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sábado, 12 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3050: A Guerra estava militarmente perdida? (25). Vou pensando em voz alta (I) (A. Marques Lopes)

Não entro nessa polémica... (I)

A. Marques Lopes (1)



Caros camaradas


Tenho lido o terçar de razões sobre se a guerra na Guiné estava perdida ou se podia ser ganha.

Não entro nessa polémica. Mas fui espevitado pelo Vítor Junqueira, homem de concretos, e pelo Jorge Belo, habitante nórdico de raciocínio frio, e deu-me, só por razões de curiosidade pessoal, para fazer umas pesquisas, ler uns livros, consultar quem tem escrito sobre a Guiné.

Vou pensando em voz alta, faço comentários para mim mesmo. Coisas da velhice... já falo sozinho. Este livro do António Graça Abreu, "Diário da Guiné – Lama, Sangue e Água Pura", é um livro notável que já tinha lido, mas que tornei a ler agora com mais calma.

Acho que o René Pélissier tem razão quando diz dele:

"Um assunto verdadeiramente angustiante é tratado num excelente livro do género 'memórias de uma derrota anunciada'. Este Diário da Guiné é a via-sacra, a derrota lúcida e frouxa de um exército desmoralizado e ultrapassado. O autor, alferes de Junho de 1972 a 17 de Abril de 1974, redigiu a sua obra a partir do seu diário pessoal e dos aerogramas que enviou à família.

"Teixeira Pinto, Mansoa, Cufar (no Sudeste) foram as etapas desta derrocada, à qual assiste sem, no entanto, participar nas operações, pois pertencia à sacrossanta Administração Militar. Graça de Abreu observa a política contestada de Spínola e permanece duvidoso quanto às pretensões do PAIGC em dominar todo o território, mas cedo se apercebe de que, pelo menos entre os manjacos, décadas de exploração colonial não podem ser apagadas por tardias reformas materiais. Apesar da calma na zona de Teixeira Pinto, as emboscadas na estrada de Bissau intensificam-se. A partir de Fevereiro de 1973, quando chega a chão Balanta, os guerrilheiros encontram-se a 4 ou 5 quilómetros. Os guerrilheiros e o exército português bombardeiam-se à distância, mas acotovelam-se no cinema local. Em Março são abatidos os primeiros aviões por mísseis e as operações terrestres portuguesas diminuem, pois os helicópteros já não descolam com frequência para evacuar os feridos. O PAIGC reforça o seu armamento e multiplica as suas picadas de vespa. Em Junho uma parte do batalhão do autor é transferida para Cufar (nas rias do Sul), reconquistado por Spínola. À medida que a data da desmobilização se aproxima, a indisciplina dos soldados aumenta. No final de 1973, Cufar e todas as guarnições em redor são bombardeados pelos 122, 'órgãos de Estaline' do PAIGC. As tropas sabem que vão para a morte na ofensiva contra o Cantanhez e as minas que os esperam. Os 'sábios' de uniforme escrevem poemas que Camões não teria imaginado, mas todos mergulham no álcool para adormecerem os seus medos. O estado-maior e os serviços de saúde pública terão elaborado, posteriormente, estatísticas sobre a dependência alcoólica dos antigos combatentes portugueses? A água pura era rara na Guiné no início de 1974. Sabemos a que é que tudo isto conduziu o exército e o Estado Novo."

Li isto há dias num texto seu intitulado "Soldados, gorilas, diplomatas e outros literatos", e publicado nas páginas 1107 e 1108 da revista Análise Social, vol. XLII (185), 2007).
Acho curioso que ele tenha visto os filmes "O Milagre dos Lobos", com Jean Marais, e "Mr. Solo" no cinema de Canchungo e, no Clube de Oficiais em Bissau, as "Duas Raparigas da Cortina de Ferro".

Bem, acho curioso porque eu também vi esses filmes. Quando já estava no "puto", claro. Eu era para esquecer a guerra e ele era para desopilar, certamente, e, como ele diz, era óptimo desopilador "o bem-bom das mordomias do Clube de Oficiais". Ah, mas ganhei-lhe numa coisa! Ele escreveu "Ontem fui às putas", em Bissau, a 15 de Dezembro de 1973... mas eu, quando regressei da guerra, fui às putas ontem, anteontem, amanhã e depois de amanhã! Para me ressarcir de todo o tempo em que nunca "lá fui" quando estive no mato.

...Deixa-te de brincadeiras. Ele teve conhecimento, em Mansoa e, sobretudo, em Cufar dos percalços da tropa, dos feridos, dos mortos, dos ataques e bombardeamentos, da loucura... sim, da loucura, quando escreve, em 13 de Agosto de 1973, que viu em Cufar o 1.º Cabo cripto que se embebedou e gritava que odiava a guerra e que matava todo o "rebanho de carneiros sem cornos" que não se rebelavam contra a humilhação da guerra. E também diz, a certa altura, que "custa muito ver tanta gente destruída, de ambos os lados."

O que me espanta é que, agora, a mais de trinta anos de distância, ele tenha as certezas que então não tinha.

"O Spínola retirou-se estrategicamente da guerra da Guiné. É fácil de entender porquê. Com o agravamento do conflito, não quis assumir derrotas. Foi a Lisboa, falou com o Marcello Caetano, pediu mais meios, mais tropa, mais aviões, e disseram-lhe que não havia, não era possível. O general pediu a exoneração e acho que fez bem. Para os guineenses acabou o 'mito Spínola'. O novo governador, General Bettencourt Rodrigues, parece ser um homem com um curriculum notável, mas que pode fazer na Guiné? Vai-se meter em grandes assados. Há muita descrença, cansaço, passividade a povoar o quotidiano da tropa portuguesa. E, de certeza, haverá mais feridos e mortos. De que aspectos se revestirá a fase final da guerra na Guiné? Ninguém sabe (negrito meu)”. (Cufar, 4 de Setembro de 1973).

Mas o António Graça de Abreu sabe, agora, que a guerra não estava militarmente perdida. É o que depreendo daquilo que tenho lido. Não sei, se calhar terá mais elementos do que tinha antes, repensou. Ou não se aplicará aqui que "As grandes revoluções vitoriosas, fazendo desaparecer as causas que as haviam originado, tornam-se desta forma incompreensíveis graças aos seus próprios êxitos", como disse Charles Alexis de Tocqueville?... Sei que isto se aplicará mais ao nosso 25 de Abril, mas acho que, embora mantendo algumas nuances, talvez possamos aplicá-la ao que se pensa agora sobre o desenlace da guerra.

Como vou agarrar a questão da evolução da guerra e o seu fim?... Não é fácil para quem, como eu, tem conhecimentos restritos de toda a situação da guerra passada na Guiné.

Estive na Guiné em 1967, 1968 e princípios de 1969, e andei sempre pelo mato, em operações, emboscadas, reconhecimentos, patrulhas, colunas de abastecimento, e outras que tais, à excepção de algum tempo em Bissau, e mesmo aí tive de ir montar uma emboscada perto do aeroporto... Além do tempo que estive no hospital, ferido.

Por um lado nunca tive conhecimento dos meandros e esquemas globais da guerra, apenas a prática na mata, por outro lado, mesmo no terreno, não tive a experiência, de certeza mais rica, que outros tiveram nos anos subsequentes até 1974.

