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segunda-feira, 12 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22365: Estórias de Contuboel... ou "o mito do eterno retorno" (Renato Monteiro, 1946-2021)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno Baldé , Sori (Jau oui Baldé) e Umaru Baldé (que, feita a recruta,  irão depois para a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, a partir de 18 de junho de 1970). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade (!). Eram do recrutamento local e, originalmente, não falavam português. (*)

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É um texto de antologia, dos melhores que já aqui publicámos em 17 anos de existência do nosso blogue. O Renato Monteiro, em cinco pequenas "estórias de Contuboel", sintetiza magistralmente   esse sentimento absurdo, maior do que cada de nós, e que todos nós, "tugas", quadros e especialistas das companhias  da "nova força africana" do general Spínola experimentámos inicialmente, e que "tanto nos levava à rejeição daquele mundo como, no instante seguinte, ao desejo de nele nos confundirmos", parafraseando o autor.  

Quadros, milicianos, de um exército (mal) preparado para a guerra convencional (mas não de todo para a guerra de contra-guerrilha), sem um mínimo de informação e formação sobre aquele território e as suas gentes, fomos obrigado a dar recruta, instrução de especialidade e de aperfeiçoamento operacional a jovens camponeses, fulas, muçulmanos, do recrutamento local (, mas também de outras etnias, animistas), arrancados das suas tabancas, e que não falavam uma única palavra de português nem sabiam onde ficava Portugal... Deliciosas as "observações etnográficas" do autor e não menos saborosa a sua fina ironia... 

Porque o texto vale como um todo, voltamos aqui a reproduzi-lo, quinze anos depois,  mas agora agregando os cinco apontamentos, todos eles relacionados com a instrução de recruta dada pelos nossos camaradas da CART 2479, no Centro de Instrução Militar de Contuboel, com início  em 7 de março de 1969. 

O título "estórias de Contuboel" é da nossa iniciativa, é mais prosaico do que a filosófico e mitológica ideia do "eterno retorno", titulo original do autor.  É uma homenagem ao "homem da piroga". o Renato Monteiro (1946-2021),  que eu tive a felicidade de conhecer em Contuboel, no curto espaço de mês e meio em que estivemos juntos (junho/julho de 1969)... Perdi depois o seu rasto mas nunca o seu rosto...


ESTÓRIAS DE CONTUBOEL 

por Renato Monteiro (2006)


(I) RECEPÇÃO DOS INSTRUENDOS

São uma porrada deles. Para cima de centena e meia, perfilados na parada. Número excessivo mas justificável uma vez que, finda a instrução, serão repartidos por uma outra companhia, ainda na Lisboa (a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12) (***), constituída tal como nós, apenas por quadros (graduados es especialistas) nmetropolitanos.

Vindos de Galomaro e de Gabu, que ainda não localizei no mapa; do Xime, de Bafatá e de Bambadinca por onde passamos sem que me ocorresse bater uma única chapa, e ainda das tabancas que povoam a região de Contuboel.

Mais fulas do que mandingas, perfilhando todos a crença em Alá, mas também o princípio que consagra para todo o sempre um Portugal daquém e além-mar,  uno e indivisível, coisa para mim demasiado estranha ao dar conta dos raros falantes da nossa língua e dos muitos que a entendem menos do que a Segunda, a minha lavadeira.

Acaso não houvesse entre eles um Carlos, fula, de Bafatá, único cristão e com nome português, excepcionalmente dotado na comunicação com as línguas nativas, incluindo o crioulo - o esperanto da Guiné - para transmitir-lhes as nossas ordens, recomendações e outras tretas, bem poderíamos enterrar as palavras no bolso até às calendas, ir pregar para o deserto ou aos peixinhos do António Vieira.

Sequer a ordem de marchar (acaso fossem capazes de tal acrobática proeza) a partir da parada até uma área arborizada próxima do aquartelamento, utilizada para futura aplicação dos exercícios militares, é compreendida pela generalidade dos nossos instruendos.

Coubesse o mar num concha cavada na areia que, por certo, seria igualmente possível olhar para estes homens e reconhecê-los como nossos compatrícios.

E coubesse em mim próprio este sentimento absurdo, maior do que eu, que tanto me leva à rejeição deste mundo como, no instante seguinte, ao desejo de nele me confundir.

Como se coexistissem em mim, duas entidades antagónicas numa só. Sem a santíssima trindade em que não acredito. E nunca, espero bem, vir a pirar dos cornos.


(II) SEGUNDO PELOTÃO

Divididos por quatro pelotões (de instrução), faço parte do segundo,  bem como o alferes Ilhéu, açoriano, ex-seminarista, os furriéis Paz de Alma, do Norte, o Bera, de Cabo Verde, por quem nutro uma antipatia correspondida e o nosso cabo, ainda sem alcunha, e a quem um dia destes hei-de perguntar donde é. 

Feita a contabilidade, o que temos? 53 Guineenses, 2 insulares, 3 europeus continentais. Ou cromaticamente falando: 53 negros, 4 caras pálidas e um que nem é uma coisa nem outra, e sim as duas. Mas adiante...

Sem o poliglota do Carlos, entretanto integrado noutro pelotão, lançamos mão ao Jaló que, apesar de menos apto para intérprete do que o primeiro, sempre vai desenrascando, em fula e em crioulo, a nossa pretendida comunicação com o grupo. Para levantarem os joelhos, c’um raio, se possível até ao queixo, darem meia volta volver, distinguir o que se toma por esquerda e por direita, manter o peito erguido e cheio de ar, por nada mexer quando em sentido, porra, sequer tossir; enfim, toda a panóplia de movimentos exigíveis numa formatura estacionada ou em marcha. 

Porque com má execução, há merda: 10, 20 ou mais flexões de bruços, mantendo a regular distância da barriga ao chão, quando não mesmo rastejar até aquela mangueira ou cajueiro ainda mais afastado. Punições tão sabidas de cor, por força da aprendizagem para a guerra levada a cabo nos quartéis, como os nomes dos rios aprendidos durante a instrução primária.

Por mim, e apesar de exigente quanto à execução dos exercícios, dispenso a aplicação de castigos sem crime, achando mil vezes preferível, nesta fase inicial de instrução, antes fomentar a troca com que todos crescem: umas lições básicas de português pelos depoimentos prestados, com o apoio do Jaló, sobre a experiência vivida na guerra por um bom número de recrutas que, havendo sido milícias, já se envolveram em confrontos. Com o fogo a doer fora da carreira de tiro, mas no cenário real da mata. Ou tão só os que foram alvo de flagelações dirigidas aos aldeamentos donde são originários.

E quem sabe se, deste modo, não evitaríamos mais facilmente confundir o Ali com o Guilage, estes com quaisquer outros já que, à excepção do Malagueta, excessivamente franzino, e do Turé, de desmedida altura e de voz apagada, todos se apresentam indistintos aos nossos olhos. Como se fossem cópias fisionómicas do mesmo padrão, cheirando desagradavelmente, à maior parte dos camaradas,  a catinga. Ou não fosse natural um cão tressuar a canino; um gato transpirar a felino; os cravos marcarem o ar com o seu perfume... Sem nunca perguntarmos a que cheiramos nós. Mais tarde ou mais cedo, hei-de sabê-lo...

(III) O PARAÍSO, OS RONCOS E OS ANJINHOS

É à sombra frondosa das mangueiras, durante as breves pausas das longas oito horas diárias de instrução,  que Jaló, crente em Alá, me fala do paraíso perfumado, com frutos perenemente maduros, sem maçãs proibidas, abundante comida para satisfazer o apetites dos mais insaciáveis, das alegrias sem medida e das submissas mulheres de deslumbrante beleza, escolhidas a dedo, todas virgens para eterno consolo dos homens, sejam novos ou velhos.

Desse jardim implantado no céu, supremo prémio destinado aos que cuidam cumprir zelosamente não apenas com as obrigações de rezar, jejuar pela ocasião do Ramadão, fazer uma peregrinação a Meca ao longo da vida, mas também aos que recusam as tentações condenáveis pelo Islão, de que Maomé é o profeta, como o consumo de carne de porco e as bebidas alcoólicas.

Interdições que não abrangem o tabaco aspirado por cachimbos que cabem numa mão fechada ou as nozes de cola, tão azedas quanto duríssimas, que revitalizam os músculos e o resto, quando necessário, debelando a fome e dando coragem tanto para combater as agruras da vida como para enfrentar os bandidos da mata.

