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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20182: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte V: O que nos fizeram foi criminoso (pp. 43-48)


"De tudo quanto vejo me acrescento", Fernando de Sousa Ribeiro dixit, 
citando a grande poetisa do Porto (e de Portugal) Sophia de Mello Breyner Andresen, 
cujo centenário se celebra este ano.


Foto (e legenda) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;
(v) vive no Porto, mas também tem boas recordações de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vi) tem página no Facebook;

(vii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974; esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(viii) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo;  as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(ix) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia 
(Episódios do Meu Serviço Militar)

por Fernando de Sousa Ribeiro




O QUE NOS FIZERAM FOI CRIMINOSO (pp. 43-48)(*)


Que finalmente seja reconhecido o extraordinário valor dos operacionais do nosso batalhão, cujas vidas estiveram nas mãos de gente, no mínimo, sem escrúpulos... Depois de tudo o que suportou, o Batalhão de Caçadores 3880 mostrou ser o melhor do mundo. Mostrou mesmo.

Em Santa Margarida, onde estivemos durante cerca de dois meses antes de partirmos para Angola, não tivemos Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO). Diziam-nos os nossos superiores hierárquicos que só iríamos ter IAO em Angola, quando o batalhão ficasse completo com a integração dos angolanos que iriam constituir o chamado Grupo de Mesclagem. 


Por isso, o que o nosso pessoal teve em Santa Margarida foi uma instrução meio a sério e meio a brincar, apenas para ir mantendo a malta ocupada e minimamente ativa até ao dia da partida para Angola. Enquanto isso, o Batalhão de Caçadores 3885, que também se encontrava em Santa Margarida e estava mobilizado para Moçambique, passou o tempo todo em IAO, numa atividade frenética que contrastava de forma chocante com a semi-indolência do nosso. 

Se eu próprio não tivesse tomado a iniciativa, que foi exclusivamente minha e de mais ninguém, de dar uma instrução intensiva aos meus próprios subordinados em Santa Margarida, ter-me-ia visto em situações muito complicadas em Angola. Ninguém, em todo o comando do nosso batalhão, parecia estar minimamente preocupado com a nossa preparação para a guerra.

Em Angola também acabamos por não ter IAO nenhuma. À nossa chegada disseram-nos que ela iria acontecer no Úcua, que era onde os cursos de Comandos costumavam fazer as semanas de campo, mas isso não aconteceu. Não houve IAO no Úcua, nem houve em lado nenhum. Partimos do Grafanil diretamente para a guerra, sem qualquer IAO que se visse.

Aos nossos magníficos companheiros angolanos ainda fizeram pior do que a nós. Mal aqueles nossos camaradas acabaram a especialidade, em Sá da Bandeira, foram levados diretamente para o Grafanil, para se nos juntarem e irem para a guerra connosco. Em janeiro de 1972, eles tinham começado a recruta; cinco meses depois já estavam na guerra! Tal como aconteceu connosco, também eles não receberam nenhuma instrução que se parecesse com uma IAO. Fomos todos para a guerra com uma preparação de merda, brancos, negros e mestiços. Poucas unidades terão partido para a guerra tão mal preparadas como o nosso batalhão.

Se o que se passou até então foi de uma imperdoável gravidade (e foi), o que dizer do que nos fizeram a seguir? 

O que nos fizeram a seguir foi simplesmente isto: durante os primeiros seis meses de comissão, obrigaram-nos a fazer a guerra completamente sozinhos. Exatamente, sozinhos, como se não houvesse mais tropas ou apoios em todo o território de Angola! Não, não estou a exagerar nem um bocadinho. Desde junho de 1972 até janeiro de 1973, as companhias operacionais do nosso batalhão foram as únicas (!) forças militares que combateram nas zonas de Zemba, Cambamba e Mucondo. 

Repito, para que não restem dúvidas. Ao longo dos nossos primeiros seis meses de comissão, nenhuma outra força atuou na área do nosso batalhão, além das companhias operacionais do próprio batalhão. Não houve qualquer intervenção de Comandos, nem de Paraquedistas, nem de companhias de intervenção, nem de TE, nem de GE, nem de "Flechas", nem de Artilharia, nem de Aviação, nem de nada! Nada de nada!

Estivemos completamente sozinhos (!) frente aos guerrilheiros da FNLA e do MPLA, que eram mais numerosos do que nós e atuavam num terreno que nós não conhecíamos e que era de uma extrema dificuldade. Durante esses primeiros seis meses, só a Força Aérea é que deu sinais de vida, e foi só para evacuar os nossos infelizes companheiros feridos! 

Acho que até hoje ainda ninguém chamou a atenção devida para a gravíssima situação em que nós nos encontramos durante esse tempo e nesse lugar, situação ocorrida precisamente numa ocasião em qua ainda éramos inexperientes e, ainda por cima, estávamos mal e porcamente preparados. Numa altura em que, mais do que nunca, deveríamos ter recebido apoio, não tivemos apoio absolutamente nenhum, fosse de quem fosse, fosse de que forma fosse. O que nos fizeram foi criminoso.

Foi ainda mais criminoso porque foi deliberado. Sim, esta solidão forçada a que estivemos sujeitos durante os primeiros seis meses de comissão foi propositada, por vontade do próprio comandante do nosso batalhão, o então tenente-coronel Azevedo. 


Foi lá mesmo, em Zemba, que eu tive conhecimento desta vontade do comandante. Ouvi-a revelada por um alferes da CCS, já não me lembro de qual. Talvez tenha sido o Sousa. Ou então foi o Rico. Enfim, não importa saber qual foi. O que importa é que o comandante conseguiu convencer o brigadeiro de Santa Eulália a não enviar tropas de intervenção ou quaisquer outras forças para o subsetor de Zemba. E, pelos vistos, o brigadeiro era um banana e satisfez a vontade ao ten cor Azevedo.

Inacreditável! E porque é que o Azevedo não queria que forças estranhas ao batalhão atuassem no subsetor? Porque queria ser ele a ficar com os louros e mais ninguém. Todos os êxitos militares que acontecessem no subsetor seriam da exclusiva responsabilidade do batalhão; logo, dele mesmo, como comandante do batalhão que era. [ O 
comandante do Batalhão de Caçadores 3880 foi promovido a coronel quando ainda só tinha passado um ano de comissão, mas manteve-se no comando do batalhão até ao fim.]