É claro que tenho de me socorrer de alguma obras. Mas elas já são tantas, não é possível lê-las todas, e nem sequer as tenho todas...

Vou agarrar-me a uma que tenho mesmo aqui à mão: "Guerra Colonial", de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes (Editorial Notícias, 1972).

O Aniceto foi da Comissão Coordenadora do MFA em Moçambique e era Director do Arquivo Histórico Militar quando a obra foi escrita. É considerado um dos oficiais mais cultos do Exército; o Matos Gomes foi da Comissão Coordenadora do MFA na Guiné e foi um grande operacional e conhecedor dos meandros do Estado-Maior do Comando-Chefe do CTIG. Merecem-me toda a consideração e credibilidade.

E vou também à internet, onde me parece que o V. Briote e o Carlos Fortunato, nomeadamente, têm elementos de interesse nos seus Guiné, ir e voltar e Portalguine.

Os meus agradecimentos a todos eles. E fica claro que alguns dos meus pensamentos em voz alta são, ipsis verbis, o que eles escreveram, Porque é o que eu acho e, confesso, não tenho pachorra para glosar (ou embaralhar...) o que eles já escreveram.

A. Marques Lopes
__________

Notas de vb:

1. A. Marques Lopes, ex- Alf Mil Inf ( hoje Cor DFA, reformado), CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro

2. Adapatação do texto da responsabilidade de vb;

3. Artigo relacionado em:

9 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3042: A Guerra estava militarmente perdida? (24). Comentário do J. Mexia Alves.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2889: A verdade e a ficção (1): Op Tridente, Ilha do Como, Jan / Mar 1964 (Mário Dias)

Guiné > PAIGC > A Libertação do Como. Foi, logo desde o início da luta de libertação, um dos cavalos de batalha da propaganda do PAIGC... Nesse domínio, o da propaganda, e sobretudo para consumo externo, o PAIGC levou-nos a palma de ouro... Amílcar Cabral sabia, como ninguém, usar as armas da diplomacia e da sedução intelectual... 

 Imagem: In O Nosso Primeiro Livro de Leitura, p. 31. Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC > 1966 > 

 Foto: © A. Marques Lopes / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

  Portugal, algures, 24 de Setembro de 2005 > Um reencontro de velhos camaradas, miliatres portugueses que estiveram na Guiné, tendo participado na Op Tridente (Ilha do Como, de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964)... Quarenta anos depois...Alguns dos sobreviventes da mítica Batalha do Como ... Entre eles, está o nosso Mário Dias (o segundo, a contar da direita). ... Já agora aqui fica a legenda completa (Os postos, referentes a cada um, são os que tinham à época dos acontecimentos): Da esquerda para a direita: (a) Sold João Firmino Martins Correia; (b) 1º Cabo Marcelino da Mata (hoje tenente-coronel, na situação de reforma); (c) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (d) Fur mil António M. Vassalo Miranda; (e) Fur Mil Mário F. Roseira Dias (hoje sargento na reforma); (f) Sold Joaquim Trindade Cavaco.

Guiné > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > Partilhando uma refeição... As rações de combate eram intragáveis...Ainda fioram valendoi algumas vacas, porcos e cabritos, deixados para trás ou capturados pelas NT. Fotos: © Mário Dias (2005). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Vitor Condeço (ex-Furriel Mil, CCS do BART 1913, Catió 1967/69) > Catió, Vila > 1968> Foto 26: A praça do mercado, vista de quem vinha da pista [tirada à porta da casa do sr. Barros Correias]. À direita o Mercado, ao fundo à esquerda a casa do Sr. Brandão e à direita debaixo da mangueira o Bar Catió e bem ao fundo o quartel. 

Foto e legenda: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados 

  1. A propósito de um recente testemunho sobre a Op Tridente (1), achou-se por bem retomar aqui um poste do Mário Dias, publicado na 1ª série do nosso blogue, em 15 de Janeiro de 2006, sob o sugestivo título Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (2)... 

Que nos lembre, a nós, editores, até há poucos dias, o Mário Dias era o único dos membros da nossa tertúlia que podia gabar-se de ter sido actor daquele filme (refiro-me à Op Tridente)... O Santos Oliveira também passou pela Ilha do Como, mas uns meses mais tarde (3). Já na altura da publicação do poste do Mário Dias, no início do ano de 2006, tínhamos recomendado a sua leitura (e a divulgação), por o considerarmos uma intervenção serena mas lúcida e corajosa, podendo e devendo servir de exemplo para todos nós... O intuito era pedagógico: prevenir e combater a tendência que, de algum modo, todos temos para falsificar, branquear, caricaturar, alindar ou, no mínimo, ajeitar a história (a pequena e a grande), intencionalmente ou não, por motivos ideológicos, políticos ou outros... 

Por uma razão simples: individualmente, não vemos a História como os historiadores, mas com os nossos óculos, com as nossas grelhas de leitura... Somos etnocêntricos, quer queiramos quer não. Só vemos uma parte da realidade, e muitas vezes só vemos o que queremos ver ou o que estamos preparados para ver, ou o que nos deixam ver... Fazendo parte do cenário, não podemos ter, naturalmente, uma visão ampla, de conjunto, totalmente isenta, imparcial, objectiva... O conhecimento é sempre, de resto, uma reconstrução da realidade... Se temos uma obrigação moral - nós todos, ex-combatentes, de um lado e de outro - é a de zelar pela verdade dos factos, pela verdade histórica, pela objectividade dos acontecimentos... 

Porque nós estivemos lá! O Mário, esse, esteve mesmo no Como, de Janeiro a Março de 1964... Tal como o Valentim Oliveira e outros camaradas (que ainda poderão aparecer no nosso blogue). E seria bom que aparecessem ainda testemunhos de guerrilheiros do PAIGC que estiveram no Como. Não é impossível, mas é muito pouco provável. 

Na série televisiva A Guerra, realizada por Joaquim Furtado temos um ou dois depoimentos de antigos combatentes do PAIGC (4). Na altura também escrevi que seria interessante investigar o que é que o PAIGC e os seus apoiantes e simpatizantes (no interior e no estrangeiro) disseram sobre a famosa batalha do Como e as regiões libertadas... 

Por exemplo, reproduzimos acima uma página de manual escolar do PAIGC... A batalha do Como, na versão dos pedagogos do PAIGC, é de certa maneira a batalha de Aljubarrota, tal vinha apresentada nos manuais escolares do Estado Novo. Todos os povos precisam de mitos fundadores... Sempre soubemos, mesmo com todas as limitações à liberdade de imprensa no nosso país, que de um lado (PAIGC) e de outro (NT) também se travava a batalha da propaganda, a batalha das ideias, das emoções, dos sentimentos (que são sempre muito mais eficazes do que as balas)... 

Pelo lado do PAIGC, sabemos que conseguiu muitos apoios (incluindo de países ocidentais, como a Holanda e a Suécia) através de uma excelente trabalho de informação e contra-informação... A diplomacia de Amílcar Cabral foi, sem dúvida, uma das melhores armas do PAIGC, e nesse campo fomos claramente batidos em toda a linha... Salazar e depois Caetano, mais os seus ministros dos negócios estrangeiros, nunca conseguiram vender, nos areópagos internacionais, a ideia da justeza e da legitimidade da nossa lutra contra o terrorismo... Spínola, já tardiamente, percebeu quão importanre era "ganhar o coração dos guinéus"... 