Nem tão pouco obrigam à fidelidade exclusiva da mulher esposada que, Jaló, tem duas e diz andar a pensar dia e noite numa terceira que vive em Gabu.

Assim não perca os roncos de couro, pagos a bom preço: o que traz atado à cintura e outro no peito, suspenso pelo pescoço, que o protegem tanto da picada dos lacraus como do veneno injectado pelas cobras; dos ferrões cravados pelas abelhas e de todo o bicho selvagem que constitua uma ameaça; da acção nefasta provocada não apenas por encontros indesejáveis com pessoas que rogam pragas, mas também contra seres diabólicos, vazios de forma e capazes de, com um único sopro, transmitirem uma enfermidade incurável morrendo-se, tarde ou cedo, dela. Ou sobrevivendo-se apenas quando se trata de uma mudez, coisa rara, ou de uma cegueira como aconteceu ao filho mais novo do antigo Chefe da Tabanca de Contuboel quando, em criança, andou perdido durante sete dias na mata, nunca mais voltando a ver as cores com que se cobre o mundo.

Com a protecção dos roncos e ainda com a inseparável e benfazeja presença do anjinho do Bem que, encavalitado num ombro do Jaló, cuida ele, há-de levar a melhor em disputa com o seu comparsa, colado ao outro ombro, ímpio por natureza e sempre pronto a pregar as mais nefastas partidas ao seu portador. Vá para onde for, mesmo em sonhos, a dormir.


(IV) IDADES SEM LEMBRANÇA

Coisa pela qual não passam: a comemoração do dia do aniversário. Pois não parece haver um entre os africanos do meu pelotão que saiba a sua idade. E lê-se-lhes nos olhos a inutilidade desse conhecimento que, apesar de tudo, acaba por ser superado através de um palpite dado por nós. Mera suposição inspirada no vinco e na dimensão das rugas, na maior ou menor vivacidade do olhar, não sei bem, num feeling que sustenta a nossa avaliação.

E é assim que Cherno Camará passou a partir de hoje a contar 23 anos, idade que acabou por merecer divertida discórdia quando comparada ao tempo de vida atribuído ao Amaduri Camará, 21 anos, por alguns considerado mais velho do que o primeiro.

Mas fora de qualquer polémica foram as 18 Primaveras calculadas para Demba Baldé, o Malagueta, seguramente o recruta mais jovem da nossa troupe, filho de Ira Baldé, prestigiado chefe de uma das tabancas da região de Gabu Sare.

Quanto a mim, talvez não fosse menos sensato deixar-se estes homens, na sua maioria ainda mais novos do que nós, tão alheados da sua idade quanto as árvores que se desenvolvem sem contarem os anéis do tronco que marcam o tempo da sua existência.

Opinião igualmente partilhada por Ussumane Colubali, para o qual o que importa é nunca perder de vista de quem se é filho, irmão, neto, bisneto e pai; bem como o lugar onde se nasceu e o número de cabeças de gado e de mulheres que se possui, sendo seguro que a memória da data de nascimento não leva a viver mais, sequer a acertar-se com o dia da sua morte. Ao contrário da generalidade dos africanos, muito reservados, Ussumane não se coíbe de expressar os seus juízos mesmo sem ser chamado a fazê-lo.

Assim, diz não existir à face da terra nenhumas Forças Armadas capazes de tão grandes façanhas como as nossas, razão que o levou a oferecer-se para o exército, aproveitando ainda uma vantagem: a possibilidade de, assim, ganhar uns patacões, muito difíceis de obter por outro meio.

Proveito que o Demba Baldé de bom grado dispensaria. Que foi o pai, contra sua vontade, que o mandou servir a tropa. Quando melhor estaria junto da sua Comança Baldé, ainda mais nova do que ele, a fazer filhos, a comer bianda e a tratar do gado.

(V) BAJUDAS OU A IMITAÇÃO DO PARAÍSO CELESTIAL

Acordo com os latidos da Daisy, já recuperada da mazela na perna, incitando-me a sair da cama. Como a querer lembrar a combinação que fiz com o Canininhas e o Português Suave em pirarmo-nos hoje para o rio Geba que o Fórmula Um, o condutor, afirma ficar a quinze minutos de Unimog.

Acordo como um animal de sangue frio em período de hibernação e, caso não fosse a barba por fazer desde há três por se ter gripado a bomba de água e a desagradável sensação pegajosa no corpo, bem teria mandado o compromisso para as urtigas. Mas avancemos. Tomado o pequeno almoço à pressa, toca de trepar para a viatura, com os dois camaradas vociferando contra o meu atraso, "és sempre o mesmo", mais o Joshua. apanhado a atravessar cabisbaixo a parada e a Daisy, como prémio do seu empenho em combater a minha letargia.

Por uma estrada todo o terreno, cheia de covas abertas pelas correntes das chuvas e de sulcos dos rodados das viaturas, em menos tempo que o calculado pelo Fórmula Um, chegamos ao Geba: bem estreito quando comparado à sua dimensão em Bissau ou no ponto em que se cruza com o Corubal.

Mas bem mais largo quanto às vistas que dele se podem colher: aquele pequeno grupo de bajudas, ó Cesário, sem rendas ou ramalhetes rubros de papoilas, apenas cintadas por uma tanga fina, tudo o mais só nudez ali exposta à luz do sol, com natural indiferença aos nossos olhos e sem nada ficarem a dever em graciosidade às virgens do paraíso celestial descrito por Jaló.

Salpicadas de espuma, com a água a escorrer em fios ou em contas pelos ombros, o seios, o colo, quantas aguarelas não dariam? Tantas quantas ninfas ou sereias de outros tempos imaginadas em pedra ou tela.

Pena, para não dizer pequena e simulada raiva, é a Segunda, a quem ironicamente comecei a tratar por Benvinda, nem uma única vez tenha posto os olhos em mim, limitando-se apenas a cumprimentar-me aquando da entrega da roupa à porta da camarata, limpa, sem vincos e ainda quente do ferro, ao fim da tarde.

À hora em que, num breve instante, o dia escurece, as boieiras alinhadas como esquadrões de caça recolhem ao refúgio da mata e o poente se tinge de cores vivas e quentes. Como nunca me foi dado ver.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12773: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte III): Preparando a "nova força africana" de Spínola...

(**) Vd. postes de:



4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (V): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

(***)  Vd.postes de:


25 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6466: A minha CCAÇ 12 (2): De Santa Margarida a Contuboel, 5 mil quilómetros mais a sul (Luís Graça)

(...) Contuboel, far from the Vietnam

Nestas condições, a instrução de especialidade, como se deve imaginar, não foi nada famosa. Estávamos a milhares de quilómetros do nosso ponto de partida, o Campo Militar de Santa Margarida, onde, ainda me recordo, também brincámos às guerras, e fizemos os nosso roncos (no essencial, assalto aos acampamentos do IN a fingir, e pilhagem de tudo o que era bebível e comestível).

Em plena época das chuvas, ainda em fase de adaptação ao terrível clima da Guiné, hostil a qualquer tuga, em farda nº 3, espingarda automática G3 ao ombro e cartuchos de salva nos bolsos (à cautela, não fosse o diabo tecê-las, os graduados, metropolitanos, levavam alguns carregadores com bala real...)... Estão a imginar esta guerra-de-faz-se-conta ?

Era ainda a dolce vita da Guiné (como eu escreveria no meu diário), aqui e ali perturbada pelas histórias que a velhice nos contava, a nós periquitos, de Madina do Boé e de Guileje, "lá longe no sul" (sic) (...)

A 18 de Julho de 1969 , a futura CCAÇ 12 (que, por enquanto, ainda era a CCAÇ 2590) é dada como operacional. Atendendo à origem étnico-geográfica das suas praças, por sugestão do Com-Chefe, ficamos radicados em chão fula, às ordens do Batalhão de Caçadores 2852 (1968/70), com sede em Bambadinca...

A 21 de Julho, menos de dois meses depois da nossa chegada à Guiné, quando ainda nem sequer tinham sido distribuídos os camuflados à nossa tropa africana, temos a nossa primeira "saída para o mato" (sic) , seguida do nosso "baptismo de fogo"...

De facto, em Madina Xaquili, temos o nosso primeiro ferido grave, evacuado para Bissau; e a 28, mais dois feridos graves, numa ataque nocturno àquela aldeia fula que será definitivamente abandonada pela sua população e, mais tarde (em Outubro), pelas NT.

