fundo (2) > Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!


por Luís Graça  (*)



A guerra. Essa coisa tão primordial que é a guerra. Que estaria inscrita no nosso ADN, a acreditar nos sociobiólogos para quem o comportamento humano
seria geneticamente determinado.

A guerra é a continuação da evolução por outros meios, dirão os entomólogos, especialistas em insetos sociais. Para eles, a morte de uma ou de um milhão de formigas (ou de seres humanos...) é-lhes totalmente indiferente. Desde que triunfe o ADN, um projecto de ADN musculado, duma "raça" nova e superior... (Onde é que o leitor já leu isto?)

A guerra, a aprendizagem da morte. Aos vinte e dois anos. A inocência que se perde para sempre, ao ver-se morrer pela primeira vez um homem ao nosso lado. De morte matada. Como o Alfa Baldé.

Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!... Mas não te protegeu, Alfa Baldé, a ti, que acabaste por ser morto pelo "fogo amigo"... Suprema ironia!... (E levavas o corpo "fechado", isto é, coberto de amuletos, os teus "mesinhos", tal como eu levava um fio de ouro com um crucifixo ao peito, mesmo não sendo crente.)

Descansa em paz, soldado de "tropa-macaca"... Sim, a  tua companhia, os teus camaradas, o teu  bando de primatas sociais, territoriais, predadores, filhos das mais desvairadas gentes, brancos e negros... eram "tropa-macaca"... Sem desprimor, sem qualquer conotação racista...

Descansa em paz, grande herói. (Não, não  usemos em vão a palavra "herói", e muito menos "grande"; está tão banalizada na guerra: os "heróis do 10 de junho", de um lado, os "heróis da liberdade da pátria", do outro... quem foram, afinal? E por onde param as suas cinzas, os seus restos mortais, as suas cruzes de guerra, as suas torres, as suas espadas?!...)

Fazias parte da nova força africana, de Herr Spínola, o "prussiano", como alguém dos "tugas" gostava de chamar-lhe, ao Comandante-Chefe. Lembras-te ainda do "Caco Baldé", o "homem grande" de Bissau?!... Tinha  uma voz de ventríloquo, quando discursava às tropas em parada, em Brá!... 

Na sua alcunha, tinha o teu apelido, "Baldé". Alegadamente, por ser amigo dos "guinéus", e em particular do teu povo, os fulas. Mas também dos manjacos e dos demais povos da tua terra, balantas, mandigas, biafadas, etc. Usava um monóculo, o "Caco", de vidro, completamente ridículo...  Dava-lhe um ar de figura de cera, uma peça de museu... Nem todos os "tugas" gostavam dele, do Com-Chefe... Talvez os soldados o admirassem, por causa  daquele autoritarismo paternalista  donde afinal muitos eram oriundos, e onde foram nados e criados... Pai e patrão... "Sua benção, meu pai e meu amo"... Muitos, afinal, eram filhos de pequenos camponeses, pais e patrões, que davam o pão, a sopa, o sopapo e a educação...

Não, não tens que te lembrar do Com-Chefe, não ligues a esta  provocação, são outros contos, outras estórias, outras lendas e narrativas, outros ajustes de contas com as velhas doridas memórias  dos "tugas", que estavam ali para defender o teu "cháo", diziam eles.

O Alfa Baldé era do regulado de Badora... É indecente um gajo esquecer o nome da tabanca de um camarada que foi o primeiro a morrer em combate. De morte matada. Morto pelo "fogo amigo".

Mas quem se lembra já da cara dos seus camaradas guineenses?!... Que tinham filhos e  mulheres  que também andavam na guerra, com a tralha às costas, os poucos haveres, os colchões, os cães, as cabras, os balaios, os alguidares, os tachos, as panelas... Ninguém se lembra... Não havia sequer um fotógrafo, um fotocine, nesse triste evento. Ficaram lá, os órfãos e as viúvas, sozinhos neste mundo. Ou talvez não: terão ficado a cargo de algum irmão mais velho, seguindo os usos e costumes do seu povo, o levirato, que já vem dos tempos bíblicos...

Descansa em paz, Alfa Baldé!... Dorme agora o teu sono eterno, debaixo do poilão secular, na tua tabanca. No chão fula, belíssimo poilão de uma triste tabanca fula, cercada de arame farpado, cavalos de frisa, trincheiras, espaldões e valas de abrigo por todos os lados. 

Tudo, afinal, por causa do Mamadu Indjai, o "Terrível". Jurou pôr o teu "chão" a ferro e fogo. E esteve quase  a consegui-lo, se não tivesse levado prematuramente uma rajada de G3 quando retirava para a península do Galo Corubal.  Não contava com os "velhinhos" de Mansambo, emboscados... Sobreviveu aos ferimentos   e foi ainda evacuado para um hospital  no estrangeiro... De um daqueles países que apoiavam o Amílcar Cabral... 

Lembras-te?  Nunca o viste, mas era o chefe do Mamadu Indjai, esse Cabral... Dizem que nasceu em Bafatá, no teu "chão", era teu vizinho.  Filho de pai cabo-verdiano e mãe guineense. Faz sentido hoje este discurso racializado, o de saber se era mais cabo-verdiano de pai ou mais guineense de mãe?

Desculpa, passa em frente, os "tugas" têm o dom de complicar as coisas simples... Mas também é verdade, para os teus camaradas fulas da companhia, o Amílcar Cabral nunca teria sido guineense...

Os teus campos, Alfa Baldé, esses,  ficaram tristes e inférteis. Já não davam o milho painço nem o fundo, nem a mancarra, nem a noz de cola, nem o arroz de sequeiro. Os homens partiram para guerra. E os mais velhos eram milícias, na tua tabanca organizada em autodefesa. 

A guerra era agora a principal ocupação de todos. E a morte um modo de vida. Compravam o arroz na Casa Gouveia ou no Rendeiro com o "patacão" da guerra.  Nem os "djubis" guardavam já os campos de mancarra, das investidas dos macacos-cães. De Mauser em punho, que a milícia agora usava a G3. Aprendiam cedo a usar uma arma, os "djubis"...

Alguns dos  guerreiros do teu povo, como tu, voltavam agora numa caixão de pinho. Restavam os macabros "jagudis" poisados no alto da morança dos mortos, cheirando a morte, pressagiando a desgraça, esperando as vísceras das vacas que iriam ser abatidas, esfoladas e comidas nas cerimónias do "choro".

Setembro de 1969. Operação Pato Marreco. Ou era a Ganso Pimpão? Ou a Pavão Real? Ou a Cisne Depenado? 