Se o comandante e o segundo comandante do batalhão, tenente-coronel Azevedo e major Lacerda, fossem bons comandantes, teriam pelo menos tentado apoiar-nos e animar-nos. Mas não só não fizeram nada disso, como fizeram precisamente o contrário. O comandante, sobretudo, não fazia outra coisa que não fosse ofender-nos e insultar-nos, chamando-nos coirões, sacanas e, nas nossas costas, outros nomes menos reproduzíveis, aqui, em público. Salvo uma única e solitária vez, nunca ele reconheceu o nosso esforço e o nosso sacrifício. Para ele, fizéssemos o que fizéssemos ou deixássemos de fazer, éramos sempre uns sacanas de uns coirões!

O major não nos insultava, é verdade que não, mas não só nunca manifestou o mais pequeno reconhecimento pelo esforço sobre-humano que estávamos a empreender, como fez ainda pior: não contente com os feridos que a minha companhia tinha sofrido, exigiu que sofresse ainda mais baixas!!! Ainda mais! 

Por mais inacreditável que isto possa parecer, aconteceu mesmo! Juro! Ele não exigiu que causássemos mais baixas ao inimigo, como seria de esperar que um militar fizesse. O homem exigiu que fôssemos nós a sofrê-las!!! Juro que ele o fez! Juro mesmo! 

Custa a acreditar? Eu sei que custa, mas é absolutamente verdadeiro! Ele disse-me pessoalmente, em duas ocasiões distintas, no meio da parada de Zemba, o seguinte, textualmente, tal e qual: «Exijo que vocês sofram mais baixas. Não se ganham guerras sem sofrer mortos e feridos. Por isso exijo que vocês sofram mais baixas». E repetiu, martelando as sílabas: « E... XI... J O !». Tais palavras ficaram gravadas a ferro em brasa na minha memória.Os guerrilheiros que nos combatiam eram chamados terroristas. Com razão ou sem ela, a verdade é que os guerrilheiros lutavam por uma causa e estavam dispostos a matar-nos por ela. O comandante e o major, por outro lado, não lutavam nem defendiam causa nenhuma, mas estavam dispostos a matar-nos para receber louvores, medalhas e promoções. Queriam mostrar ao mundo uma elevada estatística de mortos e de feridos sofridos pelo batalhão, à semelhança de um velho leão que exibe as suas cicatrizes como testemunho de lutas e de vitórias passadas. A diferença em relação ao leão é que, enquanto os leões lutam, o comandante e o major não queriam lutar e não lutaram, nem quando tiveram a obrigação de o fazer.

Queriam que fôssemos NÓS a lutar e a morrer, para que eles pudessem exibir as "cicatrizes" e receber os louros por elas. Os verdadeiros terroristas não estavam na mata; estavam dentro do quartel de Zemba.

Em janeiro de 1973, deu-se uma reviravolta na guerra do nosso batalhão. O brigadeiro de Santa Eulália (um tal Rebelo de Andrade, que veio transferido do setor do Cuanza Norte) resolveu criar um comando operacional só para combater o MPLA.

Foi chamado COP1 (Comando Operacional nº 1) e nele foram integrados o batalhão de Quicabo e as companhias de Santa Eulália e do Mucondo. Ficando com a companhia 3537, do Mucondo, fora da sua alçada operacional, o nosso batalhão passou apenas a poder contar com a 3535 e a 3536. 

Além disso, as regiões da FNLA que tinham sido da responsabilidade da companhia do Mucondo (concretamente as regiões do Catoca e do Mufuque) passaram também para a 3535 e a 3536. Como a partir de então só podia contar com duas companhias, o tenente-coronel não teve outro remédio senão aceitar a intervenção de forças estranhas ao batalhão no subsetor. 

Foi então que vieram os Paraquedistas, vieram os "Flechas", veio a Artilharia, vieram os aviões e vieram os helicópteros. Finalmente! Foi o fim do nosso isolamento operacional. Deixamos de estar sozinhos e submetidos apenas ao terrorismo psicológico do Azevedo e do Lacerda.

As operações a nível de batalhão deviam ser comandadas pelo comandante ou pelo segundo comandante do batalhão, como é evidente. Não era por acaso que elas eram chamadas «a nível de batalhão». No entanto, no Batalhão de Caçadores 3880 tais operações nunca foram comandadas por nenhum dos dois. Nem uma só! O tenente-coronel ou o major atribuíam a responsabilidade pelo comando de uma tal operação a um capitão ou a um alferes (chegaram a atribuí-lo a mim mesmo) e
ficavam refastelados à espera dos resultados, bebendo whisky, o major,  e insultando-nos pelas costas, o tenente-coronel. 

Como é evidente, nenhum capitão nem nenhum alferes, com pouco mais de vinte anos de idade e ainda por cima miliciano, tinha conhecimentos ou preparação suficientes para poder comandar cem e mais homens num teatro de guerra! Comandaram como souberam e puderam, só Deus sabe em que condições. 

Em contraste, as operações a nível de batalhão que eram feitas no subsetor de Quitexe, pelo Batalhão de Caçadores 3879 (vizinho do nosso na geografia e na numeração), eram efetivamente comandadas pelo próprio comandante do batalhão em pessoa, e assim é que devia ser. 

No nosso caso, depois de terminada uma operação a nível de batalhão, o tenente-coronel ou o major exigiam ao alferes ou ao capitão, que a tivesse comandado, que escrevesse um relatório sobre a mesma. Este era um relatório sem qualquer valor, que se destinava apenas a servir de rascunho a um outro relatório, este sim oficial, a ser enviado ao brigadeiro de Santa Eulália e onde era contado um grande filme, no qual o tenente-coronel ou o major é que tinham comandado a operação!

Em ocasiões diferentes, a CCaç 3535 foi comandada pelo capitão Lamas da Silva, pelo alferes Arrifana, por mim e pelo capitão Antunes. As pessoas podem ter gostado ou não do capitão Lamas da Silva. Podem ter gostado ou não do alferes Arrifana. Podem ter gostado ou não do alferes Ribeiro. Mas se houve alguma coisa que o Lamas da Silva, o Arrifana e o Ribeiro fizeram, de meritório, foi defenderem e protegerem os militares da CCaç 3535 dos caprichos do comandante, sempre e em todas as circunstâncias. 

Com efeito, o comandante do batalhão estava decididamente apostado em fazer dos militares da 3535, e só os da 3535 (já se vai ver porquê), uns escravos às suas ordens e para todo o serviço, por mais absurdo que fosse este serviço, e muitas vezes era. 