 Por outro lado, a verdade é que nós, infelizmente, estávamos do lado errado da História, falando em termos metafóricos (Na época, dizia-se que lutávamos contra "os ventos da História")... Pelo menos, era essa a convicção do PAIGC e dos seus aliados internacionais e até de alguns de nós, quando chegámos à Guiné... Claro que a culpa não era nossa, dos nossos generosos e valorosos combatentes, só podendo ser imputada à incapacidade política dos nossos dirigentes na época (que nem sequer eram democráticos, escolhidos por nós, pelo nosso povo...). 

 Todo este preâmbulo apenas para dizer que a razão (histórica, política, moral, etc.) do PAIGC não nos impede de repormos a verdade dos factos, como o Mário Dias aqui faz (e bem), quando se trata da actividade operacional de que fomos actores ou testemunhas!... 

 O balanço da Batalha do Como (ou da Op Tridente) não pode ser feita de ânimo leve, em termos de quem ganhou ou perdeu... Se calhar nem pode ser feita por nenhum dos contendores... A verdade é que o PAIGC tirou conclusões imediatas, para consumo interno e externo, do fato de, pelo menos, ter iludido (ou resistido a) as NT, muito mais poderosas em meios humanos, técnicos e logísticos. Não sei mesmo se podemos, de um maneira simplista, responder à pergunta: Quem ganhou a batalha do Como ? ... Mesmo homens como Spínola e Bettencourt Rodrigues, brilhantes militares, patriotas, portuguesíssimos, da confiança política do Estado Novo, últimos comandantes do CTIG, comprovaram, pela sua experiência própria, que "uma guerra subversiva não se ganha militarmente"... Revisitemos então o já esquecido texto do Mário Dias. 

  2. Texto do Mário Dias > Ainda sobre a Operação Tridente (Ilha do Como, Janeiro a Março de 1964): O porquê da divergência de opiniões (2) 

Como se devem recordar, a minha intervenção neste blogue acerca da Op Tridente, realizada na ilha do Como de 14 Janeiro a 24 Março de 1964, foi uma tentativa de esclarecer o que ali se passou (5). 

Relatei a verdade dos factos, tal como por mim foram vistos e vividos. As dúvidas e versões contraditórias devem-se ao mau serviço de alguns escritores que vêm - com as suas descrições onde nem conseguem disfarçar opiniões pessoais de índole política ou ideológica - tentando escrever a história que corresponda à sua história. Infelizmente, muitos dos livros publicados sobre a Guerra do Ultramar estão cheios de imprecisões, casuais ou premeditadas, disso resultando uma falsa avaliação por parte de quem não assistiu aos factos e deles tem conhecimento apenas através de tais publicações. 

 A comprovar esta minha afirmação, transcrevo um texto extraído do livro Os Anos da Guerra da autoria de João Melo e publicado pelo Círculo de Leitores. Trata-se de uma antologia que engloba diversos autores que abordaram o tema. No Vol. II do referido livro (pags. 145 e 146) pode ler-se a descrição da Batalha da Ilha do Como, na perspectiva do autor do livro Os Mortos de Pidjiguiti, José Martins Garcia (6), que foi oficial de transmissões na Guiné em 1967 (As chamadas são de minha autoria): 

  “Em Catió, onde os ataques nocturnos foram, por alguns anos, relativamente escassos, ouviam-se muito bem os rebentamentos das morteiradas vizinhas, desferidas contra Bedanda, Cachil, Ganjola e, mais raramente, Príame, onde João Bakar Jaló, senhor de muita mancarra e de sete mulheres, valia, com a milícia fula, por um inteiro exército, conhecedor como era do mato, dos atalhos, dos costumes e manhas do inimigo. 

 “Com o tempo, a guarnição de Catió acabou por reduzir-se a proporções mais aceitáveis: uma CCS burocratizada, visto ali continuar a sede do batalhão; uma companhia de intervenção; dois pelotões independentes, um de artilharia e outro de cavalaria. Mas, antes de a estratégia estabilizar nesta aparente razoável força, dali partira a mais desgraçada expedição dos tempos modernos do colonialismo português (i). A qual expedição, se não ganhou as proporções da batalha de Alcácer Quibir, nem por isso deixou de ficar pairando na imaginação estarrecida dos vindouros. 

 “O ataque à ilha do Como, onde posteriormente se instalaria a chamada companhia do Cachil, nunca foi registado por cronistas, talvez porque estes, sempre tão eloquentes em caso de vitória, se desgostam das estrondosas derrocadas (ii). Uma escassa tradição oral conservava, nessas paragens, quando ainda portuguesas, o eco tragicómico da negativa proeza. O transmontano Barreiros, que fora o primeiro europeu a abrir um comércio em Catió, uns vinte anos antes da eclosão da guerrilha, descrevia cautelosamente alguns pormenores do desastre, mas sem respeitar a cronologia (iii). Invariavelmente, levava as mãos à cabeça e garantia: - Foi um horror! Um horror! 

 “O Barreiros era homem arreigado àquela terra, conhecedor de muitas trapaças e, graças ao destino, suspeito aos olhos de todos. Dos cabo-verdianos, por ser branco. Dos militares por ser comerciante, necessariamente ligado a muita gente da zona. Do pide, por falar ao administrador. Do administrador, por tagarelar com militares. Tantas e tão variadas suspeitas o perseguiam que, quando o autor destas linhas lhe dirigiu a palavra, o Barreiros não abriu a boca senão depois de esclarecido: - Sou primo do tenente Dutra. - Tome cuidado! - avisou. - Ele tinha a cabeça a prémio. 

 “Nenhum pormenor, porém, quanto à natureza e à fonte de semelhante informação. O Barreiros, magro, nervoso, baixote, possuía mãos de ferro, uns gadanhos onde circulava uma força misteriosa. Se fechava a pata sobre o pulso dum homem normal, não havia meio de uma pessoa se libertar daquele apertão metálico. Ali, com mulher e três filhos miúdos (os mais velhos estudavam em Bissau), jurava pelo Deus dos brancos não abandonar um palmo do que lhe pertencia. Mas a tropa resmungava que o Barreiros era má rês e pagava tributo ao PAIGC, pois já então não se sabia quem viria a mandar no amanhã. 

 “O ‘horror’ que frequentemente lhe suspendia a narrativa aplicava-se à inépcia das Forças Armadas Portuguesas e ao desconcerto do mundo em geral. Por causa desse desconcerto, os “turras” raptavam-lhe os criados e estragavam-lhe a vianda e a mancarra. Aquela ideia militar de invadir a ilha do Como afigurava-se-lhe, todavia, o pior sinal dos tempos. Gente louca, gente desalmada, incapaz de perceber que a arte da guerra se havia modificado! Setenta baixas em poucas horas (iv) - tal fora o balanço aproximado da estratégia estúpida desse senhores fardados! 