Que importa, agora, o nome de código da operação!... O Alfa Baldé morreu em linha, num golpe de mão a um acampamento. No assalto a um aquartelamento temporário do IN ("barraca", diziam eles), próximo do Poindom / Ponta do Inglês, o "matadouro" do Xime, o "fojo do lobo"...

Não, não havia lobos na Guiné, as populações locais chamavam lobo à hiena... Mas é uma metáfora, "foj0 do lobo", aquelas penínsulas, na margem direita do rio Corubal, nos regulados do Xime e do Corubal: Poindom / Ponta do Inglês, Baio / Buruntoni, Galo Corubal / Satecutá... Tal como Madina / Belel, já no limite do regulado do Cuor, a norte do Enxalé...

"Fojos do lobo", triângulos assassinos, ratoeiras, matadouros... 

IN? Que estranho termo... IN, abreviatura de inimigo, usado nos relatórios de operações.  O "tuga" usava-o por força do hábito, por comodidade, por lassidão, por economia de análise. Para ti, era o "turra". Para muitos dos "tugas", era também o "turra", corruptela de "terrorista"... Em qualquer guerra, o inimigo tem que ter um nome, uma alcunha, um rosto, uma bandeira... De preferência, um nome depreciativo, que provoque asco, ódio, desprezo... Um gajo não mata por nada, tem que ter uma boa razão para matar e morrer. Tem  que aprender a odiar. Depois do ódio é mais fácil matar e morrer....

Curioso, nunca soube a tua idade, mas eras dos mais velhos, dos que não tinham idade bem definida. Os que chamávamos "homens grandes" da companhia... Não tinhas bilhete de identidade de cidadão português. Eras um fula preto, um fula forro, arrebanhado para aquela guerra. Não, não eras futa-fula, nem da antiga nobreza do Futa Djalon... 

Levaram-te a enterrar na tua aldeia, os camaradas do teu pelotão, foram  dizer-te o último adeus. Com honras militares, tiros de salva, e a bandeira verde-rubra dos "tugas" por cima do teu caixão. De pinho. Do verde pinho de Portugal. Talvez do pinhal de Leiria, que ardeu de vez num dos verões  passados. Ardeu como estão a ardeu agora as tuas florestas... para depois fazerem grandes plantações de palmeiras de dendém  ou de frutos tropicais...

Nem isto te deixaram fazer,  as coisas à maneira dos teus. Afinal, eras um soldado, regular, do exército português. "Colonialista", denunciava  a "Maria Turra", na rádio lá de Conacri... Não, não era a mulher do Cabral, como tu pensavas... Mas também não importa, já nada importa, a um crente, bom cristão ou bom muçulmano, depois de "lerpar"... (Lerpar, morrer, é a mesma coisa, para os "tugas".)

Cumprias o teu serviço militar obrigatório, como qualquer cidadão português. Tinhas, contudo, mais deveres do que direitos. Tinhas sido milícia. Tratavam-te como soldado de 2.ª classe, por não saberes ler nem escrever português... Eras do recrutamento local.  E a "Maria Turra" chamava-te 'cachorro", cão dos colonialistas... Cabral também te chamava 'cachorro', colaboracionista, à semelhança dos "darkis" na Argélia... 

Se não tivesses morrido, quatro meses depois de jurares bandeira perante o "homem grande" de Bissau, e se tivesses chegado ao fim da guerra, que estava ainda para durar, irias ter "manga de  chatice".  Nunca falámos disso... Aliás, muitas coisas ficaram por falar entre nós... Os novos senhores da guerra não gostavam de ti, que eras um "cachorro dos colonialistas", proclamava a  "Maria Turra", em portuguès e em crioulo, confirmava o Amílcar Cabral, vociferava o Mamadu Indjai no cerco a Candamã. E nos papéis que deixou espalhados pelos trilhos...

Todos os exércitos têm normas, regulamentos, protocolos... O enterro do Alfa Baldé fez-se segundo uma NEP qualquer... A burocracia militar previa tudo ou quase tudo... Não chegaram a chumbar o caixão, não houve tempo de esperar pelo "cangalheiro" de Bissau... Nem o caixão era de chumbo... A caminho da aldeia natal do falecido, em dois ou três Unimog, a tropa ia no "gosse gosse", com medo que o cadáver começasse a cheirar mal. E já cheirava... Com quarenta e tal graus ao sol e 100% de humidade, nesse setembro de 1969, o pobre do Afa Baldé já cheirava mal, já fedia...

E o "pavão" do teu "alfero" ia à frente, de peito feito ao vento, pela estrada fora... Como é que vocês lhe chamavam?... O "alfero Manga de Ronco"... (Todos os "tugas" tinham alcunhas, eu também devia ter, seguramente, mas nunca mo disseste, à minha frente... A do "alfero", se bem me lembro, era por ele gostar de fazer umas festinhas âs bajudas de "mama firma", repetindo e comprovando com o dedo, que depois  levava aos lábios: "Manga de ronco, manga de ronco!"...)

 Lá ia ele, impante, sem pudor ou qualquer remorso por te ter morto, a ti e ao prisioneiro que nos servia de guia, e ferido uma porrada de malta.

Lá ia ele, de pé no Unimog, desafiando minas, armadilhas, emboscadas, aparentemente ignorando ou escamoteando os sentimentos dos seus subordinados, a tristeza das gentes da tabanca... Desafiando os ventos da História que já sopravam fortes naquele mês de setembro e ano de 1969... 

Havia quem não gostasse dele, até os seus soldados lhe chamavam-lhe o "alfero que tem Manga de Mania"... Competia pelos favores do capitão e quiçá batia-se a uma cruz de guerra, com o "Cabra-Matchu", o outro "alfero" que era de operações especiais...

E ele até nem desgostava da alcunha, o "Manga de Ronco"... Pequeno, entroncado, primeiro classificado no CSM, o que lhe valeu uma "promoção", a entrada no COM, o curso de oficiais milicianos, na "Máfrica", a fábrica de oficiais milicianos com destino à "guerra do ultramar", diziam uns, ou "guerra colonial", diziam outros. 

Foi bom na prova de tiro, e no trampolim e na marcha. Aldrabou os psicoténicos e os instrutores. Tinha lábia. Era chico-esperto. Valente, sem dúvida. Voluntarioso, com certeza. Mas "mau oficial e  pior cavalheiro", diziam entre dentes os seus criticos.... Terá sido um erro de "casting":  não tinha qualidades de comando e liderança, para além dos punhos e da genica. Muito menos tinha ética.   Fez um discurso "patrioteiro", que ninguém terá entendido, crianças, bajudas, mulheres e velhos da tua aldeia. Nem sequer os seus próprios soldados, acabrunhados com o seu primeiro morto, de morte matada, morto por "fogo amigo", morto ironicamente pelo seu comandante.

