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domingo, 10 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25257: Os nossos seres, saberes e lazeres (618): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (145): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Este Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida excedeu todas as expetativas, primorosamente requalificado foi o Palácio da Inquisição, as exposições são de primeiríssima água, tudo se percorre com gosto e apetece ter tempo para demorar. As casas pintadas são uma surpresa total, a exposição Fenda é inexcedível, um bem aplicado murro no estômago, e finalmente vejo desvendado aquela zona do Parque de Santa Gertrudes que conheço desde a antiquíssima Feira Popular da ciganita Dora, do autoshoot e do castelo fantasma, e depois os passeios nos jardins Gulbenkian, mas sempre ficava aquela sensação de mistério de ver a residência da família Eugénio de Almeida guardada em segredo, vejo finalmente como lá se vivia, e foi necessário regressar a Évora para perceber o que a cultura portuguesa e o património devem a esta prestimosa Fundação.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (145):
Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (5)


Mário Beja Santos

Estou agora no Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, que já se chamou Fórum. Évora e o Alentejo em particular, e o país em geral, devem muito a esta fundação que têm um histórico de empresários que estiveram associados ao setor do tabaco e às transformação de produtos agrícolas, detentores de propriedades imensas, um património que não esqueceu a vitivinicultura, membros da família receberam títulos de Conde de Arge e de Conde de Vill’Alva, a fundação foi instituída em 1963 com a missão de promover o desenvolvimento cultural, educativo, social e espiritual da cidade de Évora e do Alentejo.
O Centro de Arte e Cultura possui uma dinâmica de exposições de referência, todo este património edificado impressiona, o visitante não sabe para onde se voltar, desceu até um amplo espaço denominado casas pintadas. O que se vai ler na legenda é complementado com o roteiro de Évora da Porto Editora, datado de 2016. Neste roteiro fala-se nas casas pintadas como a Casa dos Silveira-Henriques ou Casas Pintadas “de Vasco da Gama”, obra manuelina, posteriormente adaptada devido ao desmembramento do vizinho Paço dos Condes da Vidigueira. Em 1631, passou a ser morada dos inquisidores e incorpora o Palácio da Inquisição. No pátio, na galeria claustral existente encontra-se um notável conjunto de frescos nas paredes com temas profanos, o que é raro. Avulta em importância o conjunto de animais e plantas aqui figurados, inspirados em temas moralistas e em várias fábulas de Esopo. O que consta da legenda junto das Casas Pintadas é o seguinte: “Este espaço pertenceu a D. Francisco da Silveira, Coudel-mor dos Reis D. Manuel I e D. João III. As armas desta família podem ver-se nos fechos das abóbadas. Este facto desmente a lenda de que o proprietário da casa foi o famoso navegador português Vasco da Gama, cujas casas se situavam no lado sul da mesma rua. Em finais do século XVI, as Casas Pintadas foram anexadas ao Palácio da Inquisição. Realizados na década de 1520, os frescos são um exemplar único da pintura mural palaciana de caráter profano, da primeira metade do século XVI. Aqui encontramos cinco painéis decorados com animais comuns e seres fantásticos que, evocando o imaginário das fábulas e narrativas medievais, estão simbolicamente associados a características morais, virtudes e vícios próprios da natureza humana.”

Imagens das Casas Pintadas

Uma das exposições ali patentes intitula-se No tempo dos dias lentos – Casa e Parque de Santa Gertrudes, um conjunto de três séries fotográficas realizadas entre 2017 e 2019, após a morte de Maria Teresa Eugénia de Almeida, constituem-se como uma representação posterior à vivência deste espaço doméstico. Em aditamento, aparecem outros elementos que ajudam a contextualizar as muitas apropriações que este emblemático lugar teve ao longo dos séculos XIX e XX – desde a instalação do primeiro jardim zoológico de Lisboa, ao velódromo de Palhavã ou acolhimento da Feira Popular de Lisboa.
A Casa e o Jardim de Santa Gertrudes
A biblioteca da família

