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sábado, 18 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24860: (In)citações (259): Depois da "mina A/P" que me atirou, em 29/10/2023, para um leito de hospital, com o fémur partido, estou de regresso à vida, à luta, a escrita, enquanto a a recuperação prossegue (José Saúde, Beja)


Beja > Hospital distrital > Outubro de 2023  > O Zé Saúde no "estaleiro!... E a agradecer aos amigos e camaradas que se têm interessado pelo seu estado de saúde... Ele, um "ranger", de rija têmpera, está de volta à vida, à luta, à escrita...

Foto (e legenda): © José Saúde (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego / Gabu, 1973/74), natural da Aldeia Nova de São Bento , Serpa; a viver en Beja; jornalista e escritor; tem página no Facebook):

Data - quarta, 8/11/2023, 17:30

Assunto - Recortes do meu acidente

Camaradas,

Eis o franco e imprescindível ânimo deste antigo combatente por terras vermelhas da Guiné, cotejando, por isso, que um impedimento casual jamais derrubará este vosso velho camarada. Partirei um dia para um outro lugar, mas até lá vou passando por entre ventos e tempestades e não abicando de princípios legados pelos meus antepassados.

Aliás, o percurso da minha vida até ao dia 27 de julho de 2006, data esta encaixada com a visita do meu AVC, um mal que veio para ficar, instalando-se “envergonhadamente” neste já débil corpinho, um corpinho que tinha sido até aí pautado por um viver isento de “malazengas”, sendo que no presente foi o rebentar de uma “granada antipessoal” que me atirou para o leito hospitalar.

Neste profícuo caminhar ao cimo do planeta chamado Terra, e sempre com a missão no exercer o equilíbrio físico que a vida obviamente nos impõe, aconteceu que fui apanhado numa “emboscada” que me levou ao caminhar sobre uma ténue linha, mas onde ânsia do momento supera o nosso evidente acreditar.

Aqui vos deixo camaradas um texto que oportunamente subscrevi, tendo dele recebido centenas de profícuas opiniões.

Uf, que horror…

E o inesperado, um acontecimento sempre distante dos nossos pensamentos, aconteceu! Domingo, 29 de outubro de 2023, cerca das 11h30, dirigia-me a um encontro/convívio com amigos, porém, ao descer do carro cai e desde logo me apercebi que o impacto com a velha pedra lusitana me teria provocado irreparáveis danos.

Mesmo assim, a minha força física e mental, levou-me a pedir auxílio, sendo então socorrido por um amigo que me transportou para o interior do carro, seguindo-se a condução, não obstante as dores sentidas, para junto à residência, onde habito, casa própria do meu genro, Paulo Paixão e da minha filha Rita Saúde, sucedendo o meu pedido de socorro para o 112. Aí, e sem me poder mexer, acompanhou-me o meu cunhado, Joaquim Lança.

Depois telefonei à minha filha Marta e as preocupações logo se fizeram sentir, ouviu-se o sinal de alerta. Veio a ida para o hospital, o internamento e a operação ao fémur. Tive alta na passada sexta-feira, encontro-me em convalescença e aguardam-me dias de uma certeza recuperação.

Camaradas, a recuperação prossegue.
José Saúde
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24570: (In)citações (258): Reflexão extemporânea entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

sábado, 12 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24550: Manuscrito(s) (Luís Graça) (226): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVB: Enfermagem, Misoginia e Sexismo


Hôtel-Dieu de Paris > c. 1500 > O hospital como "locus religiosus", "pia causa" e "locus infectuas" >  Gravura de autor desconhecido. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.

Legenda: English: Triptych showing the Hôtel Dieu in Paris, about ad 1500. The comparatively well patients (on the right) were separated from the very ill (on the left) | Français : Hôtel-Dieu de Paris. Armes de Jean V de Bueil et armes de France.







O hospital cristão medieval começou por ser simultaneamente: (i)  um locus religiosusdo ponto de vista eclesiástico, inspirado na arquitetura da casa de  Deus ("hòtel-Dieu", em francès), onde se acolhem "doentes pobres";  (ii) uma pia causa,  do ponto de vista canónico, gozando por isso de um certo número de direitos e privilégios: isenção de taxas, direito a fazer os enterros (jus funerandi), direito de asilo, etc; e, por fim, um locus infectus (e ontinuou a sê-lo, até muito tarde, até meados do séc. XIX), isto é,  um lugar de infecção e de propagação de doenças: o universo hospitalar era concentracionário e a morbimortalidade elevada, tanto entre a população internada como entre o pessoal. (Os ricos e poderosos eram tratados em casa.)

Neste tríptico, podem-se ver as armas de Jean V de Bueil e as armas de France (pia causa). o altar com a cruz ao centro e imagens de santos (locus religiosus) e a promiscuidade e falta de higiene das enfermarias (locus infectus): à direita as irmãs (freiras, enfermeiras) cuidam dos doentes, fazem-lhes a higiene,  servem-lhe  as refeições; e, â esquerda, no primeiro plano, amortalham os cadáveres dos doentes mortos, enquanto, em segundo plano, um padre administra a extrema unção a um moribundo.

 
1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado, uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...


Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parte da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos os nossos leitores a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recente de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade da publicação deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou terão, dependerá das "leituras" e dos "leitores"...

São textos com mais de 20 anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacência (e sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores, esperamos, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que lhe estão próximas.

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": vai fazer  20 anos (!) em 23 de abril de 2024 (se lá chegar, se lá chegarmos).  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG



Luís Graça (2000)

Enfermagem, Misoginia e Sexismo

Grande parte do pessoal que prestava cuidados básicos aos doentes, pertencia originariamente a ordens religiosas e militares ou a confrarias e irmandades. Ao longo do tempo surgem referências a enfermeiros maiores e enfermeiros pequenos (nomeadamente no Regimento do Hospital Real de Todos os Santos, de 1504), hospitaleiros e hospitaleiras, irmãos e irmãs, religiosos e religiosas, enfermeiras ou simplesmente mulheres, servas ou serventes.