"Honra e Glória ao bravo soldado Alfa Baldé, que deu a vida pela Pátria!"... Ele falava em português, e não havia sequer um intérprete. Nem muito menos tempo para grandes discursos. 

Honra e Glória !... Pátria?!... Não é fácil explicar o que querem dizer estes conceitos, sobretudo a ti que nunca chegaste a frequentar o posto escolar militar... Tinhas lá tu tempo de frequentar a escolinha dos "djubis"!..

Portugal, a pátria longínqua?!... "Heróis do mar, nobre povo, nação valente e imortal..". Sabias tu, ao menos,  o hino nacional?...  Nem isso, não tivestes tempo de o decorar e cantar, de cor e salteado......

Ainda te lembras de ouvir falar de Portugal, de lá longe, muito longe? 
Os senhores que vieram do Norte e do lado mar... Não, não vieram pelo deserto, pelas caravanas de dromedários (sim, que no Saara, não havia camelos). Esses, foram outros, árabes, bérberes, tuaregues, mandingas do reino do Mali, abrindo as rotas subsarianas do ouro, do marfim e da escravatura. Depois é que vieram os "tugas" e os outros europeus ocupar e retalhar, tardiamente, a tua África negra, profunda, berço de todos nós... 

Os teus antepassados da Senegâmbia  foram escravizados, muitos foram parar ao Novo Mundo, aos engenhos de açúcar e às plantações de algodão. Outros, quiçá, trabalharam nos arrozais do rio Sado. Ou eram escravos domésticos em Lisboa. Como já antes tinham sido escrvizados pelos árabes, os mouros, os mandingas do império do Mali...

Não, não tens que saber de geografia. Nem de história. Nem de geopolítica. Nem de antropologia. Muito menos  de teologia. No sítio onde tu moras agora, debaixo do teu poilão, já não te servem para nada os conhecimentos de geografia, história, geopolítica ou antropologia. E a teologia dos marabus, dos imãs e dos chernos só te vai baralhar a procura do caminho que te há de levar à eternidade...

Insha'Allah, algum senhor da guerra, do teu país, não venha um dia destes autorizar o abate do teu poilão, a troco de um punhado de yuans (ou iuanes), o patacão chinês, a nova moeda com que se tenta subornar os novos líderes do teu povo... 

Sabes, dizem que estão a dar cabo das florestas da tua terra, da tua África. O deserto do Saara já espreita às portas do "chão" felupe, mais a Norte. Os "madeireiros" não têm pátria nem ideologia. E já não usam machados. Abatem uma árvore centenária enquanto o crocodilo do Cacheu engole um macaco-cão. Como outrora os velhos carvalhos da Europa ou as sequoias da América.

Bolas! Um gajo não se recordar do nome da aldeia do Alfa Baldé, no "chão" fula!... Nem sequer os seus mangueiros e os seus poilões... A secção que eu comandava, esteve lá uma semana ou duas, um mês antes do Alfa Baldé morrer. Essa tabanca, pelas notas, amarelecidas, do meu diário, ficava no limite do regulado de Badora, a sul, já a confinar com o regulado do Corubal.

O Alfa Baldé esteve lá comigo. Vinha-me a ajudar a acender o lume ao fim da tarde, para aquecermos as rações de combate, eu e o transmissões... Ou grelhar um frango ou um naco naco de carne de caça..... Partilhava com ele a ceia, antes que o sol incendiasse o céu e a savana. (À noite apagavam-se todas as fogueiras, por causa dos "snippers" do Mamadu Indjai. Estava em vigor o "black out" total. Até o cigarro era proibido.)

Esqueci o nome da tua tabanca mas o teu nome, esse não esqueci, Alfa Baldé, apontador de dilagrama, o melhor da companhia. Esqueci foi o lugar onde nasceste e te fomos enterrar, talvez Sinchã ou Saré qualquer-coisa, é imperdoável... (Nem sequer uma chapa de metal, com o teu nome e número mecanográfico, lá deixaram cravada no teu poilão!)

Passámos lá uns belos dias, eu, tu e a nossa secção. Felizmente que o Mamadu Indjai não nos importunou dessa vez , mas andou a pôr o vizinho regulado do Corubal a ferro e fogo, como ele jurou... Jurou, cumpriu e fez cumprir. 

Mamadu Indjai, um senhor da guerra do PAIGC, que acabará também miseravelmente fuzilado nas matas do Boé, em 1973, depois de atentar contra a vida do seu chefe, o "pai da Pátria"... (Pátria... como explicar-te?!... Não é fácil.) 

Mas era também um"cabra-matchu",  valente, "herói da luta de libertação", esse Mamadu Indjai... É assim, querido Alfa, todas as revoluções devoram os seus filhos: Cabral, Indjai, Mané, 'Nino'... Ontem, como hoje. Na tua terra ou na minha.

Falavas pouco e mal o português, mas eras um exímio caçador, e um terrível "snipper" (a 50 metros eras capaz de arrancar a cabeça de um inimigo, se tu fosses apontador do lança-granadas-foguete 37 mm; mas o "pimpão" do teu comandante, estupidamente, obrigou-te a ser apontador de dilagrama, o que tu nunca gostaste)... 

Snipper, black-out, casting...são palavras de outras língua, o inglês, esquece. Mas o que agora queria dizer-te, Alfa Baldé, cinquenta anos depois da tua morte, e é isso que importa, é que chorei por ti, confesso que chorei por ti, que morreste a meu lado, e que levavas um prisioneiro, teu irmão, pela mão. Não sei se um balanta, biafada ou mandinga é teu irmão, tu que és fula preto... Mas deixa lá...  

É uma vergonha um gajo, um "cabra-macho" de um "tuga", vir aqui dizer que chorou por outro homem, combatente, seu camarada de armas. Um homem não chora, dizia o meu pai, o meu velho, que escondia a lágrima fácil com os seus ditos de ocasião  e os seus trejeitos.....

