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segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24845: S(c)em Comentários (16): "Furriel, se 'turra' apanha nós (e fez um gesto com o dedo indicador no pescoço, como quem diz: "corta-nos nos o pescoço ou mata-nos"), mas se apanhar pessoal branco trata-o bem" (João Moreira, ex-fur mil at cav MA, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)


Guiné > Região do Oio > Olossato > 5 de julho de 1970 > O João Moreira, ex-fur mil at cav MA, CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72) e o alferes de 2.ª Linha Suleimane

Foto (e legenda): © João Moreira (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do João Moreira ao poste P24843 (*):

OP Jaguar Vermelho, 26 de maio de 1970, 09h00

(...) Às 09h00 o meu grupo de combate (4.º Gr Comb), reforçado com 15 milícias, saiu para a região de Bissancage, onde encontrou um trilho muito recente e batido, de Morés para Madina Mandinga e o alferes Silva decidiu emboscar neste local.

Enquanto o alferes Silva estava a instalar os primeiros elementos do 4.º Gr Comb, que eram milícias, surgiram 2 elementos inimigos armados. Deste contacto resultou o ferimento e captura de 1 elemento inimigo e a fuga do outro.

Do contacto também resultou a morte de um soldado milícia nosso, que foi morto pela rajada dum soldado nosso (F.R.) que, por precipitação ou por medo, fez fogo para o local onde estava o alferes e os milícias e só parou o fogo quando o alferes e os milícias gritaram para parar. Não sei se o alferes avisou do que se estava a passar, mas o soldado tinha obrigação de saber que estavam ali os nossos militares.

Quando a situação estava controlada e trouxeram o guerrilheiro para o local onde estava o resto do grupo de combate, os outros milícias queriam matá-lo à pancada. Tive que intervir para acabar com esta cena de vingança. Mas há uma frase dum soldado milícia nosso que não esqueci, nem esquecerei e que é a seguinte:

"Furriel, se 'turra'  apanha nós (e fez um gesto com o dedo indicador no pescoço, como quem diz: "corta-nos o pescoço ou mata-nos") mas se apanhar pessoal branco trata-o bem" (**)
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quinta-feira, 6 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24455: História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte II: Período de 1 de novembro a 31 de dezembro de 1970: colocada nas zonas de acção de Catió e Cabedu

Guiné > Região de Tombali > Carta de Catió (1956)  (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Catió e alguns rios envolventes: Tombali, Cobade, Umboenque, Ganjola, etc.

Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacine (1960)    (Escala 1/50 mil)  > Posição relativa de Cabedú, e dos rios Cumbijã e Cacine.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Começámos a publicar alguns excertos da história da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedu, 1970/72), por ser também mais uma das subunidades, que estiveram no CTIG, e que não têm até à data nenhum representante (formal) na Tabanca Grande.   

Por outro lado, chamou-nos a atenção a situação, anómala (e até, se calhar,  inédita) de ser um subunidade que embarcou, no T/T Carvalho Araújo, em 19 de setembro de 1970, desfalcada de 3 dos seus oficiais subalternos. Mas não só: acabou a IAO, em 31 de outubro de 1970, em Bolama, sem qualquer alferes, sendo os pelotões comandados provisoriamente por furriéis (*)

Com base nos elementos de que dispomos (cópia parcial da história da unidade), vamos continuar a destacar aqui alguns dos pontos do seu historial, que nos parecem mais interessantes, para os nossos leitores. Em princípio são resumos feitos por um dos nossos editores. No caso de excertos, virão publicados com aspas ou itálicos.

Guiné > Região de Tombali  >  Catió > CCAÇ 617  (1964/66) >   O quartel

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné> Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (1943-2010) > Catió > Quartel > Legenda do autor: "Foto tirada de cima do depósito da água do quartel [Jul 1967]. Vista parcial da parte nova do quartel. A parada com o cepo (raiz) do Poilão, à esquerda as casernas nº 1 e nº 2, ao centro o edifício do comando, por detrás deste as camaratas de sargentos e depois destas as novas messes ainda em construção, tal como a camarata de oficiais à direita. O telhado vermelho era a messe e bar de sargentos".


Guiné> Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (1943 - 2010) > Catió - Quartel > O Fur Mil Vitor Condeço sentado na raiz do Poilão, tendo por fundo o edifício do comando". [O Vitor, 63 anos, reformado, residente no Entroncamento, foi furriel miliciano mecânico de armamento, CCS do BART 1913, Catió, 1967/69].


Fotos (e legendas): © Victor Condeço (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região de Tombali > Cabedú - CCAÇ 1427 (1965-1967) >  Vista aérea do Aquartelamento e pista de aviação. Foto do álbum de Manuel José Janes,  "O Violas" - (Vd.  poste P17336) (Com a devida vénia...)

Foto (e legenda): © Manuel José Janes / Jorge Araújo (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte II: 

Período de 1 de novebro a 31 de dezembro de 1970: colocada nas zonas de acção (ZA) de Catió e Cabedu

Depois de mês e meio em Bolama, a CCAÇ 2792, comandanda pelo cap inf op esp Augosto Manuel Monteiro Valente (1944-2012),  marchou em 16 de novembro de 1970 para Bissau a bordo das LDM 310 e 311, devendo seguir posteriormente para Catió e Cabedú, as zonas de acção que lhe foram atribuídos, em 6 de dezembro, no sul da Guiné, região de  Tombali.

A 18 seguiram para Catió, em avião Nord Atlas, o comando e os 1.º e 2.º  Gr Comb. O transporte para Cabedú, dos restantes Gr Comb (3.º e 4.º) só se realizou a 4 de dezembro em LDM. 

Até 17 de dezembro, a CCAÇ 2792 ficou na dependência operacional do BART 2865, data em que o BCAÇ 2930 assumiu a responsabiliddae da ZA do Sector S3 (Sul 3).

"A  divisão dos efetivos da Companhia pelas ZA de Catiõ e Cabedú foi o primeiro golpe para o seu moral.  O espírito de corpo que, apesar das dificuldades de enquadramento, se conseguiu criar, manter  e desenvolver, foi afetado substancialmente,.

Catió e Cabedú são duas regiões distintas,  sem possibilidades de contacto pelo que as forças se separaram sem qualquer dúvida  de que se não voltariam a reagrupar  antes  do final da comissão.  Esta divisão tirou imediatamente à subunidade a sua capacidade ofensiva, pois que os efetivos nas ZA tornaram-se insuficientes para fazer frente ao Inimigo que se encontra instalado  imediatamenmet para lá dos limites das ZA." (pág. 18/II)

(21) Milícias

Dependentes do comando da CCAÇ 2792, estavam as seguintes forças de milícias, constituídas por "voluntários nativos", utilizados  (i) "na defesa local das populações onde não esteja estabelecida autodefesa"; e (ii) em reforço das NT em operações:

- Em Catió (dependência operacional): 

  • Comp Mil  13 (fula), a 3 pelotões; 
  • Pel Mil  272 / Comp Mil 25 (balanta);

- Em Cabedú (dependência total):

  • Pel Mil 274  / Comp Mil 25 (várias etnias).
(22) Caracterização das ZA de Catió e Cabedú:

(221) Terreno:

As duas ZA estavam separadas por um obstáculo natural chamado Rio Cumbijã. Os seus limites são definidos por:

(i) No caso do Catió (Comando, 1.º e 2.º Gr Com da CCAÇ 2792 mais 4 pelotões de milícias)

R Cumbijã |  R Cobade | Foz R Umboenque | R Umboenque | Nascente R Binde | Estrada de Tombali | Catió 8 F0-30 | Nascente R Cantolom |  Catió 8 I5-25 | Bedanda 2 A0-42 | R Carangaque |  R Ganjola | R Catafaque | Canchumane 15 (Bedanda  1 E5 - 66) | Rio contornando a Este os ilhéus  de Cuducó e Infanda até à sua foz. 