A enfermagem está historicamente associada ao desenvolvimento do monaquismo, tal como o ensino e a prática da medicina. No mínimo, cada mosteiro tinha já:
  • Uma enfermaria (infirmitorium) para tratamento dos monges que adoeciam;
  • Um irmão enfermeiro encarregue de prestar os cuidados básicos aos doentes;
  • Uma farmácia (armarium pigmentorium);

E inclusive um pequeno jardim botânico, com lotes para cultivo de plantas medicinais (tal como consta, por exemplo, do projecto arquitectónico da abadia beneditina de Sankt Gallen (em inglês, Saint Gall), por volta de 825, representando o modelo ideal de um mosteiro da época carolíngia, de acordo com as prescrições da reforma de Benedicto de Aniane e do sínodo de Inden).

Por outro lado, nunca ou raramente há uma referência, em documentos escritos da época, que vai da Idade Média ao fim do Antigo Regime, à figura da enfermeira religiosa (ou laica) fora do contexto hospitalar, emparceirando-os por exemplo com os outros praticantes de artes médicas que, com ou sem autorização do físico-mor ou do cirugião-mor, pululavam pelas cidades e aldeias: curandeiros, algebristas (ou endireitas), emplastradeiras, barbeiros-sangradores, dentistas, mezinheiros, parteiras e aparadeiras, cristaleiras e cristaleiros (ou seringas), abafadores (que tinham a sinistra função de apressar a morte em casos de doença terminal, usando para o efeito uma almofada), etc.

Muito simplesmente, não se fala do enfermeiro(a) como alguém que domina uma técnica ou um saber-fazer específico. Dele(a) se espera apenas que trate dos doentes com muita paciência, diligência e caridade. Dele(a) se exige apenas que seja homem (ou mulher), "caridoso, e de boa condição, e sem escândalo" (de acordo com o Regimento do HRTS, de 1504). Havia já, contudo, um esboço de diferenciação do pessoal de enfermagem, estando os cuidados de higiene e limpeza atribuídos aos enfermeiros pequenos (Graça 1994).

Contrariamente à medicina e à cirurgia, a enfermagem não constituía propriamente um ofício de arte aprovada para cujo exercício fosse necessário a competente autorização do físico-mor ou do cirurgião-mor do reino. Por outro lado, e até praticamente ao Século XX, não é reconhecida a especificidade dos cuidados de enfermagem.

Da leitura dos regimentos hospitalares (por ex., Hospital Termal das Caldas da Rainha, Hospital Real de Todos os Santos), depreende-se que o conteúdo funcional da enfermagem se resume, no essencial, aos cuidados básicos a ministrar aos doentes, para além das tarefas de limpeza e higiene das enfermarias. Em português vernáculo, a sua principal função é "o carrego dos doentes", o que implicava nomeadamente (Graça, 1996):
  • Acompanhar as visitas diárias feitas pelo físico ou cirurgião à respectiva enfermaria;
  • Aplicar os tratamentos prescritos pelo físico ou cirurgião;
  • Chamar o (e dar assistência ao) barbeiro-sangrador;
  • Levar os doentes às costas para os banhos e lavá-los (no caso do hospital termal);
  • Transportar as refeições às enfermarias;
  • Varrer e limpar as enfermarias;
  • Fazer as camas e mudar a roupa;
  • Fazer a vigília dos doentes, incluindo à noite;
  • Chamar o capelão para a extrema unção;
  • Amortalhar os cadáveres;
  • Despejar e limpar diariamente os tanques dos banhos (no caso do hospital termal):
  • Manter limpas as enfermarias;
  • Manter limpos os urinóis e os bacios;
  • Manter limpos os púcaros dos xaropes e purgas, etc.

A enfermagem é provavelmente o mais antigo dos deveres — a seguir à reprodução — imposto às mulheres nas sociedades humanas patriarcais. Há cem anos atrás, iria tornar-se, contudo, a primeira profissão feminina, organizada pelas próprias mulheres.

Afastadas do sacerdócio, as mulheres nem por isso deixaram de desempenhar um papel de relevo, embora discreto, na prestação de cuidados aos doentes pobres, primeiro como diaconisas, na Igreja do Oriente, e depois como freiras no Ocidente.

Apesar da tendência para a secularização do pessoal que prestava cuidados básicos aos enfermos, o termo monástico irmã (ou irmãzinha) vai manter-se como sinónimo da mulher que está encarregada de uma enfermaria (Quadro XIV). 

Umas vezes era nomeada de entre o pessoal de enfermagem ou de assistência aos doentes; noutros era recrutada de entre as mulheres domésticas da classe alta. A falta de qualificação e a negligência quer das matronas quer das irmãs em relação ao cumprimento dos seus deveres estão suficientemente documentadas em países como a Inglaterra (Graça, 1996).

Na realidade, quem prestava os cuidados técnicos de enfermagem (como diríamos hoje) não eram as nurses, mas os estudantes de medicina. Embora lhes fosse exigido, como requisito mínimo, o saber ler e escrever, as administrações hospitalares da época tinham que se contentar com as mulheres analfabetas, por dificuldades de recutamento de pessoal. Em suma, tratava-se de uma ocupação indigna de uma respectable woman (isto é, indigna de uma senhora)

Não admira, por isso, que o seu comportamento fosse muitas vezes reprovável e reprovado. Os livros de registo da maior parte dos hospitais ingleses da época dão-nos conta da impressionante frequência de casos de enfermeiras que eram admoestadas ou demitidas por alcoolismo, insolência, falta de disciplina, absentismo, roubo ou extorsão praticada na pessoa dos doentes.

Embora se façam alguns piedosos esforços para melhorar a qualidade dos cuidados de enfermagem, a situação não se alterou, no essencial, na primeira metade do Século XIX. Há todavia uma melhor compreensão humana dos problemas que tradicionalmente enfrentava a enfermagem, compreensão essa a que não será estranho o efeito de halo provocado pelo exemplo heróico e pioneiro de Florence Nightingale (1820-1910).

Mesmo nos próprios provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa, não há referência às irmãs de caridade (a não ser enquanto seres assexuados). Em geral, os frades são mais zurzidos do que as freiras nestas representações sociais estereotipadas que são os provérbios, embora o tradicional anticlericalismo também aqui esteja mesclado de atitudes misóginas e sexistas (Quadro XIV):
  • "Frade e mulher - duas garras do diabo";
  • "Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira";
  • "Freiras e frieiras, é coçá-las e deixá-las";
  • "Pregar a padres, confessar freiras e expulsar cães é perder o tempo e o trabalho";
  • "Quando a abadessa é careca as freiras são pouco encabeladas";
  • "Quanto mais beata mais coirata".

