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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25185: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Inf Bettencourt Rodrigues, Governador-geral e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte IV: a decisão, de 8fev74, de retirar o destacamento de Copá, defendido por 30 bravos da 1ª C/BCAV 8323/73 (Bajocunda, 1973/74)


Guiné > Zona leste > Setor L6 > Pirada > BCAV 8323/73 (1973/74) > 14 de fevereiro de 1974 > O 4º Grupo de Combate da 1ª C/BCAV 8323/73, homenageado na parada pelo ten cor Jorge Matias, um dia depois da sua retirada do destacamento de Copá (vd. carta de Canquelifá).

Foto: © António Rodrigues (2015). Todos os direitos reservados.   [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais um exemplo, constante do livro da CECA (2015), onde se dá conta das dificuldades das NT no nordeste da Guiné (CAOP 2), no 1º trimestre de 1974: a pressão do IN sobre Copá, já aqui bastas vezes referida (a par da grande bravura dos nossos camaradas da 1ª C/BCAV 8323/73, que lá aguentaram durante quase 3 meses a fio, de 25nov73 a 14fev74), levou à decisão do Com-Chefe de mandar retirar o destacamento, fazendo regressar as 3 dezenas de militares à sua subunidade de origem  (que estava em quadrícula, no subsetor de Bajocunda, sendo Pirada a sede do sctor 6). (**)
 
Base naval do Alfeite da Marinha , 
30 de abril de 1974

Foto (e legenda): © Fernando Vaz Antunes (2014). Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



No tempo do gen Bethencourt Rodrigues, e segundo informação do próprio,  as NT estavam espalhadas por 225 guarnições (localidades), sendo:

  • 72 ocupadas exclusivamente por unidades e subunidades do Exército  e da Armada;
  • 82  por pessoal do Exército e Armadas e das milícias; 
  • e 71 só por subunidades de milícias. 

A preocupação então dominnte (mas que já vinha de trás, do tempo do Spínola) era reduzir o dispositivo para pouco mais de um terço. 

Nos Estudos Gerais da Arrábida (A descolonização portuguesa: Painel dedicado à Guiné, 29 de Julho de 1997), o general Bethencourt Rodrigues declarou taxataivamente, em resposta a uma pergunta sobre a sua intenção de concentrar o dispositibo militar: "Sim, planeava converter as 225 guarnições em 80 e tal. A dispersão é inimiga da eficácia. Mas já não tive tempo. " (***)

Pelo se que depreende da leitura destas duas decisões do Com-Chefe (de 2 e 8 de fevereiro de 1974), a manta já era curta demais para tapar todos os buracos: escasseavam recursos em homens e armas...

Em 1997, o general (no seu depoimento no livro "Africa: a vitória traída"...), não esconde "a gravidade da situação militar que se vivia na Guiné no 1º trimestre de 1974" (pág. 140), sem no entanto concluir que fosse desesperada... Em boa verdade,  a conclusão é "inconclusiva", remetendo para o leitor o ónus da resposta à falsa questão da guerra ganha/guerra perdida (do ponto de vista militar...
 
Decisões do Com-Chefe:

• Decisão de 2Fev74;

"1. As flagelações que o lN tem executado sobre Bajocunda, Canquelifá e especialmente sobre Copá, demonstram a sua intenção de exercer o esforço no NE do TO, possivelmente com o objectivo de, por abandono ou redução de uma guarnição, conseguir um êxito facilmente explorável pela sua propaganda e com consequências políticas.

2. As flagelações levadas a efeito em 2Fev74 conduzem à necessidade de aliviar a pressão do inimigo, permitindo a remodelação do dispositivo de Artilharia da zona afectada, o reabastecimento da guarnição de Copá e a manutenção das ligações terrestres com esta guarnição.

Nestas condições decido, em conformidade com o planeamento resultante da minha directiva n° 6:

a. Deslocar 2 CCaç Paraquedistas/BCP 12 para, sob o controlo operacional do CAOP 2, executarem esforço de patrulhamento ofensivo na faixa fronteiriça entre Bajocunda e Copá. Estas CCaç Paras marcham:

(1) A primeira, via aérea para Nova Lamego, no dia 3Fev.

(2) A segunda via marítima pelo Xime na noite de 3/4Fev.

b. Deslocar em meios aéreos em 4Fev via Nova Lamego, 2 GComb/ COE para, em coordenação com as Forças Paraquedistas actuarem como forças especiais.

c. Manter em Nova Lamego 2 helicópteros, 2 helicanhões e 2 "DO" para apoio das operações além dos resultantes meios disponíveis em alerta em Bissau.

d. Reforçar o dispositivo de Artilharia para colocação de 1 Pel Art (14 cm) em Bajocunda, permitindo por coordenação com os fogos do Pel Art (14 cm) de Canquelifá, um apoio eficiente à guarnição de Copá. [... ]"



• Decisão de 8Fev - Situação militar na região NE do TO

"1. Notícias que se vêm processando desde a época das chuvas p.p., levaram à conclusão que o lN poderia vir a exercer esforço nas zonas N e E do TO, sobre as guarnições de fronteira.

No início da presente época seca tais indícios foram-se avolumando, envolvendo, praticamente toda a zona fronteiriça com a Rep Senegal e a parte NE com Rep Guiné.