(Vd. infografia acima, Carta de Catió)

(ii) No caso do destacamento de Cabedu (3.º e 4.º Gr Comb da CCAÇ 2792 mais 1 pelotão de milícia):  

R Cumbijã desde a foz até Cacine Z 63-81 | Foz R Ualche | R Ualche | Cabanta | R Pachira |  R Cacine até à sua foz. 

(Vd. infografia acima, carta de Cacine).

(Continua)

(Seleção / resumo / negritos / itálicos: LG)

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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

4 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24450: História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte I: Mobilização, composição e deslocamento para o CTIG em 19 de setembro de 1970

3 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24275: Tabanca Grande (549): As "fotos da praxe" do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, que completou 90 anos em 12/12/2022... Foi 2.º cmdt do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73) e Cmdt do Comando Geral de Milícias (1973)


Mário Arada Pinheiro, cor inf ref, membro da Tabanca Grande, nº  871, desde 20 de fevereiro de 2023 (*).  Faltavam-nos as fotos da praxe para completar o seu processo de adesão à nossa comunidade virtual (**)


1. Em complemento do poste P24072 (*), o nosso novo grã-tabanqueiro, nº 871, cor inf ref Mário Arada Pinheiro,  mandou-nos finalmentre as "fotos da praxe" para completar o seu processo de adesão à Tabanca Grande.(**)

Recorde-se que, após duas comissões de serviço em Moçambique, como capitão (em 1961/63 e 1968/70, foi mobilizado para a Guiné, como major, e onde permaneceu, de 16/9/71 a 21/9/73,

Esteve um ano no comando do BCAÇ 2930 (Catió, 1971/73), em Catió,  onde foi substituir o 2º comandante que tinha sido evacuado por doença.

Esta unidade ra apenas composta por Comando e CCS, não dispondo de subunidades operacionais orgânicas.

Em 16dez70, após sobreposição com o BArt 2865, desde 7dez70, assumiu a responsabilidade do Sector S3, com sede em Catió e abrangendo os subsectores de Bedanda, Catió, Cufar, Guileje, Gadamael e Cacine.

Com as subunidades que lhe foram atribuídas, desenvolveu intensa actividade operacional de patrulhamento, reconhecimentos e de vigilância da fronteira, especialmente na zona do corredor do Guileje, tendo ainda os seus aquartelamentos e aldeamentos sido alvo de frequentes e fortes flagelações, especialmente quando situados junto da fronteira. Além disso, coordenou e impulsionou a execução dos trabalhos de construção dos reordenamentos de Catió, Cacine e Gadamael, entre outros e os trabalhos da estrada Catió-Cufar.

Em 21Ago72, foi rendido no sector pelo BCaç 4510/72 e recolheu a Bissau, onde se manteve aguardando embarque.

Nessa altura, o  Mário Arada Pinheiro foi  colocado na Repartição de Operações,  do Comando Chefe, na Amura,  cujo chefe era o tenente coronel Firmino Miguel. Cerca de 3 meses depois, foi convidao para (e nomeado) comandante do Comando Geral de Milícias, em substituição do major inf Carlos Fabião que regressara a Lisboa após 8 anos de Guiné.

Além das milícias, tinha também sob o seu comando as companhias africanas tal como os pelotões de caçadores nativos num total de cerca de 13000 militares.

Nasceu em 12/12/1932, em Samora Correia, Benavente, filho de  um oficial da Marinha. Ficou órfão cedo. Entrou para o Colégio Militar em 1943 onde fez o curso liceal.  Frequentou depois a Academia Militar (1951/54). Tirou o tirocínio em Mafra em 1954/55. Foi promovido a alferes em 1955, tenente em 1957 e capitão em 1960. Atingiu o poste de posto de coronel em 1976. Faz férias, de há muito, na Praia da Areia Branca, Lourinhã. Foi aí que nos conhecemos. É uma pessoa de trato afável e um grande contador de histórias. Ultrapassou recentemente um problema de saúde.  Completou no passado dia 12 de dezembro os 90 anos. (LG)
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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24089: Historiografia da presença portuguesa em África (356): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Cedo se informou que os dois volumes existentes na biblioteca da Sociedade de Geografia encerram um conjunto lacunar de atas do Conselho Consultivo e depois Legislativo da Guiné, tudo começa em 1917, há diferentes hiatos, faltas que não permitem tentar sequer uma leitura diacrónica do ideário da governação desde a I República até 1971, assomam iniciativas generosas, defesa de interesses económicos, avultam as preocupações com a exequibilidade orçamental, em dados momentos homenageiam-se líderes do Estado Novo, e é percetível o que diferencia Schulz e Spínola, o primeiro no uso da prudência, não querendo asfixiar as finanças da Guiné, exigindo um Plano de Fomento auto-sustentado, o segundo referindo que recebeu meios avultados para pôr em prática a sua Guiné Melhor, e daí a disparidade dos orçamentos destes dois governadores. Para quem pretende estudar a História da Guiné, é compreensível que se sugira a análise desta fonte documental, a despeito de tanta lacuna.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (10)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Os tempos mudaram, já se fez referência que as sessões do Conselho Legislativo têm participação pública, é ótimo para a conversação mediática que Spínola quer manter com os guinéus, começou logo em 1968, e será uma constante do seu mandato. Já se fez referência à sessão de 10 de dezembro, nas vésperas do fim de ano o Conselho reúne-se e aprova o orçamento da Província para 1969, mas é a 14 de abril que o Conselho tem direito a aparecer nos televisores: comparecem Marcello Caetano e Spínola, vão falar para a Guiné, mandam recado para o Império.

Com pompa e circunstância tem a palavra o vogal Joaquim Baticâ Ferreira: “Nasci e vivo na Guiné, onde sou chefe da comunidade Manjaca, mas todas as raças desta Província estão unidas pela sagrada bandeira de Portugal. É por isso que falo em nome da população nativa da Guiné, para dizer a Vossa Excelência que a nossa firme determinação é a de continuar a ser portuguesas.” E apoia o projeta da Guiné Melhor: com boas estradas alcatroadas e portos fluviais; com mais escolas primárias e estabelecimentos de ensino; com mais hospitais, maternidades e postos sanitários.

Tomou seguidamente a palavra António de Spínola: “A Província encontra-se em guerra, aqui luta-se e morre-se pela causa sublime da paz. Vastos e complexos sãos os seus problemas de guerra e de paz, uns já em fase de resolução, outros equacionados, outros ainda apenas esboçados. A Província caminha na senda do seu desenvolvimento económico-social no quadro das estruturas de uma Guiné Melhor.”