Para três dos nossos soldados africanos, a guerra havia acabado, mal começara: ficarão definitivamente inoperacionais e/ou incapacitados, não sem que um deles tenha de passar, primeiro, por outro inferno, o do Hospital Militar da Estrela, em Lisboa...

Pergunto-me, com amargura, 40 anos depois: o que será feito de vocês, valentes soldados ? Tu, Sori Jau (3º Gr Combate, evacuado para o HM 241); tu, Braima Bá (inoperacional) e tu, Udi Baldé (evacuado para Lisboa e retornado a casa com 35% de incapacidade física), ambos do 2º Gr Comb ? (...)


sábado, 13 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21893: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira


Chaves > RI 19 > Os meus amigos de Chaves – Julgo ser o o 6,º da última fila


Chaves > Regimento de Infantaria n.º 19 > Para mim, foi um hotel de 4 estrelas


Chaves > Ponte romana, também conhecida como ponte de Trajano
 (c. fins séc. I / inícios séc. II)

 Fotos (e legendas): © Joaquim Costa  (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da publicação da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", da autoria de  Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):


 
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)

Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira

  Chaves: Férias, O Estraga a Tábua...e o Forte de S. Francisco



Joaquim Costa


Depois de Tavira,  só mesmo Chaves para recuperar (boas águas, bons pasteis de carne e bom presunto...), física e mentalmente.  

Mas que boas férias.! A minha  única tarefa era dar instrução a um pelotão de mancebos, quase todos da região transmontana. Tudo muita boa gente,  a quem nunca conseguimos acertar o passo na marcha e muito menos sincronismo na ordem unida, de resto tudo bem…

Quando recebo a guia de marcha de Tavira para Chaves, pensei: "Bem!  Bom mesmo era fazer toda a nacional n.º 2, de Faro a Chaves, na minha (ou seja! do meu irmão) Zundap (estilo Che Guevara na sua poderosa)."

Mas, verdadeiramente radical foi fazer a viagem de comboio do Porto a Chaves (terra da Pedra Bolideira) (1) na admirável linha do Corgo, hoje desativad [., foto à esquerda]. 

Esta viagem só foi superada pela viagem que fiz na nacional n.º 222. no maravilhoso Douro Vinhateiro, com a minha Diane. (2)

Muitas histórias ouvi sobre a viagem de comboio do Porto para Chaves, em que os passageiros saltavam com este em andamento, iam apanhar umas uvas e, em andamento, voltavam a entrar. Constatei que a realidade superava as histórias que me tinham contado. As curvas e contracurvas quase que se tocavam passados uns quilómetros. Em dez quilómetros de  marcha na sinuosa linha avançava um na direção do destino.

Não obstante toda a informação recolhida sobre as peripécias da viagem, a surpresa foi avassaladora.

 Estava eu a saborear as belas paisagens e a respirar os puros ares, na plataforma do comboio (uma zona exterior estilo varandim),  quando o mesmo para no meio do nada, ouço um assobio, e de repente vejo-me rodeado de cabras por todos os lados. Uns quilómetros à frente, o comboio volta a parar, e, ao apito do pastor, de uma forma ordeira e organizada, o rebanho saiu, com um cumprimento efusivo da parte do revisor e do maquinista, denunciando estarmos na presença de passageiros habituais. Penso hoje que mais facilmente conseguiria sincronizar a marcha deste grupo do que o que tive à minha guarda no quartel de Chaves.

Contudo, sendo certo que nunca iria com estes homens para um  desfile militar, se pudesse escolher, era com certeza com esta gente que iria para a guerra. Gente simples, rija, com um coração do tamanho da Serra do Marão e capaz de tudo (mesmo de tudo!...) para defender um amigo.

Guardo com emoção a festa que estes maravilhosos homens fizeram aos três  graduados que lhe deram a instrução, pagando o jantar e oferecendo a cada um de nós uma lembrança. Foi um momento muito bonito e muito emotivo, particularmente para mim que já tinha recebido a mobilização para a Guiné bem como  guia de marcha para Estremoz.

Foi neste moderno e agradável quartel que tive o grato prazer de conhecer o pai do malogrado e excelente jogador de futebol do FCP,  Pavão, que teve morte súbita em pleno estádio das Antas no fatídico dia 16 de dezembro de 1973. (3).

Era sargento, excelente pessoa, mas rezava a história, no quartel e na cidade, sem grande jeito para os trabalhos manuais. Contava-se que um cão  rafeiro apareceu no quartel e logo foi adotado  por todos, desde o comandante ao soldado raso. Dado que o canino não tinha sitio para dormir e abrigar-se dos dias mais agrestes, foi decidido construir-lhe uma casota. Logo o bom sargento  se ofereceu para a tarefa, tendo sido feita uma coleta para comprar a madeira necessária para a obra.

O homem comprou a madeira e muniu-se das ferramentas necessárias, nas oficinas do quartel,  e dum projeto de casota elaborado por um habilidoso em desenho. Mede e volta a medir, corta aqui, corta ali, corta acolá, e montadas as peças nenhuma bateu certo com o projeto. Volta a medir a  cortar aqui,  a cortar ali e acolá, voltou a montar e ainda pior.

O comandante, que também tinha contribuído para a casota,  ao fim de uns dias, vendo que o cão continuava a dormir em todo o sítio manda chamar o sargento para saber da casa do cão. O sargento, muito constrangido, e à espera do pior, lá foi contando as peripécias da construção da dita casota acabando por confessar que nem tinha casota nem tinha tábuas. O bom comandante, dando uma grande gargalhada,  virou-se para o velho Sargento e diz-lhe: Áh! Homem do “diacho”, fizeste-me à tábua o que o diabo fez à “coisa”: para além de não construires a casota ainda me estragaste a tábua!...E assim nasce a alcunha do Sargento Neves – O estraga a tábua.

O Comandante do quartel era um bom homem, bonacheirão, preocupado com o bem estar de todos os seus homens… e até da mascote do quartel – o cão.  Fazia questão de manter o quartel, um lugar limpo e asseado, fosse as casernas o refeitório ou a parada.

Um dia, estava eu de sargento de dia ao quartel, vejo-o em altos berros, no meio da parada, a gesticular e a chamar por todo o pessoal de serviço. O primeiro a chegar fui eu, pelo que se vira para mim e me diz: 

  Você não está a ver que eu não consigo passar com este enorme tronco de árvore à minha frente! 

Eu  olhava para a frente do homem e não via tronco nenhum nem se quer um pequeno pau. O homem cada vez gesticulava e gritava mais,  pelo que temi que as minhas férias terminassem ali. Felizmente, um cabo já velhinho, chega perto de mim e diz-me: 

– Deixe  que eu resolvo.  

Vai ao chão e pega num fósforo, de madeira, que alguém inadvertidamente tinha deitado para o chão ao acender um cigarro... 

 Uff... –  disse eu para com os meus botões – nais  uma batalha ganha… siga a tropa...sigam as férias!


Chaves > Forte de São Francisco
Uma das tarefas que nos cabia, vai-se lá saber porquê (coisas da tropa!), era fazer guarda num forte em ruínas (forte de S. Francisco) (4) perto do quartel, todos os dias, estilo render da guarda à residência oficial da Rainha de Inglaterra... neste caso às lagartixas.

Dado o número reduzido de pessoal que aí fazia guarda e o recato do local, muitas histórias ouvi sobre as atividades noturnas que aí  tinham lugar.

Acabado de chegar ao quartel, fui escalado para comandar o pequeno grupo de homens (eu, um cabo miliciano e  cinco soldados), para ir render o grupo que  passou o dia e pernoutou no referido Forte de S. Francisco.

De manhã cedinho, depois de um bom pequeno almoço com pão sempre quentinho e muita manteiga a derreter-se no mesmo, formado o  grupo, lá fomos nós, todos catitas, a marchar até ao forte de S. Francisco.

Chegados à porta de armas, um soldado aparece ao portão, com um leve sorriso nos olhos brilhantes, e, baixinho diz-me ao ouvido: 

– O seu colega Ferreira pede  para aguardar só  uns segundos.

 Achei estranho, geralmente nestes casos já todo e pessoal costumava  estar à porta “mortinho” por se ir embora depois de 24 horas passadas naquele buraco. Aproximo-me mais um pouco do portão e vejo o Ferreira ainda a vestir as calças e uma loira  a esgueirar-se,  escondendo-se por trás dos soldados. Logo a seguir aparece  o Ferreira, com um sorriso de felicidade, com um malmequer bravio, colhido no forte, colocado na orelha e a cantarolar a celebre canção, hino do movimento hippie e do amor livre:  “Se vais a  San Francisco, leva flores no teu cabelo…”  

_________

Notas do autor:

(1)  Grande pedra, no caminho de Chaves a Bragança, que se move com um pequeno toque de um dedo.