 “A Força Aérea cumpriu o seu dever, descarregando sobre os objectivos o arsenal estipulado. Para nada! Os abrigos subterrâneos da ilha de Como, construídos, dizia-se, pelos soldados de Hitler, em certa fase da Segunda Guerra Mundial, resistiam bem a qualquer bombardeamento, não só devido à cortina natural da vegetação como pela existência do material, coisa alemã, coisa inexpugnável, ali mandada cavar pelo Hitler, que não era tão cretino na guerra como alguma da nossa tropa (v). - Foi um horror! Um horror! 

 “Depois da Força Aérea, coube a vez à artilharia, ali classicamente postada para cobrir o avanço da cavalaria. A artilharia cumpriu a sua missão, despejando sobre a ilha sinistra a quantidade estipulada de material ardente, sem grande precisão, aliás, pois o alvo flutuava nessa latitude onde as marés esticam e encurtam a terra em vários milhares de quilómetros quadrados. A cavalaria entrou nas lanchas da Marinha e, sob a protecção da artilharia, escorregou para o lamaçal desconhecido. A infantaria, finalmente chamada a reconquistar com o seu pé clássico o terreno rebelde, saltou no vazio, atolou-se, afundou-se, emaranhou-se e alguns dos nossos mais bravos soldados crucificaram-se a si mesmos no matagal (vi). 

 “E então o inimigo invisível foi abatendo misericordiosamente os feridos, enquanto a Marinha dava por cumprida a delicada missão, a artilharia cessava a sua actuação segundo bem conhecidas regras e a cavalaria jazia em veículos inoperantes (vii). Havia muito que a Força Aérea despejara seus inócuos carregamentos, pois a noite caíra, repentina, e só os moribundos, sem cronista de serviço, se esvaíam sobre a lama que o tempo não guardou. - Foi um horror! Um horror! 

 “Dois anos depois, o Exército português instalou-se finalmente na ilha de Como, ao nível de companhia. Mas sem espaventos. Mansamente, o menos ruidosamente possível, sem apoio aéreo, sem artilharia nem cavalaria. Uma simples companhia de caçadores desembarcou em pleno dia no recanto da ilha chamado Cachil e aí cavou humildemente seus abrigos, sob os pilões gigantescos, rezando esperanças a quatro metralhadoras pesadas, dispostas segunda uma problemática rosa-do-ventos, rodeando o todo com arame farpado e entregando o futuro a algum milagre político (viii). 

 “Em toda esta intrigante aventura, houve sempre uma coisa que ninguém compreendeu: a função. Que faziam cento e tal homens na ilha de Como, encurralados entre o canal barrento, que os separava do continente incerto da Guiné, e a vegetação ameaçadora da ilha por entre a qual ninguém ousava dar passada? (ix) Nem civis, nem militares, nem preto, branco ou mestiço sabiam responder a tamanha enormidade. E o Barreiros, há vinte anos ciente das Áfricas e dos abrigos edificados pelos soldados de Hitler, só respondia cuspinhando desprezo: - Ora! Estratégia!... “O Cachil erguera-se, porém, nas imaginações. No passado recente, quando o surdo tenente-coronel Barreiros comandava o batalhão de Catió, a ameaça que mais insistentemente se lhe desprendia da boca era: - Olha lá, ó militar! Queres ir prò Cachil?” (…). …………………………………………………………………………………………… 

  2. Comentários do Mário Dias: 

Confesso que vai ser um pouco difícil conter os meus comentários ao texto acima transcrito dentro de limites correctos e educados. Na verdade, a tentativa de alterar a verdade histórica dos acontecimentos e a manipulação ideológica é tal que, para usar o adjectivo mais suave que me ocorre, só posso dizer que este texto é nojento. Vejamos, ponto por ponto, o que tenho a rebater: 

 (i) Não foi de Catió que partiu a principal força de desembarque que actuou na ilha do Como. Tal força partiu de Bissau, conforme por mim já narrado. De Catió apenas houve algum apoio de artilharia na altura do desembarque e a participação de uma centena de homens, no máximo, o que não é relevante num universo de 1200 homens participantes na operação. É, portanto, falso ter sido Catió o ponto de partida para a operação que reconquistou a ilha do Como. 

 (ii) Diz o autor que o ataque à ilha do Como “nunca foi registado por cronistas”. Falso. Vários o fizeram e, entre eles, destaco Armor Pires Mota que nele participou como alferes miliciano do BCAV 490 (7). O que na verdade acontece é que, para certos escritores-historiadores, há uma clara tentativa de manipular a opinião pública divulgando apenas os autores cujos escritos são favoráveis à sua ideologia. E a prova do que afirmo está contida no prefácio da citada antologia Os Anos da Guerra, de João Melo. Aí se podem ler referências como “…os nossos primeiros teóricos de uma literatura de guerra serem pessoas ideologicamente próximas do salazarismo…” ; “…resposta aos panegíricos dos cronistas patrióticos de então, em cujo rumo embarcaram autores como Armor Pires Mota, Reis Ventura e outros.” Nenhum desses “teóricos” ou “patrióticos” foram incluídos na referida antologia que transcreve obras de 43 autores. 

 (iii) O autor põe na boca do tal comerciante Barreiros, de Catió, a narração dos acontecimentos. Acontece que eu, também residente na Guiné desde 1952 e, apesar dos brancos se conhecerem quase todos uns aos outros, pelo menos de nome, nunca ouvi falar no tal Barreiros. Acresce ainda o facto de entre 1960 e 1962 eu ter trabalhado no Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria da Província da Guiné para onde, anualmente, todos os comerciantes obrigatoriamente enviavam um mapa com a situação de todos os seus empregados, incluindo aqueles que os não tinham que enviavam uma declaração negativa. Pois não me recordo de tal nome. Pensando tratar-se de um natural lapso de memória, perguntei recentemente a algumas pessoas que também por lá andaram nessa época mas ninguém se recorda de tal pessoa. 

 (iv) As setenta baixas em poucas horas, são pura fantasia. Primeiro: não houve setenta baixas mas sim 8 mortos e 29 feridos, tal como consta no respectivo relatório de operações. Todos os que andaram pela guerra do [ Ultramar ] sabem que, se, por um lado, era possível algum exagero na contabilização dos mortos do inimigo, por outro não se podiam esconder ou ignorar as baixas das nossas tropas. Segundo: a operação não durou “poucas horas” mas sim 72 dias. 

 (v) Este parágrafo só pode ser classificado como anedótico. Não havia abrigos subterrâneos na ilha nem nunca os soldados de Hitler lá estiveram durante e segunda guerra mundial. Que um fantasioso e quiçá ignorante comerciante (o tal Barreiros) afirmasse tal dislate, poder-se-á desculpar. O que é estranho é que um indivíduo que foi oficial de transmissões não tenha os conhecimentos suficientes de história para saber que nunca na Guiné houve a presença do exército alemão. Estranho. Muito estranho. É o mínimo que se pode dizer. 

 (vi) Descrição romanceada. Parece o guião de um filme épico. 

 (vii) E continua a fantasia: “… e a cavalaria jazia em veículos inoperantes.” O único veículo que existia na ilha do Como durante a Op Tridente era um jipe que nunca saiu da base logística. A cavalaria, que profusamente é citada, actuava como tropa de infantaria o que, aliás, era também comum aos batalhões de artilharia. Como todos sabemos, a designação de BCAV e de BART era dada por essas unidades terem sido mobilizadas pelas respectivas armas. Porém, na prática, todos actuavam como tropa de infantaria. 

