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terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18218: Historiografia da presença portuguesa em África (107): Alfa Moló (c 1820-1881) e Mussá Moló (1846-1931), heróis de todos os fulas, tanto dos fulas-pretos (antigos servos) como dos fulas-forros (antigos senhores), uns e outros oprimidos pelos mandingas (Cherno Baldé, Bissau)




Mussá Moló, tendo à sua direita Dembá Dançá, e à sua esquerda Maransará, chefe-de-guerra deste último (in Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate. An Official Handbook, London, 1906). [O Cherno Baldé leu mal a legenda: a foto não é do Alfa Moló mas do filho, Mussá Moló].

Cortesia de Armando Tavares da Silva (2018)

Comentários do Cherno Baldé ao poste P18216 (*)
Cherno Baldé, Bissau

1. Caro amigo Armando: Muito obrigado pelos importantes subsídios para a história da Guiné. Obrigado, também, pela imagem do lendário Alfa Moló Baldé [, não, trata-se do Mussá Moló].

Dizem que o seu apelido original [do Alfa Moló], antes do cativeiro, seria Culubali. O Baldé era o apelido do seu Senhor e Suserano que ele foi obrigado a adoptar, como se fazia na época. Para quem não sabia, é isto que explica o número elevado de famílias "Baldé" no antigo território por eles governado, onde a maior parte eram descendentes de antigos captivos. "os fulas-pretos".

O Demba Dança, ou Dansa, era irmão mais novo e herdeiro legítimo do irmão Alfa Moló Baldé, facto que a administração colonial não compreendia na altura, tomando-o por um simples aventureiro, arruaceiro.

O Mussa Moló era o filho, pelo que, de acordo com os usos e costumes da época, devia esperar até chegar a sua vez. Não quis e usurpou o poder no meio de muita guerra e intriga palaciana, entre fulas-pretos, fulas-forros, futa-fulas, mandingas em decadência, beafadas e potências estrangeiras. [Morreu em 1931]

2. Caro Luis, duvido que encontres o topónimo Cabucussara. Deves ver o Cabu na persprctiva de Gabu e Cussará poderia ser a actual Cossaraá (Regulado de Bafatá) ou Gussará. Assim Cabucussara deveria ser Cossara ou Gussara do Gabu ou Cabu em mandinga.

Gostei imenso de ler estes textos e os mapas da época apresentados por Armando T. Silva. Espero ver um bom trabalho da história da Guiné contada, desta vez, pela voz de quem conhece.

3. Como se costuma dizer, uma imagem vale mais do que muitas palavras. A imagem do (Alfa) Moló Baldé corresponde bem ao que ouvimos dos nossos pais e avós, de um homem simples que, certamente, estava imbuído do alto espírito e designo de libertar os fulas da opressao insuportável a que estavam sujeitos pelos mandingas durante séculos. Não tinha ambicoes imperialistas.

A sua ligação ao Futa-Djalon é atestado pelo título que recebeu: "Alfa" quer dizer Chefe de Província, um pouco abaixo do titulo imperial de " Almame" que estava reservado ao Chefe teocrático do Futa, o Ibrahima Sory Maudo e seus sucessores.

Já o seu filho, Mussa Molo, era mais ambicioso e em consequência, mais belicoso. Todavia, os tempos tinham mudado e, na região. tinham chegado os Europeus que teriam a sua palavra a dizer no contexto da região, da África e do mundo.

4. Após consulta a alguns sites na Net, constatei que a foto que acompanha o texto não é o de Alfa Molo, mas o de Mussa Moló, seu filho.

O Alfa Molo ou Molo Egué (nome original) não teria feições tão finas e bonitas como o Mussá Molo. Pois que este último tinha nascido da união de seu pai (Molo Egué) com a Cumba Udé, filha do seu Senhor que era fula-Forro.

Também a data que consta na foto (1913) indica claramente que não poderia ser o pai pois este morreu em 1881 na localidade de Dandum Cossara que ele escolhera para capital do império de Fuladu e que se estendia entre as bacias dos rios Geba e Gâmbia.

Dandum Cossara ou Gussara situa-se a cerca de 15 km a nordeste de Bafatá, na Estrada antiga que ligava Bafatá a Contuboel. Estou convencido que o tal topónimo de Cabucussara seria a junção de duas palavras ou seja Cabu+Cussara e há fortes probabilidades de estar ligado com a história do actual regulado de Cossara ou Gussara.

Quanto ao conteúdo do titulo de que o Alfa Moló e seu filho seriam heróis dos fulas pretos, acho que não é bem assim, eles ainda hoje são considerados como os heróis de todos os fulas, sejam eles Forros (antigos senhores), sejam Pretos (antigos servos), na realidade todos eles eram servos dos mandingas e foi contra estes que todos os Fulas se reuniram para acabar, aparentemente, com os seus abusos de poder.


A propósito destes heróis Fulas, Amílcar Cabral, no livro da “História da Guiné e as ilhas de Cabo-Verde, diria assim: "...sempre que os africanos se levantaram para lutar e libertar os seus irmãos da dominação e da tirania dos outros, acabaram por se transformar ainda em maiores tiranos e continuar a oprimir os seus próprios irmãos".

Ironia de destino, o movimento de libertação que o próprio criou e dirigiu, o PAIGC, acabaria por se transformar na pior de todas as tiranias que os nossos povos jamais conheceram e, ainda hoje, continuamos a ser reféns da ditadura militar que nos impuseram e para a qual não encontramos saída.

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terça-feira, 28 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22577: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VII: A lenda de Alfa Moló






A lenda de Alfa Moló - belíssimas ilustrações do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos maiores ilustradores e autores de banda desenhada (pp. 49, 50, 52 e 53)


1. Transcrição das págs. 50 a 54 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5.



A lenda de Alfa Moló (pp. 50-54)


Um dia, um pobre mendigo chegou à tabanca (21)  de Amedalai (22) e,  pretendendo descansar, pediu hospitalidade em várias casas, mas todas elas a recusaram.

Até que chegou a uma pobre casa, onde uma mulher, apesar de o maridon não estar presente, o recebeu e lhe matou a fome.

Quando o marido, Moló Eigué, chegou, ficou contente pela hospitalidade dada pela sua mulher, pois fazia gosto e tinha orgulho em receber bem quem o visitasse.

Moló Eigué ao conversar com o mendigo, ficou admirado com a sua sabedoria, pois nunca tinha conhecido um mendigo tão sábio. Na verdade, o mendigo era um grande marabu (23) de nome Seiku Umarú (24), que viajava disfarçado de mendigo.

Depois de descansar, o mendigo decidiu seguir viagem, e Moló Eigué fez questão de o