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sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20088: Manuscrito(s) (Luís Graça) (169): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte I - O rio Grande...



Lourinhã > c. 1940 > Ponte sobre o Rio Grande, na avenida de António José de Almeida... Foto (ou coleção) de Francisco Fernandes. Cortesia da página no Facebook Lourinhã noutros tempos, mantida pela ADL - Associação para o Desenvolvimento da Lourinhã.



Manuscrito(s) (Luís Graça) Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares > 

Parte I: O rio Grande



Da serra, azul, de Montejunto às dunas da Praia da Areia Branca,  corria o rio, Grande, da tua infância.  Era grande só de nome,  era grande à tua escala, quando eras menino e moço,  e nele brincavas, apanhando enguias, com o teu pai...

Lembras-te ?  Usavam um velho chapéu de chuva, preto, esburacado, como se fosse um camaroeiro.

Só era verdadeiramente grande quando violento,galgando casas e campos,  o rio, Grande, da tua infância.

Até Deus ficava isolado na igreja do convento,  Deus, os presos da cadeia comarcã e a mestre escola e as bancas de peixe e hortaliça do mercado municipal e o matadouro e o quartel dos bombeiros.


Nos dias de inundações e enxurradas,  fazia se gazeta à escola, à catequese e à missa, e era uma festa para os putos. Tomara que chova três dias sem parar!, cantarolava a miudagem em coro...

Lembras-te como era larga a foz do rio e grandes as férias grandes de verão, uma eternidade, duravam enquanto durasse o pião.

E havia uma ponte de madeira, com as Berlengas, ao largo, e o cabo Carvoeiro, ao fundo, e, mais longe ainda, onde o sol se punha, o mar, medonho, revolto, dos teus avoengos,  desaparecidos entre as brumas da memória das Índias e dos Brasis, e o cacimbo matinal das bolanhas das Guinés.

Talvez houvesse, também, senhoras de chapéu alto,  magras, elegantes, citadinas, lisboetas, passeando em barcos a remos e fumando, imagina!,  cigarros de boquilha.  Já não te lembras dos barqueiros, passados todos estes anos. Mas devia haver barqueiros, no rio, Grande, da tua infância, como no rio Sena, em Paris,  e nos quadros do Renoir.

Dizem que os vivos voltam sempre ao local do crime onde nasceram e viveram. Mas um dia o tsunami do esquecimento  irá varrer a tua praia, as tuas dunas, o teu rio, o adro do recreio da tua escola, a tua rede neuronal, o teu álbum de fotografias, amarelecidas, dos rios  Geba e do Corubal, e os lugares da infância onde tu poderias ter sido feliz.

Mas quem sabe se foste feliz ou se poderias tê-lo sido ? Felizmente que não há escalas de medição da felicidade, válidas e fiáveis, e esse exercício é uma pura inutilidade,  o das palavras cruzadas da felicidade.

Dizia-se que o rio, Grande, da tua infância era navegável no tempo dos fenícios, romanos, visigodos, mouros e francos, mas não era rio, era braço de mar, indomável, braço armado do terrível poder de ditar as leis da vida e da morte, de fecundar a terra, de lavrar o mar, de povoar os vales e os cabeços, e de semear os cemitérios.

Nasceste a ouvir o mar, o barulho do mar e dos moinhos de vento que te deixaram os árabes, dizem uns, ou os flamengos, dizem outros, não sei o que está inscrito no teu ADN, mas se Deus te marcou é porque algum defeito te achou.

Batizaram-te cristão, na pia da igreja, gótica, do castelo, que foi românica,  e como antes terá sido mesquita mourisca ou capela visigótica, e, muito antes ainda, templo romano ou anta, dólmen, menir.

Perdeste-te, por amores e guerras, no caminho sul de Santiago e chamaram Grande ao rio da tua infância.

Em noites de pavor palúdico, na Guiné, imaginavas-te numa piroga louca, à deriva, pelo rio Grande de Buba das tuas geografias emocionais.

Nascia, pensavas tu, em Montejunto o rio, Grande, da tua infância,  e era azul a serra, vista do mar.  Mas tu nunca soubeste, em menino, o que ficava por detrás do horizonte. Por detrás de uma serra ficava outra serra, explicava-te a senhora professora de geografia, da 4ª classe e do exame de admissão ao liceu.

Era curto o horizonte dos meninos da tua rua, a rua do Castelo que terminava no cemitério, o terminal da morte. Nunca foste, na camioneta do João Henriques, espreitar o que ficava por detrás da serra de Montejunto.  De um lado o mar, que era muito maior que o pobre rio, Grande, da tua infância; e do outro a silhueta, azul, da serra, pontuada de moinhos brancos.

Que afinal não era tão alta, a serra, como tu a vias da torre de menagem dos teus castelos de brincar às guerras de mouros e cristãos. Ou quando ias pescar enguias no rio, Grande, da tua infância.

Hoje sabes que já não há enguias no teu rio e que tudo é à escala  do nosso infinitamente pequeno e humano. E que só Alá, dizem, é grande.

Lourinhã, 10 de maio de 2015. Revisto.

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20085: Manuscrito(s) (Luís Graça) (168): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (X e Última Parte - De 91 a 100 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 22 de abril de 2017 > Frente à igreja do convento de Santo António (finais do séc. XVI), com a sua torre sineira e o relógio (que esteve muitos anos avariado),  uma réplica de "Stegosaurus" (7 m de comprimento, 3,4 de altura)... Este e outros dinossauros da Lourinhã evoluiram  no Jurássico  Superior (c. 150 milhões de anos).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Cadaval > Vilar > Vila Nova > Serra de Montejunto > 20 de agosto de 2015 > O belíssimo  moínho do Miguel Nobre, no alto da serra... Dizem que é que é "o mais alto" da península ibérica, dos moinhos ainda a funcionar.

