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sexta-feira, 5 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24288: Notas de leitura (1579): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Continuamos à volta de uma narrativa de largo espectro investigacional, elaborada com uma comunicação acessível, bem estruturada, em que o recurso à diacronia permite ir conhecendo a agenda tumultuosa dos últimos meses do Estado Novo. É interessante verificar que ainda há gente saudosista que é capaz de se procurar convencer de que aquela guerra possuía sustentabilidade, o que contraria toda a documentação produzida ao nível das instâncias militares, os recursos humanos estavam por um fio, procurava-se desesperadamente comprar armas e aviões para manter o conflito em África, o ministro das Finanças estava encostado à parede, o aparecimento do livro de Spínola endureceu duas fações dentro do regime; os autores vão elencando os acontecimentos, logo o agravamento em Moçambique, a franqueza com que Bettencourt Rodrigues vai informando o poder político da gravíssima situação militar que vive. Caetano tenta uma porta de saída, pede uma moção favorável sobre a sua política ultramarina à Assembleia Nacional, convoca depois generais e almirantes (a Brigada do Reumático), para anuir à sua política ultramarina, o MFA entretanto organiza-se, há uma precipitação em 16 de março, a revolta das Caldas. Otelo Saraiva de Carvalho aprende com os erros. A operação seguinte será um êxito estrondoso, o Estado Novo cai aparatosamente, já não há ninguém que o defenda.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (2)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

Estamos já em fevereiro de 1974, Costa Gomes regressara de Moçambique, elabora um relatório sobre a situação da província, a guerra agravara-se com a tentativa de expensão da guerrilha para sul, em Cabo Delgado a FRELIMO procurava aliciar as populações Macuas, e no Niassa registava-se também atividade da guerrilha. O potencial relativo de combate passara a ser menos favorável às forças portuguesas, era urgente a revisão das estruturas de comandos, organização das tropas e planos de operações para ganhar eficiência no combate à guerrilha. A cooperação com os regimes brancos da Rodésia e da África do Sul intensificara-se, entretanto, a FRELIMO irá receber o míssil terra-ar Strela, a Força Aérea em Moçambique já estava preparada para a chega do míssil e nenhum avião foi perdido na colónia. Em suma, a situação agravara-se.

E os autores debruçam-se sobre o problema da Guiné onde o míssil terra-ar Strela fez a sua aparição em março de 1973. Perante o abate de aviões e os acontecimentos de Guidage, Guileje e Gadamael, Spínola clama pelo reforço dos meios de intervenção e de armamento. O Chefe de Gabinete de Costa Gomes, o Coronel Ramires de Oliveira, pronuncia-se sobre o documento enviado por Spínola, e é bem claro: “O exame da situação estratégica leva-nos a concluir que se torna necessário rever as finalidades políticas a atingir, sabendo que o nosso potencial militar, com os meios que dispõe, não pode cumprir a missão que até agora lhe foi cometida.” Costa Gomes vai à Guiné, em 8 de junho haverá uma reunião de alto nível, o documento dessa reunião está hoje amplamente divulgado, cabe a Spínola a iniciativa de propor a saída das zonas de fronteira para posições mais recuadas. “Obviamente que este recuo teria consequências na segurança das populações, que ficariam entregues à sua sorte, mas isso era um problema que teria de ser visto no quadro particular de cada etnia e que podia ser resolvido com o recurso às milícias. Costa Gomes deu o seu aval à estratégia delineada, era a forma de economizar forças e evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. É interessante notar que, pouco tempo depois desta reunião, Spínola acabaria por mudar de ideias, quando, a 9 de junho, escreveu ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, discordando do abandono das zonas de fronteira e das respetivas populações, que ficariam sem proteção militar. O retraimento do dispositivo entrava em contradição com os compromissos que teria assumido perante aquelas populações, não lhe restando outra hipótese senão abandonar as funções que desempenhava na Guiné e regressar à metrópole.”

Marcello Caetano reúne com vários ministros e Costa Gomes e pergunta a este se a Guiné era ou não defensável, “ao que o general terá respondido que, se o inimigo não aparecesse na guerra com aviação própria, a Guiné era defensável. Nessa altura, existiam informações do lado português de que o PAIGC tinha um grupo de pilotos a receber instrução na União Soviética, e de que a guerrilha podia vir a dispor de aviões de origem soviética num futuro próximo.” O General Bettencourt Rodrigues é nomeado novo governador e comandante-chefe, duas companhias que iam para Angola (CCAÇ 4641 e CCAV 8452) foram reforçar as tropas na Guiné.

Os milhões de contos que a África do Sul prometia emprestar para cobrir grande parte das necessidades em armamento já estavam a ser discutidas. Os autores dão depois nota dos acontecimentos da declaração unilateral da independência, do reacendimento de ataques fronteiriços e do bom-sucesso da Operação Neve Gelada, realizada pelo batalhão de comandos africanos. Não obstante, os bombardeamentos a Canquelifá com morteiros 120 irão continuar, Bethencourt Rodrigues chegou a equacionar o abandono desta posição, tal como Buruntuma. Numa nota enviada em 20 de abril, “Bettencourt Rodrigues expressa profunda preocupação pelas informações que tem do uso de viaturas blindadas num ataque noturno a Bedanda e das consequências que a evolução do potencial de combate do PAIGC podia ter junto das guarnições de fronteira. A utilização de viaturas blindadas pelo PAIGC preocupava as forças portuguesas há vários meses, havendo informações de que estas viaturas tinham sido desembarcadas no porto de Conacri em princípios de 1974. Costa Gomes efetuava diligências junto do Chefe-de-Estado-Maior do Exército espanhol para o fornecimento de minas anticarro.”

A documentação de Bettencourt Rodrigues não ilude que o inimigo dispunha de iniciativa tática, melhor equipamento militar e um grande apoio logístico, isto enquanto Silva Cunha tentava, com o recurso do dinheiro sul-africano, dar seguimento às negociações com os franceses para a compra do sistema de mísseis Crotale, além da compra dos caças Mirage, e havia também a intenção de adquirir radares que permitissem uma boa cobertura do território guineense, para além da aquisição de morteiros de 120 mm. O Secretário-de-Estado da Aeronáutica pedia novos meios aéreos, todos contavam com o dinheiro sul-africano. A narrativa prossegue com o nascimento do MFA, o programa político começará a ser definido por uma reunião em Cascais, a 5 de março; um quadro de subversão alastra em várias unidades militares, mas também nas universidades.

Caetano entende que se deve dirigir à Assembleia Nacional, pretende que se vote uma moção que não deixei quaisquer dúvidas acerca da política ultramarina que ele prossegue. Em diferentes níveis, cresce a ebulição, no próprio regime constituem-se blocos, nas Forças Armadas procura-se avaliar o impacto do livro de Spínola, o MFA clarifica posições, escolhe para chefe do movimento Costa Gomes, internamente constituem-se comissões, na militar, sobressaem os nomes de Garcia dos Santos, Otelo Saraiva de Carvalho e Manuel Monge, na política Melo Antunes, Vítor Alves e Vasco Lourenço. A imprensa internacional, devido aos seus correspondentes em Lisboa, não deixa escapar as movimentações que aparentemente estão todas ligadas ao aparecimento de um livro chamado Portugal e o Futuro. A vigilância sobe as movimentações militares leva a que o ministro do Exército mande proceder a transferências compulsivas.

Na segunda semana de março de 1974, Caetano parece muito confiante com a sua política ultramarina, seguem-se reuniões com o Presidente da República, este insiste na demissão de Costa Gomes e Spínola, Caetano pede para não continuar na chefia do governo, escreve carta a Thomaz, este recebe-o ainda nesse mesmo dia, dir-lhe-á “já é tarde para qualquer deles abandonar o seu cargo, temos de ir até ao fim". E é nesse contexto que Caetano forja uma audiência a oficiais de todas as Forças Armadas a que só se recusarão estar presentes Costa Gomes, Spínola e Tierrno Bagulho, evento que ficará para a História com o nome de Brigada do Reumático. Forja-se uma remodelação do governo. E é neste ambiente que vai ter lugar a revolta das Caldas.