2. No princípio de Janeiro, o lN começou a concretizar no canto NE do TO (região Copá-Canquelifá) as intenções que lhe eram atribuídas, através de:

a. Fortíssimas e prolongadas flagelações sobre Copá e Canquelifá;

b. Acções eficazes de isolamento de Copá, negando às NT a utilização dos itinerários normais de reabastecimento (Bajocunda-Mansacunda-Maundé-Copá e Bajocunda-Amedalai-Dingas-
Copá) por implantação de minas conjugada com fortes emboscadas. [... ]

5. Assim, considerando que:

a. Copá só poderia manter-se:

- se fosse guarnecida com uma Companhia e um Pel Art;

- se o Batalhão de Pirada 
[BCAV 8323/73] fosse reforçado com uma Companhia de Intervenção, em especial destinada a manter abertos os itinerários de reabastecimento;

- se fosse possível garantir um adequado apoio aéreo permanente na zona.

b. A população abandonou Copá e as populações das povoações vizinhas foram raptadas pelo lN;

c. O Destacamento de Copá não tinha possibilidade de realizar acções de contrapenetração, mesmo de pequena amplitude, sendo sua missão principal conservar as populações na área;

d. Copá não tem aquartelamento (duas pequenas casas praticamente destruídas) nem obras de fortificação e organização de terreno que lhe permitam resistir a prolongadas flagelações;

e. É indispensável reduzir as vulnerabilidades criadas pela existência, sobre a fronteira, de guarnições com efectivo inferior a Companhia:

f. As guarmçoes deste tipo devem, progressivamente, serem substituídas por autodefesas e Pelotões de Milícias, alguns dos quais já estão em instrução;

g. Não se dispõe dos meios necessários aos reforços referidos em a., especialmente depois da zona já ter sido reforçada com uma Companhia da Reserva e Artilharia de 14 cm, para Canquelifá e Bajocunda, nem de meios aéreos e reservas que permitam fazer face ao adensamento da ameaça que se processa
sobre todas as guarnições ao longo da fronteira N;

Decido:

- Fazer recolher à sede da sua Companhia, em Bajocunda, o Destacamento de Copá.

-  Caso a área venha posteriormente a ser ocupada pelas populações, prever a instalação de unidades de milícias numa das povoações.

Para tanto:

- Deve o CAOP 2, reforçado com BCP12 (-1 Comp), montar uma operação para abrir o itinerário Bajocunda-Copá, recolher o Destacamento de Copá e recuperar os materiais nele existentes.

O CTIG e CZACVG darão o apoio necessário a esta operação mediante coordenação com o CAOP 2. [... ]"

Fonte: Excertos de: Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6º volume: aspectos da actividade operaciona. Tomo II: Guiné, Livro III, Lisboa: 2015, pp.pp. 462/464.

[Revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG]
____________

Notas do editor:


(***) Vd, poste de 4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13097: (Ex)citações (230): Estudos Gerais da Arrábida > A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) > Depoimento do general Bethencourt Rodrigues (Excertos, com a devida vénia...)

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24914: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (14): Cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - III (e última) Parte

Foto nº 78B > Guerrilheiros do PAIGC desfilando, em Buba,  junto à sua bandeira (virada ao contrário)... Pelo que se observa da foto já tinha havido "troca de galhardetes", neste caso, de quicos (do PAIGC) e de boinas (as NT)


Foto nº 82 > Uma força do PAIGC  (1 grupo) prepara-se para a cerimónia de saudação da(s) bandeira(s)... (O "canito" rafeiro do quartel também quis ficar para a História...)

Foto nº 82A > Parte do bigrupo do PAIGC (1)

Foto nº 82B > Parte do bigrupo do PAIGC (2)

Foto nº 83 > Bigrupo do PAIGC e aspeto geral do quartel de Buba

Foto nº 84 > Mais outra imagem do bigrupo do PAIGC

Foto nº 85 > As NT e o bigrupo do PAIGC preparando-se para a cerimónia

Foto nº 86  > Elementos da representação do PAIGC e das NT (2º Comandante do BCAÇ 4513/72, maj inf Dias Marques e o cap mil inf Braz Dias,  comandante da 1ª Companhia), em continência à(s) bandeira(s).

Foto nº 87B  > Pormenor:  do lado direito,  elementos da representação do PAIGC e das NT (2º Comandante do BCAÇ 4513/72, maj inf Dias Marques e o cap mil inf Braz Dias comandante da 1ª Companhia) em continência à(s) bandeira(s).

Foto nº 88 > Mais outra imagem do bigrupo da representação do PAIGC 

Foto nº 89 > Um solitário repesentante da Marinha (elemento da tripulação da LDG 105, "Bombarda"), em continência à(s) bandeira(s).
Guiné > Região de Quínara > Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74) > 4 de setembro de 1974 
Fotos (e legendas): © António Alves da Cruz (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Último poste do lote de fotos do álbum do António Alves da Cruz (ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74), que tem já mais de duas dezenas de referências no nosso blogue (foto à direita: lisboeta de Belém, vive em Almada onde trabalhou na Lisnave).


As fotos publicadas dizem respeito ao último dia da estadia em Buba, em 4 de setembro de 1974, na sequência da execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega do aquartelamento de Buba ao PAIGC, de acordo com os compromissos assumidos no Acordo de Argel, assinado em 25 de agosto de 1974, e que fixou a data da independência da Guiné-Bissau em 10 de setembro desse ano.

Dois dias depois, a 6 de setembro de 1974, o António Alves da Cruz estava em casa (regresso de avião, através dos TAM).

Estas fotos (renumeradas pelo nosso editor) foram enviadas em 2 set 2023 20:45.


2. Retração do dispositivo:

Recorde-se, aqui, muito sumariamente alguns antecendentes e factos da retração do nosso dispositivo no CTIG, na sequência do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974:
(i) em 15 de maio de 1974, no Leste da Guiné, iniciaram-se os contactos, no terreno, entre os comandantes das nossas forças e os comandantes das forças do PAIGC, que actuavam na zona, casos de Sare Bacar (15 de maio), Ufara (25 de maio) e Pirada (29 e 31 de maio);
(ii) posteriormente, estes contactos generalizaram-se por todo o dispositivo, particularmente após 17 de maio, data do encontro, em Dacar (Senegal), entre o Secretário-Geral do PAIGC e o novo Ministro dos Negócios Estrangeiros português;
 (iii) em 16 de maio, em Lisboa, tomada de posse do I Governo Provisório português, e a 17 de maio, em Dacar (Senegal), dá-se início aos contactos do novo governo português com o PAIGC, continuados posteriormente em Londres (25 a 31 de maio) e Argel (13 de junho);
(iv) em  25 de maio, o ten cor inf Carlos Fabião, graduado em brigadeiro, assume as funções de Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, mantendo-se no novo posto enquanto durarem as referidas funções;
(v) em 3 de junho de 1974, nas povoações de Canjadude e Sinchã Maunde Bucó, na zona leste, tem lugar a última acção directa de fogo entre as forças beligerantes, tendo as forças do PAIGC atacado os aquartelamentos das NT sediados nas citadas povoações;