Como se não bastasse a intensíssima atividade operacional da companhia, que esgotava até extremos inimagináveis os seus elementos, tanto do ponto de vista físico como psicológico, o comandante queria que eles fizessem todo o tipo de tarefas e de trabalhos enquanto estivessem no quartel, por mais penosos e desnecessários que fossem. 

Ao mesmo tempo, os militares da CCS mantinham-se de costas ao alto. Nem saíam para a mata, nem trabalhavam como uns desgraçados no quartel, porque o seu comandante de companhia, capitão Óscar, protegia os seus subordinados e não aceitava que o tenente-coronel interferisse nas competências que ele considerava serem suas. 

O capitão Óscar era um homem carismático, que só com a sua presença infundia respeito. Nem o próprio comandante tinha coragem para se lhe impor. Assim, como não se atrevia a impor-se ao capitão Óscar, insistia em querer impor-se a quem estivesse à frente da C. Caç. 3535.

[Foto à esquerda: Capitão Óscar Augusto de Oliveira, o carismático comandante da Companhia de Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão de Caçadores 3880]

O que aqui fica escrito pode parecer de uma violência verbal excessiva. Dir-me-ão que estou a exagerar. Não estou. Juro que não estou. Esta minha violência verbal nada é, comparada com o tratamento que recebemos da parte de quem teve os nossos destinos nas mãos durante o nosso serviço militar obrigatório.

Ora vamos lá ver se nos entendemos. Quem tivesse enveredado por uma carreira de oficial das Forças Armadas, então seguiu uma carreira para a qual a vida humana pouco ou nada valia. Isto dito assim parece uma ofensa gratuita dirigida aos oficiais do quadro permanente, mas não é. É a verdade, tirando algumas exceções (algumas delas insuspeitas), que eram muito honrosas, sem dúvida nenhuma, e às quais presto a minha homenagem mais sincera, mas eram exceções. 

De resto, sempre que acontecia algum incidente do qual resultassem baixas, por exemplo, a primeira pergunta que os oficiais do quadro permanente faziam era: «Quantos mortos? Quantos feridos?» Números. 

«Exijo que vocês sofram mais baixas», dizia-me o major Lacerda com toda a brutalidade. Números. «Quantos hectares de lavras foram destruídos?», perguntavam o tenente-coronel e o oficial de operações em Zemba, assim como o brigadeiro em Santa Eulália, que queriam provocar a fome à população civil e obrigá-la a entregar-se. Números. 

Era verdadeiramente chocante verificar até que ponto podia chegar a fria insensibilidade perante a morte e o sofrimento dos outros, mesmo dos mais inocentes, da parte destes oficiais oficiais de carreira.

Aliás, a palavra "carreira" era, sem qualquer sombra de dúvida, a palavra mais usada por eles nas suas conversas. A propósito de tudo e de nada, lá falavam eles na sua carreira militar. Nada lhes interessava a não ser a sua progressão na carreira. Em face deste seu desígnio supremo, todos os valores morais e humanos se apagavam
para eles. Mortos e feridos? Números.


(Continua)

[Fixação / revisão de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 26 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20096: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte IV: O respeito pelos homens que comandei (pp. 33-42)

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20096: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte IV: O respeito pelos homens que comandei (pp. 33-42)


Angola > Luanda > Setembro de 2004 > Algures, em pleno centro da cidade, na Av Nkrumah,   um velho mural do MPLA,  meio escondido e já descolorido, e onde curiosamente o pintor se esqueceu das crianças, dos velhos e dos estropiados: está lá o intelectual, o guerrilheiro, o operário, a camponesa... (*)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2004). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Angola > CCAÇ 3535 (1972/74) > Portugueses e angolanos formando uma equipa de futebol



Angola > Zemba, na região dos Dembos, norte de Angola, 1973. Em Zemba não havia mais do que isto: um quartel, ao centro, e uma pequena sanzala com cerca de 100 habitantes, à esquerda. Mais nada. O fumo que se vê à esquerda resulta de uma queimada. No quartel estava instalado o comando de um batalhão, a respetiva Companhia de Comandos e Serviços (CCS) , uma das três companhias operacionais do batalhão e um pelotão de morteiros independente. No meu caso, o batalhão era o BCaç 3880, a companhia operacional era a CCaç 3535 e o pelotão de morteiros era o Pel Mort 3060, primeiro, e o Pel Mort 3029, a seguir. Por sua vez, a CCaç 3536 e a CCaç 3537, do meu batalhão, estavam destacadas em Cambamba e Mucondo, respetivamente.

Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974: esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(ix) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo; as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(x) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.




Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)


por Fernando de Sousa Ribeiro

O RESPEITO PELOS HOMENS QUE COMANDEI  (continuação) (pp. 33-42) (*)



À chegada ao quartel do Grafanil, em Luanda, fomos informados de que a companhia que íamos render.  tinha a sua partida marcada para muito brevemente e, por isso, a nossa Instrução de Aperfeiçoamento Operacional [IAO]  teria que durar apenas uma semana. «Isto começa mal», pensei.

No dia seguinte, de manhã, chegaram os camaradas angolanos que iriam fazer parte da nossa companhia, vindos diretamente da cidade de Sá da Bandeira, que agora se chama Lubango.

«Estou salvo», pensei, assim que vi todos aqueles negros e mestiços de ar desempoeirado, porte digno e olhar inteligente. «Estou salvo. Quaisquer que sejam os que ficarem comigo, serão bons com certeza».

Como já tinha acontecido na Metrópole, o capitão Lamas da Silva mandou os angolanos formar em linha e ordenou:

— Os alferes escolham os homens que querem.

— Eu não escolho — repliquei de modo displicente.

— Estás doido?! — gritou o capitão. — Tu já tens os piores dos brancos e agora queres ficar com os piores dos africanos? És suicida ou quê? Escolhe! É uma ordem!

— Não escolho — teimei, pensando: «Só agora é que ele se preocupa? Agora é tarde demais. Assim como consegui resolver o problema de uns, também hei de resolver o dos outros, que nem problema parece ser. Agora é que não escolho mesmo».

Acrescentei:

— Isto não é maneira de distribuir pessoas. Não se devem escolher homens como quem escolhe cabeças de gado. Eles são seres humanos, não são animais.

Enquanto o capitão e eu discutíamos, os outros alferes iam fazendo as suas escolhas. No fim, fiquei com os angolanos que restaram. «Nada mau», pensei ao vê-los. «Não me parecem piores do que os outros».

Os angolanos foram a seguir encaminhados para a respetiva caserna, onde já estavam os seus camaradas portugueses, para que se instalassem junto destes. Finalmente, os pelotões estavam completos.

