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domingo, 22 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24780: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVII: assalto, da 1ª CCmds Afriicanos, com o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor, ao irã da Caboiana, em outubro de 1972

 

Guiné > s/l > s/d [c. 1973/74] > Da esquerda para a direita, o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes, e maj inf 'cmd' Raul Folques: o primeiro foi supervisor do BCCmds da Guiné, e o segundo o seu último comandante (entre 28 de julho de 1973 a 30 de abril de 1974). O BCCmds da Guiné integrava, além das 1Ç, 2ª e 3ª CCmds Africanas, a a 35ª CCmds e a 38ª CCmds. Foto dublicada no livro do Amadu Djaló, na pág. 240 (não se indicando a sua origem, presumimos que seja do álbum do Virgínio Briote).
 

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra)M

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor.



Guiné > Região de Cacheu > Carta de Cacheu / São Domingos (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor dos rios Cacheu e seus afluentes: Pequeno de São Domingos (margem norte); Caboi, Caboiana e Churro (margem sul), a montante da vila de Cacheu.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVII:

A 1ª CCmds na mata de Caboiana, em outubro de 1972, com o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor (pp. 239-242)


A nossa 1ª CCmds, comandada pelo tenente Jamanca, recebeu a missão de ir à Caboiana. Havia informações sobre a chegada de mais pessoal do PAIGC, vindo do norte, incluindo cubanos. Acompanhava-nos, como supervisor[1], o capitão Matos Gomes.

Depois de termos passado a noite na mata, saímos cedo do local. Estávamos no fim da colheita de arroz e estávamos a progredir num campo de lavra, cautelosamente, quando subitamente ouvimos duas rajadas curtas, à frente da coluna. O meu grupo fechava a companhia.

Primeiro ficámos amarrados ao chão, depois eu e o meu guarda-costas chegámo-nos à frente, junto do capitão Matos Gomes. Nessa altura, o alferes Sada Candé vinha na nossa direcção, com uma arma na mão e a dizer:
 
− Matei-o! 

− Aonde ?  − perguntei. 

− Debaixo daquela palmeira − respondeu. 

Dirigi-me com todos os cuidados para lá e encontrei um guerrilheiro com a perna partida e os ossos à mostra.

Pouco passava das 15h00 e o Jamanca, depois de falar com o capitão Matos Gomes, pediu a evacuação do ferido do PAIGC.

Quando se estava a fazer a evacuação, caiu uma chuva de morteiros na zona do helicóptero, que atingiu o local onde estávamos e todos os oficiais, menos o capitão Matos Gomes[2] e alguns estilhaços furaram o helicóptero[3]. Ficámos numa situação complicada.

O 1º sargento Braima Baldé, que era o mais antigo, ficou a comandar a companhia. Fizemos novo pedido de evacuação, mas antes de chegarem os helis, a zona de onde estavam a sair as morteiradas foi bombardeada pelos Fiat[4]. 

A evacuação não foi fácil, mas conseguiram levantar rumo a Bissau. Entretanto já era muito tarde para continuarmos a andar, tínhamos perdido muito tempo. O céu estava coberto de nuvens escuras, os relâmpagos e os trovões começaram a surgir, uns atrás dos outros, não estávamos com muita sorte com o tempo, ou então estávamos, nunca se sabe.

A chuva veio de uma vez, caiu toda durante uns minutos, depois parou. Achámos melhor permanecer naquele local da mata[5], até de manhã.

De manhã muito cedo reiniciámos a marcha, com o grupo do Braima à frente, o capitão Matos Gomes[6] no meio e o meu atrás. Caminhámos até às dez horas, mais ou menos, quando vimos um carreiro muito utilizado.

Braima virou à esquerda. Eu estava no grupo da retaguarda e, quando cheguei ao tal carreiro, virei á esquerda também. Tirei a minha carta do bolso, e, sempre a andar, comecei a observar o mapa. Pareceu-me que devíamos ter voltado à direita.

Dirigi-me ao Capitão Matos Gomes.

− Meu capitão, é por aqui?

−  É o Braima que vai à frente! 

Mandou fazer um alto e seguimos os dois ao encontro do Braima.

−É por aqui?  
− perguntou o capitão.

− É por aqui!   
−  espondeu o Braima.

− Não é por aqui, é para o lado contrário 
−  respondi eu.

Ao capitão também lhe parecia que era para a 
direita[7] . Então, voltámos para trás e, a partir deste momento, eu e o capitão passámos para a frente, em direcção ao objectivo.

Progredimos sem qualquer problema, até ouvirmos uns rebentamentos, que nos obrigaram a abrandar a marcha, mas continuámos rumo ao objectivo, a tal mata das cerimónias, o Irã da Caboiana.

Entrámos por um lado e saímos pelo outro. Lá dentro, vimos centenas de garrafas vazias, algumas mesmo muito antigas. Naquele local faziam-se cerimónias, desde muito antes de nós nascermos[8].

A avioneta apareceu e o capitão[9] transmitiu por rádio que a missão estava cumprida e que estávamos dentro do objectivo. Da avioneta pediram para estendermos uma tela para nos localizarem. Então, o coronel Rafael Durão, que era o comandante do CAOP, mandou-nos afastar do local e que procurássemos uma zona para sermos recolhidos. 

Andámos sempre, junto a um rio, que era um afluente da margem esquerda do Cacheu, até que nos afastámos para um local onde fomos recuperados.
____________

Notas do autor ou do editor literário, VB

[1] Nota do editor: as Companhias de Comandos da Guiné tinham um supervisor, um capitão Comando europeu.

[2] Nota do editor: o capitão Matos Gomes, embora atingido na boca, assumiu o comando, dado o facto do tenente Jamanca se encontrar mais incapacitado.

[3] Nota do editor: o helicóptero foi atingido na fuselagem.

[4] Nota do editor: Fiats G.91, que bombardearam e metralharam, muito próximo das forças portuguesas, com grande precisão.

[5] Mata da Cobiana, uma zona húmida entre bolanhas, constituída por palmeiras e árvores de grande porte e tendo por baixo mata densa.

[6] O que restava de um grupo, cerca de 20 homens.

[7] Nós vínhamos a descer a Caboiana, de Norte para Sul., mais ou menos pelo meio. Para a esquerda ficava a bolanha. O Irã da Caboiana, que era o que procurávamos, deveria situar-se no centro, para a direita, era um palpite.

[8] Era o Irã da Caboiana, um dos mais importantes, se não o mais importante da Guiné. Irã é um local onde adoram ídolos, dos que não acreditam em nenhum deus. Eles não adoram Deus, adoram deuses.