(vi) nos primeiros dias de junho, em Bissau, é nomeado Juvêncio Gomes, do PAIGC, como representante permanente junto do governo da Província;

(vii) a 4 de junho, dá-se início da retracção do dispositivo das nossas forças no terreno, com o abandono da guarnição de Jemberém, no Sul; a respectiva guarnição recolheu a Cacine, a título excepcional;
(viii) a retracção do dispositivo das NT  continuou, cerca de um mês mais tarde, incidindo sobre as unidades mais afastadas do Sector Leste - Buruntuma e Canquelifá  (em 5 de julho), Camajabá e Ponte do Rio Caium (em 8 de julho) (...)
Fonte: Adapt de  Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 421/422.
_____________

Nota do editor:

 Vd. poste anterior > 29 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24896: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (13): cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - Parte I

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24902: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (14): Cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - Parte II

Foto nº  74 > O 2º comandante do BCaç. 4513/72,  maj inf  Dias Marques,  e o cap mil inf Braz Dias,  comandante da 1ª Companhia, em continência à Bandeira.

Foto nº  73 > ...Mas antes houve o preparar da troca de bandeiras... (Até o "canito" não quis faltar.)


Foto nº 75 > O hastear da bandeira do PAIGC (futura bandeira da República da Guiné-Bissau, cuja independência foi reconhecida por Portugal em 10 de setembro de 1974) e o arriar da bandeira nacional


Foto nº 76 > O momento em que a bandeira do PAIGC chega ao cimo do mastro


Foto nº 77 > A bandeira do PAIGC (futura bandeira da Guiné-Bissau)


Foto nº 76 > A bandeira nacional


Foto nº 77  > O cap mil inf Braz Dias junto ao mastro da bandeira, e com ele o 1º cabo que estava no depósito de géneros, do qual não recordo o nome.


Foto nº 78A > Guerrileiros do PAIGC desfilando junto ao pau da bandeira... Pelo que se observa da foto já tinha havido "troca de galhardetes", neste caso, de quicos (do PAIGC) e de boinas (as NT)


Foto nº 79  >  O nosso 1º cabo que estava no depósito de géneros 


Foto nº 79A  >  A bandeira do PAIGC, com as cores vermelha, verde e amarela, e estrela negra...


Foto nº 80  > Um guerrilheiro do PAIGC e o  1º cabo das fotos acima

Foto nº 81  > Uma força do PAIGC e dois pelotões da 1ª C/BCAÇ 4513/72 fazem continência às bandeiras... Em primeiro plano, à esquerda, um marinheiro da guarnição da LDG105 "Bombarda".

Guiné > Região de Quínara > Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74) > 4 de setembro de 1974:   

Fotos (e legendas): © António Alves da Cruz (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Último lote de fotos  (por ordem cronológica) do álbum do António Alves da Cruz (ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74), que tem já mais de duas dezenas de referências no nosso blogue (foto à direita: lisboeta de Belém, vive em Almada onde trabalhou na Lisnave). 

Este é o segundo de três postes, e dizem respeito ao último dia da estadia em Buba, em 4 de setembro de 1974, na sequência da execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega do aquartelamento de Buba ao PAIGC,  de acordo com os compromissos assunidos no  Acordo de Argel, assinado em 25 de agosto de 1974, e que fixou a data da  independência da Guiné-Bissau em 1o de setembro desse ano.

Dois dias depois, a 6 de setembro de 1974, o António Alves da Cruz estava em casa (regresso de avião,  através dos TAM).

As fotos (renumeradas pelo nosso editor) foram enviadas em 4 de setembro último, às 19:34.
(Continua)
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de novembro de 2023  > Guiné 61/74 - P24896: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (13): cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - Parte I

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24896: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (13): cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - Parte I


Foto nº 64 >  A LDG 105 "Bombarda" abicada em Buba. 


Foto nº  65 > O dia da entrega de Buba ao PAIGC, à espera da LDG: da esquerda para a direita: (i) de costas, militar que não identifico; (ii) o furriel Corola, do quadro permanente; e (iii) e o ex-fur mil Reis.


Foto nº 66 >  - A LDG  105, "Bombarda",  a chegar a Buba pela ultima vez, no dia 4 de setembro de 1974.


Foto nº  67 > A Companhia a preparar-se para a cerimónia da entrega das instalações ao PAIGC, com o arrear da bandeira nacional e hastear da bandeira da Guiné-Bissau.


Foto nº 67A > Pormenor da companhia em formatura (1)


Foto nº 67B > Foto nº 67A > Pormenor da companhia em formatura (2)


Foto nº 68A > Pormenor da companhia em formatura (3)


Foto nº 68B >  Pormenor da companhia em formatura (4) 


Foto nº 68 > Mais outro plano  da companhia  em formatura
 

Foto nº 69 > Mais alguns militares da nossa companhia.


Foto nº 70 > Outro aspeto da formatura.


Foto nº 71 > O ex-cap mil Braz Dias, comandante da 1ª C/BCAÇ  4513/72 (Bula, 1973/74)


Foto nº 72 > Ao fundo a tropa do PAIGC. Escassa população local assistiu à cerimónia, a avalitar pela reportagem fotográfica.
 
Guiné > Região de Quínara > Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74) > 4 de setembro de 1974:   

Fotos (e legendas): © António Alves da Cruz (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Último lote de fotos  (por ordem cronológica) do álbum do António Alves da Cruz (ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74), que tem já mais de duas dezenas de referências no nosso blogue (foto à direita; lisboeta, vive em Almada onde trabalhou na Lisnave). 

