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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25164: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (25): A mercearia e a taberna da aldeia (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)



O tempo em que se fumava, e a "arraia-miúda" os "três vintês" (passe a publicidade, que agora é proibida...mas a marac já não exite), um cigarro baratucho, sem filtro,  que ia bem com um "neguinhos" (pequeno copo de tinto,  usado nas tabernas no Norte, vocábulo que ue ainda não foi grafado pelos nossos dicionaristas)... (Cortesia do Joaquim Costa.)

 
Coisas & loisas do nosso tempo de meninos >   A mercearia e taberna da aldeia

por JoaquimCosta  (*)


Ainda o sol se escondia atrás do monte de Nossa Senhora da Assunção, já o Zé tirava a grande tranca da porta da mercearia junto à qual já um grupo de homens,  com o cigarro "três vintes" a queimar-lhes os dedos,  o esperavam para o mata-bicho da manhã. Dois copinhos de "cachaça".

Uns de bicicleta e a maioria a pé lá abalavam para mais uma jornada de trabalho, vomitando fogo dada a pureza da aguardente branca das uvas verdes.

Da minha memória de infância tenho bem viva a importância da mercearia da aldeia, que rivalizava com a da igreja. Antes da missa, um "neguinhos" para apaziguar a tosse e depois da missa para encontrar o caminho para casa.

Eram as duas instituições mais importantes da aldeia: uma alimentava a alma e a outra o corpo (A César o que é de César a Deus o que é de Deus!). Razão pela qual o padre e o dono da mercearia eram as pessoas mais respeitadas na terra. Mais do que a do próprio regedor!

Havia mesmo uma grande cumplicidade entre estas duas instituições ao ponto de a festa da Páscoa entrar na taberna dando a cruz a beijar aos mais renitentes e o dono da mercearia ser sempre convidado para mordomo da festa em honra do santo padroeiro da terra.

Ainda muito novo me dei conta da miséria que reinava na maioria das famílias, assistindo com um nó na garganta às lágrimas das mulheres suplicando ao Zé fiado para um naco de pão, um naco de bacalhau e uma mão de arroz para o almoço que levavam aos maridos que trabalhavam numa pedreira de extração de granito. O Zé,  sempre dizendo que não, dada a dívida acumulada, mas sempre cedendo.

Tivesse ele recebido todas as dívidas que constavam no livro dos "assentos" e hoje eu seria um homem rico.

Durante a tarde a mercearia parecia um galinheiro (dizia o Zé), dado a algazarra que faziam as mulheres.

Para além do trabalho,  havia muitos momentos de diversão com as conversas sem filtro de todo aquele "mulherio" ali reunido, em que muitas vinham comprar o que não precisavam só para participarem naquele extraordinário "fórum".

A partir das 19horas chegavam exaustos os homens e aí confraternizavam, jogando as cartas (e bebendo), jogando dominó ( e bebendo),  cantando ao desafia (e bebendo), e às vezes zangando-se, lutando e depois fazendo as pazes bebendo. Regressavam a casa com um (ou muitos) grãos na asa, mas recompostos de mais um dia de trabalho. Este "fórum" era muito mais difícil de controlar...

Aos domingos, depois da missa das sete, aqui se juntavam todos os homens da aldeia dispersando-se pelas diferentes tarefas: 

  • uns faziam fila junto do engraxador para limpar os sapatos de domingo; 
  • outros faziam fila no barbeiro aparando o cabelo e o bigode; 
  • outros participavam na reunião do clube da terra – os mais jovens carregavam os seis paus e abalavam para o campo da Bela (terreno baldio) para o treino da equipa da aldeia; 
  • outros jogavam a malha e às vezes ao galo com setas de pressão de ar;
  • outros participavam na reunião semanal da "Caixa dos vinte amigos" (no fundo era uma réplica de um banco onde cada um pagava uma quota mensal, e onde os mais abastados depositavam determinadas quantias pelo qual recebiam juros; em função do valor em caixa faziam-se empréstimos a juros negociados; na época ainda a D. Branca não tinha nascido!)

Era aqui, na mercearia/taberna onde tudo acontecia. Era a vida da Aldeia.

Aqui não havia lugar para advogados e juízos, todas as desavenças eram resolvidas com muita gritaria, zaragatas – larga-me que eu vou-me a ele!  – e decididas em última instância pelo dona da mercearia ou pelo "supremo", o padre.

Numa das desavenças mal resolvidas, um habitante frequentador assíduo da taberna, consumidor de "neguinhos" (pequenos copos de vinho), enquanto todos bebiam em canecas de porcelana com uma cinta metálica, resolveu ir à vila ouvir a opinião de um entendido sobre leis. 

A consulta teve lugar num café onde não se vendia vinho pelo que (em Roma sê romano), pediu café. Por cada cigarro "três vintes",  pedia um café, tal como  se fossem os "neguinhos" da tasca. Bebeu tantos cafés quantos os cigarros do maço. Obviamente o organismo rejeitou o produto que desconhecia, pelo que teve de ser levado de urgência ao hospital para uma lavagem ao estômago. 

Regressou na ambulância tendo indicado a tasca como sua residência, e convidando no fim os bombeiros para beberem uns "neguinhos" consigo...


(i) ex-fur mil at armas pesadas inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74);

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem mais de 7 dezenas de referências no blogue;

(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022) , e que depois publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp);

(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto;

(v) foi professor do ensino secundário, tendo-se reformado como diretor da escola secundária de Gondomar  (EG nº;

(vi) minhoto, de Vila Nova de Famalicão , vive em Rio Tinto, Gondomar, e adora o Alentejo;

(vii) tem página no Facebook.


(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)


2. Comentário do editor LG:

Quim, escangalhei-me a rir com essa  cena dos "três vintes", dos cafés e dos "neguinhos"... É humor de cinco estrelas!... Tens graça, sem achincalhars ninguém, muito menos a gente trabalhador e humilde da tua terra..  

E, olha, os putos de etnografias, sociologias, antropologias, etc.,  bem podem aprender contigo a fazer "observação-participante"!... É uma peça de antologia: partindo do prncípio que tenho "carta branca para, de vez em quando,  te trazer "ao colo" até ao blogue, achei que esta pequena pérola não era para os "porcos", fica aqui também registada na série onde já tens colaborado, "Coisas & loisas do nosso tempo de meninis e moços" (**)... 

Quim (agora avô babado e "feicebuqueiro" de sucesso...),  há coisas que não voltam mais!... Cheiros, sabores, odores, lugares, personagens, palavras, expressões, cenas pícaras como estas... E que têm de ficar registadas para os nossos netos... 

Uma delas é essa "instância de socialização" que era a venda, nas nossas aldeias, de Norte a Sul, misto de taberna e de mercearia e nalguns casos "posto dos correios"), com espaços segregados conforme o sexo... 

A mim a tasca cheira-me sempre a sarro, a serradura,a lexívia e a fritos..Que Deus e os santos não te tirem a inspiração, a motivação e o talento para contar estas micro-histórias!... O "nosso alfero Cabral" vai também escangalhar-se a rir, lá na sua "suite" celestial...  Boa terça feira gorda, meu amigo e camarada!

_____________

Notas do editor:

(*) Reproduzido com a devida vénia da página do Facebook de Joaquim Costa, 3 de janeiro de 2024, 11.57  > Memórias "boas" da minha infància >  A mercearia /taberna

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24379 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (1): À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas...


Foto: © Luís  Graça (2011). 

Contos com mural 
ao fundo (1) >
À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas 


por Luís Graça




1. O que é que um gajo faz, das oito às nove, junto à entrada de um hospital, para mais oncológico ?


Aqui, esperas, desesperas, esperas. Que a esperança é a última coisa a morrer, diziam-te na tropa os gajos mais otimistas, os safados dos instrutores, sobretudo dos coirões, velhos, dos cabos RD, readmitidos, que sabiam que já não iam à guerra, nem nunca morreriam docemente pela Pátria.

Joga-se com a teoria das probabilidades: daqui a cinco a anos, terás cinco por cento de hipóteses de estar vivo, se te diagnosticarem um cancro no pâncreas, diz o teu amigo que está lá dentro a esta hora… Pálido como a cal da parede, sentado na sala de espera, esperando o pior, imaginas tu... Como o réu que aguarda a sentença de morte do coletivo de juizes...

Também ele espera, desespera, espera. Imaginas tu, que nunca entraste no IPO, por medo, por superstição, ou muito simplesmente porque nunca até agora precisaste de lá ir.  (Cruzes, canhoto!)... 

Enganas-te, já não se pintam paredes com cal, que era antigamente um bom desinfetante. Nem se cobrem os mortos com cal, hoje são cremados, sobretudo se morrerem de cancro. Dantes, no tempo em que morreu a tua mãe, não se pronunciava sequer a palavra cancro, escrevia-se nos jornais, na notícia necrológica, que o fulano ou fulana de tal morrera de doença de evolução prolongada. Ou grave e incurável. De doença maligna. Um eufemismo. Um pudor hipocrático. Uma hipocrisia social. Como se houvesse doenças benignas!...E uma boa morte! (É verdade, evitamos pronunciar palavras como cancro ou morte.)

Esperas dentro do carro, mal estacionado, em segunda fila. E, talvez para não desesperares, jogas o jogo do “voyeurista”. Não, não espreitas o mundo pelo buraco da fechadura, mas estás meio escondido, na semiobscuridade do interior do teu carro, a ver o que se passa lá fora, à tua volta… Simplesmente, para passar o tempo, fazer horas... Não sejas cínico. muito menos medricas: estás apenas a tentar a disfarçar o nervoso miudinho, a tentar esquecer ao que vieste, acompanhar um amigo em sofrimento, com uma espada de Dâmocles em cima da cabeça...

Do teu posto de observação, vê-se num raio de noventa graus. Aqui o teu olhar, mesmo distraído, é seletivo. O olho de periscópio do camaleão podia ter-te dado jeito lá na guerra, quando atravessavas a bolanha ou cambavas o rio, mas não aqui, que tens para ver apenas o que se passa entre o nº 15 e o nº 19 do prédio ou prédios, à tua frente, no início da Av Madame Curie.

Por uma questão, digamos, de eficiência oftalmológica, tens de estreitar o teu campo de visão. Tens duas palas nos olhos, com o o burro. É um ângulo de noventa graus, abarcando sensivelmente um quarto do pequeno, pequeníssimo, mundo que te circunda  e estrangula. Há gente que vive assim e morre na cama, feliz. Não acreditas, mas o que é que te contam: "felizardo, teve uma morte santa, não sofreu nada, foi um ar que lhe deu!|"...

Uma nesga do planeta que nada tem de deslumbrante, empolgante ou minimamente interessante . O que tu vês é o pequeno mundo do formigueiro humano, mesmo que seja gigante aos olhos da formiga: a saída de casa para a rua, o metro, o trabalho, o café, a creche, a escola, o hospital, ou o simples passeio higiénico com o cão pela trela… Nem sequer vês quem entra e quem sai do IPO, estás de costas. Uns com cancro,  outros sem cancro, e os outros  que cuidam de quem está doente, ou vai visitar um doente... Mas era talvez o único sítio que te deveria prender a atenção: daqui a um bocado o teu amigo (e antigo camarada de armas) sai, cabisbaixo ou de cabeça erguida…

Estás inclinado a apostar que ele sairá de cabeça erguida, mesmo com um prognóstico reservado: era, tanto quanto te lembras dele na Guiné, à distância de meio século,  um dos gajos tesos, que mostravam grande lucidez, dignidade, calculismo, sangue-frio  e coragem na adversidade. Qualidades, de resto, que lhe valeram um louvor, e que faltavam a outros tantos, com mais divisas ou galões do que ele.

Nunca tiveste grandes amigos na vida. Se é que tiveste amigos... E muito menos daqueles do peito, como se costuma dizer. Este é um deles, dos muito poucos que te ficaram para a vida.  Estiveram, ambos, na guerra, tu e ele. Sempre te tratou por "mano". Ele, o Zé Conde,  era um exímio caçador, e tu um reles fotógrafo amador, nas horas vagas. 

Ele sempre foi muito mais corajoso e determinado do que tu: como  caçador saía ao lusco-fusco, sempre convicto de que ia caçar alguma coisa de jeito, na orla da bolanha, no charco onde a bicharada ia dessedentar-se  ou, à noite, no fim da pista de aviação, onde crescia a erva que fazia as delícias de alguns animais.  Quem espera, sempre alcança. E ele apanhava lebres,  galinhas de mato, rolas, raramente caça grossa, quando muito uma gazela ou um javali. Qualquer coisa, enfim, com que a malta pudesse matar a malvada nos dias seguintes, lá na messe. 

Tu eras como o fotojornalista do quotidiano: punhas a tua máquina a tiracolo, uma Minolta (se bem te lembras) e ias dar um giro domingueiro pelas tabancas. Nunca foste capaz de levar a máquina para o mato, para uma operação. Aliás, nunca foste sequer um fotógrafo de jeito. E  perdeste tantos momentos de tirar fotos com sangue, suor e lágrimas,  ou seja com emoção, que é afinal o "spice of life", o sal da vida!

Há tempos ele pediu-te para o acompanhares até ao IPO. "Alguma coisa de grave?", pergunta, estúpida, da tua parte. "Eh!, pá, porra, ainda não sei bem...,  parece que estou com um cancro", respondeu-te ele... Ele não disse logo cancro, disse carcinoma, neoplasia, linfoma, ou outra merda qualquer,  enfim, um vocábulo mais técnico, mais neutro, mais enganador... "Mas hoje não há nada que não tenha remédio, até o sacana do cancro", arrematou depois, com ironia. "Parece que estou  com um carcinoma na próstata, estou o PSA alto como o caraças... O urologista fez o toque recta e mandou-me fazer uma biópsia, nal sinal... Vou lá saber o veredicto".

Ficaste sem pinga de sangue, sem jeito para lhe responder, assim apanhado de chofre. Balbuciaste umas palavras, secas,  de circunstància, com mais compaixão do que de solidariedade. Tentaste gracejar, aliviar a tensão: "Não há de ser nada... Os amigos são para as ocasiões... Vou contigo ao IPO, nunca lá entrei, nem sei bem o caminho... mas a gente desenrasca-se".

Em Lisboa não tem ninguém. E dos dois filhos, o que está mais perto é em Angola, de quem, aliás,  és padrinho de casamento. Tem um outro na Austrália. Somos um raio de um povo repartido pelos cinco continentes, com os filhos, os sobrinhos  e os netos separados, por mares e oceanos, dos pais, dos tios e dos avós.  

E quem vem da província, não está habituado ao trânsito de Lisboa. Foste buscá-lo ontem a Sete Rios, que é ali perto do IPO. Desta vez, veio no "Expresso",    de vespera.  Ficou na tua "morança", agora demasiado grande para um homem que vive só. Ofereceste-te para ir buscá-lo a casa. Recusou, polidamente. Se tivesses insistido, teria aceite. Quando vier aos tratamentos, se vier (mas é o mais provável(, virá de ambulância. É sócio dos bombeiros da terra, não longe da capital, em Samora Correia. Trabalhou como técnico agrícola lá nas Lezírias. Acabara de se reformar há pouco tempo. ("Um gajo reeforma-se e, zás!, cai-lhe tudo em cima, mano!... Parece que alguém nos quer  cobrar a fatura por, continuando vivos, sermos um peso morto para os ativos"...)

2. Farmácia Curie, nº 15A. Frente à entrada principal do IPO. Grande cartaz publicitário, que cobre a montra. Faz propaganda a um “medicamento” que, depois, vai-se a saber, é apenas uma “vitamina”… Uma "mesinha", como se dizia na Guiné. Um placebo, uma droga para enganar doentes e sãos. Do Laboratório Militar, que dava para tudo, até para a tusa, o paludismo, a dor de corno, a blenorragia, a saudade, a neuratesnia, o medo... Tomavam-se com uísque, as "pastilhas LM"...

Mas qual a diferença entre uma coisa e outra, numa botica onde é pressuposto vender-se tudo o que te faz bem à saúde e até o que te envenena e te mata?!... E ainda por cima tem o nome de alguém, uma mulher, que nunca foi boticária, a Madame Curie, a avaliar pelo que tu sabes das palavras cruzadas. Prémio Nobel de qualquer coisa, física ou química, sabes lá. Que a tua incultura geral é do tipo Reader's Digest.

"Absorvit – don't worry, be happy!”: em inglês, em letras garrafais, para consumo do turista estrangeiro que, por engano, se aventurar por estas bandas da cidade onde o trânsito é caótico, por causa das obras na Praça de Espanha.

E, logo a seguir, em letras mais pequenas, tipo legenda de filme, para o indígena lusitano, tratado por você, por deferência ou cinismo: “Sente-se em baixo? Viva o seu lado positivo da vida”. (Eh!, pá, o gajo que traduziu a frase, devia ter apanhado um monumental chumbo no exame em inglês!).

Mas adiante: ficas a saber que o “Absorvit é muita vitamina”… E registas no teu bloco de notas: “A vida tem dois lados, ou dois polos: um positivo, outro negativo. E às vezes funde-se como as lâmpadas”. Já lá vai o tempo em que se fabricavam lâmpadas elétricas e fusíveis para toda a vida... Que bom, quando na vida não havia curto-circuitos ! (... Idiota, quem te meteu essa cabeça?!)

Fazes coleção de frases feitas, expressões lapidares, lugares comuns, grafitos, provérbios excêntricos, anexins, citações famosas... É um dos teus passatempos, além da sopa de letras, no café do teu bairro, com a bica depois do almoço. Disseram-te que era bom para prevenir o Alzheimer, ou pelo menos adiá-lo. És um hipocondríco de merda, tens um medo das doenças que te pelas. De resto, quem não tem? Até os médicos e os padres... 

Espantosamente os muros do IPO parecem estar livres dessa peste dos grafiteiros. Talvez os gajos  sejam supersticiosos e lá, no mais recôndito do seu íntimo, tenham um medo do caraças do deus do cancro que os vigia, qual big brother. Não acreditas em deus, mas começas a suspeitar que há um deus do cancro. Ou até que há um deus para tudo. 

E vem-te à cabeça, uma frase cruel que te impressionou, do Camilo Castelo Branco, nas "Memórias do Cárcere": 

"Ignoro (...) se Deus deixou remédio para os defeitos das suas obras; confesso só que é um blasfemo atrevimento querer-lhas corrigir"... 

Conhecias outra, um provérbio, que é ainda mais devastador para um crente: 

"Se Deus o marcou, é porque algum defeito lhe achou". 

De que vale, afinal, um gajo, lutar contra o destino, se o teu corpo já traz, logo à nascença, as marcas dos "defeitos de fabrico"?!... E as taras todas dos teus antepassados até à cagagésima geração!...

Mesmo assim, não te deixas intimidar: aqui estás, à porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas

Enfim, ficas pelo menos a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, radioterapia, isótopos,  quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste? Daqui a uns anoos nem batas brancas haverá, serás tratado por robôs, muito mais inteligentes do que tu...

Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita  pneumonia, a seguir a uma  vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdica, febrões, sezões de África?! ... 

Chegaste a temer tratar-se da doença nova que então espalhava o terror entre a malta que estivera em África, o HIV-Sida. No teu caso, na Guiné e depois em Angola. Lembras-te do médico que não conseguiu escondeu o nervosismo: depois de te apalpar o baixo ventre, foi logo direitinho ao lavatório do cubículo para lavar as mãos... O que estranhaste: os médicos que tu conhecias, até então não lavavam as mãos à frente do doente... Afinal, o ato médico sempre foi revestido de uma certa sacralidade...

Deixaste de fumar por conselho médico, mas sobretudo por medo do cancro do pulmão. “O medo tem muita força, meu amigo”, diz-te o Zé Conde que está lá dentro à espera do veredicto dos médicos. Como se os médicos tivessem o poder da vida ou da morte. Ou não têm mesmo?!


3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano"  e teu compadre que vieste acompanhar.  Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Com medo do escuro, com  medo de ficar sufocado. Ficaste com a fobia do ventre materno. Acabaste por nascer prematuro.

Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto. Com os pés virados para a mata, sempre pronto a voares  ao primeiro tiro ou explosão...

Continuas mal estacionado, agora no lugar reservado às cargas e descargas da farmácia e estabelecimentos contíguos. A esta hora da manhã já não há lugares livres para estacionar. Aqui e no quarteirão à volta, delimitado pelos muros do IPO, a Av Madame Curie e a Rua Professor Lima Basto. Tiveste que fixar os nomes das ruas e chegar  ao IPO pelo GPS... Estás em Lisboa há uma porrada de anos, e ainda há sítios que tu mal conheces: ruas, becos, praças, calçadas, escadinhas, miradouros, vilas e até bairros...

Nem a pagantes, lá dentro ou cá fora, há lugares de estacionamento. O lisboeta não gosta de pagar o estacionamento do carro. Daqui um bocado o gajo da EMEL ou o polícia municipal vai chatear-te. Mas ainda é cedo. Não te enerves. 

À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar  com
 o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces. Nem sabes se ainda vais ter tempo de os conhecer.

Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. E mais raramente o jornal... Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na política, na guerra. Mas tentam,  uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da  multidão, ao dobrar da esquina. Irritados, chateados... Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro, e do amor, e do jogo, e da caça, e do poder, e da guerra. 

As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus,  dão pão de plástico às criancinhas?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.

Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras.  Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando lá  estiveste. 
Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta, diz a publicidade no toldo.

Não é mal pensado, um  comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve). 

E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário,  IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro". 

Se o polícia te aparecer a chatear-te, dizes que estás à espera de um doente. O que é  verdade,  mas não adianta. Ele põe-te a mexer. E, se refilares, ameaça-te com  "o papelinho da multa", a arma dos pequenos poderes. Dantes, na tropa, embrulhavam-te em papel selado. Ainda és desse tempo, vê como estás velho. Agora acabaram com o papel selado. Azul. Vinte e cinco linhas. E margens regulamentares. Proibido escrever nas entrelinhas, muito menos nas margens.

Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função. 

4. Já função do pâncreas, náo sabes qual é!... Mas deve ser um órgão fodido... Devias saber mais da anatomia e fisiologia do corpo humano. E a função do fígado? E do baço? E da tripa? E do rim, e da bexiga ?... E até do raio da próstata!... Nunca deste conta da tua... Até um dia em que começares a mijar sangue e a levantares-te de noite, diversas vezes, para aliviar a bexiga...

"Don't worry, be happy": é a melhor frase do dia, regista-a aí, no teu caderninho. Se tu a repetires muitas vezes ao longo do dia, talvez resulte e tu consigas chegar à tua casa, vazia, onde ninguém te espera, nem um cão nem um gato, no Bairro de Santos, com o ar de quem ainda pode vir a esperar algumas coisas boas da vida, e até dar-se ao luxo de aspirar a ser feliz. Põe a felicidade na tua lista de desejos a pedir ao Pai Natal, se ainda acreditas nalguma coisa.

Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo? "... Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te" "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!". 

Mas, não, não tens psicoterapeuta, se calhar até gostavas de ter, a tua ex, a segunda, também tinha, as amigas dela também tinham... Os psis faziam parte da herança de família mas tu é que pagavas a conta... Nunca deu certo um gajo ir para África trabalhar que nem um mouro e deixar cá as gajas, o cão e o gato. Hoje não tens mulheres, nem cães, nem gatos.

"Don't worry, be happy!"... É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico. 

Mas reparaste, logo à entrada do IPO, num cartaz de 2 por 2 metros com os dizeres: "IPO sem tabaco"... Ao fim destes anos todos?... Afinal, tu estás muito à frente do IPO... Tu conseguiste deixar de fumar, depois de apanhares um cagaço... O cagaço faz bem à saúde. Os fumadores deviam apanhar um cagaço. Um pequeno cagaço não lhes faria mal.

Uma jovem sai do nº 15 para o trabalho com a lancheira na mão. Também está na moda, a lancheira na mão, de casa  para o trabalho... O que fará ela?... "Call centre", adivinhas tu!... Bingo!... Mais uma aventura no país dos "call centers".

Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor do esquerdo.

Um assistente operacional (é assim que  se diz  agora?!, dantes dizia-se operário, houve uma "upgrade" da nomenclatura ...), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações. És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes. 

Porra, afinal o que faz mal à saúde, é um gajo estar vivo!... A vida é que faz mal ao cancro!... O cancro da mama, do esófago, da próstata, do pâncreas, da pele, do fígado, dos pulmões...

Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias, com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente. Há de comemorar os mil anos daqui a quinhentos, a Santa Casa.

Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de ter sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e sobretudo  tão terno,  pòr uma carta de amor no marco do correio,  há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)

Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que estás hoje mais sensível e intolerante?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.

Mais uma mãe com a criancinha pela mão. Saem batas brancas, de vez em quando, do IPO. Vêm aqui tomar qualquer coisa na Pastelaria. Não dá para ver o que consomem nem muito menos para ouvir as conversas lá dentro. Uma bata branca sentou-se cá fora, puxa de um cigarro. O café puxa o cigarro, ainda te lembras do teu vício quando fumavas nos anos 80?... Grande camelo!... Gostavas do "Camel"!...

Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no teu caderninho.

A Farmácia Curie não tem mãos  a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os ginásios, os hospitais, os cafés, os centros de dia,  e até as juntas de freguesia. "Teme a velhice, que ela nunca vem só", apontaste há dias este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Badameco" (do latim,  "vade mecum", vai contigo), também lhe chamas, quando estás irritado contigo e com o mundo.

Os estabelecimentos estão todos bem situados, só o nº 15 é que te parece ser uma entrada de um prédio de habitação, com porteira. Se contaste bem, o prédio tem quatro andares e, pelo estilo e estado de conservação, deve ser dos anos 30.  Disso percebes tu, que foste encarregado de obras, ganhaste bom patacão no tempo da Expo... ("Patacão", graveto, cacau... em crioulo da Guiné.)

A menina do restaurante Quinta Avenida veio, agora, fardada a rigor, de preto,  e com um guardanapo branco no braço, fumar cá fora um cigarro eletrónico. Adoras as mulheres fardadas, ficam com um ar sexy, quando combinam bem o preto e o branco. Um adolescente de origem africana, auscultadores nos ouvidos, passa a falar alto ao telemóvel, e a gesticular, com ar gingão de rapper angolano. Parece feliz. A vida é bela quando um gajo está na casa dos verdes anos e não tem que ir para a puta da guerra, como tu foste na idade dele. Ou não está à espera de um amigo, à porta do IPO. Nem de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas.

Mais um estúpido de um gajo a fumar à porta do Bolgani Desperta Caxito. Deve ter 60 anos. Sabes lá se tem 60 anos, nunca foste bom a tirar idades... Nem pintas.  Se tivesses tirado a pinta à tua, nunca te terias casado com ela, nem ela te deixaria viúvo aos 40 e picos anos. Porra, mal tiveste tempo de a amar!

Mais um jovem e uma velha a fumar na esplanada. Na papelaria, o negócio do tabaco e da raspadinha continua em alta, e ainda o dia é uma criança. Estás visivelmente irritado com a demora do teu amigo... E o IPO ali ao lado, a mexer-te com os nervos.

5. Desistes aqui do teu jogo, desistes de continuar a observar e a registar o formigueiro humano. Fechas o vidro do carrro mas ainda dá para ver a mulher da limpeza da farmácia a apanhar as beatas que formam  uns montinhos à porta. Tudo por causa da merda da raspadinha. Deviam depositar o lixo à porta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a tal fábrica de fazer milionários excêntricos.

Pelo retrovisor do lado direito, apercebes-te que o teu amigo, camarada e compadre está de volta, o rosto inexpressivo, impávido e sereno, como nos dias, de manhã muito cedo, em que iam, os dois, de Unimog, cada um a comandar a sua secção, encher os bidões de água na "Fonte das Bajudas" (ou das "beijudas", dizia ele, sempre maroto, brincalhão, gaiato, que nada tinha de marialvo, mesmo crescido na campina ribatejana).

– Está no ir, mano: começo para a semana a quimeoterapia, daqui a umas semanas a radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me  o urologista...

Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se, sê feliz!"

Não falaram mais  pelo caminho, foste levá-o a casa, a  40 e tal quilómetros de Lisboa. Mas reviste, nessa manhã, na viagem de regresso, todo o filme da morte do "Campino", alcunha de filho e neto de campinos, que era o condutor da GMC que transportava os bidões da água. Era um filme com cinquenta anos, a preto e a branco, com duas testemunhas,  mudas e impotentes, tu e o Zé Conde, o teu doente do IPO... 

Mas um gajo, por muito que queira, não esquece o que viu e sofreu. Há meses que não havia sinais de atividade do IN (abreviatura de Inimigo, o turra), nas imediações do quartel, a menos de dois ou três quilómetros.  Era uma operação de rotina, duas ou três vezes por semana. A água era racionada. Deixou de se picar o caminho quando se ia à água da "Fonte das Bajudas", de resto frequentada pela população local, maioritariamente fula... Os gajos nunca punham minas antipessoais naquele troço. Até esse dia fatídico em que o "Campino", que ia à frente,  acionou uma mina anticarro  reforçada, já no início da época das chuvas.  

Restos do seu corpo e da pesada viatura foram encontrados num raio de cento e tal metros. Era um puto porreiro, deixou viúva e uma filha que nunca chegou a conhecer. Falava muito com o furriel Zé Conde, eram os dois ribatejanos, e trabalhavam  antes da tropa na Quinta do Infantado, na Companhia das Lezírias,  ele na coudelaria. Adorava touros e cavalos.  Lembraste-te sempre dele, quando passas por aqui, por Porto Alto. 

Ao chegar a Samora Correia, à porta do restaurante, já conhecido,  onde almoçariam enguias fritas e umas sandochas de codorniz desossada, no Tretas & Olés, o Zé Conde, a partir de agora "o teu doente do IPO", só te disse, com um sorriso amarelo:

– Lembras-te?... Há cinquenta anos,  a gente costumava dizer um para o outro: não te chateies, mano, a vida continua... dentro de momentos!

– "Don't worry, be happy!" – martelaste tu, três vezes, com a cabeça no espelho retrovisor do lado do condutor...

© Luís Graça (202o). Última revisão: 8 de junho de 2023. (*)
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Nota do editor:

(*) Originalmente publicado em 13 de outubro de  2020 > Guiné 61/74 - P21447: A galeria dos meus heróis (38): Don't worry, be happy! / Não te chateies, sê feliz (Luís Graça)

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23603: Notas de leitura (1493): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VIII: A visita de uma delegação do Movimento Nacional Feminino, em fevereiro de 1966: "O senhor capitão hoje está cheio de sorte, há meses que não via uma mulher branca, hoje vê duas"

 
Guiné > Região de Cacheu > CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) >  2 de maio de 1969  > O nosso camarada, membro da Tabanca Grande (e da Magnífica Tabanca da Linha), Miguel Rocha, ex-alf mil inf, na altura a fazer as funções de comandante da companhia,  aqui a "tabaquear o caso",  com a presidente do Movimento Nacional Feminino, Cecília Supico Pinto  (1921-2011) (a menos de um mês do seu 48º aniversário natalício)... O nosso camarada "indaga da possibilidade de obter mais uns maços de tabaco para os rapazes da sua Companhia" (*)... Mas o caixote está quase vazio... e o que restava já tinha destino... Até o tabaquinho era rateado...

O caixote tem uma marca ou um logo, "INTAR", que hoje a maior parte dos nossos leitores já não é capaz de decifrar: INTAR - Empresa Industrial de Tabacos, SARL... Foi nacionalizada, juntamente com a Tabaqueira (grupo CUF): as  duas empresas tabaqueiras detinham praticamente a totalidade do mercado nacional de cigarros. Em 30 de junho de 1976,  foi criada a Tabaqueira - Empresa Industrial de Tabacos, EP (que já não existe, ou melhor é ums subsidriária de uma multinacional).

Esta cena (a da foto acima)  foi recordada pelo Miguel Rocha, em poste ainda recente (*). E nele acrescentou:

(...) "no ano do I Centenário do nascimento (30/05/1921) de Cecília S. Pinto, em sua memória, e com profundo respeito e admiração pela sua pessoa e sua obra, não esquecendo todas as outras Senhoras do MNF, muitas delas Mães de jovens mobilizados para as frentes de combate, venho aqui deixar meu testemunho de eterna gratidão pelo apoio dado aos combatentes na sua inegável qualidade de 'portadora de afectos' " (!) (...).(*)

Foto (e legenda): © Miguel Rocha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné  > Região de Tombali > Nhala > 10 de março de 1974 > Visita da líder do  Movimento Nacional Feminino > A Cilinha, aqui já com 53 anos feitos, de óculos escuros, e sempre impecavelmente vestida e penteada,  olha directamente para a objectiva do fotógrafo.  Ela sabia que, ali no "cu de Judas", era o alvo de todas as atenções... Era uma mulher, branca, de personalidade forte, corajosa, elegante e vistosa sem ser bonita.  Em 1974, já tinha o "respaldo político" que tinha no tempo de Salazar...

A seu lado o comandante de batalhão de Aldeia Formosa, ten cor inf Carlos Alberto Simões Ramalheira, e o cap mil inf Domingos Afonso Braga da Cruz (1946-1987), cmdt da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513/72,  que estava em Nhala, tendo estado também em Aldeia Formosa e Cumbijã. (A 1ª Companhia passou por Buba e Mampatá; a 3ª estava em Aldeia Formosa.)

Foto (e legenda): © António Murta  (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Estas duas fotos, com uma diferença de cinco anos,  servem para ilustrar uma outra visita, do MNF, realizada en 1966,  três anos e oito anos antes (respetivamente),  ao capitão Cristo e aos seus bravos de Bedanda, e reconstituída no livro de memórias do cap inf Aurélio Manuel Trindade (n. 1933) ("Panteras à Solta", de Manuel Andrezo, ed. autor, 2010, pp.  340-342), de que temos publicado diversas notas de leitura (**)

A visita a Bedanda está descrita em  três páginas deliciosas que servem para comprovar que a Cilinha e o seu Movimento Nacional Feminino (MNF) estavam longe de ser consensuais e até queridos, aos olhos de muitos militares, não só milicianos (que eram os mais críticos), como  também de uma parte dos  oficiais do quadro permanente, sobretudo os mais jovens.

Os militares de Bedanda (onde estava a 4ª CCAÇ, companhia de guarnição normal da província)  é contemplada por uma rápida e inesperada  visita de duas senhoras do  MNE, que vêm de Bissau, de DO-27 (presume-se), acompanhadas de um alferes.  

O autor não a identifica, mas a protagonista desta história da visita (que  "acabou por não dignificar em nada o MNF", pág. 340), era seguramente a Cecília Supico Pinto (mais conhecida por "Cilinha" pelos "rapazes" que prestavam serviço no ultramar). 

A visita deve ter ocorrido em fevereiro de 1966, na época seca (a primeira vez que ela foi à Guiné,  à sua "Guinezinha") (***), e não em junho de 1966 (já na época das chuvas, como sugere o cap Cristo, traído  certamente pela memória, ao dizer que já tinha 11 meses de comissão). 

Na mesma altura, a CCAÇ 736, em Cufar (1965/66), comandanda pelo cap inf  (Carlos Alberto Wahnon Mourão da) Costa Campos recebeu a visita da  delelegação do MNF, constituída pela  Cecília Supico Pinto e  a Renata da Cunha e Costa, aqui documentada pelo nosso Mário Fitas, ex-fur mil op esp,  no poste P8371 (****)

O cap Cristo terá sido pouco "oficial e cavalheiro" no trato com as senhoras, dirão alguns... No livro é irónico, para não dizer sarcástico e até truculento, na descrição e apreciação que faz da visita (é certo que muitos anos depois, mais de 40 anos depois):

Primeiro "hipotecaram um avião" (sic), um recurso sempre escasso e dispendioso naquela época e, para mais, no sul da Guiné, e depois "os resultados da visita foram menos que nulos porque foram negativos". 

(...) Depois da visita ficaram convencidos de que as senhoras quiseram ver, com
os seus próprios olhos, uns macacos que levavam vida de cão, algures no sul da Guiné, sem as mínimas condições e péssima alimentação (...)  Negritos nossos].           

Num aquartelamento onde faltava tudo ou quase tudo, abastecido penosa e perigosamente uma vez por mês, por via fluvial, a visita das senhoras do MNE, de mãos vazias, podia parecer um insulto gratuito. E, para a tropa nativa, deveria ser algo de intrigante e exótico:

(...) Quanto a frescos, muito raramente os comiam. Combatiam os guerrilheiros, dia e noite, sendo mais os dias de contacto com a guerrilha do que o contrário. Não por acaso dizia-se que Bedanda era uma ilha cercada pela guerrilha. Na opinião dos oficiais da Companhia de Bedanda as senhoras queriam levar no seu palmarés, para contarem às amigas durante os chás-canastas, que tinham estado no sul da Guiné, numa Companhia onde o perigo era constante. Para elas isso era bom, para a tropa era um frete (...) (pág. 340).

"Frete": eis talvez o termo mais apropriado, para  caracterizar a atitude dos homens de Bedanda face à visita meteórica das duas senhoras do MNF. Esta opinião seria compartilhada por alguns comandantes de subunidades no mato, comandantes operacionais como o cap Cristo que davam o "litro e meio" e pouco ou nada recebiam em troca, dos  seus superiores hierárquicos (comando de setor, comando de agrupamento e senhores de Bissau). 

O cap Cristo, pessoa civilizada e militar aprumado, mas frontal, cumpriu naturalmente os seus deveres de hospitalidade, "oferecendo-lhes o que tínham: cerveja, uísque e conservas",  sem esquecer a  água... que era ingerível. Em contrapartida, elas nada tinham para ofecerer, para além das palmadinhas nas costas, dos sorrisos postiços e da exibição... da cor da pele:

(...) A visita tinha sido mal planeada. Uma visita deste tipo deve ser acompanhada de algumas lembranças, bolas de futebol, por exemplo, ou rádios, jogos de damas, isqueiros, cartas, algo que possa servir para atenuar o isolamento destes homens. Nada disso foi oferecido à Companhia pela delegação do MNF. 

As ofertas foram exclusivamente bate-estradas [aerogramas, na gíria da tropa, LG] que divididos pelo efectivo, davam três exemplares a cada militar. Era muito pouco para uma visita que se supunha ter por finalidade dar alguma alegria e apoio aos militares. O capitão pediu outros materiais ao MNF que nunca foram recebidos (...) [Negritos nossos] . 

No decurso da visita, o cap Cristo verificou que "uma das senhoras era mais extrovertida do que a outra. Falava muito com toda a gente, e na sala de oficiais sentou-se em cima duma mesa com as pernas a baloiçar e a saia um pouco subida, parte das coxas à mostra" (...) (pág. 340).  

Este diálogo entre os dois (a senhora só pode ser a Cilinha que, nessa altura, em fevereiro de 1966, já tinha 45 anos), reconstituído muitos anos depois, merece ser transcrito (pág. 341). É um belo naco de prosa castrense:

(...) "- Senhor capitão, há quanto tempo está aqui?

─ Onze meses, minha senhora. [Ele queria dizer sete meses, desde julho de 1965, fez mal as contas. LG ]

─ Já foi à metrópole depois de ter chegado à Guiné?

─ Ainda não. Quando cheguei vim logo para Bedanda e daqui só tenho saído para o mato. Nem a Bissau fui.

─ Então hoje está cheio de sorte.

─Não sei porquê. Só se for por ter visitas. Para quem está isolado da civilização como nós estamos, as visitas são sempre bem-vindas e dão-nos muito prazer e alegria.

─ Era disso que eu estava a falar. E as de hoje são visitas especiais. Desde há onze meses que não via uma branca e hoje teve oportunidade de ver duas.

─ É verdade minha senhora. Nesse ponto tem razão. Já não via uma mulher branca há onze meses e daqui a pouco nem sei como elas são. Hoje vejo duas brancas e duma delas vejo as pernas até às coxas. Mas como deve calcular, isso é muito pouco. Quem está aqui no mato, na situação em que nós estamos, precisa e merecia mais do que ver brancas. E a esse respeito, como sabe, estamos a zero.

─ O senhor capitão é muito exigente.

─ Não, minha senhora. Primeiro não exijo nada, nem sequer a vossa visita. Segundo, tenho trinta anos e sempre ouvi dizer que um homem é um homem e um bicho um bicho. Além disso não sou de pau. Tenho as minhas necessidades como todos os homens e o instinto mais apurado pelas dificuldades por que tenho passado no que a nossa conversa subentende.

─ Compreendo a sua situação mas mais nada posso fazer.

─ De qualquer maneira muito obrigado pela intenção e pela boa vontade.

─ Senhor capitão, está na hora de me ir embora e acredite que deixo Bedanda com pena, e também sofro com a vida de isolamento que vocês aqui levam. Tudo o que puder fazer por vocês, farei. Gostaria, se me permitisse, de me despedir dos seus soldados à moda do MNF. (...)


A despedida da líder do MNE, perante a companhia formada na parada,  foi, para surpresa de todos, feita com um valente assobio à cabreiro da Serra da Estrela:

(...) ─ Pedi ao vosso capitão para me despedir de vocês. Gostei de estar aqui convosco, estas horas, tenho pena de não poder estar mais tempo. Daqui a pouco é noite e o avião não pode levantar voo. Tenho que estar hoje em Bissau. Sei que são uma boa tropa, valentes combatentes. Estou contente por isso e deixo-vos a minha solidariedade, amizade e respeito, bem como a de todas as mulheres portuguesas que se sentem felizes por saberem, que mesmo em más condições, os soldados portugueses cumprem com eficiência as suas missões. Se me permitirem vou-me despedir “à MNF”. (...)

E o autor não deixa o leitor com água no bico, descreve o modo da despedida com detalhe e sentido de humor:

(...) Ao dizer isto, a senhora leva dois dedos à boca e solta um assobio que faria inveja a muitos pastores. Toda a companhia ficou sem saber com reagir. Esperavam tudo menos os assobio. Conseguiu surpreender. O mais surpreendido parecia ser o capitão que olhou para a senhora com uma cara de basbaque que metia aflição (...) Negritos nossos]

A seguir, o capitão  e os restantes oficiais  acompanharam as senhoras até à pista, como mandavam as boas regras da etiqueta militar. Embasbacados, "ele e os alferes ficaram na pista até o avião desaparecer no horizonte". (...) (pág. 342).

Caros leitores, digam lá se não é um texto de antologia? Parabéns ao autor. Não estamos habituados a esta lhaneza e desassombro na escrita, por parte dos militares da sua geração, oriundos da Escola do Exército... Tiro-lhe o quico, meu general!...


Guiné > s/l > Fevereiro de 1966 > Cecília Supico Pinto, então com 44 anos, na sua primeira viagem à sua "Guinezinha",  falando para um grupo de militares; em segundo plano, um dos seus "braços direitos", também elemento da comissão central do MNF,  [Amélia] Renata [Henriques de Freitas] da Cunha e Costa.  

Fotograma do vídeo (6' 43'') da RTP Arquivos > 1966-02-01 > Cecília Supico Pinto visita Guiné (Com a devida vénia...)
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Notas do editor:



Último poste da série > 9 de setembrro de  2022 >  Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 6 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22260: Fotos à procura de... uma legenda (151): Cecília Supico Pinto, em Có, em 2 de maio de 1969, distribuindo sorrisos e maços de cigarros da INTAR...


Guiné > Região de Cacheu > CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (OlossatoTeixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) >  2 de maio de 1969  > O nosso camarada, membro da Tabanca Grande (e da Magnífica Tabanca da Linha), Miguel Rocha, ex-alf mil inf, na altura a fazer as funções de comandante da companhia,  aqui a "tabaquear o caso",  com a presidente do Movimento Nacional Feminino, Cecília Supico Pinto (a menos de um mês do seu 48º aniversário natalício)... O nosso camarada "indaga da possibilidade de obter mais uns maços de tabaco para os rapazes da sua Companhia" (*)... Mas o caixote está quase vazio... e o que resta já tem destino...O caixote tem uma marca, "INTAR", que hoje a maior parte dos nossos leitores já não é capaz de decifrar...

Recorde-se que nos bons velhos tempos da indúsria tabaqueira (que fez alguns milionários e milhões de cancerosos), havia em Portugal uma situação de quase monopolio: a produçao era dominada por "A Tabaqueira", criada em 1927 por Alfredo da Silva (o fundador da CUF), a empresa líder do mercado nacional, produzia e vendia marcas de cigarros, nossas conhecidas, como Provisórios, Definitivos, Águia, Kentucky, 20 20 20, High-life, Porto, Ritz, Sintra, Monserrate ou Kayak. A sua concorrente era a INTAR (sucessora da Companhia Portuguesa de Tabacos), responsável por marcas como Estoril, Kart ou Marialvas.
 
Em 13 de maio de 1975, a Tabaqueira e a INTAR foram nacionalizadas. A empresa pública Tabaqueira - Empresa Industrial de Tabacos, E.P., criada a 30 de Junho de 1976, resultou da fusão, numa única empresa, de A Tabaqueira, SARL e da INTAR - Empresa Industrial de Tabacos, SARL. (Estas duas empresas tabaqueiras detinham praticamente a totalidade do mercado nacional de cigarros).

A cena acima retratada foto, foi recordada pelo Miguel Rocha, em poste  recente (*). E nele acrescentou:

(...) "no ano do I Centenário do Nascimento (30/05/1921) de Cecília S. Pinto, em sua memória, e com profundo respeito e admiração pela sua pessoa e sua obra, não esquecendo todas as outras Senhoras do MNF, muitas delas Mães de jovens mobilizados para as frentes de combate, venho aqui deixar meu testemunho de eterna gratidão pelo apoio dado aos combatentes na sua inegável qualidade de 'portadora de afectos' " (!) (...).(*)

Foto (e legenda): © Miguel Rocha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Desafio aos leitores (**), nomeadamente fumadores e ex-fumadores: vamos lá "tabaquear o caso" (como dizia o meu amigo e cunhado, alentejano, que a morte levou recentemente do nosso convívio)...

Vamos lá sentarmo-nos à mesa, à volta de um copo (mas sem o cigarrinho, sff...) e falar sobre a INTAR... Diz-vos alguma coisa ? Uma dica: fabricava uma marca de cigarros que, segundo a publicidade (enganosa), dava "quilómetros de prazer"... (Ou, se calhar, dava mesmo, que o prazer não é coisa que se possa objectivar, medir, avaliar, comparar...)


(**) Último poste da série >1 de maio de  2021 > Guiné 61/74 - P22160: Fotos à procura de... uma legenda (143): a continência à(s) bandeira(s) (Valdemar Queiroz)

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21447: A galeria dos meus heróis (38): Don't worry, be happy! / Não te chateies, sê feliz (Luís Graça)










Luís Graça, Tabanca de Candoz, 2011

Fotos (e legenda): © Luís Graça  (2011) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis >  Don't worry, be happy! 

por Luís Graça


1. O que é que um gajo faz, das oito às nove, junto à entrada de um hospital, para mais oncológico ?

Aqui, esperas, desesperas, esperas. Que a esperança é a última coisa a morrer, diziam-te na tropa os gajos mais otimistas, os safados dos instrutores, coirões velhos,  cabos RD, readmitidos, que sabiam que já não iam à guerra, nem nunca morreriam pela Pátria.

Joga-se com a teoria das probabilidades: daqui a cinco a anos, terás cinco por cento de hipóteses de estar vivo, se te diagnosticarem um cancro no pâncreas, diz o teu amigo que está lá dentro a esta hora… Pálido como a cal da parede, sentado na sala de espera, esperando o pior, imaginas tu...Como o réu que aguarda a sentença do juiz...

Também ele espera, desespera, espera. Imaginas tu, que nunca entraste no IPO, por medo, por superstição, ou muito simplesmente porque nunca até agora precisaste de lá ir.  (Cruzes, canhoto!)... 

Enganas-te, já não se pintam paredes com cal, que era antigamente um bom desinfetante. Nem se cobrem os mortos com cal, hoje são cremados, sobretudo se morrerem de cancro. Dantes, no tempo em que morreu a tua mãe, não se pronunciava sequer a palavra cancro, escrevia-se nos jornais, na notícia necrológica, que o fulano de tal morrera de doença de evolução prolongada. Ou maligna. Um eufemismo. Um pudor hipocrático. Uma hipocrisia social. Como se houvesse doenças benignas!...

Esperas dentro do carro, mal estacionado, em segunda fila. E, talvez para não desesperares, jogas o jogo do “voyeurista”. Não, não espreitas o mundo pelo buraco da fechadura, mas estás meio escondido, na semiobscuridade do interior do teu carro, a ver o que se passa lá fora, à tua volta… Simplesmente, para passar o tempo, fazer horas... Não sejas cínico: estás apenas a tentar a disfarçar o nervoso miudinho, a tentar esquecer ao que vieste, acompanhar um amigo em sofrimento, com uma espada de Dâmocles em cima da cabeça...

Do teu posto de observação, vê-se num raio de noventa graus. Aqui o teu olhar, mesmo distraído, é seletivo. O olho de periscópio do camaleão podia ter-te dado jeito lá na guerra, quando atravessavas a bolanha ou cambavas o rio, mas não aqui, que tens para ver apenas o que se passa entre o nº 15 e o nº 19 do prédio ou prédios, à tua frente, no início da Av Madame Curie.

Por uma questão, digamos, de eficiência oftalmológica, tens de estreitar o teu campo de visão. É um ângulo de noventa graus, abarcando sensivelmente um quarto do pequeno, pequeníssimo, mundo que te circunda.

E que nada tem de deslumbrante, empolgante ou até de interessante essa nesga do planeta. O que vês é o pequeno mundo do formigueiro humano, mesmo que seja gigante aos olhos da formiga: a saída de casa para a rua, o metro, o trabalho, o café, a creche, a escola, o hospital, ou o simples passeio higiénico com o cão pela trela… Nem sequer vês quem entra e quem sai do IPO, estás de costas, uns com cancro,  outros sem cancro... Mas era talvez o único sítio que te deveria prender a atenção: daqui a um bocado o teu amigo (e antigo camarada de armas) sai, cabisbaixo ou de cabeça erguida…

Estás inclinado a apostar que ele sairá de cabeça erguida, mesmo com um prognóstico reservado: era, tanto quanto te lembras dele na Guiné, à distância de meio século,  um dos gajos tesos, que mostravam grande lucidez, dignidade, calculismo, sangue-frio  e coragem na adversidade. Qualidades, de resto, que lhe valeram um louvor. 

Nunca tiveste grandes amigos. Se é que tiveste amigos... E muito menos daqueles do peito, como se costuma dizer. Este é um deles, dos muito poucos que te ficaram para a vida.  Estiveram, ambos, na guerra. Sempre te tratou por "mano". Ele, o Zé Conde,  era um exímio caçador, e tu um reles fotógrafo amador, nas horas vagas. 

Ele sempre foi muito mais corajoso e determinado do que tu: como  caçador saía ao lusco-fusco, sempre convicto de que ia caçar alguma coisa de jeito, na orla da bolanha  ou, à noite, no fim da pista de aviação. Quem espera, sempre alcança. E ele apanhava, lebres,  galinhas de mato, rolas, raramente caça grossa, uma gazela ou um javali. Qualquer coisa, enfim, com que a malta pudesse matar a malvada nos dias seguintes, lá na messe. 

Tu eras como o fotojornalista do quotidiano: punhas a máquina a tiracolo, e ias dar um giro domingueiro pelas tabancas. Nunca fostes capaz de levar a máquina para o mato, para uma operação. Aliás, nunca fostes sequer um fotógrafo de jeito. E  perdeste tantos momentos de tirar fotos com sangue, suor e lágrimas,  ou seja com emoção, que é afinal o sal da vida!

Há tempos ele pediu-te para o acompanhares até ao IPO. "Alguma coisa de grave?", pergunta, estúpida, da tua parte. "Eh!, pá, porra...parece que estou com um cancro", respondeu-te ele...Ele não disse logo cancro, disse carcinoma, neoplasia, linfoma, ou outra merda qualquer,  enfim, um vocábulo mais técnico, mais neutro, mai<<<s tranquilizador... "Mas hoje não há nada que não tenha remédio, até o sacana do cancro", arrematou depois, com ironia. "Parece que estou  com um cancro na próstata... Fiz uma biópsia, vou lá saber o veredicto".

Ficaste sem pinga de sangue, sem jeito para lhe responder, assim apanhado de chofre. Balbuciaste umas palavras, secas,  de solidariedade: " Os amigos são para as ocasiões... Vou contigo ao IPO, nunca lá entrei... mas a gente desenrasca-se".

Em Lisboa não tem ninguém. E dos dois filhos, o que está mais perto é em Angola, de quem, aliás,  és padrinho de casamento . Tem um outro na Austrália. Somos um raio de um povo repartido pelos cinco continentes, com os filhos, os sobrinhos  e os netos separados dos pais, dos tios e dos avós.  

E quem vem da província, não está habituado ao trânsito de Lisboa. Foste buscá-lo ontem a Sete Rios. Desta vez, veio no "Expresso", de vespera. Ficou na tua "morança", agora demasiado grande para um homem que vive só. Ofereceste-te para ir buscá-lo a casa. Recusou, polidamente. Se tivesses insistido, teria aceite, Quando vier aos tratamentos, se vier, virá de ambulância. É sócio dos bombeiros da terra, não longe da capital, em Samora Correia. Trabalhou como técnico agrícola lá nas Lezírias.

2. Farmácia Curie, nº 15A. Frente à entrada principal do IPO. Grande cartaz publicitário, que cobre a montra. Faz propaganda a um “medicamento” que, depois, vai-se a saber, é apenas uma “vitamina”… Uma "mesinha", como se dizia na Guiné. Do Laboratório Militar, que dava para tudo, até para a tusa, o paludismo, a dor de corno, a saudade, a neuratesnia, o medo ...Tomava-se com uísque, as "pastilhas LM"...

Mas qual a diferença entre uma coisa e outra, numa botica onde é pressuposto vender-se tudo o que te faz bem à saúde e até o que te mata ?!...E ainda por cima tem o nome de alguém, uma mulher, que nunca foi boticária, a Madame Curie, a avaliar pelo que sabes das palavras cruzadas. Prémio Nobel de qualquer coisa, física ou química, sabes lá.

“Absorvit – don't worry, be happy!”: em inglês, em letras garrafais, para consumo do turista estrangeiro que, por engano, se aventurar por estas bandas da cidade onde o trânsito é caótico, por causa das obras na Praça de Espanha.

E, logo a seguir, em letras mais pequenas, tipo legenda de filme, para o indígena lusitano, tratado por você, por deferência ou cinismo: “Sente-se em baixo ? Viva o seu lado positivo da vida”. (Eh!, pá, o gajo que traduziu a frase, devia ter chumbado no exame em inglês!).

Mas adiante: ficas a saber que o “Absorvit é muita vitamina”… E registas no teu bloco de notas: “A vida tem dois lados, ou dois polos: um positivo, outro negativo. E às vezes funde-se como as lâmpadas”. Já lá vai o tempo em que se fabricavam lâmpadas elétricas e fusíveis para toda a vida... Que bom, quando na vida não havia curto-circuitos ! (... Idiota, quem te meteu essa cabeça ?!)

Fazes coleção de frases feitas, expressões lapidares, lugares comuns, grafitos, provérbios excêntricos, anexins, citações famosas... É um dos teus passatempos, além da sopa de letras, no café do teu bairro, com a bica depois do almoço. Disseram-te que era bom para prevenir o Alzheimer, ou pelo menos adiá-lo. És um hipocondríco de merda, tens um medo das doenças que te pelas. De resto, quem não tem ? Até os médicos e os padres... Espantosamente os muros do IPO parecem estar livres dessa peste dos grafiteiros. Talvez os gajos  sejam supersticiosos e lá, no íntimo, tenham um medo do caraças do deus do cancro que os vigia, qual big brother. Não acreditas em deus, mas começas a suspeitar que há um deus do cancro.

E vem-te á cabeça, uma frase cruel que te iumpressionou, do Camilo Castelo Branco, nas "Memórias do Càcere"... Deixa-me ver se a encontro aqui... ""Ignoro (...) se Deus deixou remédio para os defeitos das suas obras; confesso só que é ukm blasfemo atrevimento querer-lhas corrigir"...

Enfim, ficas a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, rádio, quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste ?

Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita  pneumonia, a seguir a uma  vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdical, sezóes de África ? ... Chegaste a temer tratar-se da doença nova que então espalhava o terror entre a malta que estivera em África, o HIV-Sida. No teu caso, na Guiné e depois em Angola. Lembras-te do médico que não conseguiu escondeu o nervosismo: depois de te apalpar no baixo ventre, foi logo direitinho ao lavatório do cubículo para lavar as mãos... O que estranhaste: os médicos que tu conhecias, até então não lavavam as mãos à gfrehte do doente...

Deixaste de fumar por conselho médico, mas sobretudo por medo do cancro do pulmão. “O medo tem muita força, meu amigo”, diz o Zé Conde que está lá dentro à espera do veredicto dos médicos. Como se os médicos tivessem o poder da vida ou da morte. Ou não têm ?!


3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano"  e teu compadre que vieste acompanhar.  Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Acabaste por nascer prematuro.

Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto. 

Continuas mal estacionado, agora no lugar reservado às cargas e descargas da farmácia e estabelecimentos contíguos. A esta hora da manhã já não há lugares livres para estacionar. Aqui e no quarteirão à volta, delimitado pelos muros do IPO, a Av Madame Curie e a Rua Professor Lima Basto. Tiveste que fixar os nomes das ruas e chegar  ao IPO pelo GPS... Estás em Lisboa há uma porrada de anos, e ainda há sítios que tu não conheces... 

Nem a pagantes, lá dentro ou cá fora, há lugares de estacionamento. O lisboeta não gosta de pagar o estacionamento do carro. Daqui um bocado o gajo da EMEL ou o polícia municipal vai chatear-te. Mas ainda é cedo. Não te enerves. 

À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar  com
 o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces.

Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na guerra. Mas tentam,  uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da  multidão, ao dobrar da esquina. Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro.

As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus,  dão pão de plástico às criancinhas ?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.

Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras.  Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19 ? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando   lá  estiveste. 
Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta.

Não é mal pensado, um  comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve). 

E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário,  IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro". 

Se o polícia te aparecer a chatear-te, dizes que estás à espera de um doente. O que é  verdade mas não adianta. Ele põe-te a mexer. E, se refilares, ameaça-te com  "o papelinho da multa", a arma dos pequenos poderes. Dantes, na tropa, embrulhavam-te em papel selado. Ainda és desse tempo, vê como estás velho. Agora acabaram com o papel selado. Azul. Vinte e cinco linhas. E margens regulamentares.

Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função. 

4. Não sabes qual é a função do pâncreas mas deve ser um órgão fodido...Devias saber mais da anatomia e fisiologia do corpo humano. E a função do fígado ? E do baço ? E da tripa ?  E até do raio da próstata!... Nunca deste conta da tua... 

"Don't worry, be happy": é a melhor frase do dia, regista-a aí, no teu caderninho. Se tu a repetires muitas vezes ao longo do dia, talvez resulte e tu consigas chegar à tua casa, vazia, onde ninguém te espera, nem um cão nem um gato,  no Bairro de Santos, com o ar de quem ainda pode vir a esperar algumas coisas boas da vida, e até dar-se ao luxo de aspirar a ser feliz. Põe a felicidade na tua lista de desejos a pedir ao Pai Natal. se ainda acreditas nalguma coisa.

Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo ?" Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te " "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!". 

Mas, não, não tens psicoterapeuta, se calhar até gostavas de ter, a tua ex, a segunda,  também tinha, as amigas dela também tinham... Os psis faziam parte da herança de família mas tu é que pagavas a conta... Nunca deu certo um gajo ir para África trabalhar quem nem um mouro e deixar cá as gajas, o cão e o gato. Hoje não tens mulheres, nem cães, nem gatos.

"Don't worry, be happy!"...É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico. 

Mas reparaste, logo à entrada do IPO, num cartaz de 2 por 2 metros com os dizeres: "IPO sem tabaco"... Ao fim destes anos todos ? ... Afinal, tu estás muito à frente do IPO... Tu conseguiste deixar de fumar, depois de apanhares um cagaço... O cagaço faz bem à saúde. Os fumadores deviam apanhar um cagaço. Um pequeno cagaço não lhes faria mal.

Uma jovem sai do nº 15 para o trabalho com a lancheira na mão. Também está na moda, a lancheira na mão, de casa  para o trabalho... O que fará ela ?... "Call centre", adivinhas tu!...Bingo!... Mais uma aventura do país dos "call centre".

Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor.

Um assistente operacional (é assim que  se diz  agora ?!, dantes dizia-se operário), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações.  És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes. 

Porra, afinal o que faz mal à saúde, é um gajo estar vivo!... A vida é que faz mal ao cancro!...O cancro da mama, do esófago, da próstata, do pàncreas, da pele, do fígado, dos pulmões...

Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação ? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias,  com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente.

Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e tão terno,  há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária ? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)

Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que  estás hoje mais sensível e intolerante ?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.

Mais uma mãe com a criancinha pela mão. Saem batas brancas, de vez em quando, do IPO. Vêm aqui tomar qualquer coisa na Pastelaria. Não dá para ver o que consomem nem muito menos para ouvir as conversas lá dentro. Uma bata branca sentou-se cá fora, puxa de um cigarro. O café puxa o cigarro, ainda te lembras do teu vício quando fumavas nos anos 80 ?... Grande estúpido!

Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no caderninho,.

A Farmácia Curie não tem mãos  a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os SPA, os ginásios, os hospitais. "Teme a velhice, que nunca vem só", apontaste há dia este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Vade mecum", também lhe chamas.

Os estabelecimentos estão todos bem situados, só o nº 15 é que te parece ser uma entrada de um prédio de habitação, com porteira. Se contaste bem, o prédio tem quatro andares e, pelo estilo e estado de conservação, deve ser dos anos 30.  Disso percebes tu, que foste encarregado de obras, ganhaste bom patacão no tempo da Expo... (Patacão, graveto, cacau... em crioulo da Guiné.)

A menina do restaurante Quinta Avenida veio, agora, fardada a rigor, de preto,  e com um guardanapo branco no braço, fumar cá fora um cigarro eletrónico. Adoras as mulheres fardadas, ficam com um ar sexy, quando combinam bem o preto e o branco. Um adolescente de origem africana, auscultadores nos ouvidos, passa a falar alto ao telemóvel, e a gesticular, com ar gingão de rapper angolano. Parece feliz. A vida é bela quando um gajo está na casa dos verdes anos e não tem que ir para a puta da guerra, como tu foste na idade dele. Ou não está à espera de um amigo, à porta do IPO.

Mais um estúpido de um gajo a fumar à porta do Bolgani Desperta Caxito. Deve ter 60 anos. Sabes lá se tem 60 anos, nunca foste bom a tirar idades... Nem pintas.  Se tivesses tirado a pinta à tua, nunca te terias casado com ela, nem ela te deixaria viúvo aos 40 e picos anos. Porra, mal tiveste tempo de a amar!

Mais um jovem e uma velha a fumar na esplanada. Na papelaria, o negócio do tabaco e da raspadinha continua em alta, e ainda o dia é uma criança. Estás visivelmente irritado com a demora do teu amigo...E o IPO ali ao lado, a mexer-te com os nervos.

5. Desistes aqui do teu jogo, desistes de continuar a observar e a registar o formigueiro humano. Fechas o vidro do carrro mas ainda dá para ver a mulher da limpeza da farmácia a apanhar as beatas que formam  uns montinhos à porta. Tudo por causa da merda da raspadinha. Deviam depositar o lixo à porta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a tal fábrica de fazer milionários excêntricos.

Pelo retrovisor, apercebes-te que o teu amigo, camarada e compadre está de volta, o rosto inexpressivo, impávido e sereno, como nos dias, de manhã muito cedo, em que iam, os dois, de Unimog, cada um a comandar a sua secção, encher os bidões de água na "Fonte das Bajudas" (ou das "beijudas", dizia ele, marialva do Ribatejo)

- Está no ir, mano : começo para a semana a quimeoterapia,  daqui a umas semanas radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me  o urologista...

Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se!, sè feliz!"

Não falaram mais  pelo caminho, foste levá-o a casa, a 30 ou 40 quilómetros de Lisboa. Mas reviste, nessa manhã, na viagem de regresso, todo o filme da morte do "Campino", filho e neto de campinos, que era o condutor da GMC que transportava os bidões da água. Era um filme com cinquenta anos, a preto e a branco, com duas testemunhas,  mudas e impotentes, tu e o Zé Conde, o teu doente do IPO... 

Mas um gajo, por muito que queira, não esquece o que viu e sofreu. Há meses que não havia sinais de atividade do IN (abreviatura de Inimigo, o turra), nas imediações do quartel, a menos de dois ou três quilómetros.  Era uma operação de rotina, duas ou três vezes por semana. A água era racionada. Deixou de se picar o caminho quando se ia à água da "Fonte das Bajudas", de resto frequentada pela população local, maioritariamente fula... Os gajos nunca punham minas antipessoais. Até esse dia fatídico em que o "Campino", que ia à frente,  acionou uma mina anticarro  reforçada, já no início da época das chuvas.  

Restos do seu corpo e da pesada viatura foram encontrados num raio de cento e tal metros. Era um puto porreiro, deixou viúva e uma filha que nunca chegou a conhecer. Falava muito com o furriel Zé Conde, eram os dois ribatejanos,  e trabalhavam  antes da tropa na Quinta do Infantado, na Companhia das Lezírias,  na coudelaria. Adorava touros e cavalos.  Lembraste-te sempre dele, quando passas por aqui, por Porto Alto. 

Ao chegar a Samora Correia, à porta do restaurante, já conhecido,  onde almoçariam enguias fritas e umas sandochas de codorniz desossada, no Tretas & Lérias, o Zé Conde, o teu doente do IPO, só te disse, com um sorriso amarelo:

- Lembras-te ?... Há cinquenta anos,  a gente costumava dizer um para o outro: não te chateies, mano,  a vida continua... dentro de momentos!

- "Don't worry, be happy!" - martelaste tu, très vezes,  com a cabeça no retrovisor...

© Luís Graça (202o). Revisto: junho de 2023.