Tu que nem sequer eras meu irmão, nem grande nem pequeno. Eras apenas meu camarada de armas. Nem tinhas a mesma cor de pele. Nem a mesma religião. Nem a mesma língua. Nem talvez a mesma pátria.(Não posos falar pir ti e pelos teus sentimentos.) Nem o mesmo continente. Não comias carne de porco. Nem bebias "água de Lisboa". Eras apenas um "guinéu", soldado de 2.ª classe, exímio caçador e o melhor apontador de dilagrama (e de LGFog 37 mm)  da companhia. E o primeiro a morrer em combate, "vítima de fogo amigo", que estranha ironia!...

Ganhava, o Alfa Baldé, 600 pesos de pré, o equivalente a um saco de arroz por mês para alimentar a família numerosa, mais 24$50 por dia, por ser desarranchado. "Manga de patacão", dizia o sacana do sorja da secretaria que, antes de partir para a Escola Central de Sargentos, ainda queria "embrulhar em papel selado"  uns. "sacanas de uns nharros" que não lhe bateram a pala... E que, depois, queria fazer pagar o caixão de pinho do Alfa Baldé com o dinheiro do ronco que a companhia ganhara na tal operação Pato Marreco. (Ou era a Ganso Pimpão? Ou a Pavão Real? Ou a Cisne Depenado?)... Trinta ou quarenta contos de material apreendido aos "turras, nessa operação, valiam hoje qualquer  coisa como 10 mil a 13,5 mil euros... O capitão que, apesar de tudo era um gajo dcecente, recusou-se a aceitar essa sórdida contabilidade do deve e haver da tropa... Um herói de Portugal tinha direito a um caixão, mesmo foleiro, de pinho...

Não, não eras um homem de grandes falas, e o teu léxico em português era bem escasso para a gente poder manter um diálogo aprofundado sobre a tua vida e a do teu povo, e a sua história. Eu fazia muitas perguntas, às quais nem sempre sabias responder. E,  se respondias, eras lacónico...

Para mim, eras apenas um homem, da subespécie "Homo Sapiens Sapiens". A única que chegara até aos nossos dias. E que, convém recordá-lo, nascera do seio úbere da Mãe África. Somos todos descendentes de africanos que acabaram por colonizar e povoar o planeta.

Tu foste o primeiro homem, género "Homo", espécie "Homo Sapiens",  subespécie "Homo Sapiens Sapiens", que eu vi morrer a meu lado. Nunca mais chorei por ninguém, por mais nenhum morto, acredita. Chorei por ti, Alfa Baldé. Chorei de raiva, de impotência e de dor.

Nascemos meninos, tu e eu, e o Conté, o nosso guia-prisioneiro, mas fizeram-nos soldados. Azar o meu e o teu, e o do Conté, por termos nascido no sítio errado, no tempo errado.

Imagino-te "djubi", à volta da fogueira, na morança do "cherno" da tua tabanca, decorando o Corão. Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua tabanca, e que eu guardo na minha memória, os "djubis" à volta da fogueira, ao fim da tarde, soletrando as letras das tabuínhas em árabe. 

Lembras-te de ainda teres querido aprender as letras dos "tugas", o alfabeto latino, para poderes ser soldado arvorado e um dia chegares a 1.º cabo como o  Gomes, que era tua etnia, ou o Sampaio, que era papel de Bissau, ou o Lopes, que era cabo-verdiano da ilha da Brava. Mas a atividade operacional da companhia era intensa e muito pouco tempo sobrava para poderes frequentar a escola, o posto escolar militar, do furriel Veloso. Além disso, tinhas uma família, duas mulheres, dois filhos, um terceiro a caminho... Chegavas cansado e esfomeado à tua morança, fora do quartel onde estávamos sediados.

"Fight or flight". Luta ou foge, "tuga". Não precisei de fugir nem de lutar. Recusei o egoísmo genético. Recusei a lógica absurda, simplista, dicotómica, de matar ou morrer. Recusei o cinismo. Recusei a G3 em posição automática.
Recusei a fria e calculista resignação com que se juntavam e amortalhavam
os cadáveres seguintes. E se contavam nas paredes da caserna os dias que faltavam para a peluda.

Cinquenta anos depois, meio século, dois terços da esperança média de vida de um homem do hemisfério norte, venho dizer aqui em voz alta, 
as palavras que ninguém disse ao Alfa Baldé, no grotesco enterro que lhe fizeram em Sinchã ou Saré qualquer-coisa, a sua terra natal. 

E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. 

Dilagrama
O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto pelo teu próprio  dilagrama", erradamente empunhado pelo teu comandante.  Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém quis salvar a honra da companhia. Alguém safou o teu comandante de pelotão de uma eventual porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara e na minha cara e na cara dos nossos camaradas de secção. E na cara do Conté. O teu dilagrama, empunhado pelo "alfero Manga de Ronco".

O que é que lhe terá dado, ao teu "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, Conté, que estava à guarda do Mamadu Camará?!

Disseram-te, na instrução da tropa, que não podias (nem nunca deverias) julgar um oficial, teu superior hierárquico, teu comandante de pelotão ou de companhia. É verdade ele, um dia 
destes, vai morrer na cama, se é que ainda está vivo!... Sem qualquer remorso na consciência "por te ter morto", a ti e ao Conté, e ter provocado vários feridos graves, quando a companhia estava em linha no assalto a uma "barraca" dos "turras"... 

"Homicídio involuntário"? Não, "acidente com arma de fogo", é mais indolor... 
Muito provavelmente o alferes vai morrer em paz e contar aos netos que foi um "herói de guerra do ultramar", com direito a nome de rua lá na aldeia do nordeste transmontano onde ele nascera...

"Acidente com arma de fogo" (segundo o relatório elaborado pelo capitão)
no auge da batalha, quando a companhia avançava em linha, no assalto ao acampamento do IN, levando o Alfa Baldé, pela corda, o guia, que era "turra", prisioneiro, e que lhe fora confiado à última hora. Porque o seu posto era o de soldado, apontador de dilagrama. E era o melhor da companhia.

O que se passou na cabeça do "alfero" que empunhou indevidamente o dilagrama
e largou-o no ar quando, inadvertidamente, saltou a cavilha de segurança?... "Falha técnica" ou "erro humano"? Na tropa há sempre uma explicação para os desastres...


Mais novo do que tu,  o teu "turra" era um jovem mandinga ou biafada (tanto faz, já não me recordo), que apanháramos a norte do Enxalé, tão crente como tu, tão observador dos preceitos corânicos como tu, meu querido "nharro". (Desculpa tratar-te assim,  o termo tem hoje uma conotação racista, mas era coloquial  naquele tempo, "tuga" e "nharro" eram usados sem sentido de ofensa...)