Vão ser publicadas em três postes, e dizem respeito ao último dia da estadia em Buba, em 4 de setembro de 1974, na sequência da execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC,  de acordo com os compromissos assunidos no  Acordo de Argel, assinado em 25 de agosto de 1974, e que fixou a independência da Guiné-Bissau em 1o de setembro desse ano.

Dois dias depois, a 6 de setembro de 1974, o Anónio Alves da Cruz estava em casa (regresso de avião,  através dos TAM).

As fotos (renumeradas pelo nosso editor) foram enviadas em 4 de setembro último, às 19:34:

 Amigo Luís:

Dia 04/09/ 2023 faz 49 anos que saímos de Buba,  entregando depois de tanto sacrifício aquela pequena parcela do território da Guiné ao PAIGC. Vou enviar alguns slides desse dia, se quiseres publicar pela data tudo bem, se preferires seguir a sequência de fotos tudo Ok, na mesma. 
Ab, Cruz.

(Continua)
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 21 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24870: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (12): agosto de 74, momentos de convívio e descontração

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23849: Fichas de unidades (29): BCAÇ 4616/73 (Bambadinca, 1974)

1.  O BCAÇ 4616/73 é uma daqueles unidades que podíamos pôr na série "Os nossos últimos seis meses"... ou nas "Memórias dos últimos soldados do império"...

Chegou ao CTIG já no início do ano de 1974 e regressou à metrópole oito meses depois, no início de setembro. Como  se tornou normal, nos últimos anos da guerra, o comandante da CCS era um capitão SGE (oriundo da Escola Central de Sargentos) e os comandantes das subunidades operacionais eram todos milicianos...

Lamentavelmente não tem história da unidade... Mas o livro da CECA, diz que na parte final da comissão, "adaptou a sua actividade à situação então vigente, comandando e coordenando a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC."

Se repararmos na ficha da unidade, a seguir reproduzida, a 2ª C/BCAÇ 4616/73 (sediada no Xitole) em oito dias "fechou a porta duas vezes", primeiro a do Xitole e depois a de Bambadinca, o mesmo é dizer, desativou e entregou ao PAIGC o  setor L1 (parte importantíssima do "chão fula" (Bambadinca, Xime, Mansambo e Xitole):

(...) Em 1Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Xitole, seguiu para Bambadinca, onde substituíu a 1ª Comp/BArt 6523/73 na responsabilidade do respectivo subsector. Em 8Set74, iniciou o deslocamento dos seus efectivos para Bissau e efectuou, em 9Set74, a desactivação e entrega do aquartelamento de Bambadinca, tendo recolhido a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.(...)

Vale a pena juntar (e reflectir sobre) estes factos (*)...


Ficha de unidade > Batalhão de Caçadores n.º 4616/73


Identificação: BCaç 4616/73

Unidade Mob: RI 16 - Évora

Cmdt: TCor Inf Luís Ataíde da Silva Banazol | TCor Inf Joaquim Luís de Azevedo Alves Moreira

2.° Cmdt: Maj lnf Joaquim Luís de Azevedo Alves Moreira

OInfOp/Adj: Cap lnf Bernardino Luís de Matos Pereira Torres

Cmdts Comp:

CCS: Cap SGE Domingos Roque

1ª Comp: Cap Mil lnf Augusto Vicente Penteado

2.ª Comp: Cap Mil lnf Luís Fernando de Andrade Viegas

3.ª Comp: Cap Mil lnf João Lontra Leite Martins


Divisa: "Conduta Brava e Distinta" 
 [de acordo com a imagem do brasão, acima reproduzida, colecção Carlos Coutinho, 2009, com a devida vénia]

Partida: Embarque em 30Dez73; desembarque em 05Jan74 |  Regresso: Embarque em 12Set74 (1*  e 2*: Comp), 15Set74 (3ª Comp) e 16Set74 (Cmd e CCS)


Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 9Jan74 a 6Fev74, no CML, em Cumeré, seguiu depois, com as suas companhias, excepto a 3ª Comp, para o sector de Bambadinca, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com o BArt 3873, de 13Fev73 a 8Mar73.

Em 9Mar74, assumiu a responsabilidade do Sector LI, com a sede em Bambadinca e abrangendo os subsectores de Mansambo, Xime, Xitole e Bambadinca.

Desenvolveu a actividade operacional adequada às características do sector, com realização de várias operações, patrulhamentos, emboscadas dos reordenamentos de Nhabijões, Samba Silate e Bambadinca e de construção, manutenção e controlo dos itinerários da sua zona de acção. 

Na parte final, adaptou a sua actividade à situação então vigente, comandando e coordenando a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuada nos subsectores de Xitole, em 1Set74, de Mansambo, em 2Set74 e de Bambadinca e Xime, ambos em 9Set74.

Em 2Set74, após desactivação e entrega dos aquartelamentos de Bambadinca, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 1ª Comp, após efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CArt 3494 na região de Mansambo, sob orientação do BArt 3873, assumiu, em 9Mar74, a responsabilidade do subsector de Mansambo, tendo destacado um pelotão para Bambadincazinho, este no subsector de Bambadinca, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 22Ago74, dois pelotões seguiram para Porto Gole e destacamento de Bissá, a fim de substituirem a 1ª Comp/BCaç 4612/72 a partir de 26Ago74, os quais ficaram na dependência do BCaç 4612/74, procedendo depois à desactivação e entrega dos aquartelamentos de Bissá, em 1Set74 e de Porto Gole, em 2Set74, após o que recolheram a Bissau.

Em 2Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Mansambo, a companhia, então a dois pelotões, deslocou-se transitoriamente para Xime, recolhendo em 8Set4 a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 2ª  Comp, após efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CArt 3492 na região de Xitole, sob orientação do BArt 3873, assumiu, em 9Mar74, a responsabilidade do subsector de Xitole, com um pelotão destacado na ponte do rio Pulom, ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 1Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Xitole, seguiu para Bambadinca, onde substituíu a 1ª Comp/BArt 6523/73 na responsabilidade do respectivo subsector.