Na caserna, enquanto os angolanos se instalavam e arrumavam as suas coisas, os portugueses observavam-nos com curiosidade e comentavam em voz baixa uns com os outros:

— Ih, que pretos que eles são! É cada tição!

— Oh, pá, os gajos são todos iguais, são todos pretos… Como é que vamos conseguir distingui-los uns dos outros?

Por sua vez, enquanto faziam as suas arrumações, os angolanos mostravam-se descontraídos e faladores, para enorme surpresa minha, pois esperava que eles se apresentassem tristes e acabrunhados, porque estavam quase a partir para a guerra. Eu ainda não conhecia a maneira de ser espontânea e extrovertida que caracteriza a maioria do povo angolano.

Assim que terminaram as suas arrumações, os angolanos dirigiram-se aos seus camaradas portugueses, de sorriso no rosto e mão estendida, dizendo-lhes:

— Parece que vamos ter que nos aturar uns aos outros durante dois anos… Então, o melhor é começarmos já a conhecer-nos. Eu sou fulano de tal, sou de tal sítio e na vida civil tinha a profissão tal. E tu? Como te chamas? De que terra és? O que é que fazias na vida civil?

Com este seu gesto, os angolanos quebraram a desconfiança e o acanhamento dos portugueses. Estabeleceu-se de imediato um relacionamento tão natural e tão intenso, que quem os visse diria que eram velhos amigos que já não se viam há muito tempo e que estavam a pôr as conversas em dia. Eu, que a tudo assisti, fiquei encantado com a facilidade com que se iniciava aquela amizade entre brancos, negros e mestiços, amizade esta que iria durar até ao fim da comissão e que iria ser uma amizade para a vida e para a morte.

Ao fim do dia, quando ficamos livres das nossas obrigações e pudemos sair do quartel, todos os angolanos da companhia saíram logo disparados a correr pela porta fora. Os que eram de Luanda foram os primeiros a sair, ansiosos por voltar a casa e reencontrar os seus familiares. Desde que tinham sido incorporados no serviço militar obrigatório e enviados para o Regimento de Infantaria 22, em Sá da Bandeira, a fim de fazerem a recruta e a especialidade, nunca mais puderam estar junto dos seus. Tendo estado colocados a quase mil quilómetros de distância, é evidente que não tinham podido vir passar os fins de semana a casa…

Os restantes angolanos também saíram cheios de pressa. Meteram-se em táxis e foram diretamente à Ilha de Luanda, para verem o mar antes que a noite caísse. A maior parte deles nunca tinha visto o mar.

O dia seguinte era para ser o dia da nossa partida para o Úcua, mesmo ao pé da zona de guerra, onde iríamos receber a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional. Era para ser, mas não foi. Partimos, sim, mas para a própria guerra…

— Vamos render imediatamente a companhia que está à nossa espera — comunicou-nos o capitão. — Não vamos receber IAO nenhuma, porque não há tempo para isso. Quem estiver preparado, está; quem não estiver, estivesse.

Avançamos para Zemba, com o coração aos saltos. «Olha se eu não tivesse dado aquela instrução toda em Santa Margarida…», pensei. «Agora estaria em maus lençóis».

Ao longo da comissão militar, todos os meus subordinados — furriéis, cabos e soldados, portugueses e angolanos sem distinção — comportaram-se de uma forma que ultrapassou tudo o que de melhor eu poderia esperar. Tudo, mesmo tudo. Eles foram verdadeiramente insuperáveis no esforço, na generosidade e na valentia.

Eles foram mais longe do que quaisquer outros militares tinham ido desde o início da guerra. Eles entraram onde as tropas ditas especiais não tinham tido coragem de entrar. Eles passaram a menos de cem metros de sentinelas inimigas sem terem sido descobertos. Eles avançaram, sem vacilar, por um trilho minado e armadilhado, sabendo antecipadamente que o trilho estava minado e depois de, numa operação anterior, já um seu camarada ter ficado sem uma perna por ter pisado uma mina. Eles conquistaram sozinhos uma base da FNLA, sem qualquer apoio e comandados pelo bravo furriel Luis Cândido Passos de Macedo (eu encontrava-me ausente de férias), desalojando a tiro e de peito descoberto os guerrilheiros entricheirados na base.

[Foto à direita:] 

Primeiro-cabo Afonso Dias Nogueira, um dos bravos do meu grupo de combate, que regressou de Angola são e salvo, apesar de todos os perigos por que passou. Alguns anos mais tarde ficou sem uma perna em consequência de um acidente de trabalho


Por outro lado, nem uma só vez eles se comportaram como cães de guerra espalhando a morte à sua volta, como parecia estar expresso no repugnante lema da companhia: "A cada um a sua própria morte". Aliás, de maneira nenhuma os outros três alferes e eu próprio estávamos dispostos a permitir um tão odioso comportamento. Felizmente nunca foi precisa qualquer intervenção nossa a este respeito. O nosso pessoal nunca se deixou desumanizar, apesar de algumas situações extremas que se viveram. Nunca, em tempo algum, os nossos homens deixaram de ser sensíveis à morte e ao sofrimento humano.

Sinto um orgulho enorme nos subordinados que me coube comandar. Eles foram, verdadeiramente, os melhores. Isto mesmo foi publicamente reconhecido pelos outros camaradas que com eles comeram o pão que o diabo amassou.

— Só ao lado deles é que nos sentimos seguros — disseram, textualmente, os camaradas do 1º grupo de combate a seu respeito. — São os únicos em quem temos confiança.

Isto não aconteceu por acaso e a explicação é simples. Quando, no início, foram rejeitados pelos outros alferes, os meus cabos e soldados sentiram-se feridos na sua dignidade pessoal. Este facto levou-os a procurar provar aos outros e sobretudo a si próprios que tinham tanto valor como eles. Superaram-se e conquistaram com sangue, suor e lágrimas o respeito que lhes tinha sido negado. Posso, por isso, afirmar categoricamente que fui um privilegiado por ter tido a meu lado companheiros dotados de uma tal fibra.

 Fui ainda mais privilegiado porque entre eles havia angolanos, que foram das pessoas mais extraordinárias que conheci. Não há dinheiro no mundo que pague toda a sua sabedoria, toda a sua generosidade e toda a sua sensibilidade. Depois de os ter conhecido, nunca mais fui o mesmo. Tenho os seus nomes escritos em letras de ouro no meu coração:

Domingos Amado Neto, 
Silva Alfredo dos Santos, 
Domingos Cangúia, 
Diogo Manuel, 
Ramiro Elias da Silva, 
Domingos Jonas, 
Mateus Tchingúri, 
Jonas Vitorino, 
Lucas Quinta, 
Henrique Luneva, 
Raimundo Nunulo, 
Domingos Dala, 
Fortunato Francisco João Diogo 
e Simão João Leitão Cavaleiro. 