Sobre a mulher, há inúmeros provérbios, todos eles reveladores de uma mentalidade predadora e doentia, alimentada pelo mito judaico-cristão do pecado original, e que vê nela um ser desprezível mas diabólico:
  • "Da cintura para baixo não há mulher feia";
  • "De má mulher te guarda e da boa não fies nada";
  • "Debaixo da manta tanto faz a preta como a branca";
  • "Frade e mulher - duas garras do diabo";
  • "Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira";
  • "Mulher beata, mulher velhaca";
  • "Mulher doente, mulher para sempre";
  • "Mulher não se enceleira: ou se casa ou vai ser freira";
  • "Mulher se queixa, mulher se dói, enferma a mulher quando ela quer".

Em contrap
artida, são raras as referências às enfermeiras ou à enfermagem no feminino:
  • "Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher";
  • "Foge da mulher que sabe latim e da burra que faz ‘im’…";
  • "Guarde-vos Deus de moça adivinha e de mulher latina";
  • "Há-de ser meu herdeiro quem for meu enfermeiro";
  • "Marta piedosa, mastiga o ovo aos enfermos";
  • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras".
O mito da enfermeira como anjo da guarda à cabeceira do doente, esse, vai ser uma construção social do romantismo inglês e da sociedade vitoriana, ao fazer de Florence Nightingale "the lady with the lamp" ou "the ministering angel". Na literatura portuguesa do Séc. XIX, vamos encontrar ecos desta heroína romântica em personagens como a Margarida, a mulher-anjo de As Pupilas do Senhor Reitor (Júlio Dinis, 1863):a

"Durante a moléstia [ que atingiu a sua madrasta, a mãe de Clara ], foi Margarida desvelada e incansável enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos, expressões inequívocas da aversão que nunca deixara de sentir por ela. A heróica rapariga não afrouxava por isso na afectuosa caridade com que a tratava" (Dinis, 1986. 103. Itálicos meus).

Objecto

Provérbio

Freira     Frade

  • "Amores de freira, flores de amendoeira, cedo vêm e pouco duram"

  • "Antes casada arrependida que freira aborrecida"

  • "Em caso de necessidade casa a freira com o frade"

  • "Em traseira de mula e dianteira de frade ninguém se fie"

  • "Falas de santo, unhadas de gato"

  • "Freiras e frieiras, é coçá-las e deixá-las"

  • "Quando a abadessa é careca as freiras são pouco encabeladas"

  • "Quanto mais beata mais coirata"

  • "Para o tempo que hei-de estar no convento cago-lhe e mijo-lhe dentro"

  • "Por falta de um frade não vai a terro o convento"

  • "Pregar a padres, confessar freiras e expulsar cães é perder o tempo e o trabalho"

Mulher

  • " A mulher e a mula o pau as cura"

  • "A raposa tem sete manhas e a mulher a manha de sete raposas"

  • "Até aos vinte, evita a mulher; depois dos quarenta, foge dela"

  • "Com mulher louca, andem as mãos e cale-se a boca"

  • "Da cintura para baixo não há mulher feia"

  • "De má mulher te guarda e da boa não fies nada" (Séc. XVI)

  • "Debaixo da manta tanto faz a preta como a branca"

  • "Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher"

  • "Dia de Santo André, quem não tem porcos mata a mulher"

  • "Foge da mulher que sabe latim e da burra que faz ‘im’…"

  • "Frade e mulher - duas garras do diabo"

  • "Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira"

  • "Hábito de frade e saia de mulher chega onde quer"

  • "Guarda-te do boi pela frente, do burro por detrás e da mulher por todos os lados"

  • "Guarde-vos Deus de moça adivinha e de mulher latina" (Séc.XVI)

  • "Mulher beata, mulher velhaca"

  • "Mulher doente, mulher para sempre"

  • "Mulher não se enceleira: ou se casa ou vai ser freira"

  • "Mulher se queixa, mulher se dói, enferma a mulher quando ela quer"

  • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"

  • "O homem deve cheirar a pólvora e a mulher a incenso"

  • "Para perder a mulher e um tostão, a maior perda é a do dinheiro"

  • "Para se encontrar o Diabo não se precisa sair de casa"

  • "Três coisas mudam o homem: a mulher, o estudo e o vinho"

  • "Vaca triste e pançuda não presta e não muda"

Enfermeira/o Irmã/ão

  • "Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher"

  • "Há-de ser meu herdeiro quem for meu enfermeiro"

  • "Marta piedosa, mastiga o ovo aos enfermos"


(Bibliografia a apresentar no final da série)

(Continua)
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4 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

Hieronymus Bosch 053 detail

Detail from "The Extraction of the Stone of Madness", a painting by Hieronymus Bosch depicting trepanation (c.1488–1516) / Uma representação da trepanação: pormenor de "A Extração da Pedra da Loucura", quadro de Jerónimo Boch (c. 1488-1516), com a representação da trepanação. Coleção do Museu do Prado. Public domain / domínio público, Wikimedia Commons


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por razões familiares, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos se revele de algum interesse e proveito. Comentários e sugestões serão bem vindos".





4. Hospital, Pobreza e Caridade 



4.4. "Quando o pobre come frango, um dos dois está doente"

O hospital cristão medieval começou por ser simultaneamente um locus religiosus do ponto de vista eclesiástico e uma pia causa do ponto de vista canónico, gozando por isso de um certo número de direitos e privilégios: isenção de taxas, direito a fazer os enterros (jus funerandi), direito de asilo, etc. (Rosen, 1963; Steudler, 1974; Graça, 1996).