(2) A Estrada Nacional 222 (EN 222) – considerada a estrada mais bonita do mundo - tem 226 km de extensão e liga o centro de Vila Nova de Gaia a Almendra, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, (todos deviam fazer, pelo menos uma vez, o caminho de Santiago e a Nacional Nº 222!)

 

Vista da EN 222 > Douro vinhateiro; De cortar a respiração. Bem disse Miguel Torga em S, Leonardo de Galafura: "um excesso da natureza"....

(3) Pavão, não de nascimento mas pela forma peculiar de jogar com os braços bem abertos.

(4) -  Utilizado como quartel general pelo general Soult no tempos das invasões francesas. Foi recentemente restaurada e recebe hoje um Hotel de 4 estrelas.

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)



Guiné > Região de Tombali > CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) > Nhacobá > s/d > Furriéis Azambuja Martins e [Joaquim]Costa

Foto (e legenda): © Vasco da Gama (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã"  (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):



Date: segunda, 1/02/2021 à(s) 15:50
Subject: O meu primeiro poste

Meu caro Luís, camaradas e amigos, protegidos por este enorme "Poilão", que é este (nosso ) Blogue de Luís Graça & Camaradas da Guiné (*):

Com a devida permissão, dada pelo Luís, para me encostar a todos vós debaixo deste magnífico poilão, aqui estou, pronto para acrescentar mais uma pequena gota neste oceano de gente "grande" e boa, que por força inexorável da lei da vida vai minguando dia após dia.

Já agora, permitam que me faça acompanhar pelo meu irmão Manuel (infelizmente já falecido), mobilizado para Guiné no início dos anos 60 e também do meu filho Tiago, engenheiro civil, que esteve dois anos na zona do Cacheu na construção de uma ponte sobre o rio com o mesmo nome mais precisamente em S. Vicente (ponte Europa, mais conhecida por Ponte de S. Vicente).

O meu filho e mais 4 colegas da empresa viveram momentos dramáticos enquanto jantavam num restaurante (A Padeira) junto ao local onde foi assassinado Nino Vieira (na altura presidente da da Guiné-Bissau) sentido muito perto o cantar contínuo das Kalachnikov e o rebentar das granadas dos RPG. Foi uma fuga (sem pagar a conta) com a tensão nos limites conduzidos por um trabalhador local, subornando todas as barreiras de militares até chegar aos estaleiros da empresa em S. Vicente. Ou seja: nada mudou desde o meu tempo de Guiné…

O Camarada da nossa tabanca, Hélder Sousa, que amavelmente fez um comentário na minha apresentação (*), que muito agradeço, já fez aqui referência a uma página de internete construída pelo Engenheiro Geógrafo Pedro Moço, amigo e colega de trabalho do meu filho, que conta ao pormenor toda a história da construção da ponte. Dada a qualidade da mesma, sugiro que a revisitem (**).

A seu tempo utilizarei um poste sobre a construção desta ponte.

Aproveito também para agradecer o comentário do meu vizinho, Gil Moutinho, e proprietário do excelente restaurante, Choupal dos Melros, onde já várias vezes jantei muito bem e comemorei com amigos os meus anos.

Embora as nossas casas não distem mais de 500 metros, só o Blogue nos deu a conhecer. Já tive a oportunidade de ver parte do Museu da Tabanca dos Melros, ainda no início, num jantar onde perguntei por ti mas nesse dia não estavas. Obrigado pelo convite e obviamente que responderei à chamada.

Um abraço ao autarca e amigo de Mampatá [, o António Carvalho, o Carvalho de Mampatá], que muitas vezes me convidou para os almoços da Tabanca, creio que de Matosinhos, mas que por vários motivos não pude aceitar.

Aos dois um grande abraço

Como já referi na minha apresentação (*), fiz parte da companhia de intervenção, a CCAV 8351 (Os Tigres do Cumbijã), formada no Regimento de Cavalaria n.º 3 de Estremoz, com comissão na Guiné em Aldeia Formosa e, mais particularmente, e proficuamente, em Cumbijã.

Com a minha passagem à aposentação, na tentativa de me manter ativo, para além de ler parte dos livros amontoadas e da bricolage, comecei a rabiscar um conjunto de histórias, do meu tempo de infância e da vida militar.

Tendo em conta os interesses e objeto do blogue, vou partilhar convosco (se os editores do blogue assim lhe reconhecerem qualidade bastante para aqui ser editado), para já, as minhas vivências desde o dia conturbado da chegada às Caldas da Rainha até ao regresso sui generis da Guiné.

Grande parte da história da companhia já aqui foi superiormente dada a conhecer a todos vós pelo ex capitão da companhia Vasco da Gama (a quem aproveito para mandar um abraço – não cotoveladas,  como agora é uso – assim como aos meus camaradas e amigos da companhia).

A minha narrativa sobre os acontecimentos, embora os factos sejam os mesmos, será obviamente diferente já que as vivi, naturalmente, de forma diferente.

Meu caro Luís, envio para ti este meu primeiro poste, contudo, se outra forma ou meio estiver instituído, agradecia que me desses a conhecer,

Bem hajam e saúde para todos.


2. Comecemos então pelo princípio: Caldas da Rainha e Tavira [, seguindo o índice do livro, em preparação, "Paz e Guerra: de pequeno ao furriel Pequenina"]


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte I
 

[9] Caldas da Rainha: A chegada às portas da tropa – um fardo pesado

Depois de ter ido às sortes e não me ter safado, o meu irmão Manuel, o primeiro a ir para a tropa na família com uma mobilização atribulada para a Guiné (1) (o segundo foi o João com comissão em Angola) (2), passou o tempo a dar-me conselhos sobre como me devia comportar nas lides dos quartéis, não obstante o tempo da chamada para a incorporação ainda vir longe.

Com a chegada da guia de marcha para as Caldas da Rainha os conselhos passaram a ser diários: "Respeita os graduados, o cabelo sempre curto, as botas sempre bem engraxadas, atenção aos amarelos... E a mais importante: nunca te ofereças como voluntário para nada". (Mais tarde constatei que este último conselho me livrou de algumas tarefas complicadas, nomeadamente descascar batatas toda a noite ou despejar fossas.)

Chegado o dia da partida, já devidamente preparado pelo Manel para enfrentar a vida militar, de mala feita e já fechada, chega à minha beira, o meu "padrinho de guerra", com 4 garrafas de vinho verde branco da casta Alvarinho e diz-me: "Abre lá o saco e leva estas quatro garrafinhas de vinho verde que te vão aligeirar a dureza da instrução".... "Como assim?",  digo eu. "Isto é assim", diz ele: "Logo no primeiro dia, com algum recato, ofereces 2 garrafinhas ao alferes e uma a cada cabo miliciano: funcionou comigo, contigo também não vai falhar!"...

O que logo me passou pela cabeça é que nunca teria a coragem de fazer tal coisa, para além de achar aquilo um absurdo, mas vi-o tão entusiasmado que pensei: "Ok, levo o material e encontrarei alguns momentos para confraternizar com os novos amigos de armas".

O meu "padrinho de guerra" foi comigo até ao comboio e ajudou-me a aconchegar a mala de modo a proteger as quatro "granadas".

Em Campanhã, arrastei a mala para fora do comboio e apercebo-me de um razoável grupo de mancebos com o cabelo rapado e com o mesmo ar assustado como o meu. Ao entrar para o novo comboio tive de pedir ajuda e logo surgiram as primeiras "bocas": "Já levas aí material de guerra?".. "São só quatro granadas" disse eu.

Em Alfarelos, onde a linha do Oeste desagua na linha do Norte, a estação ficou completamente inundada de mancebos vindos do Norte e do Centro do país,  mais parecendo um grande grupo de jovens em Interrail

A tarefa mais complicada foi carregar a mala da estação até ao quartel, mas com a ajuda dos amigos da ocasião lá se venceu o caminho.

Chegados à porta do quartel, deparo-me com uma enorme fila de pessoal para entrar. Pelos vistos, e para mal dos meus pecados, havia soldados a revistar minuciosamente todas as malas. Comecei a ver a minha vida a andar para trás. A primeira coisa que me ocorreu foi livrar-me daquele material perigoso, mas com tanta gente ao meu lado tal não era possível, pelo que tentei trazer a roupa toda para a parte de cima da mala tentando camuflar as "botijas" e seja o que Deus quiser.