José Matos
Zélia Oliveira
Avião C-130
Avião P-3-Orion (Imagem Wikipédia)
Marcello Caetano recebe a Brigada do Reumático
Uma imagem esclarecedora do fim do regime

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 1 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24276: Notas de leitura (1578). Lançamento do livro do ten gen ref Garcia Leandro, "O Balanço de Uma Geração" (Lisboa, Gradiva, 2023, 360 pp.)...Vídeo com a recensão crítica do Presidente da República

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Trata-se de uma narrativa muitíssimo bem urdida, estribada na solidez da documentação, e se dúvidas subsistissem quanto à hierarquia dos problemas cruciais que levaram ao desmoronamento do Estado Novo, o rigor e a probidade deste estudo, a consulta de arquivos nacionais e estrangeiros, falam por si: como o livro de Spínola teve o poder de espoletar a discussão pública e no interior de regime quanto às soluções possíveis depois do prolongamento de uma guerra que conhecia, após 1973, um acirramento asfixiante. 

Naqueles últimos meses que precedem ao baqueamento do regime procurava-se desesperadamente comprar armas para manter a guerra, isto graças ao financiamento sul-africano. E acompanhamos a evolução do que podia parecer exclusivamente uma querela corporativa transformar-se numa vaga estuante, o MFA; e, mais facilmente se torna compreensível como praticamente ninguém tenha vindo defender o regime, que caiu num só dia, e com escasso derramamento de sangue. Mas ainda estamos no princípio, segue-se um corropio de peripécias até ao momento em que a PIDE/DGS capitula, na António Maria Cardoso.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (1)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

15 de fevereiro de 1974, Marcello Caetano preside à última reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional. 

“Costa Gomes informa os presentes de que tinha sido assinado um contrato para a aquisição de uma bateria de mísseis antiaéreos, para defender Bissau, e que o governo procurava rapidamente adquirir armas anticarro, para enfrentar as viaturas blindadas que se dizia estarem na posse do PAIGC na fronteira sul da Guiné. As baixas causadas pela guerrilha às forças portuguesas na Guiné, em 1973, tinham sido de 347 mortos e 1007 feridos, o que representava um quantitativo muito elevado. Neste ponto da reunião, Marcello Caetano intervém para referir que o governo sentia grandes dificuldades em comprar armas nos mercados internacionais, dando, como exemplo, o caso dos mísseis antiaéreos franceses Crotale. O governo francês tinha concordado em vender os mísseis por 75 milhões de francos, na perspetiva de que eram armas de defesa e que não seriam usadas no combate às guerrilhas.” 

Costa Gomes passará em revista os teatros de operações de Moçambique e Angola, interveio o secretário de Estado da Aeronáutica, Tello Polleri, sublinhando a importância de prosseguir o programa de reequipamento da Força Aérea, havia que comprar caças Mirage.

Três dias depois desta reunião, Caetano recebeu um exemplar do livro "Portugal e o Futuro", lerá o livro na noite de 20, escreverá mais tarde que tinha compreendido que o golpe de Estado militar era agora inevitável. Os autores debruçam-se sobre as razões de fundo das razões de Spínola que levaram a escrever a obra, as peripécias um tanto tortuosas sobre quem autorizou a publicação, foi uma corrida ao livro que se esgotou no mesmo dia, os leitores aperceberam-se da bomba: a vitória exclusivamente militar era inviável. 

“Pretender ganhar uma guerra subversiva através de uma solução militar é aceitar, diante mão, a derrota, a menos que se possuam ilimitadas capacidades para prolongar indefinidamente a guerra, fazendo dela uma instituição. Será esse o nosso caso?” 

Costa Gomes e Spínola são convocados a 22 de fevereiro, Caetano sente-se desautorizado e sugere aos dois generais que deviam assumir as suas responsabilidades, que serão enjeitadas por estes.

Por essa altura, a 25 de fevereiro, a Comissão Coordenadora Executiva do MFA reúne-se em casa de Otelo Saraiva de Carvalho, é elaborado um texto, agenda-se um mini plenário para 5 de março. Os autores dão-nos conta do que desencadeara esta movimentação, uma legislação publicada no verão de 1973 que essencialmente procurava atrair oficiais milicianos à profissão militar, de acordo com a primeira legislação promulgada os oficiais milicianos mediante cursos rápidos passariam ao quadro permanente, a antiguidade dos oficiais deste quadro parecia posta em causa. 

“Os oficiais oriundos de milicianos iriam ultrapassar na carreira os oriundos de cadetes do quadro permanente, situação que se considerava ser uma injustiça.” 

Caetano encontra-se com o Presidente da República em 28 de fevereiro, pede a Thomaz que aceite a exoneração do executivo, Thomaz responde que esta não fazia sentido.

A situação internacional era manifestamente intolerável para a vida do regime, o ataque da Síria e do Egito a Israel a 6 outubro de 1973, teve consequências gravíssimas para a economia portuguesa, os grandes produtores árabes bloquearam o fornecimento dos hidrocarbonetos a Portugal, o abastecimento passou a ser feito no mercado livre, a um preço gravoso. Kissinger escreveu mesmo uma carta a Caetano em tom de Ultimatum, precisava da base das Lajes imediatamente, senão… Isto numa altura em que Portugal precisava de obter desesperadamente mísseis terra-ar portáteis, do tipo Redeye para proteger as tropas portuguesas na Guiné. 

Costa Gomes fizera uma análise na reunião de 19 de outubro no Conselho Superior de Defesa Nacional, chamara a atenção para uma possível escalada da guerra da Guiné, “uma vez que aquele país dispunha de caças MiG-15 e MiG-17 e havia informações de pilotos do PAIGC a serem treinados na União Soviética, que se podiam juntar aos da própria Força Aérea da República da Guiné. Costa Gomes refere ainda que a situação militar na colónia se tinha agravado devido às novas capacidades militares da guerrilha e à alteração do conceito de manobra que levou o PAIGC a fazer grandes concentrações à volta de três quartéis das tropas portuguesas, em zonas de fronteira, que isolou e bombardeou com elevado poder de fogo.” O general falou dos números decorrentes destas operações e do agravamento da guerrilha: “As nossas forças tiveram 125 mortos e 586 feridos até ao fim do período em análise, o que são números muito elevados (correspondem à perda de um batalhão), dos quais 96 mortos e 500 feridos só nos mês de maio.”

E os autores continuam: “A situação podia piorar ainda mais no caso de um ataque de aviação que, na opinião de Costa Gomes, poderia conduzir ao colapso militar das forças portuguesas naquele teatro de operações. Sendo assim, defendia que a nova ameaça exigia a existência de meios de defesa antiaérea apropriados para a cidade de Bissau, o que teria de incluir mísseis terra-ar e, complementarmente, aviões de caça modernos que podiam ser usados para retaliar sobre o país vizinho. A defesa de Bissau era prioritária, mas qualquer quartel na Guiné podia ser atacado, o que exigia também mísseis terra-ar portáteis para defender as tropas portuguesas. Sá Viana Rebelo, o ministro da Defesa, deu conta das negociações com a Africa do Sul de fornecimento de material de guerra, nessa altura considerava-se a possibilidade de um empréstimo avultado em dinheiro para reequipar as forças portuguesas que precisavam urgentemente de ser modernizadas.” 

E nesta reunião, Cota Dias, ministro das Finanças, informou não estar em condições de assegurar despesas suplementares.

É num capítulo intitulado “Uma questão de vida ou de morte” que os autores escrevem as conversações luso-norte-americanas para a aquisição de mísseis, veículos, aeronaves, equipamentos. Quando Kissinger vem a Lisboa em 17 de dezembro de 1973 recebe um memorando onde claramente se põem números para mísseis terra-ar, veículos modernos com sistema antitanques e aviões de transporte C-130, o secretário de Estado lembrou que o Congresso dos EUA iriam levantar inúmeros obstáculos, impunha-se encontrar soluções em intermediários, segue-se um período em que Washington andou a empatar até um dia o embaixador português ter recebido uma resposta de que os EUA iriam ofertar uma central nuclear.

No início de 1974 dá-se o agravamento da situação em Moçambique, uma família de agricultores brancos é atacada por guerrilheiros da FRELIMO, a mulher é morta, segue-se uma greve geral, apedreja-se a messe de oficiais do exército na Beira, Costa Gomes vai a Moçambique, é no decurso dessas reuniões que o general confirma as dificuldades decorrentes da dependência portuguesa, crescera o número de países que impediam a venda de armamento, acresce a falta de oficiais do exército para comandar a polícia. 