Temos agora outra exposição, intitula-se Fenda, interroga a relação da sociedade e da arte com a pobreza, em várias épocas, tem peças do passado que dialogam com linguagens contemporâneas, é de grande valor o número de obras apresentadas, desde Daniel Blaufuks, Domingos Sequeira, Júlio Pomar, Pedro Barateiro, Pieter Bruegel ou Vieira Portuense. Bem interessante é o texto do documento oferecido à entrada da exposição, da responsabilidade dos curadores: “A exposição aborda a clivagem social gerada pela desigualdade profunda na distribuição da riqueza e alguns aspetos da forma como a arte olhou (e olha) para essa desigualdade. Na conceção cristã que marcou a sociedade ocidental, a pobreza podia ser um valor que traduzia o desprendimento do mundo e nos aproximava da salvação, fosse pela sua condição, fosse pelo exercício da dádiva que nos aproximava dela. Mas no mundo pós-renascentista começou a instalar-se a consciência de que a profunda desigualdade era, antes de mais, um problema social e arte, sobretudo a pintura, traduziu muitas vezes um olhar profundamente crítico sobre a pobreza. Procurámos expor vários exemplos que materializam a simbologia da palavra FENDA como um lugar de corte, neste caso observando o sistema de desigualdades económicas. A existência de fendas na sociedade é, desde sempre, o ponto de partida para constatar um problema, mas é, também, o impulso para a vontade de mudança.”
São Martinho, autor desconhecido, séc. XVII, coleção do Museu Nacional de Arte Antiga
Beatriz Costa num programa de distribuição de esmolas a pobres, Rio de Janeiro, 1941
D. Luís e D. Maria Pia entregando esmola aos pobres do Porto, por Leonel Marques Pereira, 1872, coleção do Palácio Nacional da Ajuda
Cozinha de Alcântara, a confeção da sopa
Cozinha dos Anjos, 1959, aspeto do refeitório
As mães, por Júlio Pomar, 1951, coleção do Museu do Neo-Realismo, doação do artista
Aspetos do teto do Palácio da Inquisição

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 2 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25230: Os nossos seres, saberes e lazeres (617): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (144): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (4) (Mário Beja Santos)

sábado, 2 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25230: Os nossos seres, saberes e lazeres (617): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (144): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Visitado, e com imenso agrado, o piso térreo do Museu Nacional de Évora, fui desfrutar da valiosíssima coleção pictórica que ele alberga, estão ali representados os nomes sonantes da pintura antiga portuguesa, o Mestre de Sardoal, Frei Carlos, Grão Vasco, Álvaro Pires de Évora, Josefa de Óbidos, e outros mais. Uma coleção que vai do século XVI à contemporaneidade, continuam as doações e os empréstimos, e não faltam artistas modernos. O ponto alto é dado pelo retábulo do altar-mor, inegavelmente obra de flamengos, como também estará presente Francisco Henriques, um outro flamengo que viveu na cidade no início do século XVI, um dos grandes momentos de apogeu de Évora. Sem pretender enfastiar o leitor, alinham-se algumas dessas imagens que me cativaram, e não esqueci de captar um Santo António bem juvenil no momento da saída, na escadaria. E daqui parti para outra casa de cultura de envergadura, o Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, havia que fazer render o escasso fim de semana neste magnificente centro histórico onde é urgente voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (144):
Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (4)


Mário Beja Santos

O Museu Nacional de Évora – Frei Manuel do Cenáculo, instalado no que foi a residência do Arcebispo de Évora, possui a singularidade de ter coleções que vão desde a presença romana até ao século XX, o visitante pode usufruir de vestígios de casas senhoriais e conventos, de heráldica imponente, peças góticas, alfaias religiosas de lavra impressionante, tudo ao nível do piso térreo. No andar superior, a sua secção de pintura é impressionante, atenda-se que o acervo do museu recolhe obras provenientes de outros tempos religiosos, de doações e não deixa de merecer a atenção as riquezas pictóricas adquiridas fundamentalmente no século XVI, o retábulo do altar-mor da Sé de Évora é bom exemplo, os artistas flamengos trabalharam aqui afanosamente e legaram-nos obras-primas inconfundíveis. Estão presentes alguns dos maiores pintores portugueses e flamengos, como Francisco Henriques, Avercamp, Bruegel, o Jovem, temos Grão Vasco, Frei Carlos, Josefa de Óbidos, Álvaro Pires de Évora, Silva Porto, João Vaz, entre outros. É o resultado desta deambulação que pretendo mostrar ao leitor, seguidamente a itinerância passará para o Centro de Arte e Cultura, Fundação Eugénio de Almeida, outra agradável surpresa.