Também na estrutura do financiamento do hospital medieval era patente a sua origem como pia causa e a natureza caritativa da sua missão:

  • De facto, as suas receitas provinham exclusivamente da caridade dos ricos e poderosos;
  • O seu património original resultava, muitas vezes, do remanescente de uma herança, doada em vida ou à hora da morte, por um cristão, leigo ou religioso, que se sentia em dívida para com Deus;
  • O essencial das receitas do hospital, quer em espécie quer em géneros, provinha do seu património fundiário (alugueres de prédios urbanos, foros e rendas de prédios rústicos, exploração agrícola directa, etc.);
  • Quanto aos custos de hospitalização, eram sobretudo representados pelas despesas com a alimentação (mais de 50%);
  • Os encargos com o pessoal não ultrapassavam os 15%, enquanto as despesas com os produtos farmacêuticos não iam além dos 3% (Steudler, 1974; Rochaix, 1996; Graça, 1996).

Alguns dados estatísticos sobre a assistência hospitalar de há 150 anos são altamente reveladores da permanência, durante séculos, de certas características estruturais do hospital cristão medieval. De acordo com o Relatório Wateville (1851, cit. por Rochaix, 1966), havia em França, em 1847, no final da Restauração:

  • 1270 estabelecimentos, dos quais 337 eram classificados como hospitais, 199 como hospícios e 734 como hospitais-hospícios;
  • O número de camas elevava-se a mais de 118 mil, sendo 14% reservadas aos militares e pouco mais de 4% aos doentes que tinham possibilidades de pagar os custos de hospitalização; a grande maioria das camas destinavam-se, pois, a doentes indigentes (34,3%) ou idosos (47,4%);
  • O número de entradas nos estabelecimentos hospitalares foi de 486 mil, numa população estimada em 36 milhões (em 1850, segundo Duby, 1995. 651), o que daria então 13.5 internamentos por cada mil habitantes;
  • Em contrapartida, a duração média de internamento hospitalar era alta, embora variando conforme o género e a idade: 48 dias para os homens; 64 para as mulheres; e 70 no caso das crianças.

Não obstante o furacão revolucionário que varreu a França entre 1789 e 1799, a estrutura orçamental do hospital não tinha mudado muito em 1847, quando comparada com a do final do Ancién Régime.

Do lado das despesas (Quadro XII, em anexo), a alimentação continuava a constituir a principal rubrica e o grosso da fatia dos custos de internamento (56%). O pão (43%), a carne (25%), o vinho e outras bebidas (25%) praticamente esgotavam esta rubrica.

Em segundo lugar, mas apenas com 14% do total, surgiam os encargos com o pessoal. Por categorias destacava-se o pessoal administrativo, seguramente mais bem pago que as religiosas que constituíam, só por si, quase metade dos efectivos. A fraca proporção dos ordenados dos médicos e cirurgiões (menos de 1.9% do total geral dos custos de hospitalização) sugere que o seu número e a sua importância, no contexto hospitalar de há 150 anos atrás, eram ainda muito reduzidos.

Ainda em relação aos custos de pessoal, há que ter em conta a persistência da tradição do pagamento em géneros, particularmente sob a forma de fornecimento gratuito de alimentação e alojamento ao pessoal. Por não terem uma expressão monetária, estes encargos não eram contabilizados, aparecendo diluídos noutras rubricas. 

O risco de viés estatístico é, pois, óbvio, pelo que em rigor teríamos que ter em conta uma percentagem mais elevada de custos salariais (directos e indirectos), talvez da ordem dos 20% a 25%, como sugere Rochaix, para o período correspondente ao final do Ancien Régime (1996. 43).

Em suma, os custos de hospitalização por doente não chegavam a 82 francos franceses, dos quais 46 respeitavam à alimentação (Quadro XIII ). Só em pão gastava-se, em média, 20 francos por doente. Com a aquisição e a lavagem de roupa, mais 6 francos, enquanto o aquecimento ficava em 5 francos e meio e a iluminação em 1 franco. Estes valores dão-nos uma pálida ideia do que seria o terrível desconforto dos doentes naquela época.

Compare-se, por fim, o custo médio, por doente, do serviço religioso (0,7 francos) com a medicação (3,1 francos) e os honorários do pessoal médico (1,7 francos). 

No essencial, e independentemente de eventuais variações no custo por doente conforme o tipo de estabelecimento, estatuto do doente e região, o hospital no final da primeira metade do Séc. XIX em muito pouco se distinguia ainda do hospital da Idade Média, continuando a privilegiar a sua função de acolhimento de doentes pobres (que representavam mais de 4/5 da sua clientela).

Quadro XIII - Custo da hospitalização em França, por doente e por rubrica de despesa (1847)  

Unidade: Franco Francês  
 

Fonte: Adapt. de Rochaix (1996)


A associação do hospital com a prisão e, portanto, a sua natureza de instituição concentraccionária e totalitária, tem as suas raízes na dolorosa experiência da população europeia mais miserável e socialmente excluída (Quadro X, em anexo):

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital";
  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos".
  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"
  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Durante muito tempo, aquilo a que eufemisticamente se vai chamar no Séc. XIX a assistência pública, tem duas funções distintas:

  • Uma função médica e hospitalar (prestação de cuidados aos doentes pobres);
  • E uma função de controlo social de todas as formas de déviance e da exclusão (pestilência, loucura, pecado, deficiência, pobreza, marginalidade, criminalidade, vagabundagem, prostituição, orfandade, velhice, desemprego, mendicidade).
É o início da intervenção do Estado, conferindo ao hospital, a coberto da caridade, uma função claramente policial de controlo de grupos da população potencialmente perigosos. 

Nomeadamente em França, é criado, em 1656, por Luís XIV o  Hôpital Géneral,Hospital Geral, com o objectivo explícito de impedir, nas principais cidades, "a mendicidade e a vagabundagem como fontes de todas desordens" (Foucault, 1972. 75). Trata-se do grand renfermement, um "estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: a 3ª ordem da repressão" (61).

Á semelhança do Hôpital Géneral, os ingleses tinham criado as workhouses, no âmbito da famigerada Lei dos Pobres (promulgada em 19 de Dezembro de 1601, pela Rainha Isabel I). 

 O seu estatuto tinha sido definido por Carlos II em 1670 e no Séc. XIX eram conhecidas como as Bastilhas de Chadwick (!), numa alusão à conhecida fortaleza-prisão de Paris, por um lado, e ao papel (controverso) do arquitecto do moderno sanitarismo, E. Chadwick (1800-1890): A primeira de todas remontava ao ano de 1697 (Bristol).