Por último, discursou Marcello Caetano: “Os governantes e as autoridades têm procurado incessantemente combater a doença, a miséria, a opressão, como neste momento lutam lado a lado com as populações nativas e as Forças Armadas contra os perturbadores da Paz. O desenvolvimento do território não se obtém na confusão e no tumulto. É obra de amor. É fruto do trabalho. É resultado do emprego intensivo, adequado e oportuno das técnicas que o nosso tempo coloca à disposição do Homem. Portugal está aberto a todos os seus filhos. Mesmo aqueles que algum dia hajam hesitado no caminho e duvidado de que a bandeira verde-rubra fosse o estandarte da liberdade e do progresso, mesmo esses serão bem recebidos se reconhecendo o seu erro. Foi para proteger a admirável fidelidade da gente da terra que da Metrópole e de outras províncias alguns milhares de portugueses dos exércitos da terra, do mar e do ar, vieram reforçar as forças de segurança da Guiné. Unidos nas mesmas dificuldades, nos mesmos riscos e nos mesmos perigos. E no decorrer das ações em que tiveram de enfrentar armas estrangeiras, brandidas pelos agentes da subversão, caíram lado a lado soldados da Guiné e de outras terras portuguesas, misturando o seu sangue generoso na defesa da causa comum. A terra adubada pelo sangue há de florescer. Da nossa vontade, da vontade de nós todos, portugueses de todas as etnias para quem a Guiné constitui parcela da Pátria, depende que o milagre se produza.”

A biblioteca da Sociedade de Geografia inclui atas até 1971, vale a pena mencionar alguns títulos. Em 30 de outubro, Spínola retoma as linhas do seu plano para a ativação do progresso económico-social da Guiné (aumento de salários, subsídio do custo de vida, vencimento para as autoridades tradicionais, apoio pecuniário para um novo gerador destinado a Bissau, reapetrechamento da Imprensa Nacional, melhoramentos em várias localidades, aquisição para os TAGP de 3 aviões, asfaltagem de estradas, saneamento, etc., etc.). Na circunstância o diretor da Fazendo comentou: “Continua a Província a dispor de uma balança de pagamentos com saldos positivos confortáveis e que neste momento se cifra em cem mil contos”.

Em 29 de dezembro ainda desse ano de 1969, a sessão abre com uma exposição de Spínola pondo ênfase na execução de uma política de valorização e dignificação humanas, foi dentro dessa perspetiva que se elaborou o Plano de Ação para 1970 e revelou com alguma minucia as linhas gerais quanto a: comunicações, agricultora e pecuária, assistência médico-sanitária, educação e cultura, melhoramentos rurais, trabalho, economia, justiça, setor administrativo. Em 30 de outubro do ano seguinte, Spínola procede a um balanço da execução do Plano de Ação, e em dada altura observou: “O progresso da Guiné, como parcela de uma nação caracterizadamente africana e multirracial, terá de aferir-se pelo número dos lugares públicos ocupados no futuro proporcionalmente a cada uma das etnias, pois temos de ter bem presente que não se pode construir uma sociedade em bases sólidas e duradouras sem a elevação cultural das massas portuguesas africanas.”.

Era um novo acento tónico da política da Guiné Melhor, declaradamente o conceito da Guiné para os guinéus, os lugares cimeiros ocupados pelos cabo-verdianos passariam a ser ocupados por guineenses. Em 18 de dezembro desse ano é apresentado o diploma legislativo destinado a aprovar o Regulamento do Ensino Primário Elementar da Província da Guiné. Em 30 de dezembro, dando continuação às grandes metas do Plano de Ação para 1970, é apresentado e aprovado o Plano de Ação para 1971. Em 29 de outubro de 1971, Spínola refere-se à participação das populações na defesa da Província: “Criou-se o Comando-Geral da Milícia, estruturou-se em novos moldes o Corpo da Milícia e regulamentaram-se as suas atividades; igualmente foi regulamentada a atividade do Corpo dos Voluntários; formaram-se no corrente ano 720 milícias e estavam em formação mais 800; aumentou-se o efetivo da Força Armada Africana com um destacamento de Fuzileiros e uma Companhia de Comandos; organizaram-se em autodefesa mais 2360 elementos da população a quem foi destinado armamento. E em 22 de dezembro desse ano foram aprovados diferentes regulamentos, entre eles o da Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil da Guiné e o regulamento do Corpo de Milícias.”

Findam aqui as atas do Conselho Legislativo da Guiné, resta saber se nalgum arquivo ou biblioteca será possível encontrar um acervo mais completo do que este.

Receção a Marcello Caetano em Bissau, 14 de abril de 1969
António de Spínola, 1968, atrás James Pinto Bull
Postal de Bissau, vista da Avenida Marginal, 1960
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Nota do editor:

Postes anteriores de:

14 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23880: Historiografia da presença portuguesa em África (347): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (1) (Mário Beja Santos)

21 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)

28 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)

4 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23948: Historiografia da presença portuguesa em África (350): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos (Mário Beja Santos)

11 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23972: Historiografia da presença portuguesa em África (351): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (5) (Mário Beja Santos)

25 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)

1 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

8 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

15 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24068: Historiografia da presença portuguesa em África (355): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (9) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23565: Notas de leitura (1481): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte III: O Tala Djaló, cmdt do Pel Mil 143 e depois fur grad 'comando' da 1ª CCmds Africana, que virá a ser fuziladdo em Conacri, na sequência da Op Mar Verde


Cópia (frente) do aerograma  enviado pelo comando africano Tala Djaló, com data de 21 de Outubro de 1970, do SPM  de Fá Mandinga (Zona Leste, Sector L1, Bambadinca) , onde estava colocada a sua Companhia de Comandos Africanos, à ordem do Com-Chefe, a um mês da sua trágica partida para Conacri (Op Mar Verde)

Foto: © Hugo Moura Ferreira (2006).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

    

Imagem da  contracapa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c.2010/ 2020] , 445 pp. , il. [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, CCAÇ 6, Bedanda, 1965/67. ]


1. Em tempos, há muito tempo, há 16 anos (!), o Hugo Moura Ferreira (ex-alf mil inf, CCAÇ 1621, Cufar, e CCAÇ 6, 1966/1968)  mandou-cópia de um aerograma de um seu antigo soldado da CCAÇ 6. (*)

O seu autor era o Tala Djaló, furriel graduado 'comando', da 1ª Companhia de Comandos Africanos, oriundo da CCAÇ 6, sediada em Bedanda. Também era conhecido por 
Tala Biú Djaló ou Manuel Talabiu Djaló.  

A missiva foi escrita um mês antes da Op Mar Verde (invasão de Conacri, em 22 de novembro de 1970), onde o Tala Djaló foi dado como "desaparecido em combate") (**). Fazia parte do grupo de combate do tenente graduado 'comando' João Januário Lopes que, com os seus vinte homens, tinha por objectivo a destruição dos MiG, no aeroporo de  Conacri, mas que acabou por não cumprir a missão, tendo sido preso, interrogado e, mais tarde, fuzilado, juntamente com os restantes comandos.

Infelizmente, não temos nenhuma foto do Tala Djaló, mas temos do nosso camarada Hugo Moura Ferreira, um dos históricos do nosso blogue  (foto à direita ) (***)

O Hugo Moura Ferreira escreveu aqui no blogue:

(...) Embora sabendo, de forma oficiosa, da morte do Tala, em combate, na Operação Mar Verde, em Conakry, nunca consegui encontrar o nome dele referênciado nas listagens até hoje publicadas, nem no Monumento do Bom Sucesso.