 (viii) Após o final da Operação Tridente (Março de 1964) ficou instalada em Cachil uma companhia, conforme relatei, e não dois anos mais tarde como refere o autor do texto em apreciação. Aliás, um dos objectivos da Op Tridente era precisamente a instalação de uma companhia em Cachil, o que foi conseguido, ficando lá a CCAÇ 557, até Outubro de 1964, que foi substituída nessa data pela CCAÇ 728 (Fonte: Resenha Histórica -Militar das Campanhas de África (1961-1973) do EME - 3º volume). Carece portanto de fundamento a afirmação de que só passados 2 anos após a Op Tridente se tenha instalado uma companhia em Cachil. 

 (ix) Aqui reside o cerne da questão. É que, se a partir da última fase da operação era possível às nossas tropas patrulharem e “ousarem dar passadas na vegetação ameaçadora da ilha” sem grandes percalços e apenas com esporádicos e fugidios contactos por parte dos guerrilheiros, o que ficaram lá a fazer os cento e tal homens da Companhia de Cachil? Estou em crer que se remeteram à relativa segurança do seu “forte estilo far-west”, aí aguardando calmamente pela rendição. Os guerrilheiros agradeceram. Além do já comentado, não posso deixar de revelar a minha estranheza por frases pouco elegantes como “estrondosa derrocada” ou “eco tragicómico da negativa proeza”. Aceito que nem todos os militares que passaram pela guerra na Guiné e noutros territórios o fizessem com a convicção e empenho que o regime de então exigia. Porém, custa-me entender que a diferença de opiniões justifique este humilhar dos seus irmãos de armas. E por aqui me fico no respeitante ao texto acima transcrito. 

 Mas há outros autores com afirmações pouco exactas. José Freire Antunes em A Guerra de África (Círculo de Leitores), Volume I, pag. 36 diz: 1964 Fevereiro - Março - Os rebeldes do PAIGC mantêm em seu poder a ilha de Como, não obstante a severidade dos ataques portugueses. É um primeiro embate, revelador da forte estruturação da guerrilha e da eficaz mentalização ideológica ditada por Cabral. A Guiné torna-se progressivamente o nosso mini-Vietname. 

 Comentário: Precisamente na data indicada, Fevereiro-Março de 1964, estava em curso a Op Tridente com várias unidades do exército e dos fuzileiros instaladas em diversos locais da ilha. Mesmo depois da retirada das tropas, concluída que foi a operação, lá ficou instalada uma companhia em Cachil (CCAÇ 557). Que posse por parte do PAIG era esta? Porquê então Nino Vieira dirigiu aos seus homens a angustiante mensagem transcrita na narrativa dos acontecimentos da ilha de Como que publiquei no Blogue-fora-nada ? A que fonte foi o historiador José Freire Antunes beber esta notícia? É uma grande responsabilidade escrever sobre factos históricos pois esses escritos ficam a constituir uma referência para futuros estudiosos e pesquisadores. 

 Assim, por exemplo, Raquel Varela, finalista de História Moderna Contemporânea do ISCTE, em “O assassinato de Amílcar Cabral” no livro Factos desconhecidos da História de Portugal (Selecções do Reader’s Digest), produz uma afirmação muito semelhante. Espero ter contribuído para esclarecer as dúvidas que pairam à volta da Operação Tridente e que cada um conclua sobre os seus resultados. ___________ 

 Notas de L.G. 



 (3) Vd. postes de:



 Há outro poste sobre a batalha do Como, publicado no nosso blogue: 17 de Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como 



 (5) Vd posts anteriores do Mário Dias: 




 Vd. também os postes de: 




  (...) O sargento Mário Dias enveredou pela carreira militar. Ainda fez mais duas comissões, dois anos em Moçambique e mais dois em Angola. O 25/4 apanhou-o em Cabinda. Regressado a Lisboa foi colocado no Regimento de Comandos na Amadora. Foi testemunha e interveniente do processo que envolveu os comandos da Amadora no verão quente de 1975. Macau foi o destino seguinte como instrutor das forças de segurança. Na reserva já há alguns anos, ainda recorda os tempos dos comandos da Guiné como os que mais o marcaram (...). 

 O propósito desta resenha biográfica (e desta reedição), o Mário Dias aproveitou para rectificar a nota do VB e dar-nos um sinal de esperança: promete voltar mais vezes ao nosso convívio... 

  Caro Luís Graça e co-editores: Ao passar pelo blogue - o que faço sempre que posso, com todo o interesse - deparei com a reedição de uma das minhas intervenções (parênteses para me penitenciar pelo meu actual silêncio que se diz ser de ouro) e, em sequência, um resumo do meu "percurso de vida". Aí consta que, depois da Guiné, fiz mais duas comissões. Não foram mais duas mas sim mais três: uma em Moçambique e duas em Angola, ou seja, somei o total de quatro comissões que me fizeram passar, com os tradicionais atrasos no regresso no final de cada comissão 10 anos "na guerra". Prometo regressar logo que possível com a minha colaboração. Um grande abraço extensível a todos os camaradas da Tabanca Grande. Mário Dias 

 (6) Este texto do José Martins Garcia é um conto, extraído do seu livro de contos Morrer Devagar (Lisboa: Arcádia, 1979). O título do conto que aparece na antologia do João Melo é "As suspeitas de um bravo capitão". Não é propriamente (nem pretendia ser) um trabalho historiográfico, mas sim um texto ficcional (ou entre a crónica e a ficção), inspirado na realidade da guerra colonial na Guiné, na Região de Tombali, entre 1964 e 1967. As personagens podem ser reais (no sentido de terem existido em carne e osso...), mas os seus nomes são fictícios... O comerciante Barreiros, por exemplo, podia bem ser um dos elementos da conhecida família ou clã Brandão (a casa do Brandão no Como está explicitamente sinalizada pelo Mário Dias, no croquis que ele nos mandou e que está publicado; o velho Brandão também é referido no romance do Armor Pires da Mota, Tarrafo, 2ª ed., 1971)... Os militares portugueses, do tenente-coronel ao capitão, são também caricaturas... 

 O autor nunca foi, de resto, um historiador. Julgo que a intenção deste prestigiado intelectual açoriano não foi propriamente "falsificar a história", mas antes dar uma ideia (irónica, crítica...) do clima que se vivia na época em que ele, professor do ensino secundário da Horta, Açores, foi chamado a cumprir o serviço militar - como todos nós - e, de seguida, mobilizado para a Guiné. Tanto o comerciante Barreiros como o capitão Lourenço e outras figuras militares que aparecem no conto são personagens de comédia... Todos nós os conhecemos na Guiné, noutros lugares, sob outros nomes... 

 Não sei onde é que o José Martins Garcia esteve. Possivelmente esteve em (ou passou por) Catió, no sul, quase três anos depois da Op Tridente. Lá terá recolhido impressões, boatos, memórias, estórias... da famosa Op Tridente, a maior operação que se realizou no CTIG durante os longos 11 anos de guerra. O Como transformou-se um mito poara os dois lados, o PAIGC e as NT... Em finais de Maio de 1969, quando chegei à Guiné, constavam-se ainda montes de histórias do Como, e do Nino, embora nessa altura o que estava no jornal da caserna, em título de caixa alta (leia-se: as bocas que ouvíamos nas esplanadas de Bissau), era Gandembel (abandonado em Janeiro de 1969) e Madina do Boé (e a tragédia do Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969)... 