Segundo o historiador polaco B. Geremek (no seu livro sugestivamente intitulado "A piedade e a forca: História da miséria e da caridade na Europa", 1995), "aquilo que se propunha o Hospital Geral, com a sua política de enclausuramento e de trabalho obrigatório, era pois a afirmação do ethos do trabalho: assegurar a todo o custo - pelo terror, pela ameaça e pela violência - o respeito geral de tal princípio. O espectáculo da repressão que a assistência social dos Tempos Modernos integra nos seus métodos de intervenção desempenha uma função ideológica precisa" (Geremek, 1995. 261).

A clientela hospitalar seria, pois, constituída por toda a espécie de excluídos sociais, nomeadamente no Ancien Régime, vivendo amontoados, em total promiscuidade, em estabelecimentos que primavam pela mais completa e absoluta ausência de condições de higiene e de segurança. 

Além disso, os incêndios, as inundações ou outras catástrofes eram frequentes: por ex., o nosso Hospital de Todos os Santos sofreu nada menos do que três grandes incêndios, entre 1504 e 1755 (Graça, 1994).


4.5. "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"


Além de um locus religiosus e de uma pia causa, o hospital até ao fim ao Ancien Régime continuara a ser um locus infectus, um lugar de infecção e de propagação de doenças. O universo hospitalar era concentracionário e a mortalidade elevada, tanto entre a população internada como entre o pessoal.

Não havia, por outro lado, nenhuma distinção entre o doente mental e o criminoso, sendo o louco tratado como um animal durante toda a Idade Média até praticamente ao Séc. XIX.: 

"Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro", diz o provérbio, já que "quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce" (Quadro X) (*).

A fundação da psiquiatria data de 1798 com a distinção que o francês Ph. Pinel (1745-1826) fará entre loucos e criminosos, na sequência do ideário da Revolução Francesa. O mesmo Pinel iria também dirigir a primeira escola psiquiátrica em França (Sournia, 1995. 228).

É na primeira metade do Séc. XIX que surge o manicómio, o precursor do moderno hospital psiquiátrico (entre nós, a criação do manicómio de Rilhafolhes data de 1848). 

Discípulo de Pinel, J. Esquirol (1772-1840) será o inspirador, em 1838, da lei francesa, considerada exemplar para a época, "que institui a protecção jurídica dos alienados, até aí submetidos com demasiada frequência a internamentos excessivos e a tratamentos desumanos" (Sournia, 1995. 277).

Também entre nós, com o triunfo das ideias liberais, surgem as primeiras denúncias da condição infra-humana em que viviam os doentes mentais ("doidos, lunáticos, alienados", como eram então rotulados).

De entre os médicos que se debruçam e se preocupam com esse problema, destaca-se o nome de Clemente Bizarro (1805-1860) que, em 1836, em sessão da Sociedade das Ciências Médicas, chama a atenção para "os insalubres, os pavorosos, e os acanhados recintos onde confusamente estão misturados e em contacto mais de duzentos alienados de manias tão opostas e que por isso exigem cuidados tão diversos" (cit. por Mira, 1947. 420).

Bizarro referia-se mais concretamente à Enfermaria de S. João de Deus do Hospital de S. José onde se amontavam sobretudo doentes do sexo feminino:

 "Doidas nuas e desgrenhadas, entregues a todos os seus desvarios, gritando e gesticulando, encerradas às vezes num cubículo escuro e infecto onde mal podem obter um feixe de palha em que possam revolver-se; um local de todo apertadíssimo, com escassa luz, imprópria ventilação, e nele jazendo perto de 150 infelizes alienados com o diminuto número de três empregadas, que tantas são as destinadas ao seus serviço" (citado por Costa, 1986).

Em 1837, Bizarro pedia a criação de um hospício orientado especificamente para o acolhimento e tratamento de doentes mentais, o que veio a acontecer, dez anos mais tarde: de facto, graças ao legado de um benemérito, é criada em 14 de Novembro de 1848, o primeiro estabelecimento para alienados.


Alguns anos depois, o manicómio de Rilhafolhes alberga já mais de meio milhar de doentes; mais tarde, será seu director o médico Miguel Bombarda (1851-1910), o qual além de ampliar e modernizar o estebelecimento, lutou vigorosamente contra os métodos repressivos então ainda em uso (o "babeiro de cola", a "coleira", o "berço-prisão", o "colete de forças", etc.);

Em 1948, passou a chamar-se Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda.

Em 1883, entra em funcionamento o Hospital de Conde de Ferreira, pertencente à Misericórdia do Porto, e que foi construído com o remanescente da herança de J.F. Ferreira (1782-1866). Este último, depois de enriquecer no Brasil e em África, iria tornar-se um dos grandes filantropos do reinado de D. Maria II.

O Hosputal Conde de Ferreira, para o qual transitaram os doentes mentais, até então encerrados como animais nos porões do Hospital de Santo António, igualmente sob administração da Misericórdia do Porto, irá tornar-se a escola dos grandes "alienistas" do nosso Séc. XIX: A. M. Sena, Urbano Peixoto, Magalhães de Lemos e Júlio de Matos, entre outros (Mira, 1947).

É a época do desenvolvimento da neurologia e psiquiatria (ou melhor, da neuropsiquiatria), o qual decorre, em grande parte, dos progressos realizados em disciplinas fundamentais como a anatomia, a fisiologia e a patologia. As funções do cérebro e do sistema nervoso e o seu papel na saúde/doença começam a ser largamente objecto de investigação por homens como os franceses G. Duchenne (1806-1875), J. M. Charcot (1825-1893), J. Déjerine (1849-1917) e sua mulher, P. Marie (1853-1940) (uma das primeiras mulheres médicas), J. Babinsky (1857-1922), e o inglês J. H.Jackson (1835-1911) (Rosen, 1990; Sournia, 1995).

A fundação da neuropsiquiatria é atribuída ao francês J. M. Charcot, com a publicação em 1873 do seu Curso sobre as doenças do sistema nervoso. Posteriormente, o alemão E. Kraeppelin (1856-1926) vai classificar as doenças mentais.