Rebentou, de imediato, a fuzilaria quando o dilagrama explodiu na cara do pessoal. A tua, a nossa, secção já não pôde avançar mais. Tu tiveste morte quase instantânea, ainda balbuciaste umas palavras em fula, que ninguém consegui ouvir e muito menos fixar. Deves ter chamado pela tua mãe, como todos os soldados do mundo na hora da morte... Quando chegou o 1.º cabo auxiliar de enfermagem, o Fafe, para te estancar o sangue e pôr o soro nas veias, já era tarde demais... Um estilhaço de ferro em brasa,  varara-te o coração. O "turra", esse, não morreu logo, mas ficou a agonizar no chão... Ninguém o levou, muito menos o helicóptero... O Fafe abreviu-lhe a mortye dolorosa, com uma dose de morfina... Ficou, ali, à porta da sua antiga "barraca", a agonizar... Ele que nos levara até lá, sem nos tentar enganar, embora temendo que, cumprida a sua tarefa de Judas, alguém lhe pudesse dar no final um tiro atrás da nuca...

A "Maria Turra", em Conacri, irá depois acusar-nos de o termos executado sumariamente... e transformar o pobre do Conté  em mais um "herói da liberdade da pátria"...   Todas as guerras precisam de heróis, de um lado e do outro... Se os seus camaradas o não recolheram, junto com os despojos da batalha, em oito dias as formigas carnívoras e os "jadugis" descarnaram-no e desossaram-no...

Nunca mais lá voltei, à Guiné, Há muitos anos atrás ainda tentei, em vão, arranjar uns restos de coragem e de dignidade. Achava que tinha  uma dívida para com o Alfa Baldé. Morto, por engano. Morto pelo "fogo amigo". E  enterrado na sua tabanca do sul de Badora...

E agora, Alfa Baldé, que foste poupado à humilhação da "derrota" e não viste o teu país sentar-se de pleno direito à mesa do mundo... Que farias tu com esta independência e com esta bandeira tricolor, a da Guiné-Bissau, contra a qual lutaste sem querer, sem saber, sem poder?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres? E os teus netos? E os homens grandes da tua tabanca? E os líderes do teu povo que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas"?

Herr Spínola, o homem grande de Bissau, esse já morreu há uns largos anos atrás, ainda no século passado. Há vinte e tal anos.

Não lês os jornais, não chegaste a aprender o alfabeto latino e a juntar as letrinhas para poderes ler o livro da 3.ª classe, com a torre de Belém ao fundo: "Esta é a minha pátria amada"…

Pois é, o homem grande de Bissau morreu, não de morte matada, como a tua, ou a do Conté, ou a do Amílcar Cabral, ou a seu carrasco, o Inocêncio Cani, ou a do 'Nino' Vieira, ou a do Mamadu Indjai... O "Caco Baldé" morreu de acordo com a lei natural das coisas, com 86 anos. Soubeste, com certeza,também  da morte do Cabral e do 'Nino'. Ou talvez não. Nem todas as notícias da terra chegam ao céu...

Quanto ao teu régulo,  foi miseravelmente fuzilado na parada de Bambadinca, o poderoso régulo de Badora, tenente de milícias, o "Cavalo Branco", como a gente o chamava.... 

Coitado, um dia trocou o cavalo branco, símbolo da gesta heróica do Futa Djalon, por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos...  Dizia-se que fora oferta do Schulz ou do Spínola (que chegou à tua terra em meados de 1968). Pois do Mamadu Bonco Sanhá também se dizia que era dono de centenas de cabeças de gado e de um harém, mas era mentira, de cinquenta mulheres, uma em cada aldeia de Badora… Fantasias sexistas dos "tugas" que pouco ou nada afinal sabiam, coitados,  da história e da cultura do teu povo.

Também se dizia, mas era mentira, que o puto Demba era filho dele, o Demba e mais outros "djubis" da companhia, os nossos putos de 15 e 16 anos. O Demba já morreu, também ele, o puto Demba.  Era de Taibatá e andou fugido pelo Senegal e por todo o Norte de África até chegar a Portugal. Acabou por morrer cá, na terra dos "tugas", no hospital, o terminal da morte. De sida, de turberculose, de miséria, de solidão...

Hoje os heróis do passado sucumbem sob o peso das cruzes de guerra. Ou pedem esmola nas ruas de Bissau ou de Dacar, tal como os teus filhos e netos. Ou morrem de desespero e insolação às portas do templo da deusa Europa, em Ceuta, em Melilha, em Lampedusa, em Lesbos, ou afogando-se nas profundezas do Mediterrâneo...

Que voltas o mundo deu, Alfa Baldé,  desde esse dia já distante em que a tecnologia da guerra ou a lotaria do ADN ou a insensatez de um oficial subalterno "tuga" te ceifou a vida.

Porquê tu, logo  quatro meses depois de jurares bandeira, em Bissau, na presença do general Spínola, e te comprometeres, por tua honra, a defender uma pátria que, afinal,  não era a tua (ou não era bem a tua), "até à última gota do teu sangue"?
 
E agora deixa-me dizer-te, amigo e camarada, à laia de despedida: não sei se um dia ainda terei forças para voltar à tua terra, ao teu "chão". Já estou a ficar velho de mais para poder voltar a viajar para esses sítios de África. Mas se porventura o fizer, gostaria ainda de descobrir o nome da tua aldeia, e de procurar-te e de ter tempo para conversar contigo, só tu e eu, debaixo do teu poilão. Oxalá, Insha'Allah!


Nota do autor: 

Neste conto, os nomes são quase todos fictícios (exceto o do régulo de Badora, e os "históricos" do PAIGC)  mas os factos (e os topónimos) são verdadeiros, no essencial. Acontece que o Mundo é Pequeno, e a nossa Tabanca é... Grande!... Outra advertència: estews contos com mural ao fundo foram escritos em tom intimista, mas para serem lidos em voz alta, esperando-se que o eco da voz do leitor vai bater no tal "mural ao fundo"... Se o leitor quiser "grafitar" o mural, o autor também lhe fica grato. Afinal, quem conta um conto, não é para lhe acrescentar um ponto, mas para ser lido ou escutado. 
 
© Luís Graça (2019). 

Última versão, profundamente revista e melhorada: 10 de junho de 2023
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(**) Ver poste de 21 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5682: Armamento (1): Morteiros, Lança-Granadas, Granadas e Dilagrama (Luís Dias)

(...) O Dilagrama era um dispositivo que, conjuntamente com a granada de mão defensiva M/63, ao qual era fixado, aplicado na espingarda automática G3, permitia-nos obter alcances superiores aos conseguidos pelo arremesso manual da granada, reduzindo os riscos para as nossas tropas na sua utilização. O Dilagrama permitia bater ângulos mortos, sendo possível o seu emprego contra elementos IN abrigados.