Perante tal, resolvi pesquisar e desloquei-me ao Arquivo Geral do Exército onde localizei a ficha dele como Alferes do Pelotão de Milícia 143, junto da minha CCAÇç 6, que terminava com a indicação de um ferimento em combate em 1967 e a transferência para a 1ª Companhia de Comandos Africanos. (...)

Na altura, chamámos a atenção para a importância que se revestia, para o nosso blogue e para a memória da guerra da Guiné (1971/74), a publicação deste tipo de documentos (caso das cartas e dos aerogramas), para se poder  conhecer e perceber melhor a mentalidade dos nossos camaradas guineenses que combateram o PAIGC sob a bandeira portuguesa, e que,  depois da independência pagaram caro (muitos deles, com a discriminação, a 
perseguição, a prisão, a tortura e a morte) a sua condição de "cães dos colonialistas"... 

Reportando-nos ao teor do aerograma, repare-se como o Tala Djaló (presumivelmente fula ou futa-fula), descreve a entrada da CCAÇ 6 na base de Lanchandé, a sul de Bedanda, em perseguição a um grupo que havia atacado o aquartelamento das NT. Para ele, "turra" era sinónimo de "balanta" e a guerra que então se travou tinha também muitos contornos de guerra tribal ou interétnica... 

Em termos secos e simples, diz ele que o pessoal do PAIGC  de Lanchandé (e não havia distinção entre combatentes e população,  armada ou desarmada)  fora apanhado a dormir: 11 foram mortos, à queima-roupa, e 4 foram capturados... Esta era  a "cultura do ronco", em pleno consulado spinolista: apesar da "psico", a guerra continuou implacável...

Na devida altura também agradecemos,  ao Hugo Moura Ferreira, esta prciosidade, que foi o último aerograma do Tala Djaló,  destacando a sua sensibilidade e e sua cultura, ao ter sabido conservar em arquivo "este singelo aerograma que o teu amigo Dajló te enviou para Portugal" em 1970.

O Tala Djaló era, em 1965/67, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, o comandante da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, o chefe do pelotão de mílicias de Bedanda, o Pel Mil 143.  Não sabíamos era que, em 1967, tinha sido ferido em combate,  e ingressado depois na 1ª CCmds Africanos, cuja instrução e formação se realizou em Fá Mandinga, a escassos quilómetros de Bambadinca, sector L1, ou seja no meu tempo (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), na altura em que o nosso saudoso Jorge Cabral era o cmdt do Pel Caç Nat 63, aquartelada em Fá Mandinga.

2. Transcrição, revisão  e fixação do texto por L.G., com respeito pelo original (que, além de erros ortográficos, não trazia praticamente nenhuma pontuação).

Fá Mandinga [.] 22/10/70

Caro amigo Moura F[er]reira

Recebi a sua carta na qual fiquei muito contente contigo.

Amigo Moura [:] Eu ainda não esqueço de ti [.] Aquela revista que tu me mandou eu já mostrei aos meus colegas [.] Todo ficamos muito contente e toda a companhia por saber da sua [?][.]

Eu já lhe mostrou a revista [.] Eu quero que tu me manda uma fotografia sua que [é] para eu a mostrar meus colegas todo [.] Já te conheço pela carta e falta pela cara [.] Eu agradeço-te me mandar uma fotografia sua bem tirada [.]
Olha [,] a nossa antiga companhia CC[AÇ] 6 fizeram ronco no [?] tempo os turras venha atacar Bedanda.

Depois quando [a]tacaram[,] retiraram no Lanxandé e depois do ataque o capitão mandou logo sair a companhia atrás dos turras [.] Quando chegaram a companhia no Lanxandé [,] alguns dos turras estavam a dormir e logo chegou a companhia e cercaram a tabanca em toda a volta[.] Depois [entraram] nas casas dos Balanta [.] Na dentros das casa encontra[vam]-se lá alguns a dormir e logo é só chegar[.] 1ª coisa é [a]panhar ainda armas e, logo a seguir [,] é que se cerca os turras nas cama [.] 

Resultado [:] foi assim 11 mortos, 4 capturados, 14 armas [a]panhadas e muitas coisas [a]panhadas [.] Os comandantes daquele grupo foi [a]pnhado e 2º chefe dele também foi [a]apanhado[.] Mais 2 soldados dos turra também foi [a]panhado [.] 

Amigo Moura Ferreira [,] a companhia de Bedanda continou [a] ser valente no mato [.]

Toda a sua família cumprimento e teu irmão [.] E eu quero que tu me [ar]ranja um boné de sargento mas não é [a]quele branco, é[a]quele da farda nº 2 [.] É que eu quero que [ar]ranja nada mais [,] amigo.

Remetente: Manuel Talabiu Djaló, Furriel , SPM 0798.

Destinatário: Hugo Fernando de Moura Ferreira, Stº António, Costa da Caparica


3. O que é o cap inf Aurélio Manuel Trindade, comandante em 1965/67 da 4ª CCAÇ  / CCAÇ 6 (e hoje ten gen ref)  escreveu sobre o Tala, no livro "Panteras à Solta" (ed. de autoor, s/l, s/d, c, 2010/2020) (***) ? Aqui fica mais uma nota de leitura (****):

 O então alferes de 2ª linha, comandante do Pelotão de Milicias (nº 143, acrescenta o Hugo Moura Ferreira) é sempre referido simplesmente por"Tala", sem apelido (Djaló ou Jaló). Mas não temos dúvida de que se trata do mesmo indivíduo. 

Mas em julho de 1965, quando o cap Cristo  ("alter ego" do autor) chega a Bedanda, em julho de 1965,  o comandante do pelotão de milícias era um tal Amadeu, "um fula sabido (...) e com fama de ser grande vigarista, usando e abusando da sua posição  para conseguir vantagens materiais e não só. Não é um elemento muito querido dos militares,  nem da população da tabanca, nem sequer dos próprios milícias que comanda" (pág. 21).  

O capitão Cristo  não tinha consideração pela milícia de Bedanda: na frente do régulo, Samba Baldé, chamava-lhes "militares de meia tigela" (pág. 86). E quando decide fazer a sua "reforma agrária" em Bedanda, chama o Amadeu e o Tala e os demais milícias. Quer pôr toda a gente a trabalhar a bolanha: 

"O Tala, o Amadeu e os sargentos vão dar o exemplo. Dispenso o pelotão de milícias de ir para o mato desde   que todos estejam a trabalhar na bolanha. (...) Daqui a quatro meses, os que não tiverem bolanha deixam de ser milícias, eu não pago a malandros" (pp. 87/88)... 

E a verdade é que o cap Cristo conseguiu pôr os "malandros" a lavrar arroz na bolanha e cultivar a mancarra junto ao arame farpado, no exterior da tabanca,,,  E a reconstruir as moranças da tabanca bem como a estrada para o porto exterior (que ficava a 4 km de Bedanda). 

Não sabemos exatamente quando é que o Tala passou a comandar o pelotão de milícias nº 143, talvez por volta de finais de 1965.  Mas na verdade é sempre ele que vai para o mato, em reforço da companhia, quando há operações como, por exemplo, a fracassada tentativa de reabertura do itinerário Catió-Bedanda (pp. 148-165). Ou a ida a Salancaur, já no corredor de Guileje (pp.229-247). Ou ainda a "batalha de Nhai" (pp. 248-265). 