Voltando à França e ao fim do Ancien Régime, não admira a grande desconfiança (se não mesmo a suspeição e o repúdio) com que a instituição hospitalar será tratada no período revolucionário, já que ela é sinónimo da caridade mais abjecta. Como dirá Barère, no relatório feito em nome do Comité de Salut Publique:

"Quanto mais esmolas, mais hospitais. Tal é o objectivo para o qual a Convenção deve caminhar sem cessar, porque estas duas palavras devem ser riscadas do vocabulário republicano " (cit. por Rochaix, 1995. 59).

Em contrapartida, em Portugal será o Estado Novo, em pleno Séc. XX, a recuperar a ideologia do acto misericordioso e a sobrepor a caridade individual à solidariedade social (Caixa 1, em anexo).






Caixa 1 - A Caridade

Perto da minha casa, mora, sòzinho um velho doente, que todo o dia treme e pouco fala.

Como não tem família, são os vizinhos   que o trazem ao colo e o sentam à porta  nos dias de sol.

Chora sem lhe fazerem mal e sem dizer porquê.

Gosto muito deste pobrezinho. Quando lhe levo alguma coisa que o consola, vou tão depressa que nem sinto os pés a tocar o chão.

Ando sempre contente nos dias em que posso visitá-lo e dar-lhe esmola. Não há alegria como a de fazer bem.

Nosso Senhor ensinou que a maior de todas as virtudes é a caridade.

Fonte: O Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 62


(Bibliografia a apresentar no final da série)

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terça-feira, 28 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"


Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus (tribunal da  Santa Inquisição ), ao fundo, e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.),  mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, médicos de clinica geral e familiar, administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança no trabalho, educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... 

A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por motivos de força maior, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos desperte algum interesse, tenha algum proveito para os nossos leitores e suscite alguns comentários (críticos)"...




Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de très dias fedem"

4. Hospital, pobreza e caridade

4.1. "Mal por mal antes cadeia que hospital"


Hospital e prisão estão sempre associados a lugares tenebrosos onde mais tarde ou mais cedo se vai parar e onde, aparentemente, se apagam as diferenças sociais:

  • "Na cadeia e no hospital todos tempos um lugar";
  • "Quem de puta faz cabedal vai acabar na cadeia ou no hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Mas mesmo assim, "mal por mal, antes cadeia que hospital" (Quadro X). Mas o que é o hospital ?

Historicamente, é uma criação da cristandade da Alta Idade Média;

Etimologicamente, é um termo que vem do baixo latim hospitale (lugar onde se recebem pessoas que necessitam de cuidados, alojamento, hospedaria), do latim hospitalis (relativo a hospites ou hospes, hóspedes ou convidados) (Graça, 1996).

Na Europa medieval, que irá ser profundamente marcada pela:

 (i) terrível fragilidade da condição humana,;

 (ii) pobreza absoluta e  

(iii) escatologia cristã, 

esses hóspedes eram originariamente não só os doentes pobres mas qualquer pessoa necessitada de qualquer outro tipo de cuidados (alojamento, alimentação, abrigo, protecção, ajuda, conforto, assistência, etc.): não só os enfermos, os incapacitados, os deficientes, os velhos, os pobres, os vagabundos como também os peregrinos e os viajantes.

Na Alta Idade Média, o hospital confundia-se com a albergaria ou o hospício (do latim hospitiu, alojamento, hospitalidade, também derivado de hospes). Em geral, ficava junto às catedrais ou aos mosteiros, em conformidade com as instruções dos concílios ecuménicos de Niceia (325) e de Cartago (398).

Com;

(i)  a progressiva cristianização do império romano (édito de Milão, em 313, que concede liberdade de culto aos cristãos);

(iii)  transformação do cristianismo em religião de Estado (em 380);

(iii) e  sobretudo a divisão do império (em 395), as invasões dos bárbaros e o fim do império romano do Ocidente (em 476),

 irão surgir, em Constantinopla, diferentes tipos de estabelecimentos com funções assistenciais, que depois se generalizam a toda a cristandade do Ocidente, na Alta Idade Média, com o desenvolvimento do monaquismo, o movimento das Cruzadas e as peregrinações, com particular destaque para a peregrinação a Santiago de Compostela (Rosen, 1960; Graça, 1996):

  • Xenodochia (albergarias para os estrangeiros, os peregrinos, os viajantes e todos aqueles que, em trânsito ou viagem, necessitassem de alojamento ou assistência);
  • Nosocomia (hospitais ou enfermarias que prestavam cuidados aos doentes ou enfermos pobres);
  • Gerontochia (estabelecimentos geriátricos, ou , pelo menos, destinados ao acolhimento de idosos);
  • Ptochia (hospícios ou albergues para os pobres que não fossem doentes);
  • Lobotrophia (locais destinados aos leprosos ou doentes vítimas de epidemias);
  • Orphanotrophia (orfanatos);
  • Brephotrophia (locais destinados a receber e a criar as crianças abandonadas ou sem família).
De um modo geral, as instituições de assistência criadas pelo império romano do Oriente, sob o impulso do cristianismo, tinham regulamentos próprios, além de um corpo de pessoal com funções de administração e de direcção técnica. O código justiniano, publicado em 534, contem já uma série de cláusulas sobre a administração hospitalar:

  • em termos jurídicos, os estabelecimentos hospitalares são vistos como uma parte distinta do património geral da Igreja, estando sob a tutela administrativa e religiosa do bispo;
  • a responsabilidade pela manutenção e conservação do seu património é, entretanto, atribuída à figura de um provedor, em geral nomeado pelo bispo, pelo fundador do estabelecimento ou pelos seus herdeiros (Imbert, 1958).

Além disso, o hospital bizantino estava já organizado por serviços, em função do sexo e da patologia e, seguramente, melhor equipado em termos de pessoal (médico e de apoio) que o seu sucedâneo do Ocidente cristão medieval (Rosen, 1963).


4.2 A doença como 'punição e expiação' e o hospital como 'instituição totalitária'


Curiosamente, há um ditado (provavelmente velho... e "os ditados velhos são evangelhos"!) que nos vem lembrar que, apesar do dever de caridade e de hospitalidade, "o hóspede e o peixe aos três dias fedem", isto é, cheiram mal, estão a mais, tornam-se um fardo.