Em 8Set74, iniciou o deslocamento dos seus efectivos para Bissau e efectuou, em 9Set74, a desactivação e entrega do aquartelamento de Bambadinca, tendo recolhido a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

***

A 3ª  Comp cedeu, a partir de 5Jan74, um pelotão para reforço da 2ª Comp/BCaç 4512/72, o qual se instalou em Jumbembém. 

Em 11Fev74, a subunidade seguiu para Farim, a fim de efectuar o treino operacional com a CCaç 4944/73, sob orientação do BCaç 4512/72 e seguidamente reforçar este batalhão, a fim de fazer face ao agravamento da situação na sua zona de acção.

Em 23Mar74, mantendo-se no mesmo sector do BCaç 4512/72, foi toda colocada em Jumbembém, em reforço da actividade da guarnição local, tendo destacado um pelotão para Canjambari, também em reforço da guarnição local, de 23Mar74 a 2Jun74.

Em 6Jun74, substituindo a 1ª  Comp/BCaç 4516/73, assumiu a responsabilidade do subsector de Farim.

Em 7Set74, após desactivação e entrega do aquartelamento de Farim, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações -  Não tem História da Unidade.

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp.195/197. (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

 

 


Mapa geral da antiga província  portuguesa da Guiné (1961) > Escala: 1/ 500 mil > Posição relativa de Fajonquito, Canhámina e Cambajú, setor de Contuboel, na fronteira norte com o Senegal.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Cherno Baldé > Com cerca de 19/20 anos, em 1989, na Ucrânia, que então integrava a antiga URSS. Recorde-se que, ainda criança, a família de Canhámina para Fajonquito, em 1968, onde o pai era empregado da Casa Ultramarina.  Até à independênxia, passava os dias enfiado no quartel de Fajonquito. Aqui  aprendeu as primeiras letras. Sairá depois para Bafatá, onde fez o ensino secundário. Entre 1986 e 1989, foi estudante universitário, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia (1986-1989).


1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte III (*)



(vii) Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...


Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança,  não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel  de Fajonquito  estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.

Tcherno!... Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.

−  Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!... Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 

−  Um, dois, três!... Um, dois, Três!... À esquerda!... À esquerda!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!... Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.


(viii) O rabo de um macaco pode ser muito comprido 
mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado


Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se, pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto,  que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:

−  Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:

−  Eu sou!..


O Comissário perguntou-lhe:

− Tu és o quê?
−  Eu sou! − respondeu.
−  Tu és da FLING, não é? −  sugeriu o Comissário.
−  Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.





No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual,  estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:

−  Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... − .  E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que, alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. 

Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: "O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado".

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

Cherno Baldé

Bissau, Junho de 2010  (**)


[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Contimua)
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Notas do editor:

(*) Vd.postes anteriores da série


7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) > 9 de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC, e da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...É uma foto  histórica, em que se vê o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, então fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2005 (*)...

Foto (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Trinta e seis anos da "troca de bandeiras" , em 1 de setembro de 1974... Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o pau da bandeira; à esquerda as ruínas do forno de cozer o pão que fazia as delícias do "Chico, menino e moço"


Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2010).
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II (*)


(iii) A chegada dos guerrilheiros


Passaram-se dias e semanas e, quando menos se esperava, foi anunciada a chegada dos guerrilheiros que devia acontecer para os lados de Oio/Caresse, zona donde se esperava que viessem, naturalmente. Toda a aldeia saiu para assistir à chegada mas, era falso alarme. No sítio indicado não estava ninguém.

Passados alguns dias, foi feito o mesmo anúncio mas, já metade da aldeia estava na dúvida e preferia esperar pela confirmação. Desta vez, efectivamente, estavam lá e, não era do lado de Caresse (oeste) mas do lado sul (Bairro Mandinga de Morcunda), donde menos se podia esperar. Tratava-se de uma táctica da guerrilha, simples diversão ou prudência de quem ainda não acreditava na sua sorte? Talvez fosse tudo isso ao mesmo tempo.

Rapidamente a notícia correu pelas aldeias da redondeza, as pessoas afluíram em massa. Crianças, jovens, mulheres, velhos; todos queriam ver a gente do mato, aliás, os “bandidos” agora convertidos em heróis da libertação nacional. 

Depois de todas as campanhas de desinformação do regime colonial, o que vimos era simplesmente inacreditável. Afinal, eram pessoas normais, como nós, dos pés a cabeça. Não tinham rabos como os animais, nem chifres como imaginamos os diabos. Encontrámo-los, alguns sentados, outros de pé, dispersos debaixo da sombra das mangueiras. Cabeludos, magricelas, olhos vermelhos, uma expressão visual que se situava algures entre o homem e o animal.

Exceptuando as armas e os uniformes que traziam, eram exactamente iguais aos prisioneiros que tínhamos visto no quartel alguns anos antes (na altura a população civil era muito céptica quanto ao serem verdadeiros “Paigecistas” inclinando-se mais para a ideia de que seriam, quando muito, cortadores de chabéu, perdidos entre as remotas aldeias oincas no mato de Caresse).

Controvérsia à parte, aqueles prisioneiros, de facto, não estavam fardados e o aspecto esfarrapado, nauseabundo, mais metia dó que medo. Sempre que podíamos, metíamos algumas coisinhas por baixo das paredes de chapas que serviam de celas, com o nariz apertado entre os dedos. Porém, entre nós, nem todos partilhavam o mesmo sentimento e havia quem aproveitasse a ocasião para dar umas pisadelas nas mãos esfomeadas que apalpavam a terra e o ar à procura do abençoado pedaço de pão. Tinham fome.

  Quem são estes, os cubanos?  − perguntava alguém ao vizinho do lado. Sem resposta.