Portanto, Tala é o seu homem de confiança no pelotão de milicias. Quando sai para o mato, leva duas secções, vinte homens. Nunca mais se ouve falar do Amadeu, a não ser na pág. 369, a propósito dos roubos às "mulheres do mato" que vinham a  Bendanda vender os seus produtos e reabastecer-se de outros (em geral, cana e tabaco).  Já o cap Cristo tinha gozado a sua segunda licença de férias (portanto isto deve-se ter passado já em 1967), qundo um dos seus  alferes milicianos, feito com um comerciante local, roubou arroz às mulheres do mato. Foi exemplarmente punido com 3 dias de prisão simples, expulso da companhia e transferido para Catió. 

(...) "Foi a segunda vez que o capitão teve conhecimento de roubos às mulheres do mato. A primeira vez, foi o Amadeu, alferes de segunda linha, ao tempo comandante do pelotão de milícias. Esse nativo, distinguido com o posto de alferes, teve a ousadia de assaltar várias vezes as mulheres do mato quando regressavam depois de venderem o arroz. Roubava-lhes a cana, o tabaco e o dinheiro, e ainda as violava. Depois mandava-as seguir para o mato. Logo que o captão soube disto, tirou-lhe o comando e entregou-o ao Tala, que estava graduado em aspirante. O capitão exigia que as mulheres do mato fossem resepitadas quando vinham à povoação e não admitia nenhum abuso por parte dos militares ou dos milícias, pois têm todos e em todos os momentos de servir de exemplo para a população civil" (pág. 369).

A confiança no Tala não impede o capitão de ser duro com ele, qundo o comportamento dos seus milícias o põe furioso (vd. "O reino do Nino", uma ida a Cobolol, pp. 396-409). A operação correu bem mas os milícias do Tala ter-se-ão "acorbardado" quando, de surpresa, são confronados com um grupo de guerrilheiros, alguns dos quais poderiam ter sido "apanhados à mão"...  Eles pensavam que os milícias eram  o grupo de "reforço  que esperavam"... A milícia, em vez de responder  que sim e avnçançr   sem medo,  soube o que dizer e fazer, instalando-se o tiroteio... 

Reproduz-se aqui a "piçada" que o cap Cristo deu ao Tala, no regresso ao quartel:

(...) "Repara, Tala, como eu tenho razão. Se em vez de um pelotão de milícia eu levasse um pelotão de soldados à frente,. tínhamos agrardo os gajos à mão. Bastava que dissesem que sim, somos o reforço. Quando eles dessem conta, já tinham levado a maior surra da vida deles. Continuo a pensar que as milícias nunca mais vão à frente da coluna. Podes ir, até logo" (pág. 409)...

Entrento, algun tempo depois, finda comissão em julho de 1967, o capitão Cristo diz adeus a Bedanda e despede-se, emocionado,  com um almoço na casa do Zé Saldanha, o comerciante mais antigo da localidade, e com um discurso do anfitrião que merece ser reproduzido aqui, noutra oportunidade (pp. 413-419).

(Continua)
__________

Notas de L.G.


(...) Naturalmente que, como todos aqueles que por ali passaram (pelo menos grande parte deles), fiquei "apanhado" e tenho uma certa "paranóia" por aquelas terras e aquelas gentes. Digo mesmo que, se é que existe vida para além da morte, certamente em outra encarnação terei sido africano e guineense, pois que, tendo vivido também alguns anos em Angola, as saudades daquele pequeno país são muito maiores.(...) 

(****) Vd. postes de:


25 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."

26 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23559: Notas de leitura (1480): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte II: "Homem gosta de ter mulher na cama, quando vem da guerra", lembra a "Tia", a mulher grande...

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23222: 18º aniversário do nosso blogue (10): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte III: 30 de agosto de 1972: uma formidável máquina de guerra, a Força Africana contra o PAIGC







Citação: (1972), "Diário de Lisboa", nº 17848, Ano 52, Quarta, 30 de Agosto de 1972, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_5496 (2022-5-2)






















(Com a devida vénia ao autor, Avelino Rodrigues,
aos herdeirtos do António Ruella Ramos, e à Fundação Mário Soares)

Fonte:

Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares |  Pasta: 06815.165.26102 | Título: Diário de Lisboa | Número: 17848 | Ano: 52  | Data: Quarta, 30 de Agosto de 1972 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Observações: Inclui supl. "DL Mulher". | Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos.


Comentário do editor LG:

"Guiné, crónica imperfeita" (*)... Porquê ? Porque o enviado especial do "Diário de Lisboa", ao CTIG, o jornalista Avelino Rodrigues.  só pôde ouvir uma das partes em conflito, Spínola e as suas tropas... 

Mas, ao que parece, nos 9 dias em que por lá andou, na "Spinolândia", em julho de 1972, o jornalista  teve bastante liberdade para saber tudo (ou quase tudo) sobre aquela "guerra camuflada", como lhe chamou na primeira crónia  (em Bissau, eram pouco visíveis os sinais da guerra).

Aceitou o repto (e o convite) de Spínola para ir ver com os seus próprios olhos a realidade da guerra, incluindo a inversão da situação, político-militar, que o general estava a operar com sucesso.  Excetuando, ao que parece, o último artigo (com uma entrevista a Spínola que não agradou a Marcelo Caetano), a reportagem (os três primeiros artigos) passou, sem cortes da censura (agora rebatizada,  eufemisticamente,  como "exame prévio").

Este é um dos raros trabalhos jornalísticos sérios,  feitos na Guiné,  por jornalistas portugueses durante todo o conflito... E merece ser aqui  destacado, 50 anos depois, por ocasião do 18º aniversário do nosso blogue.(**)

Recorde-se que o "Diário de Lisboa", um diário lisboeta vespertino, publicado entre 7 de abril de 1921 e 30 de novembro de 1990, e de que  teve Joaquim Manso como  primeiro diretor,  foi considerado  uma grande escola de jornalismo e um das grandes referências do jornalismo português do séc. XX, com um papel cívico, intelectual e cultural ímpar.  

Para o regime de Salazar-Caetano e seus apoiantes, era conotado com  o "reviralho", a oposição democrática ao Estado Novo. 

_________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

25 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23198: 18º aniversário do nosso blogue (4): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte I: 28 de agosto de 1972, Bissau, a "guerra camuflada"

26 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23201: 18º aniversário do nosso blogue (6): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em julho de 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte II: 29 de agosto de 1972: no mato com Spínola, "a simpatia como arma de guerra"

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23006: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte: Cuntima, 16 e 17 de novembro de 1976: terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias, "cães dos colonialistas", por ordem do famigerado comandante das FARP Quemo Mané


Guiné > Região do Oio > Setor de Farim > Cuntima > CART 3331 (1970/72) > Aspeto geral da povoação. Na sua maioria a população era de etnia Fula, de religião muçulmana; havia uma pequena minoria Mandinga.