Nossa Senhora da Graça, Santa Julita e S. Guerito, por Francisco Henriques, pintor flamengo ativo em Portugal entre 1506 e 1518
Retábulo do altar-mor da Sé de Évora, autoria do mestre do Retábulo da Sé de Évora (círculo de Gerard David 1460-1523), Escola Flamenga, circa 1500
Escola Flamenga, Ascensão
Ressurreição, por Gregório Lopes, século XVI
A Virgem e o Menino entre S. Bartolomeu e Santo Antão sob a Anunciação, por Álvaro Pires de Évora, Escola Italiana, circa 1410
Cordeiro Pascal, por Josefa de Óbidos, séc. XVII
Patinagem na Neve, por Hendrick Avercamp, Escola Flamenga, séc. XVI
Porto marítimo ao anoitecer, por João Vaz
Santo António de Lisboa, azulejos do séc. XVII, registo apanhado no corredor, à saída, é uma singularidade pôr o santo na natureza, tem direito a uma aura desmedida, o Menino bem de pé e uma grande cruz no braço direito

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 24 de Fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25208: Os nossos seres, saberes e lazeres (615): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (143): Com que satisfação regressei à Princesa do Alentejo, uma incompreensível ausência de décadas (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25210: Os nossos seres, saberes e lazeres (616): Visita técnica no âmbito da minha Ordem Profissional, a OET (Ordem dos Engenheiros Técnicos), à chamada "Linha Circular" do Metro de Lisboa (Hélder Valério de Sousa)

sábado, 2 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24909: Os nossos seres, saberes e lazeres (603): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (131): Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
Aqui acaba a visita a uma exposição surpreendente, alvo de um catálogo de referência, num espaço arquitetónico único, concebido por Alcino Soutinho e onde se revela que Querubim Lapa é muito mais do que um grande ceramista azulejar, foi o nome maior da pintura neorrealista, a sua obra é a demonstração eloquente de que os neorrealistas não bebiam todos da mesma cartilha e como escreve o curador da exposição, David Santos, "Ao desenvolver um sentido poético da análise social do nosso país nas décadas de 1940 e 1950, Querubim Lapa realizou uma pintura singular, como poucas, soube conciliar o testemunho social com uma observação lírica da comunicação artística". No texto anterior, encetámos a viagem por esse Pós-Guerra em que uma nova geração, manifestamente congregada em oposição ao Estado Novo, assumia um compromisso entre a arte e a sociedade. Diga-se o que se disser, "os objetivos reclamados pelo neorrealismo constituíram-se como uma verdadeira alternativa cultural para a maioria dos artistas portugueses da terceira geração modernista - onde se inclui Querubim Lapa, nascido em 1925 - aqueles que na segunda metade dos anos 1940 frequentavam ativamente as escolas de belas artes, pressentindo no fim do conflito mundial a oportunidade de uma mudança política no nosso país". Iremos neste apontamento acompanhar a evolução do artista até se chegar a uma nítida fase de afastamento das formulações e inspirações usadas no período inicial, é quando chegamos ao distanciamento que se pode constatar como este artista plástico, atraído pela explosão da cor, e porventura pelas necessidades impostas pela vida, optou pela cerâmica azulejar, onde foi grão-mestre entre mestres.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (131):
Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (2)


Mário Beja Santos

É uma exposição surpreendente, o nome Querubim Lapa (1925-2016) associa-se instantaneamente a notabilíssimos trabalhos de cerâmica azulejar, de que ele foi um artista de referência, está agora patente no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, até 29 de outubro de 2023, uma exposição que tem o propósito de dar a conhecer a sua atividade quando ele aderiu a um cânone que marcou uma geração. São cerca de duas centenas de trabalhos entre as décadas de 1940 e 1960. Querubim começou por desenhos de pequeno formado que realizou entre 1945 e 1948, profundamente inspirados no realismo de observação social, vamos ver mendigos, feirantes, vendedeiras, cenas de circo, tudo marcado pelo realismo. Esta observação social prolongar-se-á até à década de 1960, findo o arco temporal que justifica o título da exposição Querubim Lapa, uma poética neorrealista.

Observa David Santos, diretor científico do Museu do Neo-Realismo, “Se hoje Querubim Lapa é pela história de arte identificado como um dos nomes mais decisivos da arte moderna em Portugal ao nível da cerâmica azulejar, ele deve ser igualmente reconhecido como um dos maiores pintores neorrealistas que o nosso país reconheceu”. Não nesta sua arte nada que se aparente com o cânone do realismo socialista, mas também não há folclore, o cômputo é uma poética de liberdade singular, não pelos temas, esses sim, recorrentes na obra destes jovens que partilhavam de uma oposição ao Estado Novo, cenas de trabalho, um mostruário da vida dos pobres, dos sacrificados, não faltando mesmo cenas circenses, uma das poucas ilusões de magia que era permitida aos marginalizados, os do fundo da pirâmide social; mas o que o distingue é o sopro lírico, os revérberos da luz, das cores, a filiação cultural ampla, ao longo da sua trajetória neste domínio das artes plásticas encontra-se a sua forte atração por temáticas do mundo antigo, na sua busca diferenciadora encontramos algo da iconografia russa, da influência bizantina, do gótico italiano, o que se exprime na postura dos corpos, na evidência das formas.