“As tropas no Ultramar e em instrução na metrópole tinham aproximadamente 200 mil homens, e em função desse número deviam existir 18 mil oficiais. Mas na verdade, no terreno, existiam pouco mais de 4 mil. Um estudo do Secretariado-Geral da Defesa Nacional, datado de março de 1973, já chamava a atenção para o problema referindo que era uma questão inadiável e que os oficiais em funções de combate estavam a atingir o limite da exaustão. No estudo podia-se ver que o número de oficiais que o Exército devia ter na metrópole, no Ultramar e de reserva para as forças de segurança estava muito abaixo do necessário. Em teoria, deviam ser 5650 oficiais na globalidade, mas em janeiro de 1972 existiam apenas 2872. Além disso, as carências eram mais graves ao nível de capitães e oficiais subalternos. Nas conclusões, o estudo alertava para a situação gravíssima e potencialmente perigosa que se vivia no Exército, e para a urgência de medidas de fundo a tomar rapidamente para não se correr o risco do Exército se desmoronar.”

José Matos
Zélia Oliveira
Notícias sobre o levantamento das Caldas, em 16 de março de 1974
Imagem de Guidage ao tempo em que o coronel Moura Calheiros e a sua equipa fora exumar os paraquedistas falecidos durante as operações de libertação do cerco, que ocorreram maio de 1973
Outra imagem de Guidage, da autoria de Albano Costa, publicada no blogue Dos Combatentes da Guerra do Ultramar, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24263: Notas de leitura (1576): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)

sábado, 27 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21115: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (16): A DGS boa ou má e outras siglas, ou Lembrando a resistência dos meus conterrâneos



1. Em mensagem do dia 8 de Junho de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, desta vez dedicada à sigla DGS, antes de má memória, hoje um serviço que olha pela nossa saúde.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 15

A DGS boa ou má e outras siglas ou 
Lembrando a resistência dos meus conterrâneos 

Como vulgar cidadão, assumidamente como pouco culto e pouco informado, não sou mais que um Zé-ninguém, Zé português do Norte e mais um fruto da minha geração. Por isso, lamento não esticar mais os comentários, para os quais não tenho a pretensão nem a capacidade de os desenvolver. Resta-me, apenas, recordar a minha “leve ligação” a alguma destas siglas.

Por via do Covid-19, esse vírus que alegadamente veio da China, direcionado para matar os “cotas” ou gente de deficiente qualidade, possivelmente inspirado em critérios próximos do famigerado Nacional Socialismo (National Sozialistische Deutsche Arbeiterpartei), somos levados a repensar na sigla que outrora tanto nos atormentava: a DGS - Direcção Geral de Segurança.

A DGS foi uma inovação promovida pelo “governo de abertura” de Marcelo Caetano em 1969 que, com desmedido destaque publicitário, “acabou” com a PIDE – Polícia Internacional da Defesa do Estado. Pelo que se sabe, apenas a sigla foi substituída.

A PIDE, em 1945, substituiu a PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, que havia sido criada em 1933.

Ora, os “cotas” da minha geração, sabem bem do que estamos a falar. Podem ser poucos os que sofreram na pele o verdadeiro “tratamento” dessa “segurança”, mas são muitos os portugueses que foram condicionados por ela.

São milhares as histórias contadas, umas mais reais que outras, mas quase todas apontadas para a aversão e o ódio ao comportamento dessas organizações.
Com o 25 de Abril, assistimos a uma certa luta pelo controlo dos arquivos da PIDE/DGS. Diz-se que houve um trabalho muito eficaz por parte do PCP que,até, os fizera deslocar para Moscovo. Por outro lado, também houve pressões que levaram à destruição e desaparecimento de documentação. Curioso o facto de recentemente a PJ ter apreendido mais de 700 fichas pessoais dos mesmos arquivos, que estavam à venda.

(“Fonte: Publico de 23 de Abril de 2020, por Luís Miguel Queirós”)

“A DGS foi extinta a 25 de Abril de 1974. No entanto em Angola os serviços desta Polícia continuaram a funcionar até à independência daquele território em 1975, embora sob a designação de Polícia de Informação Militar e de Gabinete Especial de Informação, e com outras atribuições.
Quanto à integridade do Arquivo, são de assinalar os efeitos negativos das destruições e anulações de processos efectuadas pela própria PIDE/DGS, as destruições ou desvios ocorridos entre 1974 e 1990, e o desmembramento de algumas séries de processos, levado a cabo pelo Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa, seguido da integração desses processos noutras séries do Arquivo da PIDE/DGS ou em séries do próprio Arquivo dos Serviços de Extinção.”

(“Fonte: História custódial e arquivística da Pide, na Torre do Tombo”)

Fichas aparecidas à venda na internet “Fonte: Público de 23 de Abril de 2020, por Luís Miguel Queirós”

Fui habituado a olhar permanentemente para o grande quadro negro da escola, em cuja parede se destacavam os retratos de Oliveira Salazar e de Óscar Carmona, tendo, no meio deles, uma cruz com Jesus Cristo crucificado. Ainda apanhei Craveiro Lopes, que substituiu Carmona em 1951.
Nessa altura tinha um sentimento patriótico acentuado, por influência da Profª. D. Irene, uma figura marcante no Ensino Primário de Fiães. Ela ensinou-nos a cantar o Hino Nacional e punha-nos de mão estendida a cantar as várias canções- marcha de adoração à Pátria, à semelhança do que se fazia na Mocidade Portuguesa. Sempre que entrava alguém na escola, tínhamos que nos levantar e fazer a saudação nazi, até que nos mandasse o “à vontade”. Todavia, em criança, eu não ligava esse patriotismo a qualquer idolatria aos governantes. Já se sentiam, então, os murmúrios de familiares e amigos, pondo em causa essas lideranças.
Nesses anos seguintes à instrução primária, o que se sabia da polícia política era em segredo e muito devido à audição da Rádio Moscovo. Ainda poucos tinham aparelho de rádio e muito poucos tinham a coragem de sintonizar essa rádio comunista. Nessa altura, todos estavam bem informados quanto à noção do espaço e das limitações sobre esse assunto melindroso.
O medo e a desconfiança estavam amplamente instalados. O respeito pelo professor e pelo padre, também era acentuado. E também eles seriam importantes nos costumes pidescos.
O certo é que todos sabíamos que a PIDE nos controlava e nos poderia castigar à menor acusação. E todos sabiam dos vários exemplos marcantes que nos rodeavam.

Na minha terra, em Fiães da Feira, sempre houve tradição relacionada com a política de oposição. Conheci pessoas vigiadas e perseguidas, na sua vida pessoal e profissional. Porém, mais que isso, tenho que destacar várias personalidades que marcaram a história da nossa democracia.

Começo por uma que, apesar de não estar referida nas prisões e perseguições como outros estão, merece todo o realce pela importante evidência política que mostrou na sua difícil geração.

Em 6 de Janeiro de 1869 nasceu o Dr. Elisio Pinto de Almeida e Castro, filho de António Pinto de Almeida e Castro e de D. Marcelina Barbosa. Seus pais viviam em Fiães, No Palacete da Quinta das Camélias, que o pai mandara construir quando regressou, rico, do Brasil. Todavia, em registos (alguns contraditórios), aponta-se que o nascimento de Elísio e de sua irmã Amélia, ocorreram no Porto, na freguesia de Cedofeita, onde foram baptizados na Igreja de S. Martinho. Mais informam que foram considerados filhos de pai incógnito (os pais ainda não haviam casado), e que só viriam a ser perfilhados em 1880, pouco antes do pai António falecer.

Na minha modesta opinião, esta disparidade em relação ao registo do nascimento dos filhos, no Porto (Cedofeita), poderá ter a ver com a “indesejável/intolerável” situação do casal aos olhos do clero e dos bons costumes locais.

O Dr. Elísio Castro que ficou órfão de pai com 11 anos, licenciou-se em Direito em Coimbra, com 21 anos.
Casou em 22.08.1892, com D. Maria Emília Bessa de Carvalho, no mesmo dia que sua irmã Amélia casou com o irmão de sua noiva.


O Dr. Elísio absorveu, logo em criança, o espírito aberto a novas ideias trazidas pelo seu pai do Brasil e, mercê dos bons relacionamentos por ele criados, procurou dar-lhes continuidade, atingindo o mais alto nível da política e dos poderes.