Não haverá porventura nada de mais cruel, na literatura da administração hospitalar, do que esta insinuação de que, sendo o doente um "hóspede", ele é sempre um encargo e, em última análise, é indesejável. E também não há discurso sobre a humanização do hospital que possa resistir ao efeito corrosivo e perverso desta ideia da doença como punição e expiação.

Médicos e enfermeiros falam muito da atitude regressiva do doente, em geral, e do doente hospitalizado, em particular. A infantilização seria um dos traços característicos da chamada psicologia do doente. Ora, a regressão foi, desde sempre, um mito criado e alimentado pelo próprio sistema hospitalar. Sabemos que nem todos os doentes são infantilizantes, nem todos os doentes se deixam infantilizar. Há doentes "difíceis", "reivindicativos", que exigem ser informados, no dia-a-dia, sobre o seu estado de saúde e o tratamento que lhe está a ser administrado, etc. Trata-se de um atitude que tem muito a ver com o status (social, económico e cultural) do doente.

A relação material de dependência, provocada pela doença, não deve ser confundido com regressão. Esta, sim, seria um produto do sistema hospitalar: 

"A desapossessão do doente em relação à sua identidade, a expropriação do seu corpo entregue à ciência e aos médicos, o mito do saber ao serviço do doente, o mito da solidariedade social fazem do doente um ser submisso, infantil e em estado de regressão" (Grasset, 1975: 217).

Tais noções (regressão e infantilização) serviriam, sobretudo, para ocultar a imposição de um modelo de comportamento, o da submissão do doente ao pessoal e à instituição hospitalares, o que põe o problema da permanência, mesmo no hospital dos nossos dias, de traços da total institution (Goffman, 1967; Walton, 1988).

Segundo Goffman (1975), as instituições totalitárias vêm quebrar as fronteiras que separam habitualmente os três campos de actividade fundamentais do indivíduo, a casa, o trabalho e o lazer:

  • em primeiro lugar, as pessoas estão colocadas sob uma única e mesma autoridade (por ex., o director do hospital psiquiátrico, o capitão do navio da marinha mercante, o comandante do aquartelamento militar, a madre superiora do convento, o reitor do seminário, o director do estabelecimento prisional);
  • em segundo lugar, cada fase da actividade quotidiana desenrola-se, para cada indivíduo, numa relação de grande promiscuidade com um elevado número de outros indivíduos, submetidos às mesmas regras, procedimentos, deveres e obrigações (caso do recluso no estabelecimento prisional, do recruta na unidade militar, do idoso no lar de terceira idade, ou do doente crónico, moribundo ou terminal, acamado no hospital de retaguarda ou na ´clínica da morte’);
  • em terceiro lugar, todos os períodos de actividade são regulados segundo um programa estrito, isto é, todas as tarefas estão "encadeadas", obedecem a um plano imposto "de cima" por um sistema explícito de regulamentos cuja aplicação é assegurada por pessoal técnico ou administrativo (guardas prisionais, prefeitos, vigilantes, médicos, enfermeiros, sargentos e oficiais, etc.);
  • finalmente, as diferentes actividades assim impostas são por fim reagrupadas segundo um plano único e racional, concebido expressamente para responder ao fim ou missão oficial da instituição (custódia dos doentes mentais inimputáveis, tratamento psiquiátrico do doente esquisofrénico, reinserção social do jovem delinquente, recuperação do doente acamado, formação militar do recruta).

O traço essencial destas "instituições totalitárias" seria a aplicação ao indivíduo dum tratamento colectivo (e, nalguns casos, coercivo) de acordo com um sistema burocrático que cuida de todas as suas necessidades

Para a generalidade dos doentes, a hospitalização é sentida com um misto de culpa e de obrigação:
  • culpa, por um lado, de estar doente, representando um encargo para os outros (a família, a empresa, a sociedade, o Estado, os médicos e os outros profissionais de saúde, etc.);
  • obrigação, por outro, de se curar o mais rapidamente possível, de ser um doente colaborante, complacente, bem comportado, etc.

Estes dois sentimentos variam também em função da classe social e do sistema de saúde: quando o doente se sente, se reconhece e se assume como um utente, consumidor ou cliente, naturalmente que ele está em melhores condições para negociar, numa base mais equitativa. 

 De qualquer modo, o poder dos profissionais assenta, históica e culturalmente, sobretudo neste duplo sentimento de obrigação e de dependência (Graça, 1996).


Quadro X— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o hospital, a loucura, a misericórdia e a caridade

 

Objecto

Provérbio

Albergaria Hospital

  • "A mandar nunca ninguém foi ao hospital"

  • "Demandar e urinar levam o homem ao hospital"

  • "Doente que inspirra, fora do hospital"

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital"

  • "Mal por mal antes cadeia que hospital e antes justiça que misericórdia"

  • "Na cadeia e no hospital só os amigos verás"

  • "Na cadeia e no hospital todos temos um lugar"

  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos"

  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"

  • "O homem que vive na taberna acaba por morrer no hospital"

  • "O hóspede e o peixe aos três dias fedem"

  • "Obra meninal põe o patrão na cadeia e o mestre no hospital"

  • "Os hóspedes  duas alegrias dão: quando chegam e quando se vão"

  • "Peregrinos, muitas pousadas, poucos amigos"

  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente"

  • "Quem de puta faz cabedal vai acabar na cadeia ou no hospital"

  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital"

  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer"

Caridade Misericórdia

  • "A caridade bem entendida começa por nós"

  • "A caridade dos outros connosco é gostosa; a nossa para os outros é custosa"

  • "A misericórdia dada é duas vezes abençoada"

  • "Caridade de rico é mania de dinheiro"

  • "Dar esmola não empobrece"

  • "Deus manda ser bom, mas não manda ser parvo"

  • "É preciso cuidar dos pobres, antes que eles cuidem de nós"

  • "Esmola a Mateus, esmola aos teus"

  • "Foi-se embora a caridade e ficou a carestia"

  • "Irmandade de Nossa Senhora Não-te-rales"

  • "Ir com alguém às obras de misericórdia"