Daqui tem-se uma vista fantástica sobre o mundo, ou pelo menos sobre o meu/nosso oeste estremenho, do rio Tejo à serra de Sintra, o oceano Atlântico, as praias de Torres Vedras, Lourinhã, Peniche,  as Berlengas, a Serra dos Candeeiros... Está-se mais perto do céu e eu, da minha infância onde havia muitos moinhos e cabeços. Mas o mais fascinante é o moinho, o moinho de Aviz, e o seu dono, sem esquecer naturalmente a serra de Montejunto e os seus miradouros. O moinho, que ostenta o símbolo Aviz nas suas velas, estava em ruínas há uns anos atrás,  foi reconstruído e é hoje uma beleza de se ver... Tudo somado, ficou-lhe em cerca de 200 mil euros, o preço na altura de um bom apartamento em Lisboa... Infelizmente, mais recentemente o Miguel teve um AVC... Está recuperar e a lutar contra o infortúnio. O amor aos moinhos de vento tem-no ajudado a superar este problema de saúde. Um grande abraço para ele e para os meus amigos do Cadaval, Céu e Joaquim Pinto Carvalho,  que lá me levaram.

 Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]

Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]

91. O chiqueiro, o quinteiro, o curral, mais as galinhas, os pintos, os perus, os coelhos, os patos, os gansos, a coquicha, a galinha pedrês não-a-mates-nem-a-dês, a retrete de madeira, na casa dos teus tios do Nadrupe, as batatas comidas em comum, numa travessa que tinha um cavalinho ao meio, e que ainda não era o cavalo da GNR, louça de Sacavém, barata, para o povo, o terceiro estado, o mísero estado.

E nada de alvoraçá-lo, sangrai-o e sangrai-o e, se morrer, enterrai-o.

92. O vinho dava de comer a um milhão de camponeses que eram todos os habitantes da tua aldeia.

Lembras-te de vomitar a ceia, em dia de matança do porco, quando o teu pai chegou, à noitinha, de motorizada, a anunciar a vinda de mais um herdeiro, o terceiro, era menina e chamava-se… Inha.


93. Se havia uma idade da inocência era quando se subia à portentosa figueira da ti Elvira e do ti Manel da Quinta, da Quinta do Bolardo, e se partia a cabeça, e se descobria o sangue, não o de Cristo, mas o teu sangue, que não era frio e azul, era espesso, quente e vermelho.

Faziam inocentes tropelias, brincavam aos índios & cobóis no meio da vinha do Senhor, tomavam banho, nus, nas tinas de fazer o vinho, os meninos do campo e da cidade, da vila e da aldeia, e dormiam com primas mamalhudas em camas de ferro e colchões de palha e travesseiros de barbas de milho.


94. Até um dia em que no calendário deixou de haver o domingo à tarde, e o cão a uivar na vinha vindimada do Senhor, morreu o ti Silvano, de morte súbita, assim de repente, em plena força da vida, sem tempo para chamar nem o médico nem o padre, muita saúde, que Deus não dava tudo!, ameaçava o coadjutor do padre vigário, e confirmava o facultativo, o doutor das Beiras, que veio casar com a menina rica da tua aldeia.

95. Lembras-te dos gritos lancinantes das mulheres, das tias, das primas, da tua mãe, o último adeus, o muro rente do cemitério, as campas rasas dos fiéis defuntos, as cruzes de latão, as flores murchas, o talhão dos anjinhos que iam para o purgatório!... Tu, sem deitares um lágrima, siderado, colado ao chão!

Ainda não havia flores de plástico, nem muito menos sabias tu o que era a morte, só a do porco, e Deus era pai, infinitamente misericordioso, e o padre vigário (que sucedeu ao que te batizara na igreja do Castelo,) tinha para tudo uma explicação, até para o absurdo da vida e da morte dos pobres de Cristo, da morte dos tios queridos em plena força da vida, ou para a dor das pobres crianças inocentes, e que nem batizadas tiveram tempo de ser, a não ser talvez pela parteira aparadeira, a verdade é que tu nunca mais foste capaz de lá ir à noite brincar, para o adro da igreja do Castelo, ao lado ao cemitério, que bastava o sinistro pio da coruja, no alto da torre sineira, e os fogos fátuos de verão, para o sangue nas veias te gelar!


96. Deixou de haver domingo à tarde, e a inexplicável magia da infância, bordaram-te o enxoval, as meninas da rua do Clube, uma rua abaixo da tua, aos serões, as meninas do ti Louçã, que era pintor de portas e janelas, tetos, paredes e tabuletas, as meninas costureirinhas, tuas vizinhas, meteram-te na camioneta dos Capristanos, nunca soubeste quem, com destino ao seminário de Santarém, antigo palácio real, medieval e depois colégio dos jesuítas, tu e o teu baú, terrivelmente sozinho ante os dilemas da fé, da vida, da carne, do pecado, da morte, da ressurreição e do esplendor da vida eterna, amén!, ali especado, aterrorizado, num corredor pavorosamente alto e comprido, mais alto e mais comprido do que a tua rua dos Valados, e as paredes cobertas de retratos de reis e rainhas e de azulejos com contavam histórias que só podiam da ser da bela vida que levavam os reis e as rainhas, entre caçadas e danças palacianas.