Apesar de o pai militar na área do Partido Regenerador e de vir a salientar-se mais entre as doutrinas republicanas, o Dr. Elísio conviveu bastante com a Corte, tendo participado em caçadas e torneios de tiro com o próprio Rei D. Carlos. A taça que se mostra na foto ao lado diz respeito a uma finalíssima de tiro aos pombos, ganha pelo Dr. Elísio ao Monarca.
Quando ocorreu o regicídio, o Dr. Elísio manifestou-se grandemente contra esse ignóbil acto que, quanto a ele, não resolveria os problemas do País.

No dia 23 de Janeiro de 1907, sob a coordenação do Dr. Elísio de Castro, realizou-se, em sua casa, em Fiães, no Palacete da Quinta das Camélias, mais uma reunião, que culminou com a criação da Comissão Republicana Municipal da Feira. Na acta divulgada no dia 30 desse mês, verifica-se que o Dr. Elísio de Castro foi eleito Presidente. Nessa Comissão, composta por 10 elementos eleitos, consta, também, outro Fianense, o Médico António Mota.

A implantação da República foi muito desejada em Fiães.
Em 15.05.11, o Dr. Elísio foi eleito Deputado à Assembleia Nacional Constituinte e, em 08.07.11, deixa a Comissão Municipal para acompanhar e colaborar melhor a Assembleia Constituinte de 1911.
Em 02 de Setembro de 1911 o Dr. Elísio de Castro foi eleito o Senador, para um período de 6 anos. Foi condecorado com a Medalha Comemorativa da Revolução do 31 de Janeiro de 1891.

Vista parcial da Avenida Dr. António Mota, de Fiães e a Escola primária de Macieira

Em 27.04.12 foi aberta a Avenida de Fiães, graças à doação de terrenos pelo Dr. Elísio de Castro que, além disso, pagou de seu bolso as expropriações a outros proprietários.

Foto de Abril de 1918, com a presença do Dr. Afonso Costa.

Dadas as boas relações deste Fianense com os seus ilustres colegas republicanos Dr. António José de Almeida e Dr. Afonso Costa (e outros), eles hospedavam-se, periodicamente, na sua casa, em Fiães.
O Dr. Elísio fez parte da Comissão de Honra da candidatura do General Norton de Matos.
Teve dois filhos, ambos licenciados; o Fernando e o Elísio. O Fernando veio a casar com D. Maria Costa, que era filha do Dr. Afonso Costa, que foi Presidente da República.
Faleceu a 12 de Novembro de 1942.

(“Fontes: Publicações no Jornal “Correio da Feira”, Manuel Strecht Monteiro em “Um Fianense na Ascensão e Queda da I República” e José Rodrigues em “Palacete da Quinta das Camélias”).


Nota: O Palacete da Quinta das Camélias veio a funcionar como Escola Preparatória. Ali trabalhou, como Professor de Educação Física, Bernardino Ribeiro, quando chegado de Moçambique, da Guerra do Ultramar. O Bernardino veio a destacar-se como excelente autarca, durante mais de 30 anos.

Lembro o Inspector Escolar Adelino Soares Bastos, a quem, diziam, arrancavam as unhas e as sobrancelhas nas torturas da PVDE. A sua casa, hoje um Infantário, ainda tem os esconderijos nas suas próprias paredes.

Nasceu em Fiães da Feira, no dia 30-11-1882.
Foi empossado como Inspector Escolar em 28-10-1919.
Foi preso, provavelmente, em Abril de 1928. Passou a ser encarcerado/perseguido/fugitivo periodicamente.
Em Maio de 1938 é detido pela Delegação da PVDE do Porto que o leva para o Aljube de Lisboa.
Voltou para a Delegação do Porto, mas regressou ao Aljube em 24-04-39.
Foi julgado pelo Tribunal Militar Especial em 27-06-39 e em 19-08-39.
Transferido para Caxias em 21-05.40.
Libertado por amnistia, em 03-06-40

(“Fonte: João Esteves em “Silêncios e Memórias”)

Casa do Inspector Adelino Soares Bastos. Hoje funciona como Infantário do Centro Social do Pe. José Coelho

O Dr. Alcides Strecht Monteiro, nasceu no lugar do Souto, Fiães da Feira, no dia 1910.
Foi casado com Ana Celeste Ferreira da Silva
Destacados lutadores no MUD - Movimento de Unidade Democrática e nas candidaturas de Norton de Matos e de Humberto Delgado.
Estão ligados no apoio à ASP (1964) e à fundação do PS (1973).
Foi sempre o chefe da oposição no Distrito de Aveiro.
Foi Deputado de 1975 a 1977.
Faleceu a caminho da Assembleia da República na tarde de 14 de Junho de 1977.
Foi condecorado com a Ordem da Liberdade.
Este ilustre Fianense era o Advogado dos pobres e o abrigo dos perseguidos politicamente.

(“Fonte: Prof José Rodrigues em “Biografias de Ilustres Fianenses”)

O PS substituiu a ASP em BadMunstereifel, Alemanha, em 19-04-73.

A Drª. Alcina Bastos nasceu em Fiães, concelho de Vila da Feira, a 7 de abril de 1915. Era filha do Inspector Escolar Adelino Soares Bastos e da Dr.ª Filomena de Sousa Vilarinho Bastos.
Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde colaborou com o Socorro Vermelho Internacional (SVI).
Exerceu a advocacia no Porto, Espinho e Vila da Feira. Aí aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD).
Influenciada por motivos familiares já que o pai, republicano, muito lutara e muito sofrera nas prisões. Alcina Bastos preencheu a sua vida em actividades em prol da liberdade, sendo, não raras vezes, a única mulher a marcar presença nas mesas das sessões políticas então realizadas, apesar de se omitir a sua identificação.
Em 1949, empenhou-se na candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República e, em 1958, integrou, juntamente com o irmão Joaquim Bastos, também advogado, a equipa que promoveu e organizou a candidatura presidencial do general Humberto Delgado
Reconquistada a liberdade, empenhou-se no julgamento dos assassinos de Humberto Delgado, marcando presença nas audiências dos agentes da PIDE e na trasladação dos restos mortais do general para Portugal. Integrou a Liga Portuguesa dos Direitos do Homem

O Tenente Armando Agatão Lança, aqui de espada em punho, evidenciou-se na Revolta dos Marinheiros

Foi casada com o militar republicano Armando Pereira de Castro AgatãoLança (19/08/1894-23/05/1965), também interveniente ativo nas conspirações para derrubar o regime que pôs fim à I República (1927 e Revolta dos Marinheiros em 1936).
Teve uma filha (n. 1955) que seguiu o mesmo trajeto profissional da mãe.
Faleceu em 17-08-1993. Quis ser enterrada com a sua toga no Cemitério dos Prazeres e, um ano depois, a título póstumo, foi-lhe atribuída a Ordem da Liberdade.

Alcina Bastos sentada, à direita, durante o comício do general Humberto Delgado no Liceu Camões a 18 de Maio de 1958.

(“Fonte: João Esteves em “Silêncios e Memórias”)

Também Antero Canastro, o “Regedor da Mamoa”, que casou com uma sobrinha do Inspector Adelino Bastos, esteve preso. Por altura de um movimento revolucionário em Lisboa (8 de Setembro de 1936 - Revolta dos Marinheiros), o Inspector que talvez beneficiasse do contacto optimista do seu futuro genro, Tenente Armando Agatão Lança, envolvido no comando dessa revolta, estava convicto do seu êxito e, empolgado, entregou a Bandeira Nacional a Antero:
- O Salazar foi com o caralho, vais hastear a bandeira na Capela da Nossa Senhora da Conceição, a Padroeira de Portugal!

O Antero gritava de alegria, enquanto corria e atravessava o centro da freguesia. De braços abertos, alternava e corrigia a posição da imagem da esfera armilar, por forma a honrar e valorizar condignamente a feliz referência ao acontecimento nacional.

Capela de Nª. Sª. da Conceição, Padroeira de Portugal

Já tinha atravessado a Ponte de Chão do Rio, sobre o Rio Azavessas, e seguia subindo o Monte de Stª. Maria, aproximando-se da Capela, quando lhe gritaram:
- Cuidado Antero, olha que o filho da puta, afinal não morreu! Não morreu e os bufos vão-te foder.