[9] Nota do editor: este relato do Amadu Djaló fala da progressão para Sul pelo centro da Caboiana, no primeiro dia. Como ele refere, capturaram um guerrilheiro ferido, e chamaram um heli para o evacuar. E quando estavam a proceder à evacuação, foram atacados violentamente. O  heli foi atingido, os feridos, entre os quais o Jamanca, saltaram para dentro dele, juntamente com a enfermeira paraquedista, mas o aparelho conseguiu levantar, em esforço e às abanadelas, em direcção a Canchungo. Apesar de ferido na boca, sem gravidade, o capitão Matos Gomes assumiu o comando das operações.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 9 de outubro de  2023 > Guiné 61/74 - P24739: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVI: Tocou tambor para Bubacar, em Porto Gole, Op Esmeralda Negra, 13-16 fev 1973

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23838: Antropologia (44): Armazenamento tradicional de produtos agrícolas: o "flu", o celeiro balanta (excertos de: Oliveira, Havik e Schiefer, 1996, com a devida vénia)


 Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Bissá > c. 1970 > Celeiros para a bianda... O capelão, alferes graduado José Neves é o primeiro, de perfil, à direita... Encostado a um dos potes de barro (onde se guardava o arroz), está o alferes mil, comandante do destacamento, cujo nome ignoramos (deveria pertener à CCAÇ 2587 ou à CART 2411, dependendo da data em que a foto foi tirada, antes ou depois de 5/3/1970, altura em que a CCAÇ 2587 rendeu a CART 2411).


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Bissá > c. 1970 > Celeiro para a bianda... Em balanta, chama-se "flu"...


Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Tipos de celeiros balantas. Cortesia de Oliveira, Havik e Schiefer (1996). Com a devida vénia


1. Excertos de  Oliveira, Olavo Borges de; Havik, Philip J.;  e Schiefer, Ulrich (1996) - Armazenamento tradicional na Guiné-Bissau. Produtos, sementes e celeiros utilizados pelas etnias na Guiné-Bissau: Fascículo 1, Beafada; Fascículo 2, Mandinga; Fascículo 3, Nalú; Fascículo 4, Balante; Fascículo 5, Fula deQuebo; Bissau, Lisboa, Münster, IFS 506p. ISSN 0939284X, pp. 415/417. (Disponível em http://hdl.handle.net/10071/1525 )


"Ful", o celeiro balanta

Nome Nativo

Ful

Nome crioulo

Bemba

Formato

Cilíndrico

Serventia

Reservatário de cereais

Capacidade

Variável

Tempo de construção

Uma semana

Época de construção

Véspera das colheitas


O TIPO DE CELEIRO

O “ful” ou "bemba" é um celeiro de formato cilíndrico, assemelhandose a um pote, cujo tamanho pode variar, conforme as necessidades de armazenamento. Os de maior tamanho podem atingir até dois metros de altura.

Este tipo de celeiro pode ter funções distintas, entre elas, armazenamento de produtos de consumo familiar (arroz, fundo, milho-preto,milho-cavalo, milho bacil e feijão, etc.), conservação de sementes, destinadas ao ano agrícola seguinte e, finalmente, armazenamento de cereais, arroz em particular, para fins rituais.

Os "ful" destinados ao armazenamento exclusivo de produtos de consumo, são normalmente os de tamanho maior, sendo os outros dois tipos de tamanho relativamente inferior.

Quanto ão lugar de instalação do "ful" na morança ("pang"), este pode variar. Às vezes, são instalados dentro da casa, ou na varanda, e muitas vezes no quintal. Por uma questão de segurança, podem mesmo ser instalados dentro do quarto de dormir do dono da morança. Isto passa-se, em especial, com os celeiros destinados ão armazenamento de produtos de consumo familiar.

AS TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO

Para a construção deste tipo de celeiro utilizam-se materiais locais e técnicas de construção simples.

A matéria-prima básica para a construção do "ful" é a lama e palhas secas de cereais. São utilizadas, com mais frequência, as palhas de arroz e fundo. Estas palhas são misturadas com a lama e apodrecendo, fazem com que a lama se torne ainda mais resistente.

Só depois desta lama preparada, é que iniciam a construção do celeiro "ful" A sua construção é feita, normalmente, junto do lugar onde vai ser instalado. Primeiramente, é construída a base do celeiro, com uma camada de palhas de.arroz coberta com lama. 

Depois de construída a base, inicia-se o levantamento das paredes por fases. Constroem-se camadas que se deixam secar, antes de se acrescentar nova camada, de modo a evitar a queda da estrutura, durante o período em que são trabalhadas. 

Depois de completa a construção das paredes, deixam-nas secar bem. No mato, colhem as cascas de uma árvore, chamada na língua de origem “rutch”. Estas são piladas e misturadas com água.

Com a. massa quase líquida que daí se obtêm, são polidas as paredes externas do "ful", tornando-o mais resistentes, e protegendo-o contra a entrada de insectos. No fim deste processo, deixam o "ful" secar novamente

Para que a base do mesmo possa ter uma protecção sólida, nunca o fincam em contacto direto com o solo. No local onde vai ficar instalado o celeiro, colocam uma camada de pedras que cobrem com palhas de arroz ou fundo e sobre a qual colocam o "ful"


A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO


A iniciativa de construção do celeiro é da responsabilidade do dono da morança. A sua construção pode ser organizada individualmente, ou então de uma forma colectiva

Em geral, o chefe da morança procura a ajuda de familiares ou vizinhos. Embora seja uma actividade dos indivíduos de sexo masculino, a participação feminina não é excluída nesse processo. As mulheres podem dar o seu apoio, ajudando, por exemplo, a trazer água, lama e outrosmateriais.

O PROCESSO DE ARMAZENAMENTO

A entrada dos produtos nos celeiros "ful", efectua-se logo a seguir às colheitas.

Os cereais depois de preparados, são em seguida transportados pelas mulheres, directamente para a moranças, e armazenados dentro dos celeiros.

Para se evitarem gastos arbitrários dos produtos, é ao dono da morança quem cabe a responsabilidade de controlo da entrada e saída dos cereais nos celeiros. É o chefe da morança que mede a quantidade de produtos a ser entregue à sua esposa, para os gastos diários. 

Se tiver mais que uma esposa, o seu dever é entregar os produtos à sua primeira mulher e esta se encarregará da sua distribuição pelas outras. Normalmente, cada uma das mulheres tem, dentro da sua palhota, um celeiro de tamanho inferior, a que chamam "ftchelé" (pote), onde guarda os produtos destinados ao consumo exclusivo do seu fogão. 

Quando as várias esposas do chefe da morança se dão bem, podem ter um só "ftchelé"para toda a morança,mas isto acontece raras vezes.

AS PRINCIPAIS AMEAÇAS

Os factores que poderiam constituir perigo para os celeiros do tipo "ful"são: as águas da chuva, o fogo e os ratos

Dado que, as casas dos balantas são cobertas todos os anos, os efeitos nocivos da chuva são quase neutralizados.