 O Mário Dias também lhe atribui, por lapso, a autoria do livro Os mortos de Pidjiguiti (título de um poema de Fernando Grade, in O Vinho dos Mortos, 1977). Curiosamente, fui folhear o livro em questão (O II Volume de Os Anos da Guerra: 1961-1975- Os portugueses em África: crónica, ficção e história; ed. lit. João de Melo. Círculo de Leitores, 1988) e constato que foram utilizadas, abusivamente, sem respeito pelos direitos de autor (nem sequer citação da fonte...) algumas fotos que eu tinha emprestado ao jornalista Afonso Praça (1939-2001) e que foram publicadas no já extinto semanário O Jornal, no princípio de década de 1980, aquando da abertura do dossiê "Memórias da Guerra Colonial" (de que fui - modéstia à parte - um dos animadores e um dos participantes mais regulares)... 

 Esse famoso dossiê foi alimentado, tal como este blogue, pelos contributos (estórias, poemas, excertos de diários, documentos, fotos...) de largas dezenas de ex-camaradas nossos, que estiveram nas três frentes (Angola, Moçambique e Guiné). As supracitadas fotos, por sua vez, tinham-me sido emprestadas pelo Tony Levezinho, ex-camarada meu da CCAÇ 12, grande amigo e membro (discreto) da nossa tertúlia !... Ver páginas da citada publicação : - 146-147 (O Tony no espaldão da metralhadora pesada Browning, em Bambadinca, 1969); - 135 (o Tony e o Alf Mil Carlão numa tabanca em autodefesa, que já não consigo identificar, talvez Satecuta, em 1969); - 129 (O Tony e creio que o Marques, junto a dois prisioneiros do PAIGC, Bambadinca, 1970...). 

 Sobre o José Martins Garcia (1941-2002) ver nota biográfica, publicada no Boletim do Núcleo Cultural da Horta: - Nasceu na Criação Velha, Ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941; - Fez uma parte dos seus estudos liceais na cidade da Horta; - Em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, onde viria a leccionar entre 1971 e 1977; - Foi chamado a cumprir serviço militar em 1965, - Mobilizado para a Guiné-Bissau, aí permaneceu de 1966 a 1968; - A experência da guerra na Guiné projecta-se literariamente em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra colonial, "numa perspectiva paranóica e demencial"; - Essa experiência acabaria por pontuar, sob variadas formas e em diferentes circunstâncias, a sua obra literária; - Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris; - Em 1979 foi para os Estados Unidos como professor convidado da Brown University (Providence), aí permanecendo até 1984; sinais desse tempo americano são detectáveis em Imitação da Morte (1982) e no "belíssimo e devastador livro de poemas" Temporal (1986); - De regresso a casa, ingressou na a Universidade dos Açores, em cujos planos de estudo das licenciaturas introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas; - Doutorou-se, pela Universidade dos Açores, com uma tese sobre Fernando Pessoa; - Nesta Universidade terminou a sua carreira académica como Professor Catedrático, tendo ainda ocupado o cargo de Vice-Reitor e dirigido a revista Arquipélago, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas; - Faleceu em Ponta Delgada a 4 de Novembro de 2002. 


 (7) Armor Pires da Mota (vd. nota biográfica em Museu S. Pedro da Palhaça > Autores do Concelho de Oliveira do Bairro: - Nasceu na Freguesia de Oiã, Concelho de Oliveira do Bairro, a 4 de Setembro de 1939; - Fez a instrução primária nesta freguesia e ingressou no Seminário de Aveiro, donde sairia em 1961; - Nessa altura publicou o seu primeiro livro Cidade Perdida, mas já anteriormente publicava poesias no Jornal da Bairrada, Correio do Vouga e Soberania do Povo. - No cumprimento do serviço militar, foi mobilizado em 1963 para a Guiné,como Alf Mil do BCAV 490, de que era comandante o Ten Cor Fernando Cavaleiro (hoje, coronel na reforma); - Participou na Op Tridente (Janeiro a Março de 1964), sendo Fernando Cavaleiro o comandante das forças terrestres; - Em 1965, lança o seu novo livro Tarrafo (onde incluem estórias da batalha do Como), tendo esta publicação mandado ser recolhida pela PIDE (o livro foi reeditado em 1971); -Tem uma vasta participação na imprensa periódica (Diário de Notícias, Diário do Norte, Diário da Manhã, Notícias de Lourenço Marques, O Debate, Observador, Jornal da Bairrada). - É actualmente chefe de redacção do Jornal da Bairrada. - Além de Tarrafo, é autor de Guiné, Sol e Sangue (contos e narrativas, 1968). Está representado em três antologias: Contos Portugueses do ultramar; Corpo da Pátria, 1971; Vestiram-se os soldados de poetas. - Ganhou o 1º prémio de Poesia Camilo Pessanha, em 1968 com o livro Baga-Baga. É difícil classificar o genéro literário de Tarrafo. Escrito na primeira pessoa do singular, está entre a história de vida e a crónica. Publicado originalmente em 1965, vê-se que foi escrito ainda com o sangue, o suor e as lágrimas de um combatente que esteve na batalha do Como (e noutras) e que assumidamente se batia em defesa da Pátria, multicontinental e multirracial. Curiosamente, o livro foi mandado retirar do mercado livreiro pela PIDE, devido à crueza e realismo com o que o autor fala da guerra da Guiné... Gostaríamos, de resto, de ter a sua autorização, pessoal, para publicar alguns excertos do seu livro (hoje já difícil de encontrar). A sua versão dos acontecimentos, as suas memórias das pessoas e dos lugares, é também uma das faces da guerra que nos interessa conhecer e divulgar. Não temos, no nosso blogue (e, por extensão, na nossa Tabanca Grande), quaisquer partis pris ideológicos. O nosso maior denominador comum foi termos sido combatentes na Guiné e, nessa qualidade, termos legitimidade para falar da Guiné que conhecemos e da guerra que fizemos... Haverá porventura algum camarada da tertúlia que conheça pessoalmente o Armor Pires da Mota ? Não sei se o Mário se lembra dele...

sábado, 18 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2057: Questões politicamente (in)correctas (32): O monumento em Barcelos aos mortos do Ultramar (Luís Carvalhido)

O Luís Carvalhido, membro da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (APVG), foi soldado de transmissões da CCS do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74). É natural de (e residente em) Barcelos. Pertence à nossa tertúlia desde Abril de 2005, tendo entrado pela mão do Sousa de Castro, do mesmo batalhão (CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74).

Foto: Jornal de Barcelos. 9 de Julho de 2003 (com a devida autorização) (1)


1. Mensagem do nosso camarada Luís Carvalhido, com data de 14 de Julho:


Assunto - Barcelos Popular, 27/06/2007, página 5

Meu caro Luís:

Na data supra referida o Director do jornal Barcelos Popular, no seu editorial, fez uma análise medonha ao comportamento dos veteranos de guerra, nas províncias ultramarinas.

Segue a resposta que amanhã lhe vou entregar em mão. Se achares de interesse, podes redestribuir.