Passados uns dias, o Antero saiu da prisão. Só esteve lá três dias. Perguntavam-lhe uns amigos:
- Porque é que já vieste embora? Não nos digas que te vais armar em bufo da “Pevide”? Nem penses no tal! Enterramos-te vivo, seu caralho!

E o Antero, revoltado afirmava:
- Foi o sacana do Professor Reinaldo que me acusou. Eles só me perguntavam quem me deu a bandeira. Eu disse-lhes que nem reparei a quem a tirei das mãos. Mas eles não me querem fazer mal. Penso que querem mostrar à família da minha mulher que são uns gajos porreiros. Se calhar, até pensam que vou melar e colaborar com eles, esses filhos da puta.

Há dias, o amigo Zéquita do Calvário, que foi aluno do Professor Reinaldo, contava-me que ele pendurava os alunos, pelas orelhas, com os seus braços enormes, levando-os junto do quadro do Salazar enquanto os “acusava” de incumpridores e de falta de patriotismo.

Desde a infância que fomos tomando conhecimento destes lutadores pela democracia e das implicações que sentiriam os seus seguidores.

Aquele ano de 1958 ficaria marcado para o resto das nossas vidas. Meu pai faleceu a 11 de Abril e as eleições realizaram-se a 8 de Junho. Eu completava os 15 anos, mas já era um entusiasta pelo élan de vitória de Humberto Delgado. Parecia que ele iria ganhar e bem. Porém, vivi ainda uma outra frustração, porque não conseguia convencer a minha mãe, a votar Humberto Delgado, apesar da miséria em que tínhamos caído. A influência da igreja e das “pessoas de bem” faziam-na vergar para a habitual condição de subserviência.
O nosso grupo restrito constava de uma lista “fornecida” pelo Padre Inácio ao Presidente da Câmara. De JOCistas, passámos a perigosos vadios que ficavam fora da igreja durante a missa. É verdade que o padre aparentava a preocupação de nos condenar publicamente. Por vezes, suspendia a missa e vinha insultar-nos cá fora.

O Bernardino Ribeiro foi chamado à PIDE e só tinha 17 anos. Quando o viram na sede, no Campo 24 de Agosto, um dos “gorilas”, exclamou:
- Que caralho vem a ser isto, agora mandam canalha para aqui? Isto não é nenhum infantário. Temos mais que fazer.

Mandaram-no embora dizendo:
- Ó miúdo, tem juizinho e quando disseres mal do Salazar, olha bem para os lados.

Ao Carlos Fontes também lhe disseram a mesma coisa. Tinha sido chamado por ter afirmado no café que as despesas das festas políticas da Câmara Municipal eram legalizadas com camiões de pedra ou de areia.

Chegado da guerra, em Março de 1969, estive, juntamente com o Bernardino, na crise estudantil de Coimbra e assistimos parcialmente ao II Congresso Republicano, realizado em Aveiro, 15 a 17 de Maio, distrito onde predominava a luta pela democracia.

Nesse ano da “abertura Marcelista”, regressou dos 10 anos de exílio D. António Ferreira Gomes, o famoso Bispo do Porto. Como o Pe. Artur da Paróquia de Espinho, regressou ao Secretariado da sede Episcopal, o “afastado” Pe. Manuel Henriques Ribeiro, foi para esse lugar, em Espinho. Este Fianense, visitante assíduo do amigo D. António Ferreira Gomes no exílio, em Espanha, também sofria da descriminação no próprio clero. Salazar, por mais que insistisse junto da Santa Sé, para que o lugar do Bispo do Porto fosse preenchido, nunca o conseguiu, mas o nomeado como Delegado Adjunto, D. Florentino Andrade fazia de sua a justiça mais conveniente ao poder civil.

E em Outubro, votámos para as eleições legislativas.

O Dr. Alcides Strecht Monteiro era o chefe da oposição de Aveiro e, como candidato, enviou o seu boletim, pelos CTT, para quem estava inscrito nos cadernos eleitorais. Porém, nos últimos dias, o “bufo” de cada lugar, dirigiu-se às pessoas pedindo a entrega desse boletim, alegadamente por indicação do Sr. Presidente da Câmara. Penso que todas as pessoas lhe fizeram essa vontade.
O Dr. Alcides ainda editou novos boletins que, perigosamente, andámos, durante a última noite, a distribuir pelas pessoas da oposição e de maior confiança, num esforço inglório para suavizar a anormal derrota. Numa dessas ruas e vielas, acabei por embater com o carro do “Inhecas”, num meco de granito.

O Inhecas - José Henriques Ribeiro, que havia sido ferido em 1967, na guerra da Guiné, continuou muito activo na oposição ao regime que nos governava. Militou no MDP, salientou-se como autarca, professor e dirigente associativo. Foi participante no III Congresso da Oposição (e último), realizado, também, em Aveiro. Não o incomodavam, talvez por recearem a firmeza do seu carácter e a sua utilização contínua da cadeira de rodas.

O jovem Dr. Manuel Lima Bastos, que era o nosso mentor revolucionário, foi sempre perseguido e controlado pela DGS. É sobrinho-neto do Inspector Adelino Soares Bastos. Foi ele que nos levou às crises de 68 e 69 em Coimbra, aos Congressos da Oposição e aos seus Comícios. O seu irmão Ângelo seguia-o sempre que podia.
Ligado ao MDP, veio a ocupar lugares de responsabilidade política após o 25 de Abril.
Hoje dedica-se à escrita, tendo publicados cerca de duas dezenas de livros.

Havia, ainda, o médico Carlos Ferreira Soares, de Nogueira da Regedoura, grande amigo e camarada do Inspector Adelino Bastos nessa luta antifascista.

Nasceu em 1903 e faleceu em 1942.
Era conhecido por Dr. Prata, o médico dos pobres. Dizem que, além das consultas grátis, dava e comprava medicamentos para os mais necessitados.
Tal como o seu amigo, andou clandestino e em fuga da PVDE. É célebre o seu esconderijo numa pequena japoneira situada no meio do cemitério.
Foi condenado à revelia em Tribunal Militar Especial do Porto, em Agosto de 1937, com multa elevada e um ano depois, com 4 anos de prisão correcional.
Foi assassinado em 4 de Julho de 1942.

(“Fonte: Antifascistas da resistência”)

Sempre que eu, adolescente, passava no autocarro da Feirense, junto à igreja de Nogueira, a caminho de Espinho, e olhava para o cemitério anexo, fixava a japoneira e prolongava essa visão, imaginando e admirando a bravura desses meus vizinhos patriotas antifascistas a quem muito devemos.

Os restos mortais do Dr. Carlos Ferreira Soares jazem junto da Japoneira (entretanto a primeira já foi substituída) que o escondeu muitas vezes da perseguição da PVDE.

Em 1970, quando eu seguia de barco para Angola, fui chamado à DGS para complementar as informações que pretendiam e ouvir algumas advertências.
Vim a verificar que todos os funcionários públicos eram “obrigados/aconselhados” a preencher a ficha de filiação na União Nacional. Sem negar essa inscrição, fui protelando e prometendo fazê-la. Porém, nunca o fiz.
Passei a ser visitado periodicamente na Câmara Municipal de Cabinda e sempre com o “convite amistoso” de passar por lá, pela DGS.
Por último, foram à Câmara no dia 20 de Abril de 1974, intimar-me para comparecer nas suas instalações “na próxima Quarta-feira, dia 24”.
Como não o fizeram por escrito, eu entendi que ainda não deveria lá ir “voluntariamente”.
Durante a noite, senti alguma preocupação. Apesar de não esconder a minha antipatia ao regime, estava convicto de que não havia nada de comprometedor no meu comportamento de cidadão português, cumpridor e patriota.

A manhã raiou com o desejado 25 de Abril. Quando tive conhecimento da revolta, senti uma satisfação indescritível.

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Felizmente que hoje, a sigla DGS, ao contrário da outra, é a de uma organização que muito orgulha os portugueses.


E é nesta luta que enfrentamos contra a Covid-19 que a ela mais nos sentimos ligados.
Obrigado DGS – DIREÇÃO GERAL DA SAÚDE!

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21094: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (15): Os Carolos

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19971: (De)Caras (133): Faz hoje um ano que morreu um dos "bravos do Cachil", o ex-alf mil José Augusto Rocha (1938-2018), destacado dirigente estudantil (em 1962) e depois advogado, defensor de muitos presos políticos sob o Marcelismo. Tinha uma posição radical sobre a guerra colonial, a da denúncia ativa, razão por que declinara, em 2015, delicadamente, o nosso convite para integrar a Tabanca Grande.