O Dilagrama era constituído por:
  • um adaptador da granada;
  • um tubo em forma cilíndrica;
  • uma empenagem;
  • a granada defensiva M/63 e
  • um cartucho especial propulsor.
Retirada a cavilha da granada, a alavanca de segurança ficava presa pelo retentor. Quando se premia o gatilho da arma e o cartucho era percutido, a acção de gases que se seguia impulsionava o conjunto, lançando-o pelo ar e pela acção da inércia o grampo de armar recuava, partindo o retentor, soltando-se, então, a alavanca de segurança da granada, iniciando-se a combustão do misto retardador e consequentemente a explosão, com fragmentação de todo o conjunto.

Normalmente, a granada atirada por este dispositivo, rebentava acima do solo. Num disparo a 45º, verificávamos que, efectuando uma contagem rápida de 1 a 15, o rebentamento se dava, por norma, nesta altura.

O disparo deste dispositivo dava um forte coice, em especial no dedo que dava ao gatilho, por isso, os soldados eram instruídos para efectuarem o disparo como se dedilhassem uma guitarra (só usando a ponta do dedo) e dispararem a arma apoiada no chão, prendendo-se com um dos pés a bandoleira e colocando a arma no ângulo pretendido. No entanto, em acção, a maior parte dos atiradores que me acompanhavam e que utilizavam o dilagrama, efectuaram os disparos do mesmo ao ombro, sem quaisquer problemas. (...)


Características desta arma:

  • Tipo: Dispositivo de lançamento de granada defensiva através de uma espingarda;
  • Oriem: EUA;
  • Peso: 455 g;
  • Explosivo: Composição B;
  • Fragmentação: Espiral de aço em forma de barril no interior da granada, bem como o restante conjunto, fabricado em metal;
  • Capacidade: Acção efectiva nos 15 m em redor do local da explosão;
  • Alcance máximo: 160 m.
Durante o ano de 1973, surgiu outro tipo de dispositivo (ao que creio, o FRG-RFL 40BT, de origem belga), em que a granada não era acoplada, mas fazia parte integrante do conjunto (tipo bola), no calibre de 40 mm, rebentando por impacto e, dado ser um conjunto mais leve que o conjunto anterior (355 g), o seu alcance era sensivelmente o dobro (350 m), lançando cerca de 300 fragmentos, em 30 m envolta do local da explosão. (...)

sábado, 23 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23455: (Ex)citações (411): Cuidado com o "fogo amigo", cuidado com o dilagrama, cuidado com a granada defensiva... (António J. Pereira da Costa / Luís Graça)

1. Comentários 
ao poste P23450 (*):

(i) António J. Pereira da Costa 

As granadas de mão defensivas era de difusão / utilização restrita. Eram perigosas, como se recordam, pois semeavam estilhaços ao fim 4-5 segundos depois de lançadas. Os dilagramas que as usavam tinham também uma utilização restrita, muito cuidadosa e o número de homens que os carregavam era pequeno, talvez um em cada Gr Comb,  em média. 

Em todas as minhas guerras usei uma Granada Defensiva e como armadilha e não lançada. As incendiárias eram úteis nos golpes-de-mão e as ofensivas eram uma pequena carga explosiva que se usava também em golpes-de-mão...

22 de julho de 2022 às 16:30

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

Concordo inteiramente contigo, Tó Zé: o primeiro morto (ou um dos primeiros mortos) da 1ª Companhia de Comandos Africanos, que estava em formação em Fá Mandinga, setor de Bambadinca, no 1.º semestre de 1970, foi um furriel, cortado ao meio ao pisar uma mina A/P... Levava o cinturão carregado de granadas defensivas... que rebentaram por simpatia.

Vi o seu corpo na nossa capela (que funcionava como casa mortuária)... Nunca levei uma granada defensiva para o mato... Alguns dos nossos, da CCAÇ 12, primeiros feridos foram provocados por falha na utilização do diligrama, num golpe de mão... Não fui atingido por milagre..."Branqueámos" o acidente para salvar a pele ao alferes... (que, por capricho, quis ser ele a levar o dilagrama)... Histórias tristes...

22 de julho de 2022 às 22:23

(iii) António J. Pereira da  Costa:

(...) Quer se queira, quer se não queira, o recurso a certas armas de apoio - morteiros 60, LGF 8.9 e dilagramas - deveria ser feito com muito cuidado e, num contacto próximo com o In não tinham aplicação imediata.  

Atenção aos dilagramas que batiam nas árvores e... caíam mais perto. Além disso, a precipitação do lançamento deu lugar a desastres. Por mim descartei o LGFog 8,9 por ser pesado, incómodo e, em emboscadas sofridas ou montadas, de utilização problemática. Contudo, em ataques "ao arame" podia revelar-se útil. Já o lança-rockts 37 mm tinha utilidade e, se bem usado, era muito eficaz. Mas este não está nas estatísticas. (...)

23 de julho de 2022 às 10:12

(iv) Tabanca Grande Luís Graça;

Ver o meu conto:

21  de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)

(...) E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto por um dilagrama dos nossos. Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém salvou a honra da companhia. Alguém safou o teu/meu comandante de uma porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara, nas nossas caras. Um dilagrama dos nossos. O teu dilagrama, empunhado pelo nosso "alfero"...

Não, não sei o que lhe deu, ao "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, que estava à guarda do Mamadu Camará. (...)


(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Um verdadeiro "boomerang", o dilagrama, nas matas cerradas da Guiné... Deve haver para aí muitas outras histórias de mortos e feridos graves devido ao "fogo amigo" do dilagrama... E não só: eu apanhei com o "cone de fogo" de um LGFog 8,9 (!), na resposta a uma emboscada... Podia ter lerpado, se estivesse ainda mais perto do raio da bazuca. (...) (**)

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19715: Armamento (7): Granada de mão e dilagrama (Luís Dias)



A granada defensiva M26A1 M/63 (**)


Luís Dias, hoje
1. Excerto de um texto, já antigo,  do nosso camarada Luís Dias, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74),  sobre armamento das NT, com destaque para o controverso dilagrama que, indevidamente manejada,  também matou e feriu gravemente alguns dos nossos camaradas (*)


AS GRANADAS DE MÃO E O DILAGRAMA, USADOS PELAS NT (**)

por Luís Dias


Luís Dias, ontem- Tem c. 75 referências
no nosso blogue
 As tropas portuguesas usavam, essencialmente, dois tipos de granadas de mão: as ofensivas e as defensivas. Eram também usuais as granadas de fumo (cores vivas) para assinalar locais no mato para aterragem urgente de hélios e para identificar a zona onde se encontravam as nossas forças, quando se solicitava ataque aéreo. Muito raramente se utilizavam as incendiárias.