Guiné > Região do Oio > Setor de Farim > Cuntima > CART 3331 (1970/72) > "Cuntima: reservatórios de água, as duas professoras ao fundo e a casa do agente da PIDE/DGS", Fotos do álbum do ex-1º cabo Vitor Silva, membro da Tabanca Grande desde 2007 (*)


Fotos (e legendas): © Vitor Silva (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região do Óio > Sector de Farim> Cuntima > 2016 > Restos do antigo quartel das NT


Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Ao tempo da guerra colonial, Cuntima, junto à fronteira com o Senegal,  era um ponto importante para a segurança da província, Tinha um pelotão de artilhar,com três obuses 14, além de uma unidade de quadrícula, e agência da PIDE/DGS.  Há mais de sessenta referência no blogue sobre Cuntima.

Quem esteve em Cuntima foi o então capitão de infantaria Vasco Lourenço, hoje cor inf ref (CCAÇ 2549, Cuntima e Farim, julho de 1969/junho de 1971).

Refira-se ainda, e por fim, que Cuntima, dois anos depois da independência da Guiné-Bissau, em novembro de 1976, foi palco de cenas de terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias que tinham estado ao serviço do Exército Português,  por ordem do famigerado comandante Quemo Mané, cenas essas aqui já reconstituídas num poste memorável e corajoso do nosso amigo Cherno Baldé (***)

Esse  poste merece ser lido e relido ainda hoje: na altura, em 2013, o poste  teve cerca de meia centena de comentários e causou emoção nos leitores do nosso blogue,  até pela coragem, física e moral, do Cherno Baldé. que nos deu o OK para a pubicação  do seu texto, tranquilizando-nos: "Eu já vivi o suficiente para não continuar fechado no medo de possíveis represálias". 

Em todo o caso, o Quemo Mané já tinha morrido, muitos anos  antes ( em 1985, em Moscovo, segundo informação do nosso amigo e camarada Carlos Silva, tendo os seus restos mortais sido trasladados para a Guiné-Bissau, e tendo sido sepultado na sua aldeia natal, nma tabanca para os lados de S João, sector de Tite, região de Quínara). Acrescente-se que há poucas referências na Net sobre este homem sinistro: o liceu regional de Mansoa tem o seu nome... Tem várias referências no Arquivo Amílcar Cabral, alojado no portal Casa Comum da Fundação Mário Soares.

Voltamos  a reproduzir este poste, parcialmente, na série "Adeus, Fajonquito" (****). Mas o relato dos acontecimentos vai integral: o Cherno Baldé não presenciou estes factos, mas reconstituiu o relato, oral,  de uma das testemunhas, o Demburri Seidi (nome fictício) (3).

Em 1975, o "Chico" já estava em Bafatá, a frequentar o ciclo preparatório e o liceu. Nâo guarda boas recordações desse tempo... Em setembro de 1979, rumaria depois para Bissau onde prosseguiu os seus estudos. "Do grupo de mais de cinquenta estudantes que com ele tinham vindo de Fajonquito e Contuboel, já não restavam, na corrida, mais do que cinco"..

Depois, em 1986, já com 26 ou 27 anos, consegue a tão almejada bolsa de estudo para poder frequentar a universidade no estrangeiro. Por azar, calhou-lhe a URSS. Foi parar à Moldávia e depois à Ucrânia, Licenciou-se em economia pela Universidade de Kiev. Regressou da URSS, em 1990, já depois da queda do muro de Berlim... Faria ainda  uma pós-graduação no ISCTE, Lisboa, em 1992/94, já casado com Geralda Santos Rocha, natural de Bissau, de origem nalu (e, tanto quanto sabemos, cristã). O casal, ecuménico, tem 4 filhos, um deles já formado em Engenharia de Energias (pela UNILAB- Universidade Internacional Lusofona Afro-Brasileira, estado de Ceará, Brasil).

Mas voltemos a novembro de 1976... e a Cuntima, na fronteira com o Senegal, a noroeste de Fajonquito (distância: cerca de 60 km), ambas as povoações fazendo parte da carta de Colina do Norte (1956), escala 1/50 mil.

Este relato do Cherno Baldé pode bem ser o último adeus a Fajonquito (****), à sua terra natal ... Vamos omitir aqui o seu extenso preâmbulo e a troca de correspondência com o autor com o editor (***) e dizer apenas, sobre o contexto, que a Guiné-Bissau tinha acabado de celebrar o 2º ano da sua independência (1):


(...) "Em Cuntima, pequeno aglomerado fronteiriço que tinha sobrevivido à guerra de fronteiras de 1973, nada fazia prever que nos dias seguintes seria o palco de acontecimentos que iriam marcar o período pós-colonial e perturbar a pacata vida da aldeia e suas gentes. A região vivia a despedida da época das chuvas e nas áreas alagadas de cultura de arroz, as premissas de uma boa colheita que se avizinhava já se faziam sentir pelo cheiro aromático do arroz novo e pela cor amarelada dos campos a perder de vista nas extensas planícies de terras baixas, rodeadas de verdes cinturas de palmeiras dendém. Com o fim da guerra as aldeias tinham sido repovoadas, todas as bolanhas tinham sido recuperadas e parecia não haver limites para criar a prosperidade tão almejada e recuperar o tempo perdido. Mas, nem todos pensavam assim, helás!" (...)

Adeus, Fajonquito  (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte 


(ix) Cuntima: dia 14 de Novembro de 1976, o ataque ao quartel,
ódio, coragem e perfídia


Na noite do dia 14 de Novembro de 1976, um grupo constituido maioritariamente por ex-milicias, cegos de raiva e de ódio, mas muito mal equipados, cujo material bélico se resumia em catanas de uso doméstico, facas de mato e algumas granadas, apostando no efeito surpresa, decide atacar e neutralizar o destacamento militar do PAIGC colocado em Cuntima.

Ao entrarem na aldeia, uma parte dirige-se para a casa de Sissão Seidi, uma decisão que será fatal a este pacífico aldeão que era colega de alguns dos elementos do grupo. Põem-no ao corrente das suas intenções, isto é,  atacar e neutralizar os homens do PAIGC e, de seguida, com as armas que iriam recuperar, liquidar todos os que, na aldeia e seus arredores, colaboravam com o partido.

Quando o grupo deixa a casa para dirigir-se ao seu alvo, o Sissão vai a casa do Comité da tabanca e, em segredo, conta-lhe tudo o que tinha ouvido dos assaltantes. O Comité apercebe-se de toda a gravidade da situação e sabe que não pode perder tempo, rapidamente, decide passar para o outro lado da fronteira, situada mesmo ao lado, levando consigo a sua família, mas antes de partir informa o incrédulo Sissão de que só voltaria em caso de derrota dos assaltantes.

O grupo aproximou-se em silêncio, encoberto pela escuridão da noite, consegue eliminar a sentinela e penetrar no interior do quartel, apanhando de surpresa os seus ocupantes. Os guerrilheiros do PAIGC reagem bem à investida, refeitos da surpresa inicial e melhor armados, obrigam os assaltantes a bater em retirada de uma forma dispersa e desorganizada. De acordo com a testemunha, o ataque teria durado cerca de 3 horas o que, manifestamente, parece exagerado, tendo em conta a disparidade das forças em presença.