  • "Junta-se o Hospital com a Misericórdia"

  • "Mais vale ser invejado do que misericordiado"

  • "Mãos generosas, mãos poderosas"

  • "Misericórdia não deve negar-se a quem pede" (Séc. XVI)

  • "Não dá quem tem dá quem quer bem"

  • "O que cair da mão dá-o a teu irmão"

  • "Os pobres têm tempo"

  • "Ouvir missa não gasta tempo, dar esmola não empobrece"

  • "Quem dá aos pobres, empresta a Deus"

  • "Quem  e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou no partir não tem arte"

  • "Quem  e torna a tirar ao Inferno vai parar"

  • "Quem deu dará, quem pediu pedirá"

Louco Loucura

  • "Ao doido doideiras digo"

  • "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"

  • "Com o Diabo no corpo"

  • "Com mulher louca, andem as mãos e cale-se a boca"

  • "Cristo curou cegos e aleijados mas não malucos"

  • "De doido,  pedrada ou palavrada"

  • "De poeta e de  louco, todos têm um pouco"

  • "É preciso ser doido para trabalhar aqui"

  • "Quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce"

  • "Mal que não tem cura chama-se loucura"

  • "Não há louco sem acerto, nem sábio sem loucura"

  • Nem todos os doidos estão nas palhas"

  • "O tempo tudo cura, menos velhice e loucura"

  • "Para maluco maluco e meio"

  • "Três coisas se querem atadas: loucos, negócios e papéis"

    

4.3. "Dar aos pobres é emprestar a Deus"


Não havia, no entanto, uma clara distinção entre o cuidar dos corpos e o cuidar das almas. Segundo a mentalidade cristã da época, a doença, o sofrimento, a pobreza e a morte estavam submetidas à vontade divina (como já vimos anteriormente, na
Parte I):

A assistência aos enfermos e aos demais "pobres de Cristo" era, por sua vez, considerada como uma virtude cristã e como uma manifestação da misericórdia de Deus. Em termos metafóricos, diríamos que a caridade era vista então como uma espécie de certificado de alforro: "Dar aos pobres é emprestar a Deus" (Quadro X), ou seja, quantas mais boas obras amealhasse na terra, mais garantias tinha um cristão de alcançar o céu e, com ele, a salvação eterna.

A caridade (sob a forma da esmola) representava um investimento seguro que não punha em causa a "ordem natural das coisas":


Por fim, é bom não esquecer que - mesmo se às vezes "caridade de rico é mania de dinheiro" - Deus nosso senhor "manda ser bom, mas não manda ser parvo". Ou por outras palavras: "Quem dá e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou no partir não tem arte".

É com base neste ethos cristão, que se vão fundar milhares de hospitais e outros estabelecimentos similares, ao longo de séculos, de Constantinopla a Lisboa. Não admira, por isso, que o hospital cristão medieval vá ser estruturado, até na sua própria arquitectura e na sua organização espacio-emporal, como a casa de Deus, um lugar onde, mais do que curar a doença, se cuida sobretudo da salvação da alma. Daí os primitivos hospitais em França adoptarem a designação de Hôtel-Dieu, como o de Paris, fundado no Séc. VII (Imbert, 1958).

Nos finais do Séc.XV, surgem entretanto as primeiras misericórdias portuguesas Esta designação advém do facto de serem instituições, com o estatuto de confrarias e irmandades, que se propunham realizar as obras de misericórdia. De acordo com a tradição cristã e a interpretação do Evangelho segundo São Mateus, essas obras eram em número de catorze: sete espirituais e sete corporais, incluindo o curar dos enfermos (Graça, 1997)(Quadro XI).




Quadro XI - As catorze obras de misericórdia

(i) Sete espirituais

  • A primeira he ensinar os simprezes
  • A segunda he dar bom conselho a quem o ped
  • A terceira he castigar cô caridade os que erram
  • A quarta he cõsolar os tristes descõsolados
  • A quinta he perdoar a quem nos errou
  • A sexta he sofrer as jnjurias cõ paciençia
  • A setima he Rogar a ds pellos viuos e pellos mortos

(ii) Sete corporais
  • A primeira he remir captiuos e visitar os presos
  • A segunda he curar os enfermos
  • A terceira he cubrir os nus
  • A quarta he daar de comer aos famintos
  • A quinta he daar de beber aos que ham sede
  • A sexta he daar pousada aos peregrinos e pobres
  • A setima he enterrar os finados
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Fonte: 
Compromisso da Misericórdia de Évora (1516), cit. por Graça (1997)


A partir do início do Século XVI, assiste-se em Portugal a um movimento de concentração dos hospitais e demais estabelecimento assistenciais até então existentes, tendo o poder real um papel absolutamente decisivo nesse movimento.

É sobretudo a partir de D. João II (1455-1495) e, portanto, já em plena época dos Descobrimentos, que surgem as grandes instituições de assistência, sob a forma de hospitais gerais: Lisboa (1492-1504), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520), Goa (1520-1542), etc. em resultado da própria concentração do poder político e económico na figura do rei.

O Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, é o exemplo mais paradigmático dos grandes hospitais que se constroem na época.

Contrariamente ao seu congénere medieval, o hospital dos Séculos XVI e seguintes é monumental e sobretudo urbano, reflectindo as novas necessidades e problemas de saúde de uma população que tende a concentrar-se nas cidades com o declínio do feudalismo, o desenvolvimento do modo de produção artesanal, a expansão do comércio marítimo e a complexificação do tecido social (em particular, das camadas populares).

A arquitectura do hospital renascentista, por outro lado, reflecte a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade.

Às misericórdias caberá, posteriormente, a responsabilidade pela administração hospitalar, durante um período de mais de quatrocentos anos (desde meados do Séc. XVI até ao período de 1974/76). Daí talvez o sentido de provérbios como estes:

(Continua)

Referèncias bibliográficas a publicar no fim da série

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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:



Último poste da série Manuscrito(s) (Luís Graça):

26de março de  2023 > Guiné 61/74 - P24170 : Manuscrito(s) (Luís Graça) (219): Na despedida da Terra da Alegria: à minha querida 'mana' Nitas, Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares (Candoz, 1947 - Porto, 2023)