Chegada a minha vez, com as mãos a tremer e já a transpirar, não obstante o frio que se fazia sentir, o nosso "pronto" começa a fazer a sua minuciosa revista, ficando estupefacto quando se depara com as quatro "granadas". 

Manda-me entrar para a guarita e com um ar sério vai dizendo que estou metido num grande sarilho: é crime levar bebidas alcoólicas para a caserna. Manda-me aguardar um pouco afirmando com algum dramatismo: "Vou chamar o nosso cabo já que só ele pode tratar deste caso". 

Chamou o cabo, mostrando um semblante de quem está a tentar salvar alguém da forca e disse-lhe: "Vê lá o que podes fazer pelo rapaz, não queremos que vá, logo no primeiro dia, dormir na cadeia do quartel!"... 

O nosso cabo olha para mim, fita as garrafas enquanto palita os dentes com a língua e "bota" a sua sentença: 

 "Se o oficial dia encontra aqui estas garrafas estamos todos tramados. Vou ficar com o seu nome, tentar esconder este material e, se tudo correr bem, está safo, se isto for descoberto está com um grande problema". 

A minha chegada às portas da tropa não podia ter começado melhor! Mais parecia a chegada às portas da guerra do Raul Solnado. Já me estava a sentir a pão e água na prisão do quartel!

Com as pernas a cederem e cheio de suores frios lá disse ao homem com a voz embargada: "Obrigado nosso cabo, ficar-lhe-ei eternamente agradecido"... mas receando o pior.

Passados uns dias (vividos com alguma ansiedade pelo desfecho do incidente das garrafas) tenho em cima da minha cama, depois de um dia duro de instrução, uma caixa com as quatro garrafas vazias e com a seguinte mensagem: 

"Podes ficar descansado. Assunto encerrado. Aqui estão as quatro 'granadas' já sem espoleta" (espoleta é um mecanismo que provoca a explosão da granada sem a qual a mesma é praticamente inofensiva)... "Sempre às ordens. Aguardamos, impacientes, a nova remessa"…
 
 _________

Notas do autor:

(1) Chegou a Bissau com uma grande pneumonia contraída durante a viagem, tendo quase de seguida regressado ao continente, com passagem à reserva, sem nunca ter visto Bissau.

(2) A sua comissão em Angola, como Furriel Miliciano, foram 2 anos de férias, numa zona junto a Luanda, onde nunca se sentiu a guerra e onde comprou carro e alugou casa…

No regresso embarcou ele (juntamente com a sua companhia) e o seu carro, um Ford Taunos, uma grande e espetacular "limousine" à americana dos anos 50 (a circular ainda hoje nas ruas de Havana), que fez parar a aldeia à sua chegada vencendo os caminhos, só frequentados até então por carros de bois, para chegar a casa...



Tavira > CISMI > Julho de 1968 > A chegada ao quartel da Atalaia dos novos instruendos do 1º Ciclo do CSM, vindos de todo o país. Fila do pessoal para receber fardamento, Foto do Fernando Hipólito, gentilmente cedida ao César Dias e ao nosso blogue.

Esta cena podia passar-se também à porta do RI 5, nas Caldas da Rainha. Esta rapaziada, chamada pela Pátria para cumprir o serviço militar obrigatório (, em tempo de guerra...), em finais da década de 1960 já tem um outro "look", a começar pelo vestuário... Tem outras habilitações literárias, outra  postura...

Presume-se que as belas cabeleiras, à moda dos "Beatles", já tinham ficado ingloriamente no chão do barbearia lá da terra ou de Tavira... Muitos fotam tosquiados à máquina zero, suprema humilhação para um jovem da época!... Não, já não é a mesma malta que parte, de caqui amarelo e mauser, para defender as Índias & as Angolas, uns anos antes ... O velho Portugal onde tínhamos nascido, estava a mudar, lenta mas inexoravelmente. E a nossa geração já não estava disposta a suportar os mesmos sacrifícios dos seus pais.

Foto (e legenda). © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: logue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[10] Tavira: com amor, ódio… e trampa


Já na altura, a tropa estava muito à frente! – eram distribuídas as especialidades de uma forma cientificamente infalível, através de testes ditos psicotécnicos que na altura, creio eu, só o exército utilizava.

Era recorrente ouvirmos que escriturários iam para mecânicos, mecânicos para escriturários, enfermeiros para transmissões e técnicos de rádio para enfermeiros...

Dado este rigor científico, tinha a expectativa, dada a frequência do 3.º ano em engenharia eletromecânica (Curso de Eletrotecnia e máquinas), que me sairia em sortes, no mínimo, a especialidade de transmissões!

Enfim: Armas Pesadas!... e "ala" para Tavira.

Só mais tarde, depois de uma análise mais fina aos psicotécnicos e ao constatar que a maioria dos meus camaradas do pelotão de armas pesadas tinham, alguma, formação em engenharia mecânica e eram todos "roda 26", (todos com pouco mais que metro e meio de altura), compreendi a justeza e o valor científico dos mesmos. Montar e desmontar os canhões sem recuo e as metralhadoras pesadas só alguém com alguns conhecimentos de mecânica.

Já a "roda 26" era muito importante (como é que eu não pensei nisso?) para se poder operar dentro do espaldão, de pé,  continuando protegidos já que não atingíamos a altura dos bidões de proteção! A tropa estava mesmo muito à frente!

Gostei, e gosto, muito da cidade, das praias, das igrejas, das gentes, das esplanadas, das chaminés. Detestei a instrução de "mata cavalo", não pela dureza, nem pelo rigor da disciplina militar, mas pela brutalidade gratuita de alguns graduados já com várias comissões no então ultramar.

Gostei do espírito de grupo e camaradagem do pessoal daquela incorporação.

Estes 3 meses em Tavira escancararam-me a porta para o novo mundo, já ligeiramente entreaberta no ano do curso antes da incorporação (tinha o "Canto e as Armas" de Manuel Alegre e uma cassete com os Vampiros e o Menino do Bairro Negro do Zeca Afonso e já me sentia um revolucionário!), fazendo de mim um cidadão mais informado e consequentemente (e conscientemente) mais disponível para abraçar causas, que no contexto da altura só podiam ser as da liberdade.

Foi uma verdadeira escola de vida. Não pela instrução, contraproducente, mas pela densidade cultural e política de alguns dos intervenientes nas tertúlias e reuniões, supostamente, clandestinas.

Discutia-se e questionava-se a guerra, a ditadura, o embrutecimento da instrução militar, as péssimas condições das casernas e a péssima alimentação e também... futebol (aqui as divergências eram claras)… e as lindas algarvias (aqui havia mais consenso), etc.

Nesses três meses fizeram-se dois levantamentos de rancho (decididas em reuniões clandestinas restritas e com a informação a circular de boca em boca). Nenhum instruendo cedeu. A todos estes acontecimentos não é alheio o facto de fazerem parte desta incorporação dois filhos de altos dirigentes do MDP/CDE, que obviamente eram os líderes e promotores das tertúlias e reuniões clandestinas e de quem perdemos o rasto dias antes do fim da especialidade...

Na altura o então capitão Raúl Folques (militar altamente prestigiado) comandava, se a memória não me falha, uma das companhias de atiradores. A sua presença impunha respeito (na altura mais medo). Militar irascível, mas com comportamentos fora dos cânones militares ao terminar um levantamento de rancho, dando voz aos instruendos, deitando para o lixo toda uma refeição e ter mandado preparar uma nova, de qualidade aceitável, voltando, contudo, tudo ao normal nas refeições seguintes.

Toda a instrução era estúpida, contraproducente e desajustada tendo em vista o objetivo principal que era a criação de um corpo de militares preparados física, psíquica e tecnicamente para uma guerra de guerrilha num ambiente hostil e completamente desconhecido.

O objetivo principal da instrução foi sempre e só a humilhação pessoal:

  • Rastejar do quartel até ao local de instrução, com paragens para ler o RDM (Regulamento de Disciplina Militar) com um pé do instrutor em cima das nossas costas;
  • "Chafurdar" nas salinas abandonadas, de águas podres, pelo simples prazer de humilhar;
  • Fazer a entrega da correspondência, em formatura na parada, fazendo comentários brejeiros e mesmo obscenos sobre o que seria o conteúdos das mesmas enxovalhando todo aquele que recebia uma carta perfumada ou com "coraçõezinhos"...