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (1963/65) > 1964 > Fotos falantes...que não precisariam de legenda... Um dos piores lugares do inferno verde e vermelho que foi, para muitos de nós, a Guiné... Fotos do álbum do José Colaço (ex-Soldado Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (*)

Foto (e legenda): © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) >  'Trabalho forçado': o transporte dos toros para a construção da paliçada e casernas. Foto do fur mil Vitor Neto, da CCAÇ 557.

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Mata destruída e a vista parcial do quartel do Cachil do lado do cais....É visível a  paliçada, vista da  entrada com cavalo de frisa, para quem vinha do cais .... porque no lado oposto seria muito perigoso para o fotógrafo, nunca se sabia quando é que um turra poderia estar na mata grande do Cachil... Uma das baixas que a companhia teve logo quase à chegada foi de um tiro isolado quando o soldado estava a cavar o abrigo. Além disso era uma zona que estava armadilhada e pessoal estava avisado para não a usar, embora durante o dia e nos dias em que havia batidas à mata do Cachil, as armadilhas eram desactivadas para evitar acidentes.

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > A construção da paliçada...

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) >  1964 > Tourada no Cachil... Um camarada a demonstrar os seus dotes tauromáticos.. A malta dava largas à imaginação para se distrair...e não dar em doidos!...

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Abrigo "Cova do Comando" da CCAÇ 557 no Cachil. Alguém chamou a esta subunidade, que também participou na Op Tridente (jan/mar 1964), "a esquálida e esgroviada Companhia de Caçadores 557". Por detrás desta foto estão cinquenta e cinco dias a ração de combate, cerca sessenta dias sem mudar de roupa nem tomar banho, e com água racionada para beber

Legenda: a começar da esquerda para a direita o 1.º Cabo Enfermeiro Leiria; 1.º Cabo Radiotelegrafista Joaquim Robalo Dias; Dr. Rogério Leitão, que já partiu; atrás o 1.º Cabo Enfermeiro António Salvador, e por último, de quico, a sair do buraco, eu, Soldado de Transmissões José Colaço. As barbas com cerca de 90 dias. Os cabelos já tinham levado um corte para melhor se aguentar o calor. Aquela "divisória" entre o 1.º Cabo Dias e dr. Rogério, é uma cobra que durante a noite se lembrou de nos assaltar o abrigo e que só de manhã com a luz do dia foi detectada a um canto da cova. Foi condenada à morte pela catana de um milícia.

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A notícia da morte do José Augusto Rocha, amplamente noticiada pela comunicação social , (Público, Expresso, Diário de Notícias, RTP...), chegou-me, em primeira mão, por mail do José Colaço de 12/7/2018, às 13h32, a dizer telegraficamemte o seguinte: "Morreu o Dr. José Augusto Rocha, ex- alferes miliciano e 2º comandante da companhia de CCAÇ 557, 1963/65." (**)

 É justo que relembremos aqui, um ano depois, a sua morte deste nosso camarada que, depois da Guiné, acabou o curso de advocacia e foi um dos mais notórios defensores de presos políticos ao tempo do Marcelino. Defendeu gente de diferentes quadrantes político-ideológicos da esquerda, sem nunca levar um tostão.  Reproduzimos também parte do seu depoimento sobre a sua vida na tropa e  no TO da Guiné.

Algumas notas biográficas sobre este nosso camarada:

(i) foi director da Associação Académica de Coimbra, em 1962;

(ii) foi expulso de todas as Escolas Nacionais, por dois anos, na sequência da crise académica de 62;

(iii) esteve preso no Forte de Caxias; liberto sem culpa formada, ao fim de 4 meses;

(iv) cumpriu o serviço militar e foi mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano (CCAÇ 557, 1963/65);

(v) termina a licenciatura em direito, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois de ter regressado do TO da Guiné, em novembro de 1965:

(vi) inscreve-se na Ordem dos Advogados, em 13 de agosto de 1968 [, foto acima, à esquerda, reproduzida do respetivo boletim de inscrição, cortesia do portal da Ordem dos Advogados]

(vii)  participou em numerosos julgamentos e processos no Tribunal Plenário Criminal de Lisboa, onde defendeu vários presos políticos, nomeadamente Victor Ramalho, Francisco Canais Rocha, João Pulido Valente, António Peres, Diana Andringa, Fernando Rosas, Maria José Morgado, José Mário Costa, Paula Rocha, Isabel Patrocínio Saldanha Sanches, José Maria Martins Soares, Amadeu Lopes Sabino, Sebastião Lima Rego e Paula Metelo (Fonte: Esquerda.net)


2. Excertos, com a devida vénia,  do blogue "Caminhos da Memória" > Segunda feira, 19 de outubro de 2009 > Memória breve da história da Guiné > Um texto de José Augusto Roch

[Aconselha-se a leitura na íntegra deste depoimento, na fonte original; os excertos que reproduzimos levam subtítulos da nossa responsabilidade. LG]

(i) expulso da Universidade, ém 1962, é chamado para a tropa e mobilizado para a Guiné, em 1963

(...) A 25 de Novembro de 1963, embarquei no cargueiro «Ana Mafalda» (...), adaptado à pressa para transportar outra e nova carga – homens soldados – rumo à guerra colonial da Guiné. (...)

Nos anos sessenta, a ordem de incorporação e a ida para a guerra colonial estava indisfarçavelmente ligada à repressão política e à PIDE. Esta articulação era particularmente visível em relação ao movimento estudantil e em especial aos seus dirigentes. As medidas de repressão do aparelho do Estado, ao nível das forças armadas, eram várias e diversificadas e iam desde a incorporação em estabelecimentos militares disciplinares de correcção, como o de Penamacor, onde foi internado, por exemplo, o Hélder Costa e o João Morais, até incorporações antecipadas e transferências arbitrárias de quartéis, de acordo com estritas ordens da polícia política (PIDE).

No meu caso, libertado do Forte de Caxias, em Julho de 1963, fui incorporado logo em Setembro, para minha total surpresa, no Regimento de Lanceiros 2, conhecido como o quartel da polícia militar, unidade de confiança do regime político do Estado Novo.

Vim a encontrar aí outro dirigente associativo, da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras, o João Paulo [Gomes] Monteiro [1938-2016], filho do exilado político Adolfo Casais Monteiro. A surpresa de imediato foi esclarecida. O treino militar do 1º ciclo, naquele Regimento, era muito duro e de verdadeiro castigo e, logo que terminou, ambos fomos transferidos para a Escola Prática de Infantaria de Mafra, por despacho do então Ministro da Defesa Nacional, General Mário Silva [, ministro do exército, de 13 de abril de 1961 a 4 de dezembro de 1962, sucedendo-lhe o general Joaquim  Luz Cunha, até  19 de agosto de 1968]

Cumpre assinalar que ambos gozávamos de forte simpatia entre os cadetes instruendos e mesmo dos Alferes instrutores do Quadro. Fui chamado ao Comando e aí o Capitão Semedo (irmão do actor de teatro, Artur Semedo) fez questão em dizer que a convocatória queria expressar o seu profundo desacordo pela transferência, mas que ela era exterior ao Regimento e provinda de ordens do poder político. Terminada a instrução em Mafra, fui colocado, como Alferes Miliciano, no Quartel de Caçadores 5, em Lisboa.

Esta unidade militar era a unidade da confiança política do governo e comandada pelo Major Portugal, conhecido elemento da Legião Portuguesa. Tal como tinha acontecido no Regimento de Lanceiros 2, cedo gozei de grande simpatia junto dos Alferes Milicianos e do próprio Capitão da Companhia, Capitão Vieitas. Por força disso, fui escolhido pelos oficiais milicianos para integrar a mesa do Comando no dia oficial da Unidade e para em nome deles fazer o discurso oficial.


(ii)  feito 2º comandante da CCAÇ 557 (Bissau, Cachil, Bafatá, 1963/65)

Não tardou que novo despacho do mesmo General Mário Silva ordenasse a minha transferência para Évora, para a Companhia de Caçadores de Infantaria 557 [CCAÇ 557], rumo à Guiné, sendo que a Companhia donde fui transferido embarcou para um lugar relativamente calmo, a cidade da Beira, em Moçambique.