Nunca os esquecerei.


[Foto à direita:] Não é fácil reconhecê-lo nesta fotografa, mas este militar parece ser Diogo Manuel, um dos inesquecíveis camaradas angolanos do meu grupo de combate. Era natural de uma sanzala próxima de Malanje. No início da comissão militar, ao contrário do capitão e dos outros alferes da minha companhia, que nomearam guarda-costas para sua proteção, eu não nomeei. «Para que é que preciso de um guarda-costas?» — pensei. — «Tenho um pelotão inteiro para me guardar as costas, não preciso de guarda-costas para nada. Nós guardamos as costas uns aos outros». Tendo verificado que eu não tinha guarda-costas, este soldado, que era extremamente calado, tomou a decisão de ser ele próprio meu guarda-costas sem me dizer nada, seguindo atrás de mim sempre que era possível no decurso das operações. 

Afinal, acabei por ter também um guarda-costas, o Diogo Manuel. Ainda bem que o tive, confesso. Ele parecia adivinhar quando eu estava assustado. Nessas ocasiões, abria-me um sorriso tranquilizador e dava umas palmadinhas na sua espingarda, querendo dizer-me: «Vai descansado, que eu estou aqui pronto a defender-te». E eu ficava mesmo mais descansado. Foi muito bom ter o Diogo Manuel como guarda-costas


Os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo. Do admirável e sofrido povo de Angola. Quer isto dizer que, para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual. Olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem. E eles foram insuperáveis no companheirismo e na dignidade com que se relacionaram connosco, os europeus da companhia.

Encontrando-se na mesma situação que nós, os nossos camaradas angolanos não se limitaram a partilhar as suas vidas connosco no seio da companhia; eles fizeram parte integrante de nós mesmos, tanto quanto isto foi possível. Eles travaram os mesmos combates que nós. Eles caíram nas mesmas emboscadas que nós. Eles desafiaram as mesmas minas que nós. Eles contornaram as mesmas "bocas-de-lobo" que nós. Eles suaram os mesmos cansaços que nós. Eles enjoaram as mesmas rações de combate que nós. Eles dormiram debaixo da mesma chuva que nós. Eles tremeram os mesmos medos que nós. Eles riram as mesmas alegrias que nós. Eles choraram as mesmas saudades que nós. Eles acalentaram as mesmas esperanças que nós. Eles foram nós. Todos fomos nós.


[Foto à esquerda:] No seio da Companhia de Caçadores 3537, a convivência entre portugueses e angolanos era também de grande harmonia. 

No Mucondo, onde esta companhia esteve aquartelada, havia uma piscina, que uma companhia anterior tinha feito e que o comandante da 3537, capitão Jardim, mandou restaurar. Apesar de a água não ser filtrada nem desinfetada, nunca ninguém apanhou alguma doença por ter nadado nela.

Durante o seu serviço militar, os nossos camaradas angolanos faziam uma vida muito frugal, porque queriam amealhar algum do dinheiro do pré que recebiam, a fim de que, quando acabassem a tropa e regressassem à condição civil, pudessem pagar o alambamento (dote que, segundo a tradição bantu, o noivo tem que pagar à família da noiva) e assim casar-se e constituir família. Esperavam igualmente poder vir a arranjar um emprego minimamente estável e razoavelmente remunerado, tanto quanto era possível a africanos vivendo na Angola colonial.

Subitamente, quase no fim do nosso serviço militar, deu-se a Revolução do 25 de Abril. A Revolução abriu novos horizontes e gerou novas esperanças no coração de todos, angolanos e portugueses, eu incluído. A partir dessa data, os nossos camaradas angolanos passaram a esperar um futuro que antes não tinham podido esperar, porque lhes estivera vedado.

Eles esperaram poder aceder a empregos que até então tinham sido tacitamente reservados a brancos, como os de motoristas de táxi ou empregados bancários. Esperaram poder ganhar tanto e ter as mesmas possibilidades de promoção e de aumento de salário que um branco que fizesse o mesmo trabalho que eles. Esperaram poder entrar nos estabelecimentos comerciais que quisessem, sem receio de serem atendidos com maus modos e enxotados e sem terem que pagar mais do que pagaria um branco pelos mesmos artigos. Esperaram ter condições que lhes permitissem viver numa casa que merecesse o nome de casa, e não numa construção precária de adobe ou de blocos de cimento ou numa cubata. Esperaram que os seus filhos viessem a ter os estudos que eles próprios não puderam ter, apesar da sua enorme vontade de aprender. Enfim, eles viram abrir-se diante de si a perspetiva de uma vida muito mais livre, próspera e feliz do que tinham tido até então, uma vida sem humilhações e sem pobreza.

Quando no fim nos separamos, as nossas vidas — as dos portugueses por um lado e as dos angolanos por outro — tomaram caminhos terrivelmente distintos. Enquanto nós, os portugueses, pudemos recomeçar as nossas vidas (melhor ou pior, consoante a condição psíquica e física em que ficamos) num Portugal em paz, os nossos camaradas angolanos mergulharam numa guerra incomparavelmente mais terrível do que a guerra de guerrilhas que eles e nós tínhamos enfrentado juntos: a guerra civil que estalou em Angola em 1975 e que só terminou definitivamente em 2002.

Muitos dos nossos camaradas angolanos eram oriundos de Nova Lisboa (atual Huambo), de Silva Porto (atual Cuito), de Malanje e de outras terras onde a guerra civil atingiu o seu paroxismo. Estes nossos camaradas apanharam em cheio com um dilúvio de fogo e de metralha que durou anos e anos a fio. Mais tarde ou mais cedo devem ter sido obrigados a abandonar tudo o que tinham e a procurar refúgio no mato ou a tomar o caminho de Luanda, Benguela, Lubango ou outro sítio onde se pudessem sentir mais seguros. Devem ter enfrentado a fome, as doenças, as minas, as bombas e sabe-se lá que mais. Quantos deles terão conseguido sobreviver a tudo isto? Tremo só de pensar. Naquela guerra houve tantos mortos! Tantos corpos despedaçados! Tantas famílias destroçadas! Todos os sonhos e todas as esperanças que a seguir ao 25 de Abril estes nossos camaradas tinham alimentado, foram varridos por uma arrasadora torrente de guerra e de morte.