Chegou-se ao ponto de se abrir uma carta (com muitos coraçõezinhos) e ler o conteúdo da mesma para todo o pelotão. Tal só aconteceu uma vez dado a ameaça, levada muito a sério, que se voltasse a fazer o mesmo o autor levaria um tiro.

Bastou uma semana passada em Tavira para compreender porque toda a gente chamava Hotel das Caldas ao quartel das Caldas da Rainha...

Tendo em conta as experiências do dia a dia e as histórias contadas por militares que por ali tinham passado, a semana mais temida era a da "nomadização". Éramos lançados, em pequenos grupos, na serra do Caldeirão, com ração de combate apenas para um dia, com um conjunto de pontos onde éramos obrigados a passar, regressando ao pondo de partido, no 4.º dia, onde éramos recolhidos.

Contra todas as expectativas foram os melhores dias que passei em Tavira. Tinha eu a ideia que estando nós no Algarve, supostamente uma das regiões mais desenvolvidas do país por força do turismo, ali já massificado, e o contacto com grande número de estrangeiros, que todo o conforto aqui seria possível.

Eu que vinha duma pequena aldeia do Minho, fiquei boquiaberto com o isolamento daqueles pequenos povoados, dispersos, sem luz elétrica, sem vias de comunicação, só trilhos por onde passavam, com dificuldade, animais.

A nossa chegada a estes locais era como a chegada de extras terrestres. Fomos recebidos por estas gentes como família e como familiares comemos à sua mesa. Nos quatro dias sempre jantamos à mesa, em casas diferentes, e dormimos: uma noite num curral dos animais, outra num silo e a terceira noite numa destilação de aguardente de medronho onde acordamos completamente tontos (embriagados) dado a quantidade de vapores etílicos no ar.

Numa das casas uma mulher, já nos seus 60 anos, confidenciou-nos que não obstante ser Algarvia, ainda não tinha visto o mar.

Contudo havia uma pequena escola primária, com meia dúzia de crianças, onde falamos com a professora, ainda jovem, com o namorado na tropa nas Caldas da Rainha, pelo que, não só, mas também, pensando nele, fez questão de partilhar connosco o seu lanche que os habitantes todos os dias lhe preparavam.

Durante a agradável conversa, com os alunos maravilhados com o generoso intervalo, contou-nos a sua aventura diária para chegar à escola. Utilizava 3 meios de transporte: autocarro, bicicleta e um burro nos últimos metros mais acidentados. Despedimo-nos com votos para que o seu namorado jamais viesse parar a Tavira...

Mas, o momento marcante da instrução (para além do tradicional mergulho nas velhas salinas de água podre, a semana de campo e a semana de nomadização) era o dia do fogo real, feito para a ilha de Tavira.

Com a especialidade de armas pesadas tínhamos de manobrar, de olhos fechados, as seguintes armas:

  • canhões sem recuo (cujo disparo tinha de ser feito com o cotovelo, com as mãos a tapar os ouvidos e a boca bem aberta para não darmos cabo dos tímpanos);
  • morteiro 120,
  • metralhadoras pesadas Browning e Breda.

Tudo isto a disparar para a ilha de Tavira metia medo ao susto. E assim foi...

O responsável pela carreira de tiro era um Tenente que tinha chegado recentemente da Guiné (um dos homens mais temidos no quartel a par do capitão Folques), completamente "cacimbado".

No meu pelotão tinhamos um excelente rapaz, grande melómano (moldou os meus gostos musicais que perduram até hoje), que de todo, não atinava com esta "coisa" da tropa. Começado o "fogachame" em simultâneo para a ilha de Tavira com a Breda, a Browning,  o morteiro 120 e o canhão sem recuo (o fogo de artifício das festas da Senhora da Agonia, comparado com isto é uma brincadeira de criança), logo o nosso melómano começou a fugir aos gritos impressionado com todo aquele aparato, convencido que o mundo estava a desabar.

O Tenente obriga-o deitar-se no chão e diz-lhe: "Se levantares a cabeça, um milímetro que seja, és um homem morto"... E começa a disparar com a Breda por cima do rapaz

A todos nós, que estávamos a assistir aquilo, não nos cabia um feijão no "dito", não obstante constatarmos que, pese embora o "cacimbo" da Guiné, o homem apontava as rajadas para uma altura de segurança, nunca pondo em perigo a vida do nosso camarada.

Terminado o filme de terror, fomos a correr ver como estava o nosso homem: branco, branco. Levantamo-lo, com todo o cuidado, e foi então que começamos a sentir um cheiro insuportável e algo a escorrer pelas botas a sair das calças do melómano... e assim passou de melómano a "merdalómano" (um mal nunca vem só…)

Nota: Nessa noite a caserna parecia a "aldeia da roupa branca (neste caso verde)" com toda a gente a estender as suas calças a secar penduradas na cabeceira da cama, ao qual me associei, contudo não tenho memória que tivesse chovido nesse dia!...

(Continua...)

____________

Notas do editor:

domingo, 19 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20875: (Ex)citações (365): Os ex-combatentes, agora confinados por causa da pandemia de COVID-19... Hoje, como ontem, "presos"! (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael Porto > CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > Aquartelamento e tabanca no final da comissão, em 1968

Foto (e legendagem): © Mário Gaspar (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso amigo e camarada 
Mário Gaspar,  ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68: 

Date: sexta, 10/04/2020 à(s) 01:36

Subject: Presos

Caros Camaradas Luís e Carlos

A minha vida tem sido complicada. Após me ter envolvido na Poesia – nunca fui Poeta – embora entretanto não tenha paciência senão nessa leitura, comecei a colaborar com o Capitão de Abril, Major General–Médico João Bargão dos Santos – já não o via desde 2000 – convidou-me para a fundação da Associação Salgueiro Maia. Começou com uma Petição. Nada aconteceu como se julgava e o General não se entendeu com os restantes, já após o Registo da Associação e pediu a demissão. Continuo mas contrariado.

Os problemas de saúde agravaram-se, é impossível combater tantas doenças, e sou um Combatente. Antes do jantar resolvi sentar-me defronte do computador, saiu este texto. Foi complicado lembrar-me de alguns nomes.

Aqui vai.

Um Abraço Mário Vitorino Gaspar


2. PRESOS!...

Olá Luís, Olá Carlos e Olá Camaradas

Camaradas de Guerra da Guiné, Camaradas de Guerra das Outras Colónias.

Para os Camaradas do Blogue, regresso agora, sei que estão "fechados a sete chaves, nas vossas casas" – PRESOS. Os Camaradas Sem-Abrigo – segundo consta – continuam a dormir na rua! – PRESOS. É triste, se for verdade. Para eles o meu apoio.

Todos os que passaram 24 horas diariamente na Guiné, fora de Bissau, fomos prisioneiros. PRESOS na rua.

Tínhamos à nossa frente paliçada e arame farpado. Lá adiante avistávamos capim e mata. Só capim e mata. Lá por detrás do capim era a mata. Éramos prisioneiros dum presídio sem grades. Mas capim e…

O Combatente mata, para não ser morto. É um princípio, não podemos abdicar dele.

Agora, com este inimigo [, o novo coronavírus SARS-CoV-2,] só visível porque mata e faz sofrer, nós Combatentes nada podemos fazer, mesmo que possuíssemos a arma mais mortífera, dizer para um nosso camarada: 
– Mata!

Temos de baixar a cabeça, entrar em casa e fechar a porta a sete chaves. Esperar. Penso termos argumentos, porque somos Combatentes, em termos medo. Decerto que o medo existe, como também este surto, haja o primeiro que diga o contrário. Estamos PRESOS.

Avisam, e de consciência tranquila – esses Senhores que nos governam, que não sabem o que é uma guerra – nem sequer lá estiveram. Repetem e voltam a repetir:
– Fechem-se em casa. Lavem as mãos; desinfectem-nas; não levem as mãos ao rosto, etc., ponham a máscara. 

Mas que máscara? Os açambarcadores compraram todas. Agora a Ministra da Saúde nem sabe se os Portugueses devem ou não usar máscaras. A verdade é, quem as possui é de as guardar, não vá o diabo tecê-las.
– Os velhos têm prioridade! – Dizem.