Também no estudo que David Santos preparou para este catálogo de referência se observa a atração de Querubim pelo espelho, o outro eu que atua como um reflexo, e o historiador tece considerações sobre o uso do espelho, já patente no seu autorretrato de 1949, no uso de elementos distrativos para confundir os códigos dos elementos que ele coloca na obra, que tanto pode ser a cor vermelha como o símbolo da alcachofra. Um crítico observou que Querubim era um guloso da cor, um trapezista da linha. Muito exigente na experiência, com o seu caminho próprio no realismo social, esgotados os filões perfilhados pelo uso da arte em que a forma devia estar ao serviço do conteúdo, Querubim, chegada a década de 1960, enveredará por outros rumos, tal como outros artistas da sua geração (caso de Jorge Vieira, Nikias Skapinakis, Rolando Sá Nogueira). Poder-se-á dizer, contudo, e volto a citar David Santos: “Querubim Lapa meter-se-á fiel, no essencial, a um compromisso pessoal que, não abdicando da esperança coletiva de uma sociedade, insistirá na realização de uma arte que exige de si própria um equilíbrio entre o humanismo das suas referências reais e iconográficas e a surpresa das descobertas determinadas pelo fazer artístico.” Há uma linha sequencial que vamos encontrar em cenas como a hora do almoço, o regresso do trabalho agrícola, as figuras das vendedeiras até à fase terminal desta poética neorrealista em que se representa o descanso, porventura em fainas agrícolas. É uma síntese dessas imagens que eu pretendo aqui mostrar para acicatar o desejo do leitor em vir visitar este esplêndido edifício concebido por Alcino Soutinho e percorrer dois andares para conhecer o pulsar do artista plástico, o seu compromisso, a sua estética humanista.

Vamos, pois, continuar a visita.

O tema do espelho, obsidiante na sua obra
As carquejeiras, o trabalho duro reservado aos mais humildes
As carquejeiras num contexto de atividades laborais que tanto podem ser a costura como a faina agrícola
O regresso do trabalho, a censura não terá gostado do motivo, a foice não engana, mas o contraste lírico não é menos pesado, aquele pai com o seu menino às cavalitas, com um furacão de luz ao fundo
A mulher omnipresente, no óleo, na tinta-da-china, na aguarela, lápis, o rosto inteiro, o perfil, em atividades laborais com outras, com o menino ao colo, com o espelho partido, em desespero, caçando borboletas, vendeira de peixe, com uma pomba em ambas as mãos… É a expressão mais evidente constante do compromisso do artista com observação social. Como, aliás, se escreve no catálogo: “De modo singular, Querubim Lapa concilia no seu exercício de consciente situação histórica, uma mais subtil relação com o ambiente reivindicativo do realismo social, voluntariamente adotado desde os desenhos iniciais. Essa era uma opção que o situava, sob o ponto de vista discursivo, na esfera desse encontro entre o passado clássico e o presente moderno.”
Ousadia, irrequietude, a febre da experiência. Tendo como fundo uma volumetria que nos parece convocar para um castelo tipo São Jorge e a descida do casario numa geometria organizada, há depois um tropicalismo que parece saído do Brasil… É um choque, mas Querubim queria mesmo experimentar. Este quadro que não tem título, data de 1955, tenho para mim que o artista, já trabalhava em cerâmica azulejar, pesquisava novas formulações, aliás o final da exposição termina com o tópico “Memória e distanciamento”, atingira-se uma nova dimensão cromática e volumétrica, vamos por ali à volta desta atmosfera experimental e procuramos analogias que nos mostram os prelúdios do afastamento, o encontro com novos processos, no íntimo o visitante vê também a evolução de outros artistas, caso de Maria Keil, Rogério Ribeiro, Nikias Skapinakis. Mas a identidade de Querubim é inatacável, é como estar a ver Almada Negreiros e saber que é impossível não ser Almada Negreiros, ou Cruzeiro Seixas ou Raúl Perez
Exemplos dessa inventividade, temos agora uma paleta mais alegre, um novo tratamento das figuras, nota-se outros chamamentos de artistas figurativos seus contemporâneos, um deles, indubitavelmente, Marc Chagall.
O processo da cor está em alteração, esta vendedeira distancia-se das figuras criadas no Pós-Guerra
Este óleo dá pelo nome “O fardo”, é de 1963, a cromática é de Marc Chagall, a distância do processo neorrealista é insofismável.
“O descanso”, tema que apaixonou os naturalistas, os tardo-naturalistas, modernistas como Almada Negreiros, o que é marcante é a expressão lírica da obra, o apaziguamento, a manipulação magistral dos tons neutros e dos verdes e o poder da luz, como se houvesse um candeeiro a iluminar o repouso destes trabalhadores.
Obra icónica de Querubim Lapa na Pastelaria Mexicana, entre a Praça de Londres e a Avenida Guerra Junqueiro
Querubim Lapa na Avenida da Índia, Lisboa
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Notas do editor:

Vd. poste de 25 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24886: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (130): Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24900: Os nossos seres, saberes e lazeres (602): Abandono do Património Histórico (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)

sábado, 25 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24886: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (130): Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
Ignorava completamente a pintura e o desenho do jovem Querubim Lapa (1925-2016), rendi-me sempre à sua cerâmica azulejar e ainda hoje entro na pastelaria mexicana para me prantar em devoção perante o seu trabalho, aliás um dos seus ícones. A exposição patente no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira deixou-se de boca aberta. Primeiro pelo trabalho museográfico e museológico, de primeira água. O catálogo é de referência e até a brochura de distribuição gratuita é uma bela síntese de toda a atividade deste escultor, ceramista, pintor e desenhador. É uma viagem por uma poética neorrealista, Querubim foi um exímio observador e praticamente do realismo social, encontramos as suas filiações no realismo oitocentista, como mais adiante ele se sentirá atraído pela temática da arte antiga e até do expressionismo alemão.
Nesta primeira viagem vamos sentir o pulsar desse jovem observador e as suas preocupações transpostas numa fineza lírica bem singular. Como escreve David Santos, "Querubim Lapa concilia no seu exercício de consciente situação histórica uma mais subtil relação com o ambiente reivindicativo do realismo social, voluntariamente adotado desde os desenhos iniciais. Essa era uma opção que o situava, sob o ponto de vista discursivo, na esfera desse encontro entre o passado clássico e o presente moderno, desapossando em parte o discurso neorrealista da sua normativa mais comum nos anos 1940 e 1950, ligada à exposição e urgência de uma mensagem de denúncia social, para instaurar um compromisso com formas e espectros cromáticos de promessa lírica intemporal". Estou absolutamente convicto que ninguém se sentirá defraudado diante de tão ambiciosa exposição que revelará a muita gente o outro Querubim.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (130):
Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (1)

Mário Beja Santos

É uma exposição surpreendente, o nome Querubim Lapa (1925-2016) associa-se instantaneamente a notabilíssimos trabalhos de cerâmica azulejar, de que ele foi um artista de referência, está agora patente no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, uma exposição que tem o propósito de dar a conhecer a sua atividade quando ele aderiu a um cânone que marcou uma geração. São cerca de duas centenas de trabalhos entre as décadas de 1940 e 1960. Querubim começou por desenhos de pequeno formado que realizou entre 1945 e 1948, profundamente inspirados no realismo de observação social, vamos ver mendigos, feirantes, vendedeiras, cenas de circo, tudo marcado pelo realismo. Ele tinha uma grande vontade de participar na transformação social do país. O visitante tem à sua disposição uma bem fundamentada brochura gratuita e um catálogo de referência, pela sua elevada qualidade.

Respigo da brochura a leitura que o historiador de arte David Santos faz:
“No imediato Pós-Guerra, os objetivos reclamados pelo neorrealismo constituíam uma alternativa para a maioria dos artistas portugueses da terceira geração modernista, aqueles (como Querubim Lapa, nascido em 1925) que em 1945 frequentavam ativamente as escolas de belas-artes, pressentindo no fim do conflito mundial a esperança e a oportunidade de uma mudança política no nosso país.
Apesar do status quo desfavorável assente nos condicionalismos políticos impostos pelo Estado Novo, Querubim Lapa integra com empenho e consciência o movimento neorrealista português, ao desenvolver um trabalho que atinge a sua plenitude entre 1948 e 1951, firmando um processo estético muito particular, marcado pela conciliação entre valores sociais e a sua extraordinária expressão lírica. Sobre a importância do período neorrealista no seu percurso artístico, Querubim Lapa dirá muitos anos mais tarde: ‘Logo a seguir à guerra vivi intensamente o período neorrealista; participei em imensas exposições e os meus quadros eram, nessa fase, a expressão de uma experiência coletiva, muito rica sobre certos aspetos. Nessa época, a literatura, o teatro, o romance, a pintura, tentavam fazer o retrato de uma sociedade que urgia modificar. Não fomos ouvidos, calaram-nos a voz, mas o movimento neorrealista ficou como um dos períodos mais fecundos da arte portuguesa’.