O dia começa a amanhecer e os primeiros raios de sol começam a pintar de amarelo o horizonte claro do fim da época chuvosa. E, nas horas que se seguiram à retirada, alguns elementos do grupo assaltante entram, de novo, na morança de um antigo colega, também ex-militar, impelidos talvez pelo desejo de implicar o maior número de pessoas e convencem-no, desavergonhadamente, que já tinham feito o essencial do serviço, mas que, sem munições suficientes, não conseguiram limpar todos, pelo que, se ele tivesse uma catana bem afiada e um pouco de coragem,  podia ir dar o golpe de misericórdia aos feridos que estavam amontoados no quartel. Sem pensar duas vezes e empurrado pelo ódio que nutria pelos novos senhores, o homem não hesitou e com uma catana nas mãos correu para o local indicado, sem saber que se tratava de uma armadilha para o perder.

Quando chega ao quartel, encontra os guerrilheiros a porta da entrada, armados até aos dentes. O que fazer? Recuar? Tarde demais, ele precisa pensar rapidamente numa saida. Com as akas [, Kalashnikov,] apontadas, perguntam-lhe o que procurava ali aquela hora. O homem responde que vinha a procura de ajuda para socorrer um filho que tinha sido mordido por um cão vadio. Parece uma saída razoável, mas não será. Os guerrilheiros estão apressados, pedem a sua identificação e informam-lhe que no momento não tinham tempo para o ajudar, mas que voltasse mais tarde, juntamente com o seu filho.


(x) No rescaldo do ataque das milícias:
 medo e horror em Cuntima


Na manhã do dia 15 de Novembro, os guerrilheiros mandam convocar o Comité da Tabanca para o por ao corrente do que sucedera durante a madrugada. O enviado encontra a morança vazia de gente. Mas, na tarde do mesmo dia, informado sobre o falhanço do ataque e a debandada das milícias, conforme prometera, o Comité regressa com a sua família a Cuntima. 

O Comandante do destacamento dá-lhe ordem de prisão imediata, por comportamento suspeito. Inquirido sobre as razões que tinham motivado a sua fuga precipitada na noite anterior, confessa que tinha sido informado pelo seu vizinho, Sissão Seidi, mas que, lamentavelmente, não pudera prevenir as autoridades porque os assaltantes eram numerosos e bem armados. Disse ainda que fora obrigado a fugir devido a ameaça de morte que pendia sobre a sua cabeça e que regressara após a confirmação de que o perigo tinha sido afastado. 

Ordenaram-lhe para os conduzir a casa do tal Sissão Seidi, onde os dois seriam presos e amarrados à moda do PAIGC, isto é,  mãos para trás e o peito bombeado à frente, estilo peito de pomba.

Na manhã do dia 16 de Novembro chegou a Cuntima o responsável militar da zona norte, o famigerado Comandante Quemo Mané (2), que assume a direcção das operações e manda convocar toda a população de Cuntima e seus arredores. Querem o máximo de gente e para se certificar que todos estavam presentes, guerrilheiros armados passam revista em todas as casas e sitios passíveis de albergar um ser vivo, querem todos, mulheres, velhos e crianças.

Os dois prisioneiros são colocados no meio da assembleia reunida. O Homem de cabelos grisalhos, toda a gente o conhecia, era o Comité da tabanca, espécie de cipaio reformulado na nova nomenclatura, colaborador activo da ordem instituida, mesmo sendo de etnia fula, ele estava ciente de que a sua prisão não preocupava ninguém para além do círculo restrito da sua familia, mas o caso do Sissão incomodava os espiritos dos pacatos camponeses de Cuntima. 

Que diabo o teria arrastado para as malhas do partido, ele que sempre fora um camponês simples, honesto e trabalhador, distante das lides políticas e das intrigas que esta engendra nos homens mais ambiciosos. Não servira na tropa colonial apesar dos benesses, do ronco e da fama que o estatuto augurava no meio social fula. Toda a sua família estava presente, a mãe, duas esposas, os filhos e o irmão mais velho. Com voz trémula, explicou tintim por tintim como os assaltantes o tinham acordado durante a noite, os seus intentos e as ameaças proferidas. O Comité da aldeia também repetiu a sua versão e as palavras trocadas com Sissão naquela fatídica noite,  bem como os motivos que o impediram de alertar os homens do destacamento.

Não foi preciso ouvir mais e, se calhar nem era preciso, o Comandante levantou-se e, com a frieza de quem estava habituado a tomar decisões graves, disse que,  pelos comprovados actos de rebeldia e traição à Pátria, os dois homens deviam ser fuzilados e imediatamente.

Ao ouvir as palavras “pá, mata!” da boca do Chefe militar, a assistência ficou literalmente congelada. A rapidez e a dureza da decisão tinham surpreendido tudo e todos, mas quem conhecia o Comandante Quemo Mané durante a luta, sabia que com ele tudo era simples, rápido e demolidor como o turbilhão de vento em dia de tornado tropical. A semelhança da grande maioria dos Comandantes do PAIGC, apesar de rotundo analfabeto (2), subira na hierarquia militar por mérito próprio, distinguindo-se pela sua coragem, brutalidade e violência extremas, uma inteligência fora do comum e pelos sucessos acumulados nas operações que dirigia.

Deram ordens para que todos fossem presenciar o acto no centro da aldeia, mas antes de os levarem, um grupo de homens do partido dirige-se ao local onde estava o Comandante a fim de interceder a favor do Comité da aldeia, provavelmente, pela lealdade e serviços prestados no passado. Assim, no local da execução da sentença, só compareceu o assustado Sissão, diante de uma dupla de homens armados com metralhadoras de fitas metálicas, contendo perto de uma centena de balas. O caso não era para menos.

Tudo estava a postos, os dois guerrilheiros com as armas apontadas, o Sissão à frente,  com as mãos amarradas e olhos fixos nos seus carrascos, a população em pé, envolta em silêncio e no céu o Deus dos homens a registar mais uma crueldade humana. O Comandante da zona que ficara retido pelos colegas do partido para deliberar sobre a sorte do Comité, ao entrar no recinto, grita para os dois executantes:
- O que estão a espera, acabem com eleǃ

Os tiros sucedem-se ensurdecedores, o corpo de Sissão é projectado para trás com o impacto das balas das metralhadoras que continuaram a cuspir fogo até transformar o corpo num autêntico manto de retalhos. A poeira e o cheiro acre da pólvora invadiram o recinto. De seguida, um dos guerrilheiros pega no corpo inerte do defunto Sissão, tendo-o arrastado até ao pé da família, diz a estes:
- Aqui está o corpo do vosso cão, agora podem levá-lo, se quiserem!

Da multidão, ninguém proferiu uma única palavra, ninguém teve a coragem de sussurar a mais pequena lamentação, os guerrilheiros atentos ao menor gesto de indignação. Perguntaram se havia alguém que estivesse descontente com o que acabara de assistir. Como ninguém respondia, foram autorizados a dispersar-se no preciso momento em que se ouviam os gritos de desespero vindos da concessão de Sissão Seidi, cujos familiares a muito custo tinham conseguido conter a dor pela perda do seu ente querido.

Na tarde do mesmo dia, o Comissário Político da zona convocou todas as mulheres cujos maridos estavam ausentes, refugiados algures no Senegal, e que, eventualmente, podiam ter feito parte do grupo assaltante e intimou-os a deixar Cuntima para se juntarem aos seus maridos, pois que não tolerariam mais a presença de pessoas que viviam na aldeia, mas, ao mesmo tempo, passavam informações para fora. Mais que intimação,  era uma ordem que ninguém podia ignorar. As mulheres partiram levando consigo os filhos para um destino incerto.