Um PSP disse-me que era velho e que tinha de ir para casa. Respondi:
– Sou doente e se deixo de andar, então tenho mesmo de recolher de uma vez para sempre. As pernas estão ligadas, tenho mesmo de percorrer alguns metros por dia. Vou andando, não se vê ninguém na Avenida. Desloco-me pelo passeio. Peço-lhe de uma vez por todas, não chame velho a ninguém… Velhos são os trapos… Diga antes. "O Senhor está noutra idade, tenha cuidado! E só lhe fica bem!"...

O Polícia riu.

Fui Prisioneiro no Centro de Apoio Social (CAS) do Instituto de Apoio Social das Forças Armadas (IASFA), vi utentes às portas da morte, vivendo isolados no interior de um Palácio, cercado por vinhas e campos de laranjeiras.

Tenho transmitido àqueles que conheço o que sinto.

Na Guiné, partilhámos em períodos diferentes, o confronto com o denominado "IN", que nunca foi o meu inimigo. O inimigo era um regime fascista, desprezado e colocado à parte pela grande maioria dos países do mundo. Enviara-nos para a guerra e PRESOS.

Fui sempre contra a Guerra, bem podia não ter ido... Deixei de estudar. Existiam dificuldades de emprego e a vida obrigou-me a seguir as pegadas do meu Pai, que era Industrial de Panificação. Costumo a dizer que "fui fabricado numa Padaria", mas não sou adepto do alimento, talvez um dos mais necessários da humanidade...

 "O precioso pão"! Fui Ajudante de Padeiro, com Carteira Profissional. Também, tenho a acrescentar, estive Tuberculoso aos 7 anos, durante um ano não frequentei a Escola (1.ª Classe). Nasci na Freguesia de Santa Maria, em Sintra, e foi no Antigo Edifício dos Bombeiros Voluntários de Sintra que fui à Inspecção, embora desde os três anos morasse em Alhandra, Vila Industrial, foi aí que aprendi a ser Homem, embora tenha estudado no então famoso Externato Sousa Martins, em Vila Franca de Xira, desde os meus treze anos  namorei com uma sueca, linda boneca, Ingrid Margaretha Gustavsom. Alhandra foi a minha Universidade. Tive como Professores Sábios Avieiros e os Operários.

Nessa dita Inspecção, a dada altura escutei – sacudi os ouvidos – o vozeirão de um Sargento: 
– Todos nus! – Era o princípio de entrar numa prisão. PRESOS ...

Sabia que ia ser complicado para a grande maioria exporem o seu sexo.

Fui nadador (?)... Nadei em competições, com dificuldades respiratórias, era óbvio se estive tuberculoso. Tomava o meu duche após sair da água da Piscina do Alhandra Sporting Club, nascida no digno trabalho de Soeiro Pereira Gomes, o escritor de "Esteiros", que viveu em Alhandra e ofertou aos Operário uma grande herança: Bibliotecas e um "charco" que deu origem a essa Piscina.

Sucede que me expus e nu, de imediato numa varanda, mesmo defronte do famoso Palácio da Vila. Turistas, eram muitos, apontaram o dedo e riam. Dois ou três fizeram o mesmo com o intuito de me apoiarem e os restantes colocaram as suas mãos-folha-de-parra, escondendo o sexo. 

Fiquei Apurado para Todo o Serviço Militar. Refilei, mas nunca disse ser Padeiro. De certeza se o dissesse não seria Atirador. Continuava a namorar a sueca, sempre por escrito, que insistia para ir para a Suécia, tinha emprego na firma do pai e casaríamos depois. Ainda tentei, mas o dinheiro que ganhava, o meu Pai depositava numa conta. Nem sequer tive hipótese de acesso à mesma.

A três de Maio de 1965 apresento-me no RI 5, Caldas da Rainha, para iniciar a Escola de Recrutas no Curso de Sargentos Milicianos. Nem sequer pedi para ir para a Tropa. A partir desta data fiquei preso. PRESOS.

Terminei a Recruta e fico preso no CISMI, em Tavira. Não gostei dos Algarves, embora as algarvias fossem quentes. Muitos colchões de palha e percevejos em liberdade na parada a um sol quentíssimo. Isto em princípios de Agosto de 1965. Tratava-se de um Curso de Armas Pesadas.

O Comandante de Pelotão foi o então Alferes Cadete (Luís Carlos Loureiro Cadete), voltei a reencontrá-lo a Comandar a Grande Operação Revistar, onde tudo aconteceu.

Numa outra Companhia do CISMI, comandava um Pelotão o Alferes Fernando Augusto C. L. Robles – conhecido por muitos – até ser "julgado" no pós 25 de Abril.... Simulo uma lesão, tentei safar-me, ainda estive no Hospital Militar, em Évora, enganei-os e perdi a Especialidade por estar afastado da mesma mais de 10% do tempo. Por pouco tempo deixo de fazer parte dos PRESOS.

Sou chamado para a Escola Prática de Artilharia, Vendas Novas. Tento a minha sorte e na primeira tentativa ganho as boas graças do Major Comandante do Curso. Sou obrigado a Prestar Provas para os Comandos e quase que me apanhavam. Procuravam Monitores para Cursos dos Comandos. Ainda volto ao Hospital Militar de Évora depois de ter enganado meio mundo. Termino a Especialidade, sou promovido a Cabo Miliciano e colocado em Viseu, num Pelotão de Instrução de Recrutas como Monitor.

 O Instrutor é o Alferes Antunes que iniciara uma Comissão em Moçambique, caiu numa mina ficando com o rosto desfigurado. Operado na Alemanha, ficaram alguns sinais. Aguardava ser chamado para uma outra cirurgia. Outros Monitores: Um Cabo Miliciano e um Cabo Readmitido. Cada Pelotão dava Instrução a 77 Recrutas. Lá tive a minha História. O Comandante do RI 14 era um dos futebolistas heroicos que venceram a Taça de Portugal pela Académica de Coimbra, em 1939, Carlos Faustino da Silva Duarte. 

Não seria mobilizado se me tivesse apresentado a horas no Quartel. O Coronel era amante do Desporto e reuniu da parte da manhã com os Aspirantes do Quadro e os Cabos Milicianos. Pretendia saber quem praticava Desporto e a Modalidade. Podia-me inscrever na Natação, o futuro disse-me que fosse um bom militar me tinha safo. Entrei nos Campeonatos da Região Militar, em Tomar e fui à Final dos 100 metros Costas. Nadava Costas de brincadeira. Tinha regressado dos Rangeres, Lamego onde me obrigaram a Prestar Provas e fui chamado ao Coronel Faustino que me pediu para nadar o Estilo Costas, porque assim o RI 14 podia concorrer por Equipas. Tínhamos terminado uma Instrução e foi no Juramento de Bandeira. Os familiares dos Recrutas, como sempre, traziam cestos de comida. Os Soldados queriam que petiscasse e bebesse uns copos. Não me sentia bem. Chamam-me, um Tenente Amigo que fazia parte da Equipa de Natação, diz-me: 
– Mário, estás mobilizado para a Guiné! Não digas a ninguém…
– E os outros Cabos Milicianos?
– Também. Mas só os mais velhos…

Voltei para junto dos Soldados e comi, bebi ainda mais.

O Coronel Faustino chama-me:
– Sabe, está mobilizado. Tenho tentado ver se o safava. É pena porque estava apurado para o Campeonato das Regiões Militares.

O Capitão da Companhia, informa-me:
– Não sei se leu a Ordem de Serviço? Mas de qualquer modo fica a saber que é o Responsável pelo Controlo da próxima Recruta.

Vai a cada Pelotão e observa como estes tipos Aspirantes dão a Instrução. Você sabe que não quero que comecem a ensinar como se faz a esquerda volver, sem saberem fazer a direita!

Só tive chatices. Quando via que os Aspirantes não faziam conforme o que o Capitão pretendia aproximava-me do Aspirante – eram todos acabados de chegar da Academia – dava o recado, mas de modo que ninguém ouvisse. Gritava logo:
– Ó Nosso Cabo!
Não respondia, nem sequer era Cabo. Muito embora fosse Cabo no Pré e Sargento de Serviço. Iam fazer queixa ao Capitão, ele respondia:
– Não sabem que o Mário é Cabo Miliciano?

O Alferes Antunes, um grande Amigo. Combinara comigo e com o outro Cabo Miliciano que o tratamento entre nós fosse por «tu». Morava na Rua Direita, em Viseu. A esposa estava grávida. Todos os dias conversávamos, um dia diz-me:
– Nunca mais me chamam para a Cirurgia. Abriram Concurso para a Brigada de Trânsito da GNR, vou candidatar-me!