97. Lá atrás ficava o mar, a Atalaia e o Mont’oito, a P’ralta, a Areia Branca, o Porto das Barcas e os casais de Porto Dinheiro e a Ribamar dos teus antepassados Maçaricos, e os fantasmas dos corsários que infestavam a costa, assaltavam, roubavam, violavam, matavam, queimavam, faziam reféns, para trás ficava o relógio, sonolento, da torre da igreja matriz, a vinha vindimada do Senhor, o piar da coruja, os fogos fátuos, os terrores do inferno e da castração, e os sardões que se apanhavam com anzol e pedaços de pão embebidos em leite na parede do cemitério, restos da antiga muralha do castelo que fora alcáçova e antes castro ou dólmen ou promontório.

E a história era isso: sedimentos e sedimentos sobrepostos, o pouco que restava da passagem de tantos povos que se matavam e enterravam uns aos outros.

98. E as primeiras beatas fumadas às escondidas, e os putos todos em fila a mijar contra a parede do cemitério, e a medir o tamanho das pilas, e os primeiros nomes das putas da tua terra, segregados ao ouvido pelos mais velhos, o "Frasco do Veneno", que era teu primo, em segundo grau, e que há emigrar, sem retorno, para o Brasil, e que te ensinou todas as asneiras do teu vocabulário de carroceiro, cada uma custando-te depois muitos valentes puxões de orelhas da tua mãe, e um ror de rosários, avé-marias, padre-nossos, e salvé-rainhas, pesado castigo do teu confessor.

99. E o moinho do T’chico Moleiro e os ventos que sopravam nas velas e nas cabaças, numa sinfonia agoirenta, e a amante do moleiro que vigiava os putos que lhe iam roubar as pêras, as uvas e as ameixas, o terror e a magia, enfim, das pequenas e grandes coisas da vida quando já se tem dez anos feitos, a 4ª classe e o exame de admissão ao liceu.

100. Levaste contigo a tela do Brugel , o Velho, como se fora uma cruz, pesada, tê-la-ás perdido para sempre quando te sentiste estrangeiro como o Camus, na tua própria terra. 


Ou então, deixa-me adivinhar: enterraste-a, definitivamente, na guerra, lá nas bolanhas ou na florestas-galeria da Guiné, entre os mais pobres dos pobres, os teus camponeses fulas pretos da Guiné.

Ou talvez nem isso: nunca te libertarás dela, dessa tela da infância, um caleidoscópio cheio de pictogramas, a não ser talvez através do exorcismo da memória e da escrita.

Fim


Lourinhã, 10/11/2005. Revisto.


_________________

Nota do editor:

(*) Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)

20 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20077: Manuscrito(s) (Luís Graça) (166): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VIII - De 71 a 80 de 100 pictogramas)

21 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20082: Manuscrito(s) (Luís Graça) (167): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IX - De 81 a 90 de 100 pictogramas)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20053: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte II: O meu curso de oficiais milicianos (pp. 17-26)


Encosta sudeste da serra de Montejunto, que subi desde o sopé até ao cume nas circunstâncias descritas no texto.


Fotos (e legendas) : © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fernando de Sousa Ribeiro:

(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

 (iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado;

(v) vive no Porto;

(vi) também gosta de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(vii) tem página no Facebook.

(viii) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974. Esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes. Pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo. As outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu).




Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar)(*)

por Fernando de Sousa Ribeiro

(Continuação, pp. 17-26)


A semana de campo teve lugar na região envolvente da serra de Montejunto e incluía uma subida ao alto da serra no último dia. A cada dia da semana de campo, o alferes nomeava um soldado-cadete diferente para "comandar" o pelotão, isto é, para treinar o comando de um pelotão sob a supervisão dele. 

No primeiro dia, o alferes disse: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Fulano» (não era eu). No segundo dia: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Sicrano» (também
não era eu). No terceiro dia: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Beltrano» (continuava a não ser eu). E assim sucessivamente, até que chegou o sétimo e último dia e o alferes disse: «Hoje, quem vai "comandar" o pelotão vai ser o sr. Ribeiro». Tinha chegado a minha vez. Esperei o pior.

Anunciava-se um dia extraordinariamente quente, como se veio a confrmar. «Até o S. Pedro está contra mim», pensei. Mas a manhã passou-se sem novidades de maior. Eu, pelo menos, não me lembro de ter acontecido algo de especial. À tarde, pelo contrário, o caso mudou completamente de fgura.

Depois de termos almoçado (ração de combate, é claro), dirigimo-nos para a encosta sudeste da serra de Montejunto, a fim de subi-la a corta-mato até ao cimo. Tínhamos que vencer um desnível de 600 metros na vertical, às duas horas da tarde, quando o calor era mais forte e o sol, bem alto no céu, era mais escaldante. Encharcados de suor, a ponto de termos as fardas molhadas e coladas ao corpo difcultando os movimentos, e bebendo sofregamente a água que levávamos nos cantis até ela se
esgotar, subimos penosamente a serra, passo a passo, quase fazendo alpinismo. 

A meio da subida, ouviu-se uma voz:
— Meu alferes, não aguento mais! Não sou capaz de subir mais. Estou completamente esgotado!

Era um soldado-cadete açoriano que pesava mais de 90 quilos que tinha falado, quase a desfalecer. Depois de ter incitado o soldado-cadete a continuar a subida, sem resultado, o Lourenço virou-se para mim e ordenou-me:
— Sr. Ribeiro, ajude o seu camarada! O sr. Ribeiro é que é o "comandante" do pelotão e um comandante não pode deixar nenhum homem para trás. Vamos! Do que é que está à espera?! Não podemos ficar aqui parados!

Tirei a arma e a mochila ao açoriano e, quando me preparava para entregá-las a outros soldados-cadetes para as levarem, o alferes interveio:
— Não, não! O sr. Ribeiro é que vai levar a arma e a mochila e vai ajudar o seu camarada a subir!

Fiz então um dos maiores esforços de toda a minha vida. Só em Angola, durante as operações em Zemba, é que fiz esforços equivalentes. Com duas armas ao ombro e duas mochilas às costas, reboquei literalmente o gordo açoriano pela encosta acima, debaixo do sol implacável daquele dia escaldante de verão. Eu, que não tinha sequer cinquenta quilos de peso, transportei pelo Montejunto acima um peso que era duplo do meu próprio. Eu via tudo vermelho e sentia tudo a andar à roda. O ar escaldante que eu inspirava às golfadas pela boca aberta parecia não ser suficiente para me encher os pulmões. O meu coração batia a um ritmo alucinante. A boca, completamente seca por já ter bebido a água toda que havia no cantil, sabia-me a papel de música. Pensei: «Se eu não morrer agora, nunca mais morro; sou eterno». 

E continuava a subir, mecanicamente, pondo um pé à frente do outro, sem ver nada, a não ser vermelho, e sem sentir nada, a não ser o peso do camarada açoriano e das mochilas e das armas que eu trazia. No preciso momento em que esgotei todas as minhas forças e me senti desfalecer, com os joelhos a dobrar-se, alguém me disse:
— Já chegamos ao cimo. Não precisas de puxar mais.

Foi então que reparei que já não sentia o peso do açoriano, que me tinha largado a mão. Parei. Voltei a ver. Recuperei a consciência de onde estava e do que fazia, isto é, recuperei totalmente os sentidos. Eu tinha acabado de atingir o limite mais extremo das minhas forças. Mas tinha conseguido! Estava no alto da serra, onde uma brisa fresca me reanimava. Se o Lourenço esperava vergar-me e obrigar-me a pedir-lhe perdão, enganou-se. Não cedi, não dobrei, não fraquejei. Mantive o meu orgulho
intacto.

Entreguei a arma e a mochila ao açoriano, que já podia deslocar-se pelos seus próprios meios, pois agora iríamos seguir por um caminho horizontal, e o Lourenço conduziu o pelotão para o interior de um pinhal, que havia um pouco mais para diante e para baixo. Mal chegámos ao pinhal, atirámo-nos logo todos para o chão, ompletamente esbaforidos. Gritou-me o alferes:
— O sr. Ribeiro não pode descansar! O sr. Ribeiro tem muito que fazer! O sr. Ribeiro vai encher os cantis dos seus camaradas numa fonte que há lá adiante, ao pé dos radares da Força Aérea. E vai a pé! Vai e vem as vezes que forem necessárias até que todos os seus camaradas tenham os cantis cheios.

A fonte fcava a cerca de 500 metros do local em que nos encontrávamos. Estava eu a recolher os primeiros cantis dos meus camaradas, para os levar à fonte, quando chegou a minha salvação, sob a forma de um major ao volante de um jipe.

Era o comandante do batalhão de instrução que chegava. Depois de ter trocado algumas palavras em voz baixa com o alferes, o major perguntou a este o que é que eu estava a fazer. O alferes disse-lhe que eu estava a recolher os cantis do pelotão para ir enchê-los à fonte.
— E vai a pé?! — perguntou o major.
— Claro — respondeu o alferes. — Vai as vezes que forem necessárias.
— Não vai nada a pé — retorquiu o major. — Vai comigo no jipe.

Virando-se para mim, disse o major:
— Nosso cadete, recolha os cantis todos e ponha-os aqui no jipe. Vamos à fonte num instante encher isso tudo.

Depois de eu ter colocado os cantis no jipe, o major mandou-me subir para a viatura e fui com ele encher os cantis na fonte. Finalmente pude descansar um bocadinho, sentado no jipe! E que bem me soube a água da fonte, tão fresca e tão saborosa!

Quando acabamos de encher os cantis, o major disse-me:
— Esta madrugada, o pessoal todo vai fazer um "golpe-de-mão", para concluir a semana de campo, e você é que vai comandá-lo.
— Eu?!!! — exclamei, espantado.
— Sim, você — confrmou o major. — O nosso alferes Lourenço propôs-me o seu nome e eu aceitei. Para mim, é completamente indiferente. Tanto me faz que seja você ou outro qualquer.

E acrescentou:
— Mas primeiro vamos levar os cantis. Depois tratamos do "golpe-de-mão".

Entregues os cantis aos seus donos, o major e eu fomos no jipe até ao local previsto para o "golpe-de-mão". À chegada, estavam à nossa espera os comandantes das duas companhias de instrução do 2.º ciclo do COM (a 2.ª e a 4.ª companhias), mais um ou dois oficiais que me eram desconhecidos e de cujos postos já não me lembro.

Diante de nós estava uma aldeia abandonada, situada num recôncavo da serra que era muito grosseiramente circular. Disse-me o major:
— Esta madrugada vamos fazer um "golpe-de-mão" a esta aldeia. Dentro dela vão estar alguns soldados da EPI [Escola Prática de Infantaria], que irão fazer de inimigo. Você vai ter à sua disposição oito pelotões, quatro de cada companhia, que irão desencadear o "golpe-de-mão". Você vai ter que reservar um pelotão para fazer o "assalto" ao objetivo, mais um pelotão que deverá fazer a "proteção" à retaguarda. Os outros seis pelotões farão o que você melhor entender. Você é que vai determinar que papel é que eles irão desempenhar. Fica ao seu critério.

Apontando para a aldeia e zona envolvente, o major acrescentou:
— O cenário em que tudo se vai desenrolar é este. Agora você vai decidir que dispositivo é que quer montar para a "operação".

Armado em Napoleão seguido pelos seus ajudantes de campo, avancei para o alto de um monte, dos vários que envolviam a aldeia, a fm de observar melhor o terreno. Como eu disse, a aldeia fcava num recôncavo vagamente circular, o qual estava rodeado por algumas cristas de montes pouco elevados. Os montes eram pouco elevados mas, mesmo assim, dominavam o recôncavo e cercavam-no. Entre dois desses montes havia uma espécie de vale, por onde passava a estrada que conduzia à aldeia.

Disse eu ao major:
— Eu proponho que se faça um cerco à aldeia.
— Porquê? — perguntou o major.
— Porque o terreno é favorável a um cerco e assim apanhamos o inimigo todo dentro do objetivo, sem lhe dar hipótese de escapar — respondi.
— Muito bem. — disse o major — Faz-se então um cerco.

E perguntou:
— Concretamente, onde é que vão ser colocadas as nossas forças e a partir de onde é que vai ser desencadeado o "assalto"?

Eu pensei em voz alta:
— O "assalto" deverá ser tão rápido quanto possível, para apanhar o inimigo de surpresa.

E decidi:
— Acho que vou lançá-lo a partir daquele vale, por onde passa a estrada. Ali, praticamente não há obstáculos à progressão das nossas tropas, que assim poderão entrar no objetivo e "apoderar-se" dele rapidamente, sem dar tempo ao "inimigo" para reagir.
— Muito bem, sim senhor! É isso mesmo. — comentou o major com evidente satisfação. — Então é ali que o grupo de "assalto" vai fcar. E quem é que vai desencadear o "assalto"?

Respondi:
— Proponho que seja o pelotão do CCC.

O pelotão do CCC  (Curso de Comandantes de Companhia) era o pelotão dos futuros capitães milicianos, onde estava o Antunes [, futuro cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes, o último comandante da CCAÇ 3535].
— Há alguma razão especial para ser esse pelotão a fazer o "assalto" e não outro? — perguntou-me o major.

 Respondi:
— Há, sim, senhor. Como eles vão ser comandantes de companhia, e nessa qualidade vão ter responsabilidades acrescidas no futuro, precisam de ter uma preparação mais cuidada e, portanto, deverão desempenhar o papel mais importante nesta "operação".
— Muito bem, sim, senhor! É isso mesmo! — exclamou o major. — E quem é que vai
fazer a "proteção" à retaguarda?
— A "proteção" à retaguarda poderá ser feita pelo pelotão menos operacional, pois em princípio não deverá intervir no "golpe-de-mão". Proponho que seja o quarto pelotão da 4.ª Companhia.

O quarto pelotão da 4.ª Companhia era composto por soldados-cadetes que estavam destinados a ter diversas especialidades não operacionais ou pouco operacionais.
— Sim, senhor. Muito bem. E onde é que os vai colocar?

Aqui eu hesitei. Pensei em espalhar o pelotão pelas cristas dos montes, mas virado para fora. Reparei no entanto que não fazia muito sentido fazê-lo pois, se eventuais "reforços" "inimigos" vindos do exterior "atacassem" algum dos montes pela retaguarda, estariam em desvantagem logo à partida, pois estariam a "atacar" de baixo para cima. Certamente não fariam tal. O que fariam com certeza, seria "atacar" pelo ponto mais vulnerável, que era o vale por onde passava a estrada de acesso à aldeia e onde eu tinha colocado o pelotão de "assalto".

Disse isto mesmo ao major, acrescentando que colocaria o pelotão de "proteção" virado para fora e protegendo as costas do pelotão de "assalto". Assim este poderia concentrar-se na sua tarefa sem se preocupar com o que lhe viesse por trás.
— Exatamente! — exclamou o major com entusiasmo. — É isso mesmo! Muito bem! Sim, senhor!

A seguir, o major mandou-me indicar-lhe o que eu faria com os restantes pelotões. Respondi que faria com eles um cerco ao "objetivo", colocando «um pelotão neste monte, outro naquele, outro naquele monte acolá», etc.
— Há alguma razão específica para você colocar os pelotões nessas posições e não noutras? — perguntou-me o major.

Respondi:
— Eu tenho que ter o cuidado de evitar que fquem dois pelotões frente a frente, em posições diametralmente opostas relativamente ao "objetivo", para que não se alvejem mutuamente. Tenho que os distribuir de forma desencontrada. Cada pelotão não pode ter outro do lado de lá. Por isso os coloco nestas posições.

O major, ainda mais entusiasmado, repetiu:
— Muito bem! É isso mesmo! É preciso minimizar as baixas causadas pelo fogo "amigo"! Muito bem! Agora diga-me que pelotões é que vai colocar nessas posições.

Respondi-lhe que podia colocar «o pelotão de minas e armadilhas aqui, o das transmissões ali, o primeiro pelotão da 2.ª Companhia acolá, o segundo pelotão mais para o outro lado», etc.
— Está bem. Fica então assim — concordou o major. — Está definido o dispositivo para o "golpe de mão". Agora vou mandar chamar os cadetes que vão "comandar" cada um dos pelotões, para você lhes dar as instruções correspondentes aos lugares e tarefas que irão desempenhar. Eles precisam de saber onde é que vão estar e o que é que vão fazer.

Ao fim de algum tempo, os "comandantes" dos vários pelotões juntaram-se-nos e eu indiquei a cada um deles a posição que iria ocupar e o papel que teria que desempenhar no "golpe de mão". Quando acabei de dar as instruções, o major disse-nos:
— Agora vamos tratar das transmissões.

Mandou que nos entregassem rádios AVP-1, a cada um dos "comandantes" de pelotão e a mim próprio, e no fim disse-me:
— Agora você vai escolher os canais de rádio que vai utilizar. Vai escolher um canal principal e um de reserva. Pode escolher como quiser. Cada canal é tão bom como qualquer outro; isso é completamente indiferente. A seguir, vai escolher os nomes de código que vai corresponder a cada pelotão, para quando os chamar pelo rádio. Isso fica também ao seu critério. Quaisquer nomes são bons.

Eu lá indiquei uns canais escolhidos à sorte e também os nomes, do género Águia 1, Águia 2, Águia 3, etc.
— Pronto — concluiu o major. — Já está tudo decidido. Mas antes de se irem embora, quero dizer-lhes que o "golpe de mão" vai ter lugar às cinco horas da madrugada em ponto. À meia-noite, quero que comecem a ocupar já os seus lugares. Aqui o nosso cadete [eu próprio] vai estar aqui à espera, para orientar os pelotões no que for preciso. De hora a hora, o nosso cadete [outra vez eu] vai entrar em contacto com cada um dos pelotões pelo rádio, para saber se está tudo bem e pronto a entrar em
ação. Às cinco horas em ponto, ele dará a ordem de fogo e o "golpe de mão" será executado.

Procedeu-se tudo como o major determinou. Estava uma noite fantástica. Depois de um dia escaldante, a noite estava morna, mesmo apetecível para se estar ao ar livre. Uma maravilha. Nem quero imaginar como seria estar parado durante umas horas no meio daquela serra, numa noite fria de inverno e com chuva ainda por cima…

Às cinco horas em ponto, assim que dei a ordem de fogo pelo rádio, desencadeou-se um estrondo tão grande, com perto de duas centenas de G3 a disparar todas ao mesmo tempo no meio do silêncio da noite, que apanhei um valentíssimo susto. Mesmo estando à espera dos disparos, não imaginava que o barulho pudesse ser tão grande. Devemos ter acordado toda a gente num raio de 100 km ou mais… Parecia que a serra vinha abaixo.

Terminado todo aquele estardalhaço, o major veio ter comigo dar-me os parabéns, porque, disse ele, «a operação foi um êxito completo. Apanhamos o inimigo todo dentro do objetivo e capturamos x espingardas, y metralhadoras e z morteiros». E disse isto com tanta convicção, que quem o ouvisse julgaria que tinha sido a sério! Os oficiais de carreira muito gostam de manobras militares! Eles pelam-se por estas coboiadas.

E assim acabou o 2.º ciclo do Curso de Ofciais Milicianos atiradores de Infantaria da minha incorporação. Regressamos a Mafra para dormirmos e a seguir fomos para nossas casas, não sem antes nos terem dito que no dia tal deveríamos estar de volta, para sabermos as nossas notas finais, qual o teatro de guerra para onde iríamos ser mobilizados, qual a unidade em que seríamos colocados e para nos serem impostas as novas divisas de aspirantes.

Quando regressei a Mafra no dia marcado e olhei para a pauta onde as notas estavam afixadas, nem queria acreditar na nota que me tinha sido atribuída: treze valores vírgula zero zero. Era a nota máxima! A nota 13 era o limite que separava os simples oficiais atiradores, como eu, dos oficiais de Operações Especiais.

Os oficiais de Operações Especiais não podiam ter menos de 13 valores; os oficiais atiradores, em princípio, não podiam ter mais de 13, a menos que fossem verdadeiramente extraordinários, caso em que rebentariam a escala. Na minha incorporação houve mais dois ou três atiradores que tiraram 13 valores como eu e houve um que rebentou a escala, tendo recebido à volta de 15. Chamava-se Poças, era uma jóia de moço e como "prémio" foi mobilizado para a Guiné em rendição individual.

E foi assim que um (futuro) alferes comandou o seu próprio (futuro) comandante de companhia, mais uma data de outros (futuros) capitães!

[Foto à esquerda: 

Capitão miliciano José António Pouille Nobre Antunes, que comandei no fim da semana de campo do 2.º ciclo do COM, quando ambos éramos soldados-cadetes. Posteriormente, já com o posto de capitão miliciano, foi ele que me comandou, assim como toda a CCaç 3535, a partir da segunda quinzena de abril de 1973]


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Nota do editor:

sábado, 29 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15051: Memória dos lugares (316): Serra de Montejunto, o moinho de Aviz, de Miguel Luís Evaristo Nobre (Vilar, Cadaval) - Fotos de Luís Graça, II (e última) parte





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Cadaval > Vilar > Vila Nova > Serra de Montejunto > 20 de agosto de 2015 > O nosso camarada e amigo Joaquim Pinto Carvalho levou-me, a mim, à Alice e mais uns amigos do norte, o Gusto, a Nita e a Laura, até ao moínho do Miguel Nobre, no alto da serra... É conhecido como o moinho de Aviz,,, Dizem que é o mais alto da península ibérica, dos moinhos ainda a funcionar.

Daqui tem-se uma vista fantástica sobre  grande parte do oeste estremenho, do rio Tejo à serra de Sintra... A serra de Montejunto e os cabeços à volta com as sua intermináveis filas de moinhos de vento fazem, ainda hoje,  parte das memórias de infância de muitos de nós. Memórias que eu e muitos camaradas aqui do oeste levaram para a Guiné das bolanhas e florestas-galerias, onde não havia (com exceção da região do Boé) elevações do terreno... E muiito menos moinhos. Era o pillão qyue fazia a vez das nossas azenhas e moinhos. 

Hoje, na Estremadura da minha infância, os cabeços estão pejados de inestéticas eólicas, tão feias como os horroros e tísicos eucaliptos que estão a dar cabo do nosso querido Portugal mediterrânico... Confesso que é uma dor de alma ver, de Lisboa à Lourinhã,  as eólicas em vez dos moínhos de vento da minha infância.,.. E as manchas de eucalipto a dominaram a paisagem... Quem disse que a paisagem não tem dono ?

Havia alguns milhares de moínhos de vento no oeste, meia dúzia em cada aldeia, no meu tempo de menino e moço. Hoje restam-nos alguns belos exemplares, ainda em funcionamento (incluindo no meu concelho Lourinhã, no Moledo, no Porto Dinheiro, na Pinhoa...). Enfim, restam-nos a arte e a ciência da molinologia, e alguns, poucos, moleiros vivos e raros técnicos de moinhos,  como o Miguel Luís Evaristo Nobre, que domina a "arte ao vento". Vejam o seu sítio  na Net, "Arte ao Vento",  que merece uma visita , tal como seu moinho... O moinho de Aviz estava em ruínas até há alguns anos... É hoje uma obra-prima, digna se ver, dar a conhecer, divulgar, promover...

A "arte ao vento" é o sítio da empresa do Miguel (que vive no Vilar, Cadaval, vizinho portanto do Joaquim Pinto Carvalho e da Céu Pintéus), "dedicada ao Restauro e Manutenção de Moinhos de Vento". Ele tem construções e restauros em muito lugares, incluindo na minha terra. 

Aqui ficam, para quem tem a paixão dos moinhos como eu, o resto das fotos  que tirei, selecionei, editei e prometi publicar no blogue (*). Falando há dias com o Fernando Henriques, moleiro do Moledo, antigo emigrante em França (e cuja pai esteve como meu, em Cabo Verde, no Mindelo, durante a II Guerra Mundial), ouvi esta confissão espantosa:

- Quando eu morrer, a saudade maior que vou levar da terra,  depois da minha mulher, filhas e netos, é a deste moinho, que já está na família há várias gerações... Hoje teria rico se ele, em vez de estar aqui plantado no meio das pedras do Moledo, pudesse ter sido transplantado para o monte do Sacré Coeura em Paris... Os estrangeiros que me visitam ficam de boca aberta e olhos arregalados... (O moinho foi restaurado recentemente pelo Miguel Duarte, depois de um grave acidente provocado pela força do vento).

 Mais uma vcz, obrigado, Joaquim e Miguel, pela magnífica tarde, que passei com eles dois, e que começou pela Artvilla, em Vila Nova, freguesia do Vilar, concelho de Cadaval, no sopé da serra que é familiar a alguns de nós, e nomeadamente aos camaradas da FAP, que por aqui passaram no tempo de tropa (Estação de Radar, nº 3, Lamas, Cadaval).(**)


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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(**) Último poste da série > 23 de agosto de  2015 > Guiné 63/74 - P15032: Memória dos lugares (315): Pragança, aldeia da serra de Montejunto, união das freguesias de Lamas e Cercal, concelho de Cadaval - fotos de Luís Graça

domingo, 23 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15032: Memória dos lugares (315): Pragança, aldeia da serra de Montejunto, união das freguesias de Lamas e Cercal, concelho de Cadaval - fotos de Luís Graça

























Serra de Montejunto > Cadaval > Pragança, freguesia de  Lamas > 20 de agosto de 2015 > Aspetos diversos da pitoresca aldeia de Pragança, a começar pelo coreto da filarmónica local que foi fundada em finais do séc. XIX. O coreto, guarnecido nas paredes e bancos laterais,  por deliciosos painéis de azulejos, criados e pintados à mão,  pela Oficina Brito, Caldas da Raínha,  é, além disso, um dos mais belos miradouros do oeste esteremenho. A poente, a vista alçança os concelhos vizinhos, de Cadaval, Bombarral, Torres Vedras, Lourinhã, Peniche, Óbidos, Caldas, Nazaré...

Texto e fotos: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados

1. Pragança é uma localidade situada no sopé da Serra de Montejunto. Pertence à união das  freguesias de Lamas e Cercal. concelho do Cadaval, distrito de Lisboa.

Segundo a tradição oral e os vestígios arqueológicos, Pragança é  uma das mais antigas aldeias portuguesas. No séc.  XVIII  foram encontrados vestígios paleoliticos no Pico da Vela, na serra de Montejunto, Sobranceiro à aldeia de Pragança, no alto de um cabeço rochoso calcário, situa-se o Castro de Pragança.

A antiga freguesia de Lamas orgulha-se de possuir um rico património ambiental, cultural e histórico, a começar pelo  maciço calcário da serra do Montejunto que é o o ex-libris do concelho de Cadaval.

O castro de Rocha Forte ou Castelo Velho, as grutas necrópoles da serra de Montejunto,  a Real Fábrica do Gelo, o antigo convento dos dominicanos (séc. XIII), a  ermida da N. Sra. das Neves (séc. XIII, XVI e ss.), bem como as inúmeras belezas naturais da serra, a par da sua  flora e fauna, tornam a antiga de freguesia de Lamas num dos sítios mais atrativos da região do Oeste.

É na união das freguesias de Lamas e Cercal,  em plena serra do Montejunto, que está localizada a Real Fábrica de Gelo, onde no séc. XVIII era fabricado o gelo que abastecia não só a corte como, mais tarde, diversos cafés da baixa lisboeta. Foi recentemente  classificada como monumento nacional.

Além do edifício principal,  a Real Fábrica do  Gelo é constituída por um poço, atualmente tapado e que outrora era a fonte de abastecimento de água dos 44 tanques,  amplos e rasos, onde se fazia, por congelação, o gelo. A fábrica era explorada por um "neveiro". (Foi classificada como Monumento Nacional,através do Decreto n.º 67/97, de 31 de Dezembro; é considerado por inúmeros especialistas internacionais  “como um caso único pela originalidade das suas estruturas  e pelo razoável estado de conservação”).

Quase no topo da serra de Montejunto, situa-se  a ermida de N  Sra. das Neves, edificada, nos começos do séc. XIII, pelos frades dominicanos. Junto à ermida, podem observar-se as ruínas do primeiro convento da ordem dos dominicanos, fundado em Portugal.

É também aqui que se realiza, a 5 de agosto, a popular romaria de N. Sra. das Neves. Um dos nossos camaradas que não costuma perder este evento é o Eduardo Jorge Ferreira.

Para se almoçar ou jantar, recomendo o restaurante típico Garcia da Serra: a relação qualidade/preço é imbatível e o Garcia e a esposa são simpatiquíssimos. Provei com agrado as queixadinhas de porco, o bacalhau á Garcia e o cabrito da serra... 


2. Quatorze camaradas nossos morreram em Angola, Guiné  Moçambique durante a guerra colonial. Três  morreram no TO da Guiné, segundo a detalhada e preciosa informação recolhida no portal Ultramar TerraWeb, relatiava aos mortos na guerra do ultramar do concelho de Cadaval

(i) António Emídio Ribeiro da Silva, soldado maqueiro, CCS/BCAÇ 4612, morto em 1/11/73, por acidente; está sepultado na sua terra natal (Póvoa do Cadaval, Lamas);

(ii) José Isidro Marques, soldado apontador de metralhadora, CCAÇ 423/ BCAÇ 237, morto em combate, em 3/7/63, natural de Alguber, freguesia de Alguber;

(iii) Luís Ferreira Faria, sold cond, Comp Transportes 735,  QG/CTIG, morto por afogamento em 24/8/64, natural de Cercal, união das freguesias de Lamas e Cercal.

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Nota do editor:

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15027: Memória dos lugares (314): Serra de Montejunto, o moinho de Aviz, de Miguel Luís Evaristo Nobre (Vilar, Cadaval) - Fotos de Luís Graça, parte I















Cadaval > Vilar > Vila Nova > Serra de Montejunto > 20 de agosto de 2015 > O nosso camarada e amigo  Joaquim Pinto Carvalho levou-me, a mim, à Alice e mais uns amigos do norte, o Gusto, a Nita e a Laura,  até ao moínho do Miguel, no alto da serra... Dizem que é o mais alto da península ibérica, dos moinhos ainda a funcionar.

Daqui tem-se uma vista fantástica sobre o mundo, ou pelo menos sobre o meu/nosso oeste estremenho, do rio Tejo à serra de Sintra... Mas o mais fascinante é o moinho, o mominho de Aviz, e o seu dono, sem esquecer naturalmente a serra de Montejunto e os seus miradouros, a par da aldeia de Pragança que eu, inacreditavelmente (!), ainda não conhecia... O moinho, o moinho de Aviz,  que estava em ruínas há uns anos atrás floi reconstruído e uma beleza de se ver... Tudo somado, ficou-lhe em cerca de 200 mil euros, o preço de um bom apartamento em Lisboa...

Obrigado, Joaquim e Miguel, por esta magnífica tarde, que começou pela tua Artvilla, em Vila Nova, freguesia do Vilar, concelho de Cadaval, no sopé da serra que é familiar a alguns de nós, da FAP, que por aqui passaram no tempo de tropa (Estação de Radar, nº 3, Lamas, Cadaval).

Texto e fotos: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


1. Confesso que tenho uma velha paixão pelos moinhos de vento, paixão essa que me vem da infância: nasci e cresci ao som do vento a bater nas velas e a redemoinhar nas cabaças dos moinhos de vento da Lourinhã... a escassos dois quilómetros do mar... Há sons que nunca mais se esquecem.

O vento e o mar, o som e a fúria do vento e do mar, as velas, os mastros, os moinhos, os barcos à vela... A estética solitária e quixotesca do moinho de vento no cimo dos cabeços da minha região natal... E a sua barra azul. E os seus portentosos mastros, a alvura e fortaleza do seu velame... "Redes e moínhos" era o título do jornal da minha terra, quando eu era puto, tendo antecedido o quinzenário "Alvorada" onde trabalhei, como redator-.chefe, antes de ir para a tropa...

Havia alguns milhares de moínhos de vento no oeste, meia dúzia em cada aldeia, no meu tempo de menino e moço... Hoje há uma ciência que se dedica ao seu estudo, a molinologia. E há homens que ainda dominam a "arte ao vento", como o Miguel Luís Evaristo Nobre.

Preciso de mais tempo e vagar para escrever sobre este homem e a sua obra, e em especial sobre este moinho, conhecido  como o moinho de Aviz,  que visitei e fotografei ontem.  Prometo apresentar-vos, na II parte, fotos do interior do moinho... Para já há um sítio na Net, "Arte ao Vento", que merece uma visita... É o sítio da  empresa do Miguel (que vive no Vilar, Cadaval), "dedicada ao Restauro e Manutenção de Moinhos de Vento",

 (Continua)

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