OS RITOS TRADICIONAIS

Não é costume a realização de rituais específicos na altura da construção dos celeiros.

Os "ful"  destinados exclusivamente à conservação de produtos com fins rituais, são construídos aquando do nascimento de uma criança e esta atingir a idade de desmame (normalmente aos três anos de idade). Nessa altura, os pais são obrigados a instalar um "ful"  de pequenas dimensões dentro da casa, onde vão reservando uma quantidade determinada de arroz, destinado só para as cerimónias a realizar para a criança. Sempre que ela adoece, ou lhe acontecer qualquer coisa, que os pais não possam explicar, tiram deste "ful" um pouco de arroz. Com ele preparam comida, a que misturam óleo de palma e leite de vaca, e procedem a um ritual junto do "ful" da criança, onde pedem a sua salvação.

Existe. também,  um "ful" único para os rituais de toda a morança. Os produtos alí conservados são destinados às cerimónias, que têm a ver com a vida dos membros de toda a morança. Os cereais armazenados provêm de cada um dos agregados familiares, que fazem parte da morança. 

As cerimónias que fazem, na altura do início da época das chuvas e no inicio do ano agrícola, dizem respeito a todos os membros da morança e são organizadas pelo chefe máximo da morança. É na altura destas referidas cerimónias, que se pede ao Irã da morança bem-estar para todos os seus elementos, durante a época das chuvas, e boas colheitas.

(pp. 415/417)


[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos: LG]

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23259: Notas de leitura (1445): “Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp; Editorial Inquérito, 1994 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Uns dias passados na Biblioteca Nacional deram-me oportunidade para reler e confirmar o valor deste trabalho de Eva Kipp, uma holandesa que andou enfronhada em vários projetos de divulgação da cultura tradicional da Guiné. Sente-se à vista desarmada o seu deslumbramento pela cultura bijagó, nomeadamente nas vertentes da antropologia, etnografia e etnologia. Trata-se de uma revisitação, em 2011 publicou-se aqui no blogue uma recensão que saudava o trabalho de Eva Kipp, ele era e é bem merecedor de ser reeditado.

Um abraço do
Mário



Revisitar um belo texto etnográfico e etnológico, com fotografia ímpar:
“Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp


Beja Santos

Em 2011, aqui se fez uma primeira menção ao livro de uma perita holandesa que colaborou com o Governo da Guiné-Bissau em vários projetos de divulgação da cultura da Guiné com publicação da Editorial Inquérito, 1994. Reler pode significar nova iluminação, desapontamento, descoberta de uma apreciação excessiva ou injusta. Confesso-vos que valeu a pena voltar ao livro de Eva Kipp: pela organização, pelo deslumbramento, pelas pistas que abre sobre a arte dos Bijagós, a sua religião, as suas pinturas murais, as suas práticas funerárias, a vivência da mulher guineense no trabalho.[1]

Quanto à arte dos Bijagós, diz a autora que segundo uma lenda Bijagó, a vida começou assim: Deus, o Criador, existiu sempre e, no início da vida, foi criada a primeira mulher – Orango, que era o mundo. Uma lenda que dá uma interpretação para o influente papel da mulher na sociedade Bijagó. A arte Bijagó está estritamente ligada à religião. A representação dos Irãs encontra especial relevo na escultura em madeira, a qual se alarga à representação de outras cenas da vida quotidiana e mesmo à produção de objetos de uso comum, caso de colheres ou bancos.

Uma religião que assenta nos Irãs e nos seus santuários. Os Irãs Grandes, chamados Irãs do Chão, são os mais poderosos da tabanca. Além de forma humana, eles são multiformes. O Irã Grande da tabanca de Entiorp, em Canhabaque, por exemplo, tem uma forma abstrata. Faz lembrar uma panela com a tampa decorada e envolvida num pano vermelho.

Em princípio, os Irãs Grandes devem estar na chamada “baloba dos defuntos”, que é o santuário das mulheres. Ficam depositados em casa dos régulos por motivos de segurança. Com o Irã Grande da tabanca é possível realizar muitas cerimónias pessoais, como para pedir que alguém tenha saúde ou sucesso no trabalho.

Não se pode falar de arte Bijagó sem relevar as suas pinturas murais. É sobretudo nas ilhas de Canhabaque, Bubaque e Formosa que existem pinturas murais em santuários e em casas. Na atualidade estas pinturas podem ser encontradas sobretudo nas balobas (santuários) e nelas retratam-se cenas do dia-a-dia da sociedade local. Assim, encontramos imagens de Irãs, feiticeiros, defuntos e animais.

O pequeno fanado é um acontecimento iniciático que tem uma profunda envolvente religiosa. Em cada período de seis ou sete anos, realiza-se nas ilhas dos Bijagós o fanado das raparigas. São cerimónias de iniciação em que participam raparigas de idade compreendida entre os 17 e os 25 anos. Essas raparigas são chamadas aos “defuntos”, pois nessa cerimónia vão receber a reencarnação do espírito de uma pessoa já falecida.

Continuando nos aspetos religiosos, Eva Kipp refere os djambacós ou curandeiros. São mediadores procurados por pessoas que precisam de conselho, possuem artes de vidência e poderes de curandeiro. Realizam cerimónias com conchas, orientam sacrifícios de animais; casos há em que os djambacós praticam a cartomancia ou prescrevem tratamentos para pessoas doentes.

Os aspetos da reencarnação são crença inabalável das sociedades animistas da Guiné-Bissau, pois as pessoas continuam, para além da morte, a participar na vida diária dos que permanecem vivos. Eva Kipp estende estas considerações de índole religiosa que abarcam, por exemplo, o funeral de um Homem Grande, o fanado, o Kussundé, que é dança tradicional de algumas etnias animistas, e não esquece o papel dos “mouros”, que são os sacerdotes muçulmanos. No Islamismo, a religião está no centro da organização social, e ela refere a mesquita, a peregrinação a Meca para a obtenção do título de El Hadj e o jejum por altura do Ramadão, tudo está presente na vida diária do crente muçulmano. Aliás, os mais novos são induzidos à aprendizagem dos versículos do Corão em escolas. Nessas escolas corânicas inicia-se a criança. A criança deverá fazer os dois níveis que compõem a escola corânica, ela memoriza, através da repetição cantada, os versículos e aprende a escrever os mesmos em curiosas tábuas. Os mouros mais famosos reúnem em si o filósofo, o conselheiro familiar e político, o curandeiro e a autoridade religiosa.

Na recensão aqui publicada em 2011 concluiu-se dizendo que se tratava de um livro de grande valor fotográfico e que bem merecia ser reeditado. Mantém-se o apelo, é evidente que tem continuado a investigação da sociedade dos Bijagós mas há aspetos essenciais inquestionáveis: na religiosidade, na arte, no papel do djambacó ou curandeiro, nas práticas funerárias, até no fanado.

Durante muito tempo correu a lenda de que a sociedade Bijagó era patriarcal, hoje sabe-se que não é assim, a despeito da mulher Bijagó ter um desempenho relevante e incomparável face às outras etnias. No quadro geral da mulher guineense no trabalho, quando a família é poligâmica, é a mulher mais velha a dona da casa, é ela que atribui, no dia anterior, a distribuição das tarefas pelas outras. Mas na sociedade bijagó é bem claro que a mulher não goza da submissão das mulheres das outras etnias, tem plena liberdade, por exemplo, de manifestar o desejo de divórcio, que exterioriza pondo os tarecos do marido à porta, é deste modo que se torna evidente no local a sua decisão.

Não se pode estudar a sociedade Bijagó sem dar atenção ao belíssimo trabalho de Eva Kipp. E ponto final.


Barco Bijagó: estatueta de Bubaque.
O Irã Grande da tabanca de Angura, em Canhabaque, rodeado de objetos sagrados. À esquerda está o Irã de Mão do régulo.
Em frente do Nan, o régulo da tabanca de Angura com o tridente numa mão e o Irã de Mão na outra.
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 7 DE JANEIRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P7567: Notas de leitura (185): Guiné-Bissau, Aspectos da Vida de um Povo, de Eva Kipp (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23248: Notas de leitura (1444): "Histórias da História da Guiné-Bissau", por Manuel Grilo, obra financiada pela Fundação do BCP para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998 (Mário Beja Santos)

sábado, 20 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22732: (Ex)citações (396): A maldição da canoa papel está ainda na cabeça daqueles guineenses, etnocêntricos e xenófobos, que continuam a ter muita dificuldade em aceitar a unidade na diversidade (Cherno Baldé, Bissau)



Guiné > Bissau > s/d [. c 1960/70] > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa") (Detalhe).... Colecção: Agostinho Gaspar / Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

A Praça, com o nome do "colonialista" e "esclavagista" Honório Barreto (1813-1859) (um guineense, de mãe guineense e pai cabo-verdiano, que foi governador do território, ou nelhor, capitão-mor do Cacheu, e também de Bissau,  por diversas vezes, e que como tal defendeu a integralidade da terra que é hoje a Guiné-Bissau, o que não impediu de, um século depois depois, ter sido diabolizado pelo PAIGC), seria rebatizada, em 1975, como Praça Che Guevara, um "internacionalista revolucionário", de origem argentina, e herói da revolução cubana,  que nunca pôs os pés na Guiné... 

E era aqui, neste sítio da  Bissauvelha,  onde, dizia a lenda, estaria enterrada a canoa papel...  Recorde-se a maldição lançada pelos balobeiros papéis: "Quando os estrangeiros se forem embora, esta canoa tem que ser desenterrada, e feita uma cerimónia para acabar com esta maldição, senão nunca mais haverá paz e felicidade na Guiné, por isso os pais têm que passar estas palavras para os seus filhos. Não se podem esquecer de fazer a cerimónia!" (*)
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Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A propósito de "a lenda da canoa papel", aqui (re)contada, no  Poste P22726 (*), comentou o Cherno Baldé:


 [ Cherno Baldé: nosso colaborador permanente, e nosso especialista em questões etno-linguísticas, nasceu no chão fula, e é muçulmano; tem formação universitária tirada na antiga União Soviética e em Portugal; é e um acérrimo crítico dos "demónios étnicos" que estão longe de ter sido esconjurados e expulsos do seu país;  além disso, é  membro da nossa Tabanca Grande desde 16/8/2009; com mais de 235  referências no nosso blogue, é autor da notável série "Memórias do Chico, menino e moço"]

Pudera que fosse só uma lenda como todas as lendas do mundo, mas na realidade trata-se de uma maldição com contornos reais na vida politica e social do nosso país e que impregnou fortemente o núcleo da ideologia e dos dirigentes do Paigc que dirigiram o país com mão de ferro. 

Inclusive a própria constituição está contaminada com os resquícios desta xenofobia anti-alienígena que pode constituir um forte obstáculo a construção dos fundamentos da unidade nacional. O ambiente politico e social na Guiné-Bissau ainda respira este sentimento que está associado as origens e a manutenção da lenda da canoa papel.

A lenda dá enfâse ao nome de N'tsinha Té, ou Intchinate,  que conseguiu vencer os rivais e ocupar o lugar do conhecido rei Papel, Bacampoló Có, quem, na realidade, teria concedido o terreno para instalação dos portugueses. Todavia o N'tsinha Té ter-se-ia notabilizado devido ao seu temperamento belicoso que criou sérios problemas na construção do forte, arrastando-se ao longo do tempo desde o séc. XVII.

Também é preciso dizer que, entre os "indígenas" da Guiné não existiam os conceitos de compra e venda quando se tratava da terra, pois que. não sendo seus reais detentores, de forma alguma podiam alienar um bem colectivo (comunitário) à guarda dos espíritos (Irãs). Esta incompreensão criou mal-entendidos e gerou muitos conflitos, mormente na Guiné, dita portuguesa.

Se há uma característa que particulariza os povos do litoral (ditos animistas) em relação  aos do interior (muçulmanos) é o forte espírito de ligação ao seu Chão (o solo) e o sentido patrimonialista que os leva, não raras vezes, a ostracizar os seus próprios compatriotas oriundos de outros Chãos do mesmo país. E isto reflecte-se imenso nas disputas políticas, eleitorais o que, muitas vezes, empresta o modo étnico-tribal como as diferentes comunidades e grupos sociais se posicionam no terreno político-partidário. 

O Paigc, designadamente, apesar do discurso aparentemente apaziguador e unitário nunca foi seguido de uma prática de justiça e de governação unificadoras, dai o desnorte e cacofonias actuais.

No âmbito da politica de reconstrução pós-independência empreendida pelo partido único, fui professor voluntário, na regiāo de Biombo, de 1981/85, e só muito tardiamente constatei que era visto e tratado como um estrangeiro e, sempre que prestava um serviço ou fazia um favor a alguém, no fundo, era percebido como uma obrigação, o pagamento do direito que me concediam pelo direito de viver no seu Chão, igual ao 'Dacha" que exigiam aos portugueses que viviam nas suas terras. 

Esse é o espírito patrimonialista típico do guineense e que, porventura, pode ser muito mais acentuado nos grupos do litoral, designadamente entre os Papéis de Bissau, e quiçá da região de Biombo.

Para terminar, quero confirmar que, efectivamente foram feitas escavações na rotunda Che-Guevara (antiga praça Honório Barreto),  após o golpe de 14 de Novembro de 1980 e foi um desperdício de tempo e dinheiro. A canoa que buscavam no interior da terra, na realidade, estava na cabeça das pessoas que têm dificuldades enormes em aceitar a unidade na diversidade que é a maior riqueza da Guiné-Bissau e a única via para a construção de uma nação forte e unida.(**)

Com um abraço amigo, Cherno Baldé (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste da série > 18 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22726: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VIII: A lenda da canoa papel (...ou a maldição da pátria de Cabral)

(**) Vd. também postes de :


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20228: Guiné-Bissau, hoje: factos e números (3): em bom crioulo nos entendemos (ou não ?): mandjidu, kansaré, muro, djambacu, baloba, balobeiro, ferradia, tarbeçado, doença de badjudeca, rónia irã... O Cherno Baldé, nosso especialista em questões etnolinguísticas, explica para a gente...


Foto nº 1


Foto nº 2 

Guiné > Região de Bafatá >Setor L1 > Bambadinca > Destacamento de Nhabijões  > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12 (, Luís Graça, fundador e editor deste bloge) junto a uma "baloba" (Foto nº 1), um dos locais de culto dos irãs (espíritos da floresta). 

A população era maioritariamente balanta, animista. Era conhecida a sua colaboração com o PAIGG, sobretudo com as populações e os guerrilheiros de Madina/Belel, no limite do Cuor, a Noroeste de Missirá, mas também com os do subsetor do Xime. O reordemanento desta população, considerada até então sob duplo controlo e pouco colaborante com (e senão mesmo hostil a) as NT, iniciou-se em 1969, sob a iniciativa do Comando e CCS do BCAÇ 2852 (1970/72), tendo sido continuada pelo BART 2852 (1970/72). Foi criado um destacamento para apoio a (e defesa de) o reordenamento (Foto nº 2)

No seu diário de então, o furriel Henriques consideraca este reordenamento (um dos maiores, se não o maior, de então, no CTIG) como um exemplo de "etnocídio",  pela destruição do habitat socioecológico das populações "reordenadas".

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > c. 1973/74 > Uma "ferradia": o ferreiro e o seu ajudante (que alimenta a forja)...Tradicionalmente em África, o ferrador e o caçador são dotados de dons sobrenaturais, diz-nos o Cherno Baldé, o nosso especialista em questões etnolinguísticas.. Em muitas comunidades animistas, o ferreiro e o balobeiro são a mesma pessoa ou ambos possuem o poder de curar e de fazer a ligação com o além  ou as forças ocultas como os Irãs ou os espíritos do mato e da floresta.
Fotos (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. No poste P20223 (*), o editor Luís Graça comentou que íamos precisar da preciosa ajuda nosso assessor para as questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé... 


Há termos em crioulo ou noutros idiomas, que ele tem de nos explicar, para melhor se compreender um recente relatório da CPLP sobre o HIV/SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis, na parte que respeita à Guiné-Bissua (**)...


Eis alguns desses termos:


"mandjidu" (em manjaco), prática interdita;

"kansaré" (papel), entidade sobrentaural que pode castigar ou fazer mal (?);

"muros, djambacus e balobeiros" (crioulo), curandeiros tradicionais;

"balobas" de "ferradias" (crioulo), locais ou práticas (?);

"tarbeçado" (crioulo);


doença de "badjudeça" (crioula);

cerimónia de "rônia iran" (crioulo), (?)






Guiné-Bissau > Região do Óio > Maqué > 20 de Novembro de 2006 > Poilão, árvore sagrada, habitada pelos irãs... Mais uma chapa do famoso poilão de Maqué. Tirada pelo nosso camarada Carlos Fortunato, ex-Fur Mil da CCAÇ 13 (Os Leões Negros), na sua viagem  de 2006 à Guiné e à região do Óio.

Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2007). Todos os direitos reservados.
 [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Pronta resposta do Cherno Baldé [, Bissau], com data de ontem (*):


Em resposta ao pedido do Luís Graça, aqui vai um pequeno resumo sobre o significado das expressões em Crioulo da Guiné no texto (*).


(i) “Mandjidu”


Refere-se àquilo que está interdito e a interdição vem sempre de forças ocultas, do desconhecido, por isso, de evitar a todo o custo, pois não se sabe o que pode acontecer em caso de violação dessa interdiçãoo.


Uma forma muito prática de proteger a propriedade privada dos individuos, da família e/ou da aldeia em relação ao comportamento indesejado de terceiros, sejam eles pessoas ou animais domésticos:um simples pau enfeitado com um pedaço de tecido vermelho e colocado em lugar visível é suficiente para interditar um campo de amendoim ou plantação de cajueiros.


Uma nota interessante é que esta interdição também se aplica às pessoas (mulheres) e propriedades (terrenos e casas).


(ii) “Kansaré”

É um ritual animista consagrado aos mortos, baseado na compreensão de que não há mortes naturais, mas sim mortes provocadas por forças do mal.

O "Kansaré" é o elemento móvel da "Baloba", feita de paus e coberta de tecidos vermelhos, é carregado por quatro jovens possantes e que caminham, supostamente, dirigidos pelo espírito do morto com o objectivo de desmascarar o(s) autor(res) da morte. O(s) membro(s) da comunidade assim descoberto(s) e acusado(s) de feitiçaria perde(m) todos os seus direitos, inclusive o direito à vida e os seus bens e haveres confiscados em benefício da comunidade como forma de vingar a morte do defunto e fazer o seu "choro", aplacando assim a dor da família que perdeu um dos seus.


Muitos antropólogos, africanistas e investigadores viram nessas práticas animistas uma forma subtil de regulação económica e social dentro das sociedades " primitivas" e/ou práticas escamoteadas de ajustes de contas e de eliminação de rivais e elementos não desejados, muitas vezes bem sucedidos, e cujas riquezas provocam inveja aos restantes elementos da comunidade e que necessitam de ser redistribuídas colectivamente a fim de nivelar (por baixo) os membros dessas comunidades.


(iii) «Muro»


O mesmo que "mouro" (árabe ou berbere do Norte de África), termo utilizada para referir-se aos "marabus" -chefes religiosos - de confissão muçulmana.

No meio urbano da Guiné tem o mesmo significado que "Djambacus", provavelmente de origem mandinga e "Baloba", do grupo dos Brames (Papel/Manjaco/Mancanha).


(iv) «Balobas»


Sao os locais, entre alguns povos da Guiné-Bissau, chamados animistas do grupo dos Brames (Papel / Manjaco / Mancanha), reservados às cerimónias dedicadas aos Irãs e que são feitas, normalmente, mediante o uso de aguardente e sangue de animais imolados em sua intenção.


A referência feita às "ferradias" remete-nos para as oficinas tradicionais onde se trabalha(va) o ferro. Na África profunda e multissecular, de uma forma geral, o ferreiro assim como o caçador, são facilmente assimilados àqueles que praticam artes secretas e/ou mágicas e logo possuidores do dom imanado do espírito dos Irãs.


Em muitas comunidades animistas, o ferreiro e o "balobeiro" são a mesma pessoa ou ambos possuem o dom da cura e do poder de contacto e intermediação com forças ocultas como os Irãs ou espíritos do mato/floresta.

Nesses casos um simples metal (o ferro), por eles confeccionado, pode servir de guarda a fim de um indivíduo se proteger dos espíritos maus. Uma prática muito frequente dentre os habitantes originários dessas etnias do litoral guineense.


(v) "Tarbeçado"


Parto anormal quando a criança vem numa posição invertida com os pés primeiro em lugar da cabeça, uma expressão, provavelmente, de origem balanta.

(vi) "Doença de badjudeça"

Quer dizer período menstrual ou quando aparecem, nas meninas, os sintomas das primeiras mentruações. De origens diversas.



(vii) «Rônia Irã»


Segundo alguns investigadores, tem origem na palavra em português arcaico “erronear”, ou seja, deambular de um lado para outro.

Durante o período em que estas cerimónias são feitas, sobretudo entre os Papéis, há grupos de mulheres que viajam de aldeia em aldeia, de sítio em sítio, carregados de objectos diversos, para cumprir determinados rituais e cerimónias tradicionais, de acordo com um calendário e trajecto pré-definido.


Ao que parece, as "Balobas" (ou não seriam os "balobeiros" ?) e os seus Irãs estão, de certa forma, hierarquizados ou, para usar uma expressão moderna, especializados em determinadas matérias do mundo espiritual ou dos mortos e cada aldeia ou família teria o seu próprio percurso em função da tradicão e/ou das suas necessidades espirituais ao serviço das almas dos seus mortos em diferentes épocas.

Todas estas expressões ou conceitos antropológicos acima apresentados, sendo de origem étnica ou tribal, já fazem parte do léxico corrente em crioulo.


PS - Uma Nota sobre o ponto V:


Quando disse que é uma expressão, provavelmente, de origem balanta, queria referir-me ao conceito intrínseco pois que, entre eles o fenómeno é seguido de algumas cerimónias feitas para exconjurar as forças maléficas do fenómeno anormal, e não à origem da palavra que é claramente crioula, resultante da corruptela da palavra portuguesa "atravessado".
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20223: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (2): prevalência do HIV/SIDA; comportamento de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST



(**) Vd. Helena M. M. Lima - Diagnóstico Situacional sobre a Implementação da Recomendação da Opção B+, da Transmissão Vertical do VIH e da Sífilis Congênita, no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa- CPLP: Relatório final, volume único, dezembro de 2016, revisto em abril de 2018. CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa, 2018 [documento em formato pdf, 643 pp. Disponível em: https://www.cplp.org/id-4879.aspx]

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15177: Fotos à procura de... uma legenda (62): O sol, diz o povo, nasce para todos, mas a lua só para quem merece... Ou ainda, noutra variante do nosso imaginário, quanto mais luz ao luar, mais lhe hão-de os lobisomens uivar...







Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados. 


1. Da janela do meu quarto, na madrugad do dia 28 de setembro, por volta das 4h20,  o firmamento celeste  apresentava o tão esperado acontecimento astronómico do ano,  a ocorrência de Super Lua em simultâneo com um Eclipse Total da Lua... 

Peguei na máquina e obtive estas imagens que quero partilhar com os nossos leitores... Já estava a meio o eclipse, eu devia ter-me levantado mais cedo... Não acordei, acordaram-me...

Dizem que os lobisomens é que uivam à lua cheia, mas também em luas negras, e provavelmente em noites de  eclipse... Quando eu era puto, acreditava em lobisomens... Se acreditava!... E até me diziam que tinha um tio-avô que era lobisomem...  Metiam-nos medo, aos putos, os safados dos graúdos, com essas histórias de lobisomens, bruxas, almas penadas e espíritos maus que cochichavam por detrás das paredes, portas e armários...  Havia amuletos, gestos, rezas e mezinhas para nos defendermos do mau olhado e dos encontros funestos com essa seres do mundo das trevas...

2. Alguns provérbios populares  sobre a lua, recolhidos da Net [, e onde estranhamente o lobisomem está ausente]:

A lua alumia mas não aquece.
A lua e o amor, quando não crescem, diminuem.
A lua é mentirosa: quando diz que desce, cresce; quando diz que cresce, desce.
A lua não fica cheia em um só dia.
Arco na lua, chuva na rua.

Círculo na lua, chuva na rua.
Lua, a de janeiro, e amor, o primeiro.
Lua à tardinha com seu anel, dá chuva à noite ou vento a granel. 
Lua cercada, terra molhada.
Lua cheia, a tudo clareia.
Lua cheia, não cortes pau nem veia.
Lua de outubro sete luas cobre, e se chove, nove.
Lua deitada, marinheiro em pé.
Lua manchada, bonança assegurada.
Lua nova, muita rama e pouca abóbora.
Lua nova setembrina, sete meses determina.
Lua nova trovejada, trinta dias é molhada.
Luar de janeiro não tem parceiro; mas lá vem o de agosto que lhe dá no rosto.

Não há Entrudo sem lua nova, nem Páscoa sem lua cheia.

O amor é como a lua, quando não cresce mingua.
O sol nasce para todos, a lua para quem merece.

Pelas luas se tiram as marés.
Quando a lua minguar, não deves começar.
Quando a lua minguar, não deves regar.
Quando a lua minguar, nada hás-de semear.
Quanto mais luz ao luar, mais lhe hão-de os cães ladrar.

Riqueza e fortuna, mudam com a lua.


3. De acordo com as lendas e crenças populares, um homem foi mordido por um lobo em noite de lua cheia. A partir daí, passou  a transformar-se em lobisomem em todas as noites  de lua cheia. Feio, forte e peludo, aparecia a assustar as pessoas em sítios ermos como colinas, encruzilhadas e cemitérios. Se  o lobisomem mordesse outra pessoa, a vítima transformava-se também em lobisomem...  

A lenda terá origem na mitologia grega... E do continente europeu, e por via da colonização, espalhar-se-ia por quase todo o mundo, ou pelo menos pelo novo mundo (Brasil, etc.).  Portugal sempre foi  fértil em lendas ligadas ao fantástico: mouras encantadas, fadas, bruxas, lobisomens... E de algumas terras, "terras do demo", e nomeadamente das Beiras e de Trás-os-Montes,  se dizia que as mulheres lá... eram homens e os homens lobisomens...

Coisas do nosso imaginário (popular...) , e que hoje só parecem fazer as delícias dos antropólogos ou etnólogos...  Se calhar o imaginário dos nossos filhos e netos, muito mais ligado à fição científica,  é capaz de ser muito mais pobre do que no nosso tempo de meninos e moços...

Estivemos entretanto na Guiné, onde havia os irãs e os espíritos que habitavam as florestas, mas não temos falado muito disso... Fizemos muitas operações e emboscadas à noite, mas nunca demos grande atenção à lua, à lua cheia, ao luar, e menos ainda aos eclipes da lua... Nessa época, eu não fazia poesia, ou tinha deixado de o fazer... Escrevia, mas não eram poemas  à lua... ´

Mas já que falamos da guerra, é bom recordar outro provérbio que diz que "os lobos não se comem" (ou "lobo não come lobo",  não pratica o canibalismo nem se dedica a lutas fratricidas(... Já o homem é o predador de si próprio. "O homem é o lobo do homem" (em latim, "homo homini lupus")... Coitado do lobo, feito medida do homem! ... LG
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Nota do editor:

terça-feira, 29 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13444: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (4) - Reportagens da Época (1966): A morte do "Furriel Moreira, alcunha do milícia Nansá Camará

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 25 de Julho de 2014:

Prezado Luís Graça:
Antes de mais, saúde, e votos de BOAS FÉRIAS.
Depois, para alimentar o Blogue durante as férias, e dar, até, oportunidade aos psicólogos, e etnólogos, ou especialistas em cultura africana, para divagarem sobre o assunto, tomo a liberdade de enviar um texto bastante longo que, se o entender conveniente, poderá inserir no Blogue.

Um abraço
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA

4 - A MORTE O FURRIEL MOREIRA

Novembro de 1966 
Dia 1 

Pouco passava das oito horas quando, com os meus homens, parti em direção a Binta.
É o adeus ao céu de Guidage... Aquilo a que chamamos estrada, mas que de facto não passa de um caminho estreito, simples picada feita de lama e buracos, está num estado miserável.
Mesmo assim, a viagem decorreu com normalidade.
Às onze horas já estávamos no local do destino.

Ao partir, senti pena da população de Guidage. Quando as viaturas estavam para arrancar para Binta juntou-se quase toda a gente junto à porta d’armas e, muitos deles, ficaram a chorar. E as lágrimas são uma coisa muito delicada e bonita, digna de admiração. Na hora da despedida, a população brindou-nos com aquilo que nós, os humanos, temos de mais precioso, ou seja, as lágrimas.

Em Bissau, no Hospital Militar, faleceu, doente, o Nansú Camarã. Foi evacuado de Guidage por duas vezes. Sofria de mal-estar geral e de um abatimento psicológico muito grande.
Vou contar a história da doença do rapaz, do combatente leal, esforçado, solidário e corajoso.
É a história do pássaro maldito.

***

A morte do furriel Moreira

O Nansú Camará, ou o furriel Moreira, como nós lhe chamávamos, era um negro de pele relativamente clara, alto e magro, pertencente à milícia local, que aprendi a admirar desde os primeiros dias da minha estada em Binta.

Chamávamos-lhe o furriel Moreira, alcunha de que gostava, e que terá recebido da boca de alguém que, por certo, lhe admirava a lealdade, a dedicação e o grande espírito de sacrifício. E ele gostava da alcunha. Sentia mesmo orgulho quando lhe chamavam furriel...

Regra geral os furriéis eram sempre brancos. Atribuir-lhe a categoria que só os brancos possuíam dava-lhe um estatuto diferente, fazia dele alguém muito especial e respeitável. Para ele, chamar-lhe furriel, nada tinha de ofensivo. Entendia a alcunha quase como uma distinção. Gostava mesmo de que o chamássemos assim, e ficava vaidoso e contente com um nome tão distinto.

Possuidor de uma admirável resistência física estava sempre pronto a auxiliar qualquer de nós, nas horas mais difíceis. Muitas vezes, quando regressávamos das operações, das patrulhas, ou das emboscadas, ele aproximava-se dos mais cansados e ajudava-os a transportar a arma, as munições, ou as granadas. Era, em tudo, um homem bom e generoso. Uma daquelas pessoas que nasceram para ser desinteressadamente solidárias e amigas.

Um dia, logo ao amanhecer, veio procurar-me muito aflito, expressando medo e angústia. Nos seus olhos meigos adivinhava-se um sofrimento enorme, ou visionava-se mesmo o limiar da morte. Trazia uma expressão dolorosa, onde se adivinhava qualquer coisa de transcendente, ao mesmo tempo terrível e grande. Naquele momento vi nele um homem que estava a chegar, vindo não da sua casa simples e pobre, mas de um mundo diferente e desconhecido. O Nansú que tinha ali em minha era já outro homem. Tudo nele se me afigurava estar alterado.
Ele estava diferente nos gestos, nas palavras, no aspecto e nas atitudes. Era um homem triste, tímido e distante, longe da realidade do nosso dia a dia, irremediavelmente perdido para a vida.

Por entre lágrimas e tremores conseguiu dizer-me:
- Alfero... Durante a noite, quando estava de sentinela, eu vi Irã.

Estas palavras saíam-lhe bem do fundo da alma, murmuradas com serenidade cadavérica e sinceridade profunda.

E eu perguntei-lhe:
- E quem é Irã? - Eu nunca ouvi falar dessa pessoa. - Como te apareceu? Que foi que te disse?

Ele, receoso e triste, murmurou:
- Irã, é o mal. É um espírito negro e terrível. Só pode trazer-nos a morte. Agora sei que vou morrer. A vida para mim já terminou. Quem vir Irã não pode mais ficar aqui... Tem mesmo de morrer. Nas suas asas negras ele traz a mensagem do inferno. O meu futuro já não existe. Para mim tudo vai terminar muito depressa.

E tiveste medo, perguntei-lhe?
- Tive, respondeu-me. Mas não abandonei o posto nem a arma. Não fugi...

No seu rosto adivinhava-se qualquer coisa de mistério, uma amargura profunda, a tristeza de quem teve, naquela trágica noite, a visita de um anjo mau que lhe veio trazer a mensagem da morte, ou qualquer coisa bastante pior, indesejável para qualquer de nós, pobres mortais. ... E aquele rapaz já não seria mais o soldado corajoso, leal e destemido que sempre soubera ser. Aquela visão terrível, alucinante, traçara-lhe bruscamente o destino. Era a visão da morte.

Eu continuei:
- E como era Irã?
- Era, disse-me, uma espécie de pássaro negro, muito grande, que se manteve perto de mim, durante muito tempo, como que a dançar, em movimentos loucos e sucessivos, mas sempre fora da rede de arame farpado.
- E que te disse, perguntei-lhe?

E o Furriel Moreira, numa voz quase imperceptível, murmurou:
- Não me disse nada. Mas eu entendi tudo o que tinha para me dizer.
- E porque não disparaste, perguntei-lhe, uma rajada de G3, para o afugentar? Um bicho desses mata-se de imediato, sem qualquer receio.

Mas ele, com toda a seriedade, e com uma voz branda, nascida bem do fundo da sua alma amargurada, respondeu-me:
- Alfero! Tiro de espingarda não mata Irã. O deus do mal tem muita força e poder. Ninguém pode matar Irã.

Enquanto falávamos, todo ele tremia e transpirava. O suor escorria-lhe, em gotas enormes, pelas faces escuras, enquanto que do seu olhar meigo escapava um desespero triste profundo. E eu fui conversando com ele, durante bastante tempo, tentando retirar-lhe da mente aquela imagem tenebrosa que nem o deixava respirar. Mas foi tudo em vão. Aquela ideia sinistra dominava-lhe por completo a mente, apossara-se dele com tanta força, que iria ser muito difícil restituir-lhe o equilíbrio mental e a vontade de continuar a viver, e a ser pessoa. Estava dominado por uma alucinação terrível, que se apossou daquela mente rústica de uma forma indizível.

Depois, acompanhei-o ao refeitório da companhia e pedi que lhe dessem o pequeno-almoço, pensando que fosse a fome e a má nutrição a causar-lhe aquelas alucinações. Mas ele quase não comeu. Depois, retirou-se para casa. Uma casa simples, coberta de capim, como quase todas as casas que na Guiné se constróem. Retirou-se macambúzio, triste.

 Durante a tarde mandei chamar o régulo da tabanca, - o Mamadu -, um homem já de bastante idade, muçulmano fervoroso e crente. Contei-lhe a história da visão que o Nansú tivera durante a noite, e perguntei-lhe:
- Quem é Irã? Que tipo de crença o povo tem e guarda nessa suposta divindade, ou anjo do mal?

E o régulo, discretamente, como que assustado com a história que lhe contara, lá me foi dizendo:
- Irã, é uma superstição. É uma crença antiga, pertencente às antigas religiões do nosso povo, na qual alguns de nós ainda acreditamos. É uma espécie de demónio, que só pode fazer mal às pessoas. Mas um bom muçulmano não pode acreditar em Irã, nem ter medo dele. Allah protege-nos contra os poderes do mal. Quem acreditar no nosso Deus está livre para sempre dos malefícios dessa crença. Mas, é verdade... Muitos de nós ainda acreditamos que Irã existe e domina este mundo obscuro, habitando algures, no coração da selva. É uma crença que permanecerá ainda por muito tempo na tradição do povo, sem que seja possível erradicá-la de todo. E, intimamente, todos nós temos ainda medo. Mesmo muito medo.

Depois, pausadamente, e como que dominado, também, por um estranho receio, continuou:
- ... No entanto, eu sei, que essa crença antiga já não devia subsistir. Ela é incompatível com a crença em Allah, o Deus em que acreditamos. Mas ainda são muitos os que acreditam e têm medo... Mesmo quando em público dizem que não acreditam, eles continuam presos a essa superstição.

E os dias foram-se passando. E o furriel Moreira começou a ficar mais doente... Deixou de se alimentar... Deixou de comparecer ao serviço... Definhava a olhos vistos, num desmoronar muito rápido e implacável da saúde física e mental de que antes parecia gozar quase em plenitude. A vivacidade que o caracterizava deu lugar a um homem amorfo e triste, em cujo olhar que se perdia a fixar, tenuemente, algo distante, só aflorava, imensa, uma amargura profunda e misteriosa.

Uma certa manhã, acompanhado pelo enfermeiro da companhia, fui mais uma vez visitá-lo e dei-lhe para tomar, um xarope e algumas vitaminas. Mas o rapaz não melhorava... Ia passando os seus dias, a pensar que já não seriam muitos, metido em casa, a merecer a compaixão de todos os que o visitavam.

 Dada a limitação de que dispúnhamos para o tratar, pediu-se uma evacuação, de helicóptero, e o Nansú foi internado em Bissau, no hospital militar. Talvez, pensei, longe do local da aparição fatídica, e beneficiando de razoável assistência médica, fosse ainda possível que a saúde voltasse de novo. Eu estava, aliás, bastante convencido de que se tratava apenas de um pequeno problema de natureza psíquica, que a intervenção de um psiquiatra resolveria com facilidade.

E os dias foram-se passando. Ao fim de quinze dias de internamento deram-lhe alta hospitalar e ele regressou a Binta. Mas não vinha curado. A visão de Irã não o abandonava... E, pouco a pouco, continuou a definhar... E foi-se lentamente apagando...

Já quase no fim pediu-se um novo internamento e ele regressou ao hospital militar, onde viria a morrer, ao fim de poucos dias, assassinado pela visão sinistra de um pássaro negro, cujo habitat permanece bem fundo, no inconsciente colectivo deste povo.

E numa qualquer tarde, quente e tristonha, vieram dizer-me:
- Morreu o furriel Moreira...

E eu pensei:
- Foi Irã, o pássaro maldito, quem o matou!...

Domingos Gonçalves
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Notas do editor

A propósito dos Irãs, do poste de 11 de Abril de 2012, de Cherno Baldé > Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano transcrevemos os seguintes parágrafos:

O Irã pode viver em qualquer sítio porque dotado de poderes e invisível ao olho humano, mas o seu habitat privilegiado são os poilões gigantes de base piramidal e altura imponente das florestas tropicais. Quanto a questão sobre como se desloca e de que se alimenta, os povos animistas, envoltos ainda num espesso nevoeiro de tabus, medos e secretismos não fornecem muitos detalhes a esse respeito, no entanto, sabe-se que a sua característica principal continua a ser o manto sagrado (manifestação do sagrado). O Irã, a imagem e semelhança dos seus seguidores é, acima de tudo, comedido e discreto, sendo também, por acréscimo, nacionalista acérrimo e incansável defensor dos usos e costumes tradicionais.

Quanto as cores que usa, no seu dia-a-dia, o Irã tem uma certa preferência pelas cores garridas, em especial a cor vermelha e a rosa, símbolos da vida, da fertilidade e da regeneração natural.

O Irã possui um carácter forte e afoito, tal qual o grau de álcool da sua bebida de eleição, a aguardente. Todavia, não é contra as bebidas mais finas, pois adora o vinho do Porto e não desdenha o uísque ou o conhaque Escocês. Não dispensa, ainda, a água simples e pura, bebedouro das almas penadas. O Irã é, também, um ser profundamente social, com famílias grandes e ruidosas sendo muito exigente quando se trata de zelar pela segurança dos seus bens e a integridade dos membros da sua família, em especial dos filhos.

Último poste da série de 27 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13336: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (3): Viagem a Madina do Boé