As granadas ofensivas eram de fraco raio de acção, essencialmente actuando por sopro e choque, podendo ser empregues quando as tropas que as lançavam estão a descoberto, dado que os seus poucos estilhaços, normalmente, não tinham alcances superiores a 15 m.

As granadas defensivas eram de um raio de acção superior a 100 m, embora o raio de acção de eficácia fosse de 15/20 m, actuando por meio de fragmentação em estilhaços do seu próprio corpo e da espiral existente no seu interior. Destinam-se a ser empregues quando as forças que as lançam estão abrigadas, protegidas da acção dos efeitos da própria granada.

Outra utilização para as granadas defensivas era o seu arremesso, através de um dispositivo colocado na G3, com recurso à utilização de uma munição especial, para distâncias superiores aos atingidos pelo lançamento manual - este conjunto chamava-se dilagrama.

Características da Granada Ofensiva M/62

TIPO: 
Arma de arremesso, destinada ao combate próximo, podendo bater ângulos mortos
PESO: 
310 g
CARGA: 
190 g TNT

RAIO DE ACÇÂO: 
10 a 15 m
ALCANCE: 
Dependente da potência do braço do lançador

ESPOLETA: 
De tempos, de percussão prévia automática. Duração de combustão do misto retardador – 4 a 5 segundos.

FUNCIONAMENTO: 
Após ser retirada a cavilha de segurança, puxada pela argola existente na cabeça da granada, largando em seguida a alavanca de segurança, o percutor acciona a combustão do misto retardador e posteriormente atingindo o detonador, este acciona a carga ignidora e em seguida a carga base, dando-se a explosão.

Características da Granada Defensiva M/963 
(M26 ou M26A1)

TIPO: 
Arma de arremesso, destinada ao combate próximo, podendo bater ângulos mortos
ORIGEM: 
EUA
PESO:
455 g
CARGA: 
165 g de Composição B
RAIO DE ACÇÃO EFICAZ: 
20/30 m
RAIO DE ACÇÃO PERIGOSO: 
185 m
ALCANCE: 
Dependente da potência do braço do lançador

ESPOLETA: 
De tempos, de percussão prévia automática. Duração de combustão do misto retardador – 4 a 5 segundos

FRAGMENTAÇÃO: 
Através de uma espiral em aço em forma de barril, existente no interior do corpo. Mola fragmentada
FUNCIONAMENTO: 
Após ser retirada a cavilha de segurança, puxada pela argola existente na cabeça da granada, largando em seguida a alavanca de segurança, o percutor acciona a combustão do misto retardador e posteriormente atingindo o detonador, este acciona a carga ignidora e em seguida a carga base, dando-se a explosão.



O dilagrama M26A1 (**)
O Dilagrama

O Dilagrama era um dispositivo que, conjuntamente com a granada de mão defensiva M/63, ao qual era fixado, aplicado na espingarda automática G3, permitia-nos obter alcances superiores aos conseguidos pelo arremesso manual da granada, reduzindo os riscos para as nossas tropas na sua utilização. O Dilagrama permitia bater ângulos mortos, sendo possível o seu emprego contra elementos IN abrigados.

O Dilagrama era constituído por:

(i) um adaptador da granada;
(ii) um tubo em forma cilíndrica;
(iii) uma empenagem;
(iv) a granada defensiva M/63;
(v)  e um cartucho especial propulsor.

Retirada a cavilha da granada, a alavanca de segurança ficava presa pelo retentor. Quando se premia o gatilho da arma e o cartucho era percutido, a acção de gases que se seguia impulsionava o conjunto, lançando-o pelo ar e pela acção da inércia o grampo de armar recuava, partindo o retentor, soltando-se, então, a alavanca de segurança da granada, iniciando-se a combustão do misto retardador e consequentemente a explosão, com fragmentação de todo o conjunto.

Normalmente, a granada atirada por este dispositivo, rebentava acima do solo. Num disparo a 45º, verificávamos que, efectuando uma contagem rápida de 1 a 15, o rebentamento se dava, por norma, nesta altura.

O disparo deste dispositivo dava um forte coice, em especial no dedo que dava ao gatilho, por isso, os soldados eram instruídos para efectuarem o disparo como se dedilhassem uma guitarra (só usando a ponta do dedo) e dispararem a arma apoiada no chão, prendendo-se com um dos pés a bandoleira e colocando a arma no ângulo pretendido. 

No entanto, em acção, a maior parte dos atiradores que me acompanhavam e que utilizavam o dilagrama, efectuaram os disparos do mesmo ao ombro, sem quaisquer problemas.


Dilagrama M26A1

Características desta arma:

TIPO: 
Dispositivo de lançamento de granada defensiva através de uma espingarda
ORIGEM: EUAPESO: 455 g

EXPLOSIVO: 
Composição B

FRAGMENTAÇÃO: 
Espiral de aço em forma de barril no interior da granada, bem como o restante conjunto, fabricado em metal.

CAPACIDADE: 
Acção efectiva nos 15 m em redor do local da explosão.

ALCANCE MÀXIMO: 
160 m
Durante o ano de 1973, surgiu outro tipo de dispositivo (ao que creio, o FRG-RFL 40BT, de origem belga), em que a granada não era acoplada, mas fazia parte integrante do conjunto (tipo bola), no calibre de 40 mm, rebentando por impacto e, dado ser um conjunto mais leve que o conjunto anterior (355 g), o seu alcance era sensivelmente o dobro (350 m), lançando cerca de 300 fragmentos, em 30 m em volta do local da explosão. (***)


PS  - No caso dos dilagramas e no meu tempo, os nossos Gr Comb usavam-no muito porque percebemos que os rebentamentos eram mais eficazes numa reacção a uma emboscada do que propriamente os tiros de G3.

Os elementos que transportavam os dilagramas usavam um carregador só com munições apropriadas, devidamente identificado com uma fita de cor berrante (amarelo ou vermelho) e nunca, nunca, usavam só uma munição para atirar um dila e depois tinham a seguir bala real.