Esta transferência foi muito controversa, com oposição, por escrito, do próprio Comandante da Companhia. Sincero ou não, por sua vez, o Major Portugal chamou-me ao Comando onde manifestou o apreço que os oficiais tinham por mim e sugeriu que apresentasse uma exposição escrita, que ele a remeteria às autoridades superiores. Recusei e lá fui para a Guiné, no «Ana Mafalda».

Cheguei à Guiné em 3/12/63 e, logo em 14 de Janeiro de 64, a Companhia 557, comandada pelo Capitão João Luis Ares e de que eu era o segundo comandante, por ser o Alferes Miliciano mais classificado, foi integrada na maior operação de toda a guerra colonial, a Operação Tridente, destinada a libertar a Ilha do Como, onde o PAIGC tinha a sua bandeira hasteada, simbolizando a primeira região libertada da Guiné Bissau.

Fui, então, transitoriamente retirado da Companhia e fiquei em Bissau como elo de ligação, para o envio de alimentos e o mais necessário à sua sobrevivência.

Em Bissau, acabei por formar uma espécie de tertúlia no «Café Bento» – à data, frequentado também pelo hoje Major Tomé e pelo advogado Orlando Curto – com o cirurgião do Hospital Militar de Bissau, António Almeida Henriques, que conhecia de Viseu, donde ambos éramos naturais, e o reanimador daquela equipa cirúrgica, António Rosa Araújo, que mais tarde, muitos anos depois, viria a defender, como advogado, no conhecido processo judicial «caso dos hemofílicos», também conhecido por «processo do sangue contaminado».

Estes dois oficiais médicos não escondiam a sua discordância com a guerra colonial (...).


(iii) A Op Tridente (Ilha do Como,  jan / mar 1964), em que participou a CCAÇ 557

Existe informação vária sobre as batalhas e forças militares que integraram a Operação Tridente, mas nenhuma sobre a CCÇ 557, de que eu era, como referi, o segundo Comandante. A Operação Tridente, assim chamada por integrar os três ramos das forças armadas portuguesa, implicou efectivos na ordem de 1200 homens, aviões, fragatas e lanchas de desembarque.

Na rigorosa descrição feita pelo oficial do exército da república da Guiné Bissau, Queba Sambu, a ilha do Como tem uma superfície de 210 kms quadrados, 166 dos quais são lodo das marés, sendo constituída por um litoral de tarrafe, lamaçais que, na maré baixa, chegam a atingir quatro kms entre a terra firme e os canais, de fluxo e refluxo marítimos. Seguindo-se ao tarrafe, estendem-se as bolanhas (arrozais) com alguns palmares, sendo o centro da ilha de matagal. Nas bolanhas, de largos canais de irrigação, o nevoeiro só permite uma visibilidade de três a cinco metros.

Foi nesta ilha que, no dia 14 de Janeiro de 1964, desembarcaram os 145 soldados e oficiais da CCAÇ 557, numa operação muito arriscada em que os soldados foram salvos de asfixia e atolamento completo no lodo, por cordas lançadas pelas lanchas de desembarque. O médico da Companhia, de nome [Rogério] Leitão – aliás um bom fotógrafo – tirou fotografias do acontecimento, mas o rolo acabaria por ser confiscado e perdeu-se esse testemunho documental.

A operação terminou de forma dramática para as populações da ilha, tendo sido destruídas e queimadas as tabancas (aldeias indígenas) aí existentes, e abatidas centena e meia de vacas e tudo o mais que constituía a forma de viver daquelas populações, como máquinas de costura, camas, roupas, etc…


(iii) A construção do aquartelamento do Cachil, pela CCAÇ 557

As tropas regressaram a Bissau e foi deixada na mata do Cachil a CCAÇ 557, num aquartelamento feito à pressa com troncos de palmeiras na vertical e em tudo parecido a um aquartelamento índio. Sem água potável, sem alimentação e expostos à malária e a severas condições de carência e sofrimento, estes homens, totalmente isolados e comendo meses a fio só rações, dependiam do mundo exterior de uma barcaça que, de vez em quando, ia ao centro de Comando situado na povoação de Catió.

Encurralados naquele curto espaço de mata, lamaçais e bolanhas, estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condições infra-humanas de sobrevivência, acossados por acções de ataques ao quartel e flagelações das forças do PAIGC, entretanto regressadas à Ilha, após a retirada das tropas da Operação Tridente para Bissau.


(iv) Regressado de Bissau, comandante interino da CCAÇ 557, no Cachil, sofre um ataque por engano da FAP

(...) Quando o capitão da Companhia foi de férias, vim de Bissau para o quartel de Cachil, para assumir as funções de comando, tomando contacto com homens destruídos psicológica e humanamente por condições tão duras de sobrevivência e onde situações de saúde física e mental se agravavam, dia a dia, à espera do dia redentor de uma substituição por outros efectivos.

Vivia-se este ambiente, quando um dia apareceram, lá no céu, dois aviões [F 86] [no original, Fiats lapso do autor, já que ainda não havia o Fiat G-91], que, para surpresa nossa, começaram a picar sobre o quartel e a metralhar toda aquela zona, nomeadamente junto ao improvisado cais do rio, onde estacionava a barcaça de ligação a Catió.

Em desespero, ordenei que fossem lançados para o ar very-lights e um grupo avançasse com a bandeira nacional, para mostrar que éramos tropa amiga, ao mesmo tempo que por via rádio comunicava com o Comando de Catió, para que o engano fosse desfeito. Os aviões desapareceram no horizonte e ninguém ficou ferido.

Na minha vida já tive dois acidentes graves de viação, mas aviões a jacto a picar sobre a minha cabeça, é acontecimento digno da linguagem própria de uma crónica de Fernão Lopes, quando no cerco a Lisboa, dizia: «era coisa espantosa de ver…».

Junto ao cais, entretanto, ficaram os destroços dos garrafões de vinho, grades de cerveja e rações de combate, que tinham sido abastecidos naquele dia à companhia!!!… O médico da companhia [, o Rogério Leitão, ] tirou fotografias do ataque, que infelizmente não disponho para ilustrar esta minha memória.

Fui a Bissau e protestei junto do Comando e encontrei-me com os aviadores que me informaram que tinham acabado de chegar à Guiné e faziam uma operação de reconhecimento, pensando que se tratava de forças inimigas… Que eu saiba, só houve dois enganos em ataques da aviação: este e um outro sobre os fuzileiros navais, de que resultaram, tanto quanto me lembro, dois mortos.

Acabámos por ser rendidos por outra Companhia e enviados para a zona da vila de Bafatá, donde regressei a Portugal a 24 de Novembro de 1965, para terminar o curso de Direito, que a minha expulsão da Universidade de Coimbra e de todas as escolas nacionais, por dois anos, tinha impedido de concluir.(...)

[Revisão / fixação de texto / subtítulos / hiperligações : LG]

3. O José Augusto Rocha e o nosso blogue:

(i) Comentário do nosso editor Luís Graça:

(...) Conheci, pessoalmente, o José Augusto Rocha em 15 de outubro de 2009 (**). Foi-me apresentado pela Diana Andringa, na estreia, no Doclisboa 2009, do seu filme Dundo, Memória Colonial.

Tivemos um conversa cordial, mas dise-me logo que não era homem de blogues nem pretendia "alimentar" o nosso banco de memórias... De resto não gostava de falar da Guiné e da guerra, a não ser no contexto das suas memórias políticas que estava a (ou tencionava) elaborar.. Falou-me do texto que estava a escrever (e de que reproduzimos acima  uma parte substancial), para o blogue "Caminhos da Memória", uma promessa que tinha feito, "a título excepcional"... Um dos autores que alimentava esse blogue era justamente a Diana Andringa. [Este blogue deixou de estar ativo a partir de 16 de maio de 2010, embora esteja "on line" e seja consultável.]

Falou-me por alto da Op Tridente, e de vários nomes do seu tempo: Cavaleiro Ferreira, Barão da Cunha, Saraiva... Fiquei a saber, por outro lado, que, na altura, em 1962, aquando da crise académica, e quando foi ele expulso de todas escolas do país, tinha a frequência do 5º ano do curso de licenciatura em direito... Só depois de regressar da Guiné, em finais de 1965, é que pôde completar o curso.