Na manhã do dia 17 de Novembro, foram buscar o homem da catana para as averiguações que se impunham. O homem foi amarrado ao estilo peito de pomba e a população foi novamente convocada para mais um julgamento público. Perguntaram-lhe porque não voltara com o filho conforme tinham combinado, o homem confessou que na verdade ele tinha sido enganado pelos assaltantes e que a sua verdadeira intenção era liguidar os homens do PAIGC aos quais ele odiava com todas as suas forças e que,  mesmo depois de morto,  continuaria a odiar. De certa forma, a coragem deste homem desesperado tinha compensado a humilhação pública da população de Cuntima.

Levaram o homem ao mesmo sitio do dia anterior, a cabeça e o rosto encapuchados com um chapéu (sumbia) e para o executar, estavam novamente os homens das metralhadoras. O homem pediu para ver o seu filho mais novo. Retiraram-lhe o chapéu que cobria o seu rosto e,  durante alguns segundos,  olhou para o filho, depois pediu para que o cobrissem de novo e em voz alta, para que todos pudessem ouvir, disse que estava pronto para morrer. 

Acto continuo, o comandante deu ordens de fogo e a cena repetiu-se de novo. Como ninguém reagia e olhando para a multidão silenciosa, o Comandante aproveitou para informar a população aterrorizada de Cuntima que para ele e para o seu glorioso partido não custava nada e não constituía qualquer problema riscar a aldeia e a sua população rebelde do mapa da Guiné-Bissau. Com esta mensagem curta e clara,  tinham dado por encerrado o capitulo da revolta das milícias em Cuntima, mostrando assim a determinação do partido em impor a sua ordem.

A operação de procura dos assaltantes continuou nos dias que se seguiram. Durante as buscas, encontraram um dos assaltantes, gravemente ferido, a quem entregaram aos pais e que viria a sucumbir, poucas horas depois, dos seus ferimentos e, provavelmente, por falta de assistência mêdica. Como dizem os árabes, quem não consegue defender, com as armas, o seu ponto d’água, perdê-lo-á; quem não ataca o inimigo com todas as suas forças, sofrerá a humilhação da derrota com todas as suas amargas consequências.

Actos desesperados e suicídas,  como este, tiveram lugar em outros lugares do território, no período que se seguiu à proclamação da independência, sobretudo junto à linha da fronteira com o Senegal. Actos isolados e mal preparados que estavam condenados ao fracasso e cuja autoria, sistematicamente e sem uma explicação plausível, era atribuída à FLING, fazendo reviver velhos fantasmas do passado, aumentar o grau de crispação das novas autoridades e, em consequência, multiplicar a violência de represálias cegas, perseguições arbitrárias e execuções sumárias que marcaram a vida desta jovem nação que, para muitos, constituía um modelo exemplar de uma luta popular bem sucedida, contra o colonialismo em África e no mundo.

Bissau, 12 de Junho de 2013

Recordações de Demburri Seidi (3), tradução e texto de Cherno Baldé.

[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]
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Notas de Cherno Baldé

(1) Na minha infância, povoada pelo espectro da guerra e das fugas constantes de um lado para o outro, quantas vezes não perguntara, a mim mesmo, se a minha vida estaria condenada a ser vivida assim no meio de uma guerra sem fim. Pela experiência dos mais velhos, sabiamos que no passado nem sempre tinha sido assim e sofriamos a bem sofrer,  com a guerra que nos minava a vida pelo medo de morrer em cada minuto, vivendo no improviso e na incerteza do momento, em abrigos imundos, quentes e húmdos, onde todos os ruídos eram ampliados ao máximo, rastreados e identificados a tempo, não fossem silvos de uma granada de obus a caminho ou de uma bala perdida na noite escura.

Para afugentar uma aldeia inteira, qual manada de bovinos na planície, bastava ouvir gritar na noite: “Aí estão eles!”. Não era preciso perguntar, toda a gente sabia quem eram “eles”. Uma vez, um dos meus tios ouviu o grito durante a noite e fugiu nu, como tinha nascido, e foi a mulher que lhe cobriu as vergonhas, no caminho, com o seu pano de cima.

(2) A propósito conta-se uma pitoresca estória sobre o Comandante, que aconteceu no período pós-independência. No término de uma aula rotineira, um Professor dá aos seus alunos um TPC (trabalho para casa) em que pede para citar exemplos de alguns animais voadores. Em casa, o filho pediu o apoio do Comandante, seu pai, para a conclusão do mesmo.
─ Isto é muito fácil ─ diz o pai ─ ponha os nomes de peixe e lagarto.

Na escola, durante a correção dos trabalhos o Professor pergunta ao seu aluno:
─ Quem te ajudou a fazer o trabalho?
─ O meu pai ─   responde o aluno, com uma ponta de orgulho.
─ O teu pai é um burro ao quadrado ─ diz o Prof.

A criança não diz nada e em casa conta tudo ao pai. No dia seguinte, o Comandante vai a escola armado com uma pistola e pergunta ao Professor:
─ O peixe voa ou não voa?
─ Voa ─ responde o Professor ─ mas debaixo d’água.

O Comandante pergunta de novo:
─ O lagarto voa ou não voa?
 ─ Voa ─ responde o pobre professor, com a voz a tremer ─ mas debaixo d’água.
─ Afinal quem é o burro ao quadrado? O burro ao quadrado é o professor que não sabe o que diz e a quem o diz ─ responde este.

Devagarinho, o Comandante coloca a pistola na cintura das calças e diz ao professor:
─ Agora continua a dar as tuas aulas e não te metas com antigos combatentes se não queres levar com uma bala na tua cabeça de burro ao quadrado ─  acrescentou antes de sair.

Um provérbio árabe diz: "Não menospreze uma criança frágil, pode ser que seja filho de um leão".

(3) Em 1974, Demburri Seidi (nome fictício) fez parte de um grupo de jovens que fugiu para juntar-se às fileiras do PAIGC, no mato. Após a independência, fez preparação militar em Canchungo, mas rapidamente chega a conclusão que, com o fim da guerra e sem instrução escolar, as suas hipóteses de subir na hierarquia militar eram praticamente nulas.

 Aconselhado por pessoas amigas, decide trocar a farda pelos estudos, colecciona alguns livros e escolhe a localidade de Cuntima, que dista a poucas horas da aldeia dos pais, para a sua formação escolar. E, sem querer, vai testemunhar os trágicos acontecimentos que se seguiram ao ataque de Cuntima (4) que acabamos de descrever e que marcaram a sua vida e sobre os quais, ainda hoje, não consegue falar sem que os seus olhos se encham de lágrimas.

(4) Comandante do destacamento de Cuntima - Capitão Madiu Kim;
Responsável da segurança – Sana Queita;
Comité da tabanca  ─ Samba Seidi;
Fuzilados ─ Soarê Seidi, Sissão Seidi e  Abbaro Candé,  o homem da catana.

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Notas do editor:


(**) Vdf.poste de 31 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15920: Memória dos lugares (337): Cuntima, junto ao Senegal... Imagens do antigo quartel (Patrício Ribeiro, Impar Lda, Bissau)

(***) Vd.poste de 25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

(****) Vd. postes anteriores da série: 

8 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

6 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22973: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Os sinais de uma mudança anunciada, os recados vindos do Oio e a delegação que voltou de mãos a abanar