Um abraço,
Luís Carvalhido

2. O editor do blogue mandou-lhe, entretanto, a seguinte mensagem, em resposta ao camarada Luís Carvalhido:


Luís: Não tens cópia, em suporte digital, do editorial em causa ? Fui ao sítio do jornal mas não consegui localizar o dito editorial. Eles chegaram a publicar a tua resposta ? Se sim, diz quando, em que data...

Temos que ser objectivos e imparciais, publicando os dois pontos de vista... Não gostaria que isto parecesse uma polémica local, paroquial, no contexto de Barcelos (cidade, de resto, de que eu gosto, tal como toda a região)...


Tens que me dizer o que se passou exactamente: Barcelos inaugurou um monumento aos mortos do ultramar, o jornal (que é ideologicamante mais próximo da esquerda, é isso ?) não gostou e desancou... Tu respondeste, usando o trocadilho e a ironia (director inferior / geração superior)... Enfim, para garantir o pluralismo, eu preciso da outra peça... Pode ser ? Um abraço do Luís Graça e dos co-editores, CV e VB.


3. Em 27 de Julho último, o Carvalhido eslcareceu as minhas dúvidas:


Meu caro Luís:

Para que entendas a questão: Em Barcelos criou-se uma comissão para a feitura de um monumento ao combatente, vulgo veterano de guerra.

Este Director, presumivelmente homem de esquerda, contra a qual nada tenho, malha em tudo aquilo que lhe parece espiga, caindo na tentação de misturar alhos com bogalhos. Nada disso me importa desde que os factos relatados coincidam com total verdade e imparcialidade histórica.

Em nome de coisas que assisti na Guiné, tal como vós aliás e em nome do princípio de quem não esteve lá não pode saber nem pode sentir, considerei importante vir a terreiro dar a minha humilde opinião.

Como saberás, para nós nesta causa não deve existir esquerda nem direita, mas tão sómente aquilo que cada um perdeu... aquilo que cada um sentiu... mas muito mais importante: aquilo que cada um ainda não esqueceu.

Um abraço do companheiro ao dispor, relançando daqui o apelo a qualquer um de vós que por perto passe não hesite em me contactar. Estarei sempre disponível para um abraço.

Em breve recebes tudo aquilo a que me estou a referir.

Um abraço

Luis Carvalhido

4. Nova mensagem do nosso camarada de Barcelos:


Caro Luís:

Tal como combinado sou a enviar o artigo [editorial de 27 de Junho de 2007, publicado na página 5, sob o título Guerra Colonial: o último dos monumentos] que me levou a ir ao Barcelos Popular, entregar em mão aquela resposta que te enviei. Segue, noutro email, a resposta que adequei ao Jornal de Barcelos, uma vez queo Director editorialista [do Barcelos Popular] não foi capaz de me dizer nada, ou de escrever nada daquilo que eu lá deixei.

Um abraço
Luis Carvalhido

5. Artigo de opinião enviado pelo Luís Carvalhido ao Barcelos Popular ( auto-intitulado "semanário regional, democrático e independente "):

Um Director inferior faz parecer inferior uma geração superior

Senhor director do Barcelos Popular, li o seu editorial de 27 de Junho findo [vd. imagem em anexo, em cópia digitalizada do polémico artigo]. Devagar, devagarinho, como mandam as regras, tentei entender as suas críticas, à feitura do tal monumento que classifica de várias maneiras, todas elas muito pouco abonatórias.

Naturalmente que a sua opinião face ao monumento não me incomoda muito, até porque não faço parte da Comissão Organizadora. No entanto, como homem da tal ocupação, já não posso calar-me ao ler tamanhas obscenidades, provocadas a meu ver, por uma enorme falta de conhecimentos da realidade, ou por qualquer tipo de obaudição. Naturalmente que se fosse uma pessoa qualquer, não perderia tempo com a questão mas como o senhor é um ilustre Director, de um jornal da cidade, não posso deixar de lhe perguntar algumas coisas importantes, para depois lhe poder dar outras informações mais próximas da realidade.


Que idade tinha em 1961, no início da guerra colonial? E que idade tinha em 1974, data em que a mesma acabou? Era filho de uma família rica? Que formação política tinha nessa ocasião? Naturalmente que lhe faço estas perguntas porque penso, que foi um dos que fugiu graças ao poder económico da família.

Não quero crer que seja mais um daqueles que em Abril ainda andavam com as fraldas sujas e que pouco tempo depois já arvoravam em pseudo qualquer coisa. Já agora, antes de lhe dizer o que representa o monumento, porque me parece que o senhor Director nunca terá investigado o suficiente acerca do assunto, ou então terá lido aqueles que escrevem o que o momento dita, permita-me que lhe diga que fui um SOLDADO deste país e que prestei serviço na Spinolândia de Janeiro de 1972 até Abril de 1974.

Por este tempo de aprendizagem, atrevo-me a deixar-lhe outro tipo de informações que não contêm qualquer saudosismo bolorento. Inicio esta lição, dizendo-lhe que um batalhão com cerca de seiscentos homens apenas tinha cerce de dúzia e meia de SOLDADOS do quadro. Sendo assim e se ainda se lembra da regra de três simples, pegue num milhão de homens e veja quantos são os tais que mataram sadicamente, acobertados pela cédula salazarista.

Depois, senhor Director, deixe-me dizer-lhe o que pode representar o tal hediondo monumento: ele simboliza enaltecimento ao tal milhão de oprimidos que não tinham condições económicas para fugir.

Sim, senhor Director, ou será que já se esqueceu que éramos um povo pobre e que muitos, desse tal milhão, viviam na miséria? O senhor não, de certeza, por aquilo que as suas palavras deixam entender. Ele também simboliza a perda dos melhores anos da vida de um jovem; tempo de procura e tempo de decisões.
Embora só sejam cerca de onze mil os oficialmente reconhecidos, o monumento, senhor Director, também representa aqueles que caíram, vitimados pela tal opressão e pela falta de meios de fuga. Ele representa coxos, cegos, manetas e amputados da mente, vítimas para a vida inteira de outro tipo de opressão.

E não estarão lá representadas as mulheres e os filhos daqueles a quem ofende? Não serão estas mulheres e estes filhos tão sofredores, como aqueles que aprecem em primeiro plano? E, se o senhor soubesse um pouco de nada, disto, perceberia que esse monumento também lembra, pelo menos na nossa memória, os soldados africanos que tombaram do outro lado e do nosso lado. Mas isso, senhor Director, só nós é que sabemos porque o senhor e os outros não aprenderam.

Eu sei que isto já vai longo e eu teria muito, mas mesmo muito mais, para dizer se não soubesse o quanto é difícil arranjar um cantinho de opinião no seu jornal. Eu sei, que a si, tudo isto lhe parecerá pouco e eu até o compreendo, mas espere até lhe dizer o que representa o monumento. Ele representa um milhão de mães Portuguesas que não tinham dinheiro para mandar fugir os filhos e que sabiam menos de objecções de consciência que o senhor Director e os outros politicamente instruídos.