Fundado no genuíno envolvimento de uma geração que teve de sobreviver ao Estado Novo, a um exercício quotidiano privado de liberdade política e de muitos outros aspetos da modernidade, o neorrealismo representou para quem o viveu um momento inesquecível de comunhão de valores em torno da transformação artística e social de um país. Por isso, num contexto criativo de vozes multidimensionais, o contributo de Querubim Lapa representa um dos mais singulares projetos de criatividade pictórica no Pós-Guerra.”


O visitante encontrará esta exposição em dois andares deste belo edifício concebido por Alcino Soutinho uma exposição onde estão representados os seus primeiros trabalhos, dar-se-á relevo à sua singularidade na poética social, a articulação entre o neorrealismo e outras experiências e, como é timbre de todos os movimentos artísticos, o que fica de memória e da sua transmissão nas correntes das artes plásticas que se seguem.

Tive a ventura de ir assistir a uma visita guiada pelo curador David Santos, um comunicador de primeira água e procuro hoje e nas semanas seguintes dar-vos conta de como esta exposição surpreendente é também uma janela sobre um tempo, uma homenagem a alguém que foi muito mais do que um grande ceramista escultor, isto na correnteza de movimentos artísticos do passado que Querubim conhecia e que pôde reelaborar na sua singularíssima pintura e desenho. A visita à exposição vai começar, oiço e interpreto à minha maneira.

Imagem da inauguração da exposição Querubim Lapa, uma poética neorrealista
Querubim Lapa no trabalho que lhe deu notoriedade: a cerâmica azulejar, começou na Fábrica Viúva Lamego
Querubim Lapa na maturidade, junto de um dos seus trabalhos icónicos
Registo de gente humilde
As mulheres, as fainas, as crianças, um olhar desnudado e poético sobre a gente pobre
O circo será um tema atrativo dos artistas neorrealistas, é a magia e o sonho que fazem esquecer as durezas da vida
Os autorretratos, um certo olhar de viés como se estivesse a advertir que não lhe escapamos ao registo, um dia haverá essa oportunidade, era este um dos cânones do autorretrato do realismo social europeu
É um tema clássico, a espera do barco, mas num registo indeclinável de rutura com o tardo-naturalismo, nada de arrebiques na perspetiva entre a mulher, a criança e o barco, e temos em ênfase de desmesura de mãos e pés, a criança esquálida, as ameaças vêm do céu plúmbeo.
Para mim, um devoto incondicional da sua cerâmica azulejar, os motivos de tarefa destas mulheres já me parecem ir na aproximação do que será o seu trabalho de síntese, baseado na sua formação de escultor, de desenhador/pintor e ceramista, cores profundamente chamativas, este quadro de duas mulheres em conversa onde pode haver, ou não, a transmissão de segredos, tem uma organização notável, torna-se imponente com rodilha e canastra a obrigar-nos a especular sobre os motivos da conversa.
O historiador de arte David Santos analisa num dos textos do catálogo de referência dedicado à exposição as reminiscências de uma arte clássica, de posturas que lembram a ordenação pictórico e escultórica de períodos do mundo antigo, iremos encontrar outros artistas noutras partes do mundo que buscarão figurações e poses que aqui encontramos nestas três mulheres, ocorre-me, na disposição espacial desta mulher à direita a escultura de Henry Moore.
O artista evolui, mas não descura a essência do realismo social, à esquerda temos algo como o desespero e alguém que procura dar consolo, mantém-se o exagero em mãos e pés disformes, à direita é uma atmosfera de intimidade, alguém lê uma carta, alguém segue atentamente a leitura, confrontados os dois quadros veja-se a mestria no tratamento dos verdes, na habilidosa organização espacial e na luminosidade de ambos os quadros.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24862: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (129): O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (2) (Mário Beja Santos)