  São estes que nos metiam tanto medo!?  − comentou, incrédula, uma mulher fula que trazia ao colo uma criança, tendo no corpo apenas o pano amarrado até a cintura pondo a mostra os seios usados, elásticos, espalmados sobre o ventre (é uma pena o “nós Alfero Cabral” não ter passado por aqui).

  Não se iluda,  mulher, no mato, cada um destes bandidos vale por dez   explicou o Queta “chauffeur”, antigo companheiro do tenente Jamanca.

Os homens que se apresentaram eram poucos (um bigrupo?) e pareciam ser mais altos do que eram na realidade, como os corredores de fundo. O comandante era um homem de etnia mandinga, de meia-idade, alto e simpático que logo cativou as atenções, vindo a revelar-se um excelente orador.

Ele mudou os hábitos da aldeia. As suas reuniões de presença obrigatória não demoravam menos de 12 horas, o que lhe valeu a alcunha de Presidente Sékou Touré. Quando as pessoas eram convocadas, diziam às suas mulheres: “Mariama, prepare a comida de manhã cedo, porque vamos a reunião de Sékou Touré”. 

No decorrer das longas reuniões do Partido, aqueles que pediam para ir satisfazer algum necessidade fisiológica, mulheres inclusive, eram acompanhados por homens armados. Começávamos a colher os frutos da verdadeira independência bem à moda dos movimentos de libertação em África.

Os guerrilheiros usavam uniformes castanhos ou cinzentos (pontilhados de pequenas formigas pretas). Eram diferentes dos sarapintados que estávamos habituados a ver. Pareciam novos e os corpos magros, quase esqueléticos, particularmente dos fulas, nadavam dentro dos uniformes o que dava a sensação de que não estariam lá muito habituados a usá-los.

A maioria tinha nos pés sapatos de cor castanha, feitos de um tecido duro e resistente, amarrados com cordel. Eram leves e combinavam bem com a cor das fardas. Alguns deles usavam, ainda, plásticos simples comprados, talvez, no Senegal. Não havia muito rigor no fardamento. Os seus olhos, esses, eram muito vivos e penetrantes, em alerta permanente, com as armas ao alcance das mãos. Pela primeira vez, víamos com os nossos olhos, a famosa RPG7.


(iv) A atracção pela metrópole


Mais tarde, quando a retirada do que restava das tropas portuguesas já era iminente, um outro soldado, mecânico-auto, o Jorge, da companhia de Gadamael, ofereceu-me o livro que seria o primeiro da minha vida, cujo título era "Inglês sem mestre”,  sob um fundo de tiras azuis e vermelhas cruzadas.

Fiquei com vergonha de dizer que não o conseguia ler. Esta oferta tinha mexido comigo e tinha-me incitado a aprender a ler. Na época, não sabendo interpretar o seu conteúdo, ofereci-o ao meu irmão mais velho que estava mais avançado na escola e que o levaria consigo na sua primeira viagem de estudos a Portugal em 1980. Com ar muito triste e lamentando a nossa sorte, o Jorge disse-me naquele dia:

  Olha, Chico, nós vamos embora, os “turras” vão tomar conta disto e são capazes de matar a todos, se quiseres ir comigo eu falo com o teu pai.

  Não, nós vamos dar-lhes as nossas vacas e ficamos em paz  − respondi-lhe, rindo.

Não tinha reagido à sua oferta, como se não tivesse percebido, na realidade não estava interessado. Durante todo o tempo que passámos no quartel entre os portugueses, a informação que tínhamos da metrópole era muito escassa, dispersa, esporádica, idílica, feita principalmente de imagens de meninas brancas, cor da neve, anjos do céu, exibindo-se no jardim de Éden com os seus vestidos “volantes” (Cheira bem… cheira a Lisboa!), docemente embaladas pelo fado da Amália e o trepidante futebol do Benfica de Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra, mas era, apesar de tudo, um país de brancos.

A ideia de viver, de forma permanente, no meio dos brancos e suas esquisitices não me seduzia muito, pese o facto de gostar infinitamente dos seus frangos gordurosos, da batata inglesa, do bacalhau salgado e do cheiro dos chouriços vermelhos. (Alláh, o clemente e misericordioso, me perdoará por esta pequena fraqueza humana. ).

Mesmo supondo que eu quisesse ir,  de certeza que a minha avó não mo permitiria. Ela era o meu anjo da guarda e tinha horror aos soldados, com as suas orelhas vermelhas e seus modos libertinos. “Os brancos não respeitam a idade”, dizia. “Se não, como é que se explica que os chefes (os oficiais) sejam mais novos que os subordinados?”. A vista dos soldados, ela fugia e se entrincheirava dentro da sua palhota.

Entretanto, a sua neta, nascida em tempos de Guiné Melhor do seu único filho varão, passava horas a fio a namoricar, mesmo a porta, com um malandro de orelhas vermelhas que só aparecia envolto na escuridão da noite.

Mas, o verdadeiro motivo porque não fui tentado em viajar para a metrópole, estava ligado à forma de lá chegar. Tinham-nos informado, de fontes seguras, que a única forma de uma criança entrar no navio e fazer a viagem era estar metida dentro de um caixão como faziam com os periquitos ou outros animais de estimação. A minha ideia sobre o assunto era clara e firme. Viajar metido num caixão era não, nunca e jamais. Podiam ficar com todas as sardinhas da Europa.

No fundo, também, não acreditava muito nas afirmações do meu amigo Jorge,  pois os germes do nacionalismo que tinham conquistado terreno no inicio dos anos 70 e a propaganda que tinha antecedido a entrada do PAIGC já estava a fazer efeito na consciência de muitos guineenses que não estavam seriamente comprometidos com a guerra.

O meu caso não era isolado pois, mesmo entre as pessoas adultas e que tinham servido na guerra e estando agora desmobilizadas como o Mamadu Baldé (mais conhecido por Mamadu Senegal, antigo chefe de milícias, originário do Senegal, citado numa das narrativas de José Cortes), e muitos outros naturais da zona encontravam-se no meio das pessoas que foram receber os guerrilheiros, num ambiente de festa e confraternização.