De maneira nenhuma eu desejo diminuir o valor dos meus camaradas portugueses, que em tudo era igual ao dos angolanos, sem qualquer sombra de dúvida. Não é disso que se trata. O que apenas pretendo neste momento fazer é prestar uma homenagem muito sincera, ainda que canhestra, a pessoas que tive o enorme privilégio de conhecer, cheias de humanidade, de sensibilidade e de coragem, que me deram extraordinárias lições de vida e que eram as últimas pessoas no mundo a merecer a sorte que o destino lhes tinha reservado: os nossos antigos camaradas de armas angolanos. Faço-o com um nó na garganta.

(Continua: O que nos  fizeram foi criminoso, pp. 43-48)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de dezembro de  2006 > Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

(**) Vd. poste anterior da série > 25 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20094: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte III: O respeito pelos homens que comandei (pp. 27-32)

E ainda:

1 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)

12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)

domingo, 25 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20094: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte III: O respeito pelos homens que comandei (pp. 27-32)


Évora > Fachada do quartel do antigo Regimento de Infantaria 16, atual sede do Comando da Instrução e Doutrina do Exército


Campo Militar de Santa Margarida >  Tem cerca de quatro quilómetros de comprimento. O Batalhão de Caçadores 3880 esteve aquartelado muito aproximadamente a meio deste complexo militar



Angola > Ao centro, o capitão miliciano de infantaria João Manuel de Morais Lamas de Mendonça e Silva, que comandou a CCaç 3535 até à primeira quinzena de janeiro de 1973. Foi substituído pelo cap  mil inf José António Pouille Nobre Antunes. O cap mil inf Mendonça e Silva ingressou no QP e está hoje reformado como coronel de infantaria.


Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974: esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(ix) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(x) o ficheiro, em formato, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)(*)


por Fernando de Sousa Ribeiro



O RESPEITO PELOS HOMENS QUE COMANDEI (pp. 27-32)


O texto que se segue não é a história da minha vida militar, embora pareça. Ele é, isso sim, a explicação para o imenso respeito que me merecem os homens que tive o privilégio único de comandar. Homens que, no princípio, pareciam ser uma cambada de básicos irrecuperáveis, que ninguém quis e que eram considerados a escória da companhia, mas que acabaram por se tornar nos mais valentes, sacrificados, esforçados e generosos combatentes do mundo: o 2º grupo de combate da Companhia de Caçadores 3535.

Os factos que aqui se relatam são absolutamente verdadeiros, sem qualquer ponta de fantasia. A mim mesmo, quando agora os recordo, eles me parecem incríveis, impossíveis de ter acontecido. Mas aconteceram assim mesmo, tal e qual. Juro por tudo quanto tenho de mais sagrado.

Aquilo que viria a resultar no Batalhão de Caçadores 3880 começou por ser um batalhão de instrução no Regimento de Infantaria 16, em Évora. Nessa altura, na minha qualidade de aspirante, fui encarregado de ministrar a especialidade de apontador de metralhadora, enquanto o aspirante Araújo (que viria a ser alferes na Companhia de Caçadores 3536) deu a de apontador de morteiro médio e os restantes aspirantes operacionais deram a especialidade de atirador de Infantaria.

O pessoal ao qual o Araújo e eu demos instrução tinha como destino as mais diversas companhias mobilizadas para o então Ultramar. Terminada a especialidade, portanto, os nossos instruendos foram para as unidades que superiormente lhes foram atribuídas e nós os dois, Araújo e eu, ficamos apenas com os nossos cabos milicianos e mais ninguém.

Deste modo, no início da constituição do nosso batalhão, eu não conhecia nenhum dos soldados e cabos que vieram a integrar a minha companhia. Os outros três aspirantes da companhia, pelo contrário, conheciam quase todos aqueles homens, porque lhes tinham dado a especialidade de atiradores. Já lhes conheciam os méritos e os deméritos, as qualidades e os defeitos, mas eu não conhecia.

No momento inicial de proceder à distribuição dos homens pelos quatro grupos de combate da companhia, o comandante desta, o então tenente miliciano Lamas da Silva, mandou que o pessoal fizesse uma formatura em linha e ordenou:

— Agora os senhores aspirantes façam o favor de escolher os homens que querem.

Eu tentei objetar, procurando dizer ao Lamas que não estava em condições de fazer uma tal escolha, porque não conhecia aqueles homens, contrariamente ao que sucedia com os outros aspirantes. O Lamas da Silva não me deixou falar, interrompendo-me continuamente e insistindo repetidamente comigo:

— Escolhe! Tens de escolher os homens que queres. Os outros aspirantes já estão a escolher. Tu também tens que escolher. Olha que assim ficas com os piores!…

Quanto mais eu procurava explicar-lhe que não estava nas mesmas condições que os outros aspirantes para poder escolher, mais ele me interrompia:

— Escolhe, já disse! Tens de escolher! Sou eu que te mando!

A dado momento, os outros aspirantes deram por finda a sua escolha, sem que eu tivesse escolhido quem quer que fosse e sem que o comandante da companhia me tivesse dado ouvidos. Disse-me este:

— Estás a ver o resultado? Os outros aspirantes já escolheram e tu acabaste por ficar com os piores. Quer gostes, quer não gostes, vai ser com esses que vais ficar. Foste tu que assim quiseste. E não esperes nenhum tratamento de favor da minha parte.

Já só me limitei a responder:

— Pode ter a certeza absoluta de que nunca lhe irei pedir favor nenhum.

Olhei para os soldados e cabos que me estavam destinados e senti-me desfalecer.

Pensei: «Sou um homem morto! É com este pessoal que eu vou para a guerra? Estou morto. Eu com homens neste estado não vou durar nem uma semana em Angola! Já me estou a imaginar a regressar dentro de um caixão…»

O aspeto dos meus novos subordinados metropolitanos era arrepiante. Não admirava que aqueles homens tivessem sido rejeitados pelos outros aspirantes. Alguns deles pareciam atrasados mentais; outros pareciam sifilíticos ou coisa parecida. Todos eles pareciam completamente impróprios para servirem como combatentes numa guerra. Nem um só se aproveitava. Os meus três excelentes cabos milicianos (Silva, Macedo e Santos) pareciam tão aterrados como eu.

«Isto só a mim! Que mal é que eu fiz para merecer isto?», pensava eu e pensavam, certamente, os cabos milicianos. «O que é que vai ser de nós, na guerra, com homens assim? Isto não pode ser verdade. Eu devo estar a sonhar e isto é um pesadelo». Mas não era pesadelo nenhum. Era a realidade, que eu tinha que enfrentar custasse o que custasse.