E para não mencionar muitas outras coisas, deixe só lembrar-lhe que o monumento também representa aqueles que, a um tempo, matavam e estropiavam; no outro, abriam estradas, construíam hospitais, ensinavam a ler e a escrever Português, curavam feridas, davam vacinas e praticavam medicina.
Não queremos branquear nada, senhor Director, e tal como o senhor não desejo a guerra. O monumento também afirmará isso, mas esta é a nossa história que só peca pela falta de qualidade com que os intelectuais deste país a escrevem ou a pintam. E já agora, para terminar, deixe lembrar-lhe, que o senhor, ao chamar a Câmara para o assunto, cometeu um erro, mais um, pois devia lembrar-se que também ocupa o lugar de director de um jornal, porque existem assinantes, pelos quais não demonstrou qualquer respeito, uma vez que usou o seu poder para entrar pelas casas dentro, ofendendo muitos que nelas moram.

Envergonhemo-nos, sim: da sua pequeníssima e pobre análise à questão e da utilização medíocre que deu à página cinco do Barcelos Popular da data supra referida.

Luís Carvalhido – Guiné 1972 / 1974

_________________________________________________

Excertos do editorial do director José Santos > Guerra colonial: o último dos monumentos


A iniciativa de construir, no concelho, um monumento de homenagem aos ex-combatentes nas antigas colónias não é nova nem tampouco inédita no nosso país.

De facto, em muitas outras terras de Portugal (…) , esta mal disfarçada intenção de branquear um passado de crime e ocupação selvagem que a todos nos devia envergonhar, tem sido intencionada omitida a pretexto de um alegado tributo aos que ingloriamente tombaram no campo de batalha (…).

Para este peditório não damos. Mesmo que por detrás do movimento barcelense se encontre gente de bem e imbuída das melhores intenções. E a Câmara – eleita em regime democrático – tem a obrigação de obstar à concretização de 8uma obra que (…) só nos envergonha.

______________
Nota de L.G.:

(1) Vd. 21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P977: Antologia (52): A guerra que Portugal quis esquecer (Luís Carvalhido, ao Jornal de Barcelos)

Meu caro Luís.
Na data supra referida o Director do jornal Barcelos Popular, no seu editorial fez uma análise medonha ao comportamento dos veteranos de guerra, nas províncias ultramarinas.
Segue a resposta, que amanhã lhe vou entregar em mão. Se achares de interesse, podes redestribuir.

Um abraço

14/7/07

Um Director inferior, faz parecer inferior uma geração superior.

Senhor director do Barcelos Popular, li o seu editorial de 27 de Junho findo. Devagar, devagarinho como mandam as regras, tentei entender as suas críticas, à feitura do tal monumento, que classifica de várias maneiras, todas elas muito pouco abonatórias. Naturalmente que a sua opinião face ao monumento não me incomoda muito, até porque, não faço parte da Comissão organizadora, no entanto, como homem da tal ocupação, já não posso calar-me ao ler tamanhas obscenidades, provocadas a meu ver, por uma enorme falta de
conhecimentos da realidade, ou por qualquer tipo de obaudição. Naturalmente que se fosse uma pessoa qualquer, não perderia tempo com a questão mas como o senhor, é um ilustre Director, de um jornal da cidade, não posso deixar de lhe perguntar algumas coisas importantes, para depois lhe poder dar outras informações mais próximas da realidade.
Que idade tinha em 1961, no inicio da guerra colonial? E que idade tinha em 1974, data em que a mesma acabou? Era filho de uma família rica? Que formação politica tinha nessa ocasião? Naturalmente que lhe faço estas perguntas porque penso, que foi um dos que fugiu graças ao poder económico da família. Não quero crer, que seja mais um daqueles, que em Abril ainda
andavam com as fraldas sujas e que pouco tempo depois, já arvoravam em pseudo qualquer coisa. Já agora, antes de lhe dizer o que representa o monumento, porque me parece que o senhor Director nunca terá investigado o suficiente acerca do assunto, ou então terá lido aqueles que escrevem o que o momento dita, permita-me que lhe diga que fui um SOLDADO deste país e que prestei serviço na Spinolandia de Janeiro de 1972 até Abril de 1974. Por este tempo de aprendizagem, atrevo-me a deixar-lhe outro tipo de informações, que não contêm qualquer saudosismo bolorento. Inicio esta lição, dizendo-lhe que um batalhão com cerca de seiscentos homens apenas tinha cerca de dúzia e meia de SOLDADOS do quadro. Sendo assim e se ainda se lembra da regra de três simples, pegue num milhão de homens e veja quantos são os tais que mataram sadicamente, acobertados pela cédula salazarista.
Depois senhor Director deixe-me dizer-lhe o que pode representar o tal hediondo monumento: ele simboliza enaltecimento ao tal milhão de oprimidos que não tinham condições económicas para fugir. Sim senhor Director, ou será que já se esqueceu que éramos um povo pobre e que muitos, desse tal milhão, viviam na miséria? O senhor não, de certeza, por aquilo que as suas palavras deixam entender. Ele também simboliza a perda dos melhores anos da vida de
um jovem; tempo de procura e tempo de decisões. Embora só sejam cerca de onze mil os oficialmente reconhecidos, o monumento senhor Director, também representa aqueles que caíram, vitimados pela tal opressão e pela falta de meios de fuga. Ele representa coxos, cegos, manetas e amputados da mente, vitimas para a vida inteira de outro tipo de opressão. E não estarão lá representadas as mulheres e os filhos daqueles a quem ofende? Não serão
estas mulheres e estes filhos tão sofredores, como aqueles que aprecem em primeiro plano? E, se o senhor soubesse um pouco de nada, disto, perceberia que esse monumento também lembra, pelo menos na nossa memória, os soldados africanos que tombaram do outro lado e do nosso lado. Mas isso senhor Director, só nós é que sabemos porque o senhor e os outros não aprenderam.
Eu sei que isto já vai longo e eu teria muito, mas mesmo muito mais para dizer se não soubesse o quanto é difícil arranjar um cantinho de opinião no seu jornal. Eu sei, que a si, tudo isto lhe parecerá pouco e eu até o compreendo, mas espere até lhe dizer o que representa o monumento. Ele representa um milhão de mães Portuguesas que não tinham dinheiro para mandar fugir os filhos e que sabiam menos de objecções de consciência que o senhor Director e os outros politicamente instruídos. E para não mencionar muitas outras coisas, deixe só lembrar-lhe que o monumento também representa aqueles, que a um tempo, matavam e estropiavam; no outro, abriam estradas, construíam hospitais, ensinavam a ler e a escrever Português, curavam
feridas, davam vacinas e praticavam medicina. Não queremos branquear nada senhor Director, e tal como o senhor não desejo a guerra. O monumento também afirmará isso, mas esta é a nossa história, que só peca pela falta de qualidade com que os intelectuais deste país a escrevem ou a pintam. E já agora, para terminar, deixe lembrar-lhe, que o senhor, ao chamar a Câmara
para o assunto, cometeu um erro, mais um, pois devia lembrar-se que também ocupa o lugar de director de um jornal, porque existem assinantes, pelos quais não demonstrou qualquer respeito, uma vez que usou o seu poder para entrar pelas casas dentro, ofendendo muitos que nelas moram.
Envergonhemo-nos sim: da sua pequeníssima e pobre análise à questão e da utilização medíocre que deu à página cinco do Barcelos Popular da data supra referida.

Luís Carvalhido – Guiné 1972 / 1974