Depois da primeira visita, vieram mais outros grupos vindos de outras “barracas” (acampamentos), recebidos sempre com o mesmo entusiasmo pela população civil e militares portugueses e, no meio disso tudo, podia-se notar um facto bem curioso, a meu ver. Pela forma como os recebiam e se congratulavam, trocando pequenos presentes e “lembranças”, os soldados portugueses pareciam muito mais satisfeitos com o fim da guerra do que os guerrilheiros.

Talvez pela primeira vez na história dos conflitos armados, um dos beligerantes que, para todos os efeitos, tinha perdido a guerra, parecia estar feliz por não ter vencido. Era compreensível mas nem por isso deixava de ser intrigante.

Na minha infância, havia duas classes de pessoas as quais nutria uma grande admiração e cujo meio frequentava com muito gosto: Era a dos atletas/lutadores tradicionais (habitualmente fulas pretos) e a dos soldados (de todos os tipos), ambos apresentando características muito semelhantes no que se refere ao seu comportamento: Irreverência congénita, ousadia e provocação, ausência de pudor e inclinação para violar regras sociais pré-estabelecidas e/ou velhos tabus, a fraqueza pelas mulheres e sobretudo a predisposição constante para criar situações ridículas, hilariantes.

Lembro-me, a propósito, de uma conversa entre dois milícias em que um deles explicava ao outro, de forma convincente, que aos brancos não lhes interessava o fim das guerras, de todas as guerras e, acrescentava:

- Na terra deles há uma coisa pequena do tamanho de uma agulha que era capaz de arrasar todo o território da Guiné e matar todos os terroristas num abrir e fechar de olhos.

Agora, eu sei que ele se referia as trágicas bombas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki. O segundo milícia, mais lúcido, tinha replicado ao primeiro:

- Deus nos livre, se isso acontecesse, tu ias esconder o teu traseiro fedorento onde, na cova de um porco-espinho?!

Perante a gargalhada geral dos presentes, a conversa que tinha começado de forma amena, terminara em pancadaria. Quem teria razão?


(v) A (mu)dança das bandeiras

Na manhã do dia 1 de Setembro de 1974, os poucos soldados que ainda estavam 
presentes (um pelotão da 2ª CCaç / BCAÇ 4514/72,, perfilaram no centro do aquartelamento para cumprir o último acto militar da entrega do quartel de Fajonquito. De um lado estavam os portugueses, doutro, os guerrilheiros. Frente a frente, pela última vez. Todos fardados com rigor. Cada grupo com a sua bandeira. As cores não eram muito diferentes, vermelha, verde e amarela. Só divergiam nos motivos, na origem e no destino. Os “ex-bandidos” também estavam distintos nesta derradeira cerimónia de passar o testemunho.

Notava-se que na fila dos portugueses, não havia muita diferença, pareciam ter sido escolhidos a dedo, altura mediana. Já do lado dos nossos, a disparidade era gritante, enquanto uns eram baixinhos, outros eram desmesuradamente altos. Como na música e na dança, na África tropical a desordem é só aparente.

Da boca do oficial saíram, de forma vigorosa, os “firme” e “ombrós-arma”, acompanhados de movimentos da tropa a condizer, a corneta soou estridente seguida pelo coro dos cães da aldeia em protesto, as armas foram apresentadas a altura dos peitos soerguidos. 

Primeiro, arriaram a bandeira portuguesa, lentamente no início, mas quando ia quase a meio do percurso, contrariando o ritmo habitual, com largos esticões o soldado fê-la cair rapidamente, atirando o pano em cima dos ombros, enquanto desfazia o nó. O gesto denunciava alguma impaciência. Depois, foi a vez da nova bandeira subir e flutuar ao vento. Garanto-vos que estávamos ansiosos e orgulhosos.

O guerrilheiro encarregue do acto deu dois passos a frente, encaixou a bandeira na corda e puxando uma das pontas, fê-la subir, normalmente. E quando estava quase a chegar ao topo, por qualquer razão, estas se emaranharam entre si deixando a bandeira presa, não podendo subir nem descer. Foi precisa uma pequena ajuda do soldado português para acabar com a trapalhada das cordas e terminar, finalmente, com a parada (seria isto um sinal para o futuro?).

Depois houve uma troca de apertos de mãos de parte a parte. Havia uma pequena assistência de populares do lado de fora dos arames farpados. Não tinham sido convidados.

Olhando para trás no tempo, esta cena onde uma dúzia de soldados está perfilada frente a frente, procedendo a passagem simbólica do poder de uma terra que tinha sido administrada durante muitos anos por militares, na ausência de qualquer autoridade ou representantes da sociedade civil, desperta em mim, pouco a pouco, a sensação de que a Guiné, a nossa querida Guiné, de facto, não tinha sido preparada para viver sob um regime civil com base em princípios de governação democrática.

Por outras palavras, a população da Guiné foi, e durante muito tempo, preparada para conviver com as ditaduras militares. Não surpreende muito, a ordem da sucessão parece inequívoca. De distrito militar repressivo (princípios do século XX), o território passou para uma província militarizada e em guerra (1963/74) e desta seguimos directamente para uma ditadura de guerrilheiros impreparados, ávidos de poder e sedentos de sangue. 

Não existe e nunca existiu uma tradição de poder civil, situada acima dos grupos étnicos. Neste aspecto, em particular, as ex-colónias francesas estavam ou ainda estão a milhas de avanço. As imagens filmadas sobre as independências desses países são disso um facto bastante revelador, pondo de parte o caso da Algéria.


(vi) Os meus amigos guerrilheiros, balantas


Foi preciso esperar pela terceira vaga de guerrilheiros, sempre em bigrupos, para finalmente conseguir fazer alguma amizade. Eram dois combatentes de etnia Balanta, naturais de Banta (região de Quinara), o Dinis e o Marcos. Pelo menos é o que me tinham dito.