Completado o batalhão no que à sua parte europeia dizia respeito, fomos enviados para o Campo Militar de Santa Margarida, onde iríamos aguardar o dia da nossa partida para Angola, o que deveria acontecer dentro de perto de dois meses. Achei que, durante esse tempo, talvez ainda fosse possível fazer algum esforço para melhorar a preparação dos soldados e cabos que me tinham calhado em sorte, mas as coisas não se passaram tal como eu esperava.

Naquele tempo, os batalhões e companhias que estavam aquartelados em Santa Margarida, à espera de embarque para as colónias, eram habitualmente ocupados com uma intensa atividade de preparação para a guerrilha, que era a chamada IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Mas o nosso batalhão estava incompleto e, por isso, não podia receber a IAO em Santa Margarida; só depois, já em Angola, é que poderia recebê-la. Assim, enquanto permaneceu em Santa Margarida, o nosso batalhão não teve qualquer atividade superiormente programada, nem qualquer orçamento atribuído para esse efeito. Apenas lhe foram reservados os alojamentos que ocupou até ao dia do embarque e mais nada.

Nestas condições, ao pessoal do batalhão foi sendo dada uma instruçãozinha de meia-tigela, que tinha como única finalidade mantê-lo ocupado com alguma atividade até ao dia do embarque. Fazia-se alguma ginástica, dava-se uma ou outra lição de tática, faziam-se muitas e longas pausas e gastavam-se muitas e longas horas a fazer ordem unida. Ordem unida, imagine-se! Pôr soldados que vão para uma guerra no mato africano a marchar para a frente e para trás, um-dois-esquerdo-direito, durante horas a fio, não lembrava ao diabo! Quem nos visse, diria que íamos para Angola fazer desfiles em parada diante do inimigo! Eu estava exasperado. O tempo urgia cada vez mais e nós estávamos a desperdiçá-lo com aquelas mariquices!

Resolvi então atuar por minha conta e risco, mandar o batalhão à fava e ser eu sozinho a dar aos meus subordinados a instrução de que eles necessitavam com tanta urgência. Se eu viesse a ser punido por não seguir o programa determinado pelo comando do batalhão, pouco me importava. Eu ia para a guerra, pior não me poderia acontecer.

Foi por acaso que descobri uma maneira de levar os meus homens para fora do Campo Militar, para a charneca vizinha, onde lhes poderia ensinar tática militar sem sofrer interferências dos meus superiores hierárquicos. Descobri também que poderia usar a carreira de tiro do Campo, onde o meu pessoal poderia gastar algumas das muitas munições excedentárias que, como vim também a descobrir, havia na arrecadação de material de guerra.

Afastados assim os possíveis obstáculos à minha decisão de ministrar uma espécie de IAO privativa aos meus subordinados, passei a pôr diariamente em prática um programa de atividades, que incluía muita preparação física, muito tiro e, sobretudo, muita tática de guerrilha. Devidamente apoiado pelos meus excelentes cabos milicianos, procurei ensinar-lhes tudo quanto eu próprio tinha aprendido em Mafra.

Aquelas semanas em Santa Margarida foram muito duras para mim. Muitas e muitas vezes me senti profundamente desanimado e com vontade de desistir, pois dificilmente eu conseguia vislumbrar algum progresso na preparação militar dos meus homens. Quando vim gozar os dias de licença que era costume dar, pouco tempo antes do embarque, aos militares que estavam mobilizados para a guerra, ao abrigo das chamadas Normas de Nomeação e de Apoio às Províncias Ultramarinas (NNAPU), sentia-me profundamente deprimido, quase à beira do desespero. Todo o esforço despendido naquela corrida contra o tempo me parecia ter sido inútil.

Mas quando regressei a Santa Margarida no fim da licença e voltei a encontrar os meus subordinados, eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi só após aqueles dez dias de ausência que eu me apercebi, com grande espanto meu, que eles tinham mesmo evoluído, e até de forma verdadeiramente espetacular. Pareceram-me mais aprumados do que os outros, mais rijos do que os outros e mais confiantes do que os outros. Os "sifilíticos" e os "atrasados mentais" de outrora já não existiam mais. «Tenho homens!», pensei, espantado com tão grande transformação. «Como é possível que eu não me tenha apercebido deste milagre antes? Tenho homens!»

De entre os meus subordinados, o soldado Francisco António Danado 
Vaqueirinho [, foto à direita,]  foi o que maior transformação sofreu em Santa Margarida. Ao princípio, parecia um deficiente mental irrecuperável. Depois da licença ao abrigo das normas, nem sequer o reconheci. Tinha-se tornado vivo e esperto como poucos. Ainda hoje me pergunto como foi possível não me ter apercebido da sua evolução.


Um dia, ainda em Santa Margarida, os aspirantes das três companhias operacionais do batalhão, incluindo eu próprio, tomaram em conjunto uma resolução que iria pautar a sua conduta ao longo de toda a sua estadia em Angola. Foi uma resolução tomada espontaneamente e não de forma organizada, mas que valeu como um juramento, em que cada um de nós ficou como testemunha e como futuro juiz dos restantes. Uns perante os outros, tomamos então a seguinte resolução:

«Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Não sabemos sequer se estaremos no lado certo ou no lado errado da guerra. Só em Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos ou não no lado certo, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, iremos procurar agir sempre dentro dos limites morais que a nossa consciência nos impuser. Talvez esta seja uma tarefa impossível de cumprir no meio de uma guerra, não sabemos, mas pelo menos iremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para agir de acordo com a nossa consciência, custe o que custar. CUSTE O QUE CUSTAR».

Quando embarquei no avião da Força Aérea com destino a Angola, juntamente com a parte europeia da minha companhia, eu sentia-me fortalecido com a resolução tomada, que estava disposto a cumprir. O mesmo se passava com os outros alferes.

(Continua, "O respeito pelos homens que comandei", pp. 33-42)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]
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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

1 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20050: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte I: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 5-16)

12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13411: Notas de leitura (613): “Wellington, Spínola e Petraeus, o Comando Holístico da Guerra”, por Nuno Lemos Pires (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2014:

Queridos amigos,

O coronel Lemos Pires, traça, neste seu documento académico (prova de doutoramento) hipóteses quanto à teoria do comando holístico da guerra, selecionou três líderes militares de valor indiscutível e questiona até que ponto foram bem ou mal sucedidos no comando holístico, ou seja, na capacidade de fazer convergir as forças militares e paramilitares envolvidas em estreita coordenação com os meios governamentais disponíveis, conseguindo coerência entre a política, as operações e a tática, gerindo todas estas dimensões em tempo oportuno.