No dia que saio do RI 14, já me despedira dos Sargentos da Secretaria que me encobriram todas as baldas – uma de 11 dias em casa, sem licença – e tocou a hora da despedida do Capitão Amaral (Militarista): e Alferes
– Mário, você é bom rapaz. Mas isso não é nada! Dê-me um abraço!

O Alferes abraçava-me e chorava. Só mais tarde entendi. O Antunes tinha Stress Pós Traumático de Guerra.

Apresentei-me no Regimento de Artilharia de Costa (RAC), Oeiras, à civil, mas depois de ir até à casa. Cheguei pela noite ao Quartel e o Oficial de Prevenção, um Aspirante recebeu as Guias e acompanhou-me ao local onde ia dormir. Ao chegar vejo uma cama, tapete e mesa de cabeceira. Estranhei! O mesmo Aspirante acordou-me atrapalhado:
– Nosso Cabo Miliciano, estas instalações são dos Oficiais, tem de sair! 

Enviam-me para a Escola Prática de Engenharia (EPE), Tancos para tirar o Curso de Minas e Armadilhas. Até um rebentamento houve no XX Curso de Minas e Armadilhas.

Tudo prisões. PRESOS. A pior de todas foi ter tirado este maldito Curso. Antes Comandos ou Rangeres.

Algo aprendi neste período de tempo, principalmente ter conhecido o perfil do Heroico Soldado Português. Dei diversas Recrutas em Viseu... Muitos nunca tinham sequer visto um comboio; e nunca terem visto o mar (?); outros nunca tiveram o prazer de tomar banho, decerto que tinham mergulhado em águas da ribeira; e o cansaço antes e após o esforço (?). Alguns nem sequer conheciam o cansaço. 

Depois só necessitavam de manejar uma arma. Vivia a maioria em aldeias distantes das vilas ou cidades, nuns casos nem sequer conheciam essas mesmas terras, de qualquer modo como não existissem transportes era a pé que andavam quilómetros. Com a enxada cavavam desde o nascer ao pôr do sol. Poucos ou nenhuns tinham passado fome, podiam não terem acesso a determinada alimentação, mas não era por aí. Quando chegavam novos Recrutas tínhamos de acompanhar, cada vez que íamos à Porta de Armas, 50 futuros Soldados. Um dia surgiram à porta-de-armas dois inimigos do banho. Quando chegou o momento de todos irem ao duche disse para um tirar a sujeira do outro, usando sabão e unhas. Mas pénis e cu, cada um lavava o seu. Fizeram aquilo que mandei e ficaram ambos no meu Pelotão. Pois um deles passou a tomar banho todos os dias.

Aquilo que aproveitei foi conhecer bem o Nosso Soldado Português.

Vou para o GACA 2, em Torres Novas para uma "Escola de Quadros" – fico em vias de apanhar uma porrada – afinal estávamos lá por engano. É quando conheço o Capitão da minha Companhia. Apresentei-me no RAL 5, Penafiel, onde as CART's 1659; 1660 e 1661 fizeram a Instrução Operacional, para rumarem para a Guiné, onde conheço quase todos os Soldados.

A decisão estava tomada e decidi partir mesmo, e cumprir. Continuaria a tratar os Soldados por «você», esperava ajudá-los e que me ajudassem. Como possuía uma grande força interior, por ser o primeiro Cabo Miliciano que o Capitão conheceu e sermos somente três com este Posto, tive influência em quase tudo o que vem a suceder. Todo o Pessoal Especializado não está nesta Instrução. Tivemos de fazer a escolha daqueles que seriam os 1.ºs Cabos e o Pelotão e Secção onde iam ficar integrados. Atribuída a minha Secção, que era maior e peço que acrescente mais um elemento, o Capitão aceita. Intrigado, ri quando indico o nome do Soldado Armando Pardelinha. Tinha medo de saltar o galho. Acompanhou-me sempre, e em todas as Operações.

Pois Gadamael Porto era um Quartel junto da fronteira, da Guiné Conacri. Estava agregado o Destacamento de Ganturé. Em Gadamael existiam dois edifícios que tinham pertencido a colonos. Partilhávamos o espaço com a população civil. Posso dizer que passe pelos Comandos e Rangeres, terminei nas Minas e Armadilhas, até me deram um Diploma numa Cerimónia no Palco do Cineteatro, de Tancos.

Curioso que nunca vi no mato – foram praticamente 23 meses – nenhum Fuzileiro, Comando ou Ranger. Aliás, minto. Existia na minha Companhia um Ranger, o Furriel Miliciano José Nicolau Silveira dos Santos – o grande Amigo Açoriano que vive no Canadá.

Somos Combatentes e PRESOS, de Serviço durante 24 horas; não autorizados a licenças de recolher; sem fins-de-semana. Os chamados Tropas Especiais – tenho muitos Amigos Combatentes nessa Tropa – mas viviam em Bissau e eram chamados para Operações. Podiam ir "às meninas", petiscar no Zé da Amura ou andarem aos tiros uns contra os outros após de jogos de futebol entre eles.

Mas este flagelo, ou surto que ataca o Mundo não é – como ouvi e li – uma guerra – nem o exagerado termo, 3.ª Guerra Mundial, embora tenha muitas semelhanças, esta é a minha opinião.

O que será então? É o desafio que deixo ao Blogue.

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quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20365: Álbum fotográfico de Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7 (Bissau e Fulacunda, 1969/71) - Parte I


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Fotos (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Tabanca da Linha > Domingos Robalo.
Foto de Manuel Resende (2019)
1. Fotos do álbum de Domingos Robalo,  ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda;  

[, Foto à direita: Domingos Robalo:

(i) tem página no Facebook desde março de 2009 e administra também o grupo Artilharia de Campanha na Guiné-BAC1/-GAC7;

(ii) vive em Almada, está ligado à Universidade Sénior Dom Sancho I, de Almada, onde faz voluntariado, desde julho de 2013, como professor da disciplina de "Cultura e Arte Naval";

(iii) trabalhou na Lisnave; é praticante de golfe;

(iv) e passou a integrar a Tabanca Grande, com o nº 795, desde 21 de setembro último]


Legendas das fotos acima publicadas (*)


(...) A minha mobilização para a Guiné ocorrera para cumprir uma rendição individual de um militar que não teve oportunidade de chegar ao fim. Ia substituir o furriel miliciano Batista [, António da Conceição Dias Baptista, natural de Murtal, São Domingos de Rana, Cascais ], que infelizmente não terminara a sua comissão no tempo normal. No dia 14 de fevereiro de 1969, morre heroicamente ao lado do seu Comandante de pelotão, o alferes Gonçalves [, José Manuel de Araújo Gonçalves, natural de Lisboa], São vítimas de um ataque IN no aquartelamento de Guileje.

(...) A sete de maio de 1969, embarco no “Niassa” com destino a Bissau (Fotos nº 1 e 2].

(...) Ao fim da manhã do dia 12 de maio, o navio “Niassa” está ao largo de Varela, aguardando a ida a bordo da Autoridade Marítima. Ao fim da tarde do mesmo dia está a acostar ao cais de Bissau.

(...) Sou dos últimos militares a desembarcar, por ser de rendição individual e por o meu destino ser o quartel da BAC 1 [Bataria de Artilharia de Campanha nº1, sediada junto ao QG (Quartel General)]. [Fotos 3, 4 e 5]

(...) Chego finalmente ao aquartelamento da BAC1, onde me espera um quarto com cama feita.
Sou recebido por Furriéis e Sargentos e Oficiais que me aguardavam com amizade e simpatia. Ainda hoje me encontro com alguns desses meus camaradas, o Mendes, o Glória, o Faro, o Chaves, o Correia, o Mendes de Almeida e outros tantos, e até o meu Comandante, à altura o Capitão M. Soares.

(...) Durante cerca de quatro meses permaneci em Bissau [, na BAC 1], participando nas “escolas de recrutas” que era levada a efeito com soldados do recrutamento da Província. [Fotos nºs 6. 7 e 8]

(Continua)

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Nota do editor:
Vd. postes de :


3 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20202: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte II: recruta no RI 5, Caldas da Rainha, na 5ª companhia, comandada pelo ten inf Vasco Lourenço


9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20222: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte IV: Depois de 4 meses a dar formação de artilharia de campanha, a graduados de pelotões de morteiro, sou colocado em Fulacunda, a comandar o 22º Pel Art