Se os portugueses me tinham ensinado as primeiras letras de forma desinteressada, foi com esses jovens Balantas que acabei por assumir a real necessidade de aplicar-me aos estudos a fim de melhor poder contribuir para a construção da nossa Pátria (um vocábulo novo, com consonância especial, na altura).

Com os soldados portugueses tinha começado a moldar um instrumento, uma ferramenta de pesquisa e de trabalho mas foram estes guerrilheiros do PAIGC, esfarrapados e desnutridos que, imbuídos do espírito genuíno de libertação e emancipação de todos os povos da Guiné sem distinção, na altura, me ajudaram na definição do objectivo da minha escola. O que antes era longínquo e desconhecido, passou a ser conhecido e desejado.

Em casa o meu pai recebeu-os efusivamente, tirando o chapéu da cabeça e curvando-se em sinal de respeito antes de lhes apertar as mãos, como sempre fazia diante das autoridades. O Dinis, calma e serenamente, explicou-nos que estes gestos já não se justificavam pois, todos eles eram filhos do povo.

 Nós lutamos para acabar com a humilhação do nosso povo em geral e dos nossos pais em particular, homens e mulheres, foi isso que Cabral nos ensinou e é isso que vamos transmitir aos nossos irmãos mais novos.

Ele falava olhando para mim, meigamente.

Na estrutura militar dos guerrilheiros, havia o comandante e o adjunto do comandante, mas a partir dali já era difícil descortinar a sequência hierárquica, tanto para cima como para baixo na cadeia. Eram sinais de uma desordem latente donde podia nascer a anarquia que viria ao de cima, anos depois.

O Dinis era um combatente simples, um aldeão que, não sendo muito instruído era relativamente bem informado sobre as ideias e conceitos políticos da época. As suas palavras eram simples e claras e com ele iniciei a minha aprendizagem na escola do pensamento polítíco que começava com Cabral e terminava em Marx e Engels ou vice-versa.

Nesta viagem de iniciação político-ideológica, o Lenine era a criança prodígio que tinha encontrado o livro de um velho sábio (Marx) e graças ao qual ele tinha revelado ao mundo as ideias revolucionárias de como tornar o mundo mais justo, mais progressista, apesar das contrariedades criadas pelas forças reaccionárias da direita capitalista (os demónios). “Foram as ideias contidas nesse livro antigo que, também, permitiram a libertação do nosso povo, através de Amílcar e seus companheiros”, concluía Dinis.

No entanto ele não sabia dizer se, eventualmente, Cabral teria encontrado com o jovem Lenine, quando foi a Moscovo, à procura de tais ideias. Ele se defendia, dizendo: “Tu és jovem e já bastante avançado na escola, depois, quando fores para a União Soviética, perguntas a eles para saber, eu não sei, não estive lá, sou um simples combatente”.

Saberia mais tarde que Cabral tinha nascido no ano de 1924, no mesmo ano em que morria o líder dos sovietes, o Lenine. O mais importante aqui não era a forma mas sim o conteúdo.

A passagem dos guerrilheiros por Fajonquito foi breve, mas antes de partir, desmantelaram completamente o quartel, onde nunca chegaram a se instalar verdadeiramente, seja pelo pobre número de efectivos ou por outras razões desconhecidas. A atenção estava, sobretudo, concentrada sobre Canhámina e os caminhos de acesso à fronteira com o Senegal.

Quanto ao resto, os olhos atentos dos comissários políticos se encarregariam de velar. O fim do quartel representou, para a aldeia, o inicio da escuridão, a noite, com o desaparecimento do único grupo gerador da localidade. Ninguém tinha pensado nas consequências, aliás, nem sequer tinham dado à população a possibilidade de pensar.

Mais tarde soube que o Dinis e o Marcos se tinham voluntariamente desmobilizado e regressado para a sua aldeia natal onde continuariam a trabalhar com os jovens da sua tabanca, ajudando na recuperação das bolanhas abandonadas durante a guerra e continuando a sensibilização dos mais novos sobre os ensinamentos de Cabral no meio de histórias da luta de libertação nacional para a qual tinham dado o melhor da sua juventude.

No ano seguinte, após ter concluído o ensino primário, eu cumpriria a promessa feita ao Dinis de continuar os estudos na cidade, mais precisamente no ciclo preparatório de Bafatá,  que tinha sido aberto poucos anos antes. Já não era somente a fome e a batalha pelo reconhecimento do grupo que me impeliam para a frente mas, também, a fome pelos livros, pelo saber, pensando, no meu íntimo que a única forma de voltar a reencontrar os meus divertidos e irreverentes amigos brancos era pela via da escola.

Antes porém, de fazer a minha primeira viagem a Europa em 1985, mais precisamente à URSS, tinha ido à tabanca de Banta, no sector de Empada, à procura dos meus velhos camaradas de 1974. Na localidade, esperava-me uma pequena surpresa, pois, ninguém se lembrava dos antigos combatentes do PAIGC com os nomes de Dinis e/ou Marcos.

Penso que teria acontecido uma dessas práticas muito comuns entre os Guineenses das zonas rurais, de usar nomes (cristãos, logo civilizados) fabricados para o momento e a ocasião,  aos quais podiam livrar-se mais rapidamente que um camaleão muda as suas cores.  Na aldeia, teriam voltado aos seus verdadeiros nomes da terra, ocupando os assentos que as suas idades sociais lhes reservavam dentro da comunidade (que não coincidiam necessariamente com a idade biológica), animando as festas dos “ irãs” que habitam os grandes poilões da floresta sagrada do sul.

No caminho de regresso à cidade, perguntava-me a mim mesmo se eles existiram de facto ou se tudo não passara de pura imaginação do espírito fértil de uma criança que queria acordar cedo demais?!

Fajonquito, 17 de Junho de 2010

Cherno Baldé (**)

[ Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Continua)

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