Os lançamentos eram efectuados ao ombro, com arma a 45%, e depois do disparo, contando rapidamente até 12/15, dava-se o rebentamento. (****)
___________

Notas do editor:



(...) No dia 15 de Julho de 1972 fui nadar e comer ostras para Quinhamel. À noite escrevi:

“No meu Batalhão e pertencentes à CCS,  quando procediam ao lançamento de um Dilagrama (Dispositivo de lançar granadas de mão com a G 3) a mesma rebentou e morreram um Alferes e um Soldado. Disseram-me que o Alferes quando viu a granada se atirou para cima dela se não teriam morrido muitos mais. Lamento muito dar-te notícias destas”.

Nem há um mês estava em solo guineense. Começavam as tragédias com o meu batalhão. (...)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9110: Se bem me lembro... O bau de memórias do Zé Ferraz (9): E aqui estou eu hoje vivo...

1. Texto do Zé Ferraz, português radicado nos EUA desde 1970 (vive atualmente em Austin, Texas), ex-Fur Mil Op Esp, CART 1746, Xime, 1969; CCS/QG, Bissau, 1969/70):   

Este Baú parece que não tem fundo... Outra memória suscitada por um comentário anterior [ respeitante à Op Lança Afiada, em que a CART 1746 foi comandada pelo Cap Neto na ausência do Cap Vaz] (*)...

Numa dessa operações de inflitração em território inimigo,  [ no subsector do Xime,] com o propósito de destruição dos seus meios de vida, entrámos por uma tabanca em que as cubatas eram de paredes redondas com um poste central que suportava o tecto, e à volta do qual havia uma parede cilíndrica que formava um silo para a bianda [, arroz]...

Descubri que,  se deitasse um granada para dentro desse silo quando explodia rebentava com o poste mestre do tecto e o peso deste,  sem suporte, arrazava a cubata. Tinha assim destruído várias cubatas, usando granadas ofensivas.

Entro nesta para fazer o mesmo e dei-me conta que só tinha granadas defensivas. Por outra parte,  do meu treino em Lamego [ no curso de operações especiais], estava bem vinculado  na minha cabeça o aviso "No caias em rotina, a rotina mata".

Ora uma explicação: o manual diz "ponha a granada na mão com a alavanca contra a chave da mão,  puxe o pino [ cavilha,] e lance a granada"... Nunca usei essa forma: agarrava na granada contra a palma da mão e a alavanca com os dedos,  puxava o pino e lançava-a então; desta forma atirava com muito mellhor direcção e efeito de foiçada.

Nessa particular altura decidi lançar essa granada defensiva como dizia o manual de instrução... Agarro na granada,  puxo o pino [ cavilha,] e,  quando abri a mão para a soltar dentro do silo,  a força da mola da alavanca contra a palma da mão fez com que a granada em vez de entrar no silo fosse bater contra a parede e cair-me aos pés...

Dizem que frente à morte [o filme da] nossa vida instantaneamente passa pela mente ... Recordo-me,  com plena claridade,  desse momento...3 segundos e morte!...

Voei,  aterrei fora de porta e, bumba,  explode a granada, e eu aqui estou hoje,  vivo!...

Acredito em milagres... Nunca falei disto com ninguém. Nesse dia nasci outra vez e nasci outra vez quando ingressei,  em 1991,  na mais antiga faternidade de homens de pensamento livre.

Um forte abraço. Zé
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Nota do editor:

Último poste da série >Guiné 63/74 - P9106: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (8): O meu colega do Liceu do Oeiras que fui encontrar em Mansambo e em Bambadinca...

quinta-feira, 18 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6011: Controvérsias (68): Ainda a tragédia de Fajonquito... Como se descavilhavam duas granadas de mão? (António J. Pereira da Costa)

1. Mensagem de António J. Pereira da Costa, com data de 15 do corrente:

Assunto - Fajonquito (*)

Camarada

Aqui te envio mais uma consideração posterior.

Para descavilhar duas granadas-de-mão será necessário descavilhar uma, usando, obviamente, as duas mãos. A segunda tem de ser descavilhada usando apenas uma mão.
Como te recordas, as cavilhas tinham uma certa dificuldade em sair, pelo que não podíamos usar os dentes como os americanos faziam (pelo menos nos filmes de guerra do nosso tempo de adolescência) (**). A solução que me parece mais directa será recorrer a um prego, cabide bem fixo, gancho ou objecto similar, para o que bastava pendurar-lhe a granada e puxar violentamente com uma só mão.
Aqui surgem-me dúvidas acerca de uma possível premeditação, o que remete para o tal diferendo cujas características se nos escapam. E o 1º Sargento de quem se fala e que se afastou? Porquê? Será que previu o que ia acontecer? Como e porquê? E os dois rangers que também morreram? Estavam ao pé do capitão ou apareceram para apaziguar? Se estavam, porquê?

O soldado não teve em linha de conta que matava também dois homens que não tinham que ver com a sua situação. Daqui podemos começar a ver a necessidade que ele tinha de chamar a atenção do mundo que o cercava para a sua desgraça. O que lhe interessava era desistir, deixando a sua assinatura e o eco do seu acto, tanto mais forte quanto mais pessoas levasse com ele. Creio que seria a sua recusa ao Sistema. Será que os rangers tiveram tempo de intervir e tentar qualquer coisa ou o suicida nem sequer lhes deu tempo para isso, tal era o vigor da sua decisão?

Como vês, há mais dúvidas do que certezas. Por isso creio que é necessário investigar bem. Talvez localizando alguém da companhia: o médico, o furriel Enfermeiro, os maqueiros ou o próprio sargento…

Um abraço do

António Costa
(Cor Art na Reserva,
na efectividade de serviço,
Guiné, 1972/74)

PS - Estou a escrever mais uma história, esta sobre a evacuação de Cacoca. [para a série A Minha Guerra a Petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa)...]
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 15 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5997: Controvérsias (67): A Páscoa Sangrenta de Fajonquito, em 2 de Abril de 1972 (António Costa)

(**) A propósito, vd no You Tube , o vídeo (1' 00'') Hand grenades are not for tourists... Parafraseando este título, também se poderia dizer que as granadas de mão não eram (ou não deviam ser) para soldados básicos...

A imagem que reproduzimos, de uma granada defensiva M26A1 m/963, foi retirada, com a devida vénia, do blogue COT 1 > 1ª CART 6323 - Os Guerreiros da Paz... ("O BART 6323 foi o primeiro a partir depois de 25 de Abril de 1974 para Angola. E certamente o primeiro a partir com mentalidade diferente dos seus antecessores. Isto é: uma mentalidade mais pacífica do que bélica").