(ii) O José Colaço, nosso grã-tabanqueiro, ex-sold trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) acrescentou o seguinte a respeito do nosso camarada José Augusto Rocha:

(...) O ex-alferes miliciano Rocha era o meu comandante de pelotão, o 4º, ou seja, o pelotão de armas pesadas. Ele era também o 2º comandante da companhia.

Guardo dele, durante a nossa estada na guerra da Guiné, bem como de todos os oficiais e sargentos e restantes camaradas, as melhores recordações. Mas, para este ambiente funcionar como uma máquina bem oleada, houve, e ainda há, um homem que, além de militar com a sua patente de capitão, via no seu subordinado, no homem que estava à sua frente, outro ser humano como ele... Este homem dá pelo nome de João da Costa Martins Ares, hoje coronel reformado.

O Rocha possivelmente não te contou esta passagem: no início da nossa comissão é recebida uma mensagem dos serviços da PIDE com o seguinte teor, mais ou menos: que o capitão deunciasse o dia a dia do alferes Rocha pois ele era elemento a ser vigiado na sua conduta diária. As palavras não eram exactamente estas mas o sentido era vigiar o Rocha e informar os serviços da PIDE.

O capitão toma a seguinte resolução: chama o alferes Rocha, tem uma conversa séria de homem para homem, mostra-lhe a mensagem; o Rocha, por sua vez, conta-lhe todo o seu passado politico de oposicionista ao governo de Salazar, mas dá um voto de confiança ao capitão, o qual poderá contar com ele e, mais, que nunca seria atraiçoado.

Deste modo, o capitão conseguiu mais um amigo para levar a bom porto aquela nau durante vinte e três meses. (...)


(iii) Mensagem de email do José Augusto Rocha para o nosso editor Luís Graça, com data de 22/10/2009 :

(...) Sensibiliza-me o que diz sobre o depoimento que fiz para os Caminhos da Memória, mas permita-me que lhe diga que o seu depoimento sobre a guerra colonial é uma reflexão corajosa e muito lúcida. Se o termo não fosse controverso, acrescentaria: bela!

Bem, agora sim, estive a ler tudo o que consta do seu blogue, que se reveste de importância decisiva para a história da guerra colonial... ainda por fazer, ou não totalmente feita.

E a leitura que fiz, deu-me conhecimento de que, afinal, havia mesmo já alguém (o José Colaço) que tinha escrito sobre o Como e CCaç 557, ao invés do que digo no meu depoimento… Só me admiro que ele [não] fale do engano da aviação, até porque penso que foi ele que enviou o meu pedido de socorro para o Comando de Catió! ...

(iv) Três dias antes, a 19 de outubro de 2009, o José Augusto Rocha tinha esclarecido, sem qualquer margem para dúvidas, qual era a sua posição face ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande, razão por que emtendi não fazer sentido vir eu depois decidir, a título póstumo, sentá-lo à sombra do nosso poilão... Seria trair a sua confiança, desrespeitar a sua vontade e fazer batota, violando as nossas próprias regras do jogo...

(...) Quanto ao seu blogue, tenho as maiores dificuldades em nele colaborar. Tenho alguma radicalidade quanto a estas coisas da guerra colonial e sempre entendi que os encontros e confraternizações, a propósito dela, tendem a contar só meia memória, a memória boa, vista do lado de cá… Embora não pretenda julgar quem quer que seja, penso que compreender o passado implica um juízo de valor sobre o certo e o errado e, muitas vezes, nessas manifestações de convívio não é possível esconder a nossa discordância em relação ao que se ouve e isso cria um ambiente pouco propício ao encontro. Fui duas vezes a coisas dessas e jurei não mais ir!

(...) Por estas e por outras, quanto à guerra colonial, vou ficar-me pela “curta memória da guerra colonial das Guiné”, a publicar nos Caminhos da Memória, dando, quanto a este capítulo, por encerrado o meu dever de memória (...) 

(v) O último email que troquei com ele, nestes últimos 3 anos, em 8 de maio de 2015, e em que já nos tratávamos por tu, tirou-me as derradeiras ilusões sobre a possibilidade de ele vir um dia aceitar o nosso convite para se juntar ao nosso blogue, enquanto coletivo de ex-combatentes da guerra da Guiné. A sua posição sobre a guerra colonial era firme, coerente e definitiva, aos 76 anos, e só tive que respeitá-la... 

Tenho hoje pena de, não obstante a nossa troca de emails, nunca termos podido, em tempo útil, ou seja, em vida, sentarmo-nos, à mesa para uma conversa mais franca, "tête-à-tête", olhos nos olhos, sobre a nossa experiência enquanto combatentes e as nossas posições político-ideológicas face à guerra colonial:

(...) Quanto ao mais, tudo é mais difícil e diria mesmo impossível. A minha posição em relação à guerra colonial, a única que entendo possível, urgente e inadiável, é a sua denúncia activa, nela tendo um grau de responsabilidade incontornável, todos quantos assistiram e até participaram nos massacres( e depois até foram condecorados por esses feitos em nome da Pátria) de todo um povo cujo único crime foi existir. Ainda hoje vivo memórias horrorizadas de tudo que vi e presenciei e me foi narrado. 

Daí que pense que blogues como os "Camaradas da Guiné”, usando uma expressão de Roland Barthes, “ tendem em instituir-se como exteriores à História” e “é lá onde a História é recusada que ela mais claramente age”. Daí que a minha tribuna só possa ser política e ideológica, o que, como é evidente, não cabe no âmbito neutro e apolítico do teu blogue. Mas será que, bem vistas as coisas, existem blogues apolíticos a falar de acontecimentos de uma guerra, mesmo a propósito de camaradagem entre os seus autores e actores? Conversa longa que não cabe neste escrito. Não estaremos perante uma operação mitológica?

Espero que compreendas e não leves a mal esta minha posição, mas as minhas memórias da Guiné são políticas e como tal estão a ser escritas e delas darei justo testemunho cívico e republicano. (...)


Quando ele morreu, três anos depois, com 79 anos,   eu tive pena de não ter tido feito um esforço adicional, não para o convencer, mas pelo menos, para clarificar a missão (talvez impossível) do nosso blogue e sua íntrínseca ambiguidade. É possível fazer pontes, tentando concilitar o que é inconciliável ? Sem querer entrar em polémica, acho que sim, e é desejável.

Afinal, ao fim destes anos todos (mais de meio século), os combatentes de um lado e do outro nunca chegaram a fazer as pazes... Pôs-se uma pedra no sapato e, pronto!... À boa maneira portuguesa!... Onde está "reconcialiação" entre os inimigos de ontem ? Onde há espaços para falarmos, cada um à vez, das suas experiências de guerra ? O Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" provavelmente vai acabar sem o ter conseguido... Vai seguramente acabar um belo dia destes, porque estamos velhos e cansados... Como acabou, demasiado cedo, o blogue "Caminhos da Memória"... Espero, ao menos, que o nosso deixe alguma saudade...

Há 15 anos que o tentamos, recusando as posições radicais do tudo ou nada... Guardo, do José Augusto Rocha, a memória do homem e do cidadão,   afável,  coerente, inteligente, corajoso, solidário e frontal.  Foi seguramente também um dos "bravos do Cachil", ou seja, um camarada nosso. (***)
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Notas do editor:

(*) Alguns dos muitos postes que já publicados sobre o Cachil, ilustrados com fotos:

4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13188: Memória dos lugares (266): Cachil, o meu suplício de Sísifo durante 30 dias (Benito Neves, ex-fur mil, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67)

 4 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13688: Fotos à procura de uma legenda (36): Uma vacada... no Cachil (Victor Neto / José Colaço, CCAÇ 557, 1963/65)

5 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13692: Álbum fotográfico do Victor Neto, ex-fur mil, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > Cachil: parte I

(**) Vd. poste de 13 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18842: In Memoriam (318): José Augusto Rocha (1938-2018), ex-alf mil, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65... Um camarada cuja tribuna só podia ser "político-ideológica"...

(***) Último poste da série > 4 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P19948: (De) Caras (108): Manuel Barros Castro, ex-fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65), natural de Fafe, nosso grã-tabanqueiro nº 793..... Assumiu a paternidade da sua filha guineense, Maria Biai Barros Castro (1964-2009): uma história aqui (re)contada por Jaime Silva