Compreensivelmente, escolhi Spínola como a figura de análise.

O que o coronel Lemos Pires nos diz de modo algum nos surpreende: o comando holístico falhou quando Marcello Caetano entrou em conflito aberto com Spínola.

Um abraço do
Mário


Wellington, Spínola e Petraeus, O Comando Holístico da Guerra*

Beja Santos

“Wellington, Spínola e Petraeus, o Comando Holístico da Guerra”, por Nuno Lemos Pires, Nexo Literário, 2014, é um livro que resulta da adaptação da tese de doutoramento do autor em História, Defesa e Relações Internacionais. A questão central é, naturalmente, a defesa que o autor faz do comando holístico da guerra que apresenta sumariamente assim: “Entender uma situação de guerra implica ter uma visão completa e abrangente de todos os fatores envolvidos. Quem recebe a responsabilidade de comandar o esforço de guerra de uma nação, coligação ou aliança deve ter uma visão holística que lhe possibilite usar todos os meios possíveis na implementação de uma política abrangente, global e completa. O comando holístico da guerra desenvolve-se em quatro dimensões principais: a primeira advém da natureza das estruturas das forças envolvidas, armadas e de segurança, militares e paramilitares; a segunda abrange a coordenação entre organizações civis e militares, governamentais, não-governamentais e privadas, entre organizações internacionais e os vários Estados, coligações e alianças; a terceira trata da coerência entre a política, a estratégia, as operações e a tática; a quarta, do tempo, engloba as políticas decididas e as estratégias delas decorrentes, que têm de ser pensadas, concorrentemente, para ou antes, o durante e o pós-guerra”.

Como observa o autor, Wellington tentou, desde o início da Guerra Peninsular, exercer o comando e controlo de todas as foças que combatiam em Portugal. Spínola, como governador e comandante-chefe da Guiné, contou com um abrangente “Estado-Maior” representando variadas áreas da governação e da chefia militar propriamente dita, que lhe permitiu exercer um comando convergente de todas as ações das Forças Armadas, de segurança, das componentes civis e militares do seu governo; Petraeus foi comandante no Iraque e das forças norte-americanas no Afeganistão, buscou a unidade de esforços numa visão holística na condução da guerra. Três comandantes em conflitos sem qualquer ligação e em períodos temporais distintos, mas que visaram de ter o comando do esforço de guerra de modo holístico.

Para o autor, analisando o pensamento e a obra de Spínola, é indispensável, a moldura dos contextos internacional e nacional em que se inseriu a guerra de África para se entender a preparação e o entendimento que o general deu ao comando holístico: os esforços imprimidos junto das populações locais (a ação psicossocial, o apoio às autoridades civis); a africanização, política e militar, da guerra; como, no exercício de governador e comandante-chefe procurou e exerceu a unidades de esforços. Vejamos concretamente o que resultou e aonde falhou o comando holístico na Guiné, ao tempo de Spínola.

O objetivo último do general era o de consolidar a adesão das populações. Desde a primeira hora que chegou à Guiné, em Maio de 1968, que ele verificou que a guerra não podia ser ganha exclusivamente pelas forças das armas. O PAIGC desenvolvera uma estratégia de implantação e intimidação que deixava prever as maiores dificuldades na solução militar, acrescendo que o seu armamento, desde cedo, passou a ser melhor que o utilizado pelos portugueses, basta pensar-se nas metralhadores, nas bazucas e nos morteiros 120. Deu a maior importância à propaganda, contrapropaganda e informação, toda a ação psicossocial revertia para assistência sanitária, educativa e económica. A religião muçulmana em nenhuma circunstância foi hostilizada. Spínola falava constantemente na Guiné para os guinéus, assim abriu fraturas insanáveis entre guineenses e cabo-verdianos. O apoio às populações locais tornou-se um imperativo. Os programas radiofónicos procuravam atingir os guineenses que estavam nos países limítrofes, de modo a abalar as convicções das populações em fuga ou ao abrigo do PAIGC. Os Congressos do Povo foram uma das realizações mais inovadoras de Spínola, garantiam uma ampla participação dos representantes das populações. Foram construídas muitas mesquitas. Procurou-se negociar com fações do PAIGC o seu ingresso nas Forças Armadas portuguesas, operação manchada pelo chamado massacre dos majores em 20 de Abril de 1970.

Spínola e o Secretário-Geral da Guiné, Pedro Cardoso, tinham um excelente entendimento. Fizeram-se escolas, estradas, aldeamentos ouvindo as populações. Foi encorajada a autodefesa dessas mesmas populações e deu-se uma africanização militar com milícias, pelotões e companhias de caçadores, comandos e fuzileiros. E o problema da unidade de comando entre as componentes civis e militares cedo ficou resolvido. Então, o que falhou no comando holístico? As progressivas más relações entre Marcello Caetano e Spínola. Quando Caetano recusou terminantemente que Spínola continuasse conversações com Senghor, caminhou-se paulatinamente para a guerra, Spínola cria uma solução política para a Guiné, Caetano considerava-a de todo inadmissível. 1973 foi um ano decisivo: Amílcar Cabral, o único interlocutor possível de Spínola, foi assassinado em Conacri; entraram em campo os mísseis terra-ar, as forças do PAIGC envolveram-se em operações de cerco que arrasaram o moral das tropas portuguesas. E perdido o comando holístico, a Guiné ficou à deriva, Spínola desforra-se escrevendo as suas teses no livro Portugal e o Futuro, que contribuiu para baquear o regime.

O livro de Nuno Lemos Pires levanta hipóteses que podem estimular o debate sobre algo que tem estado obscurecido entre nós, a teoria geral do comando holístico da guerra, é uma investigação original que assegura uma leitura estimulante e uma reflexão oportuna.
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 8 DE JULHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13375: Agenda cultural (332): Lançamento do livro "Wellington, Spínola e Petraeus: O Comando Holístico da Guerra", do Cor Nuno Correia Barrento de Lemos Pires, dia 16 de Julho de 2014, pelas 18h15, na Academia Militar em Lisboa

Último poste da série de 15 DE JULHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13401: Notas de leitura (612): "O Arauto" noticia a primeira ida para o ar da Emissora da Guiné, em meados de Março de 1953 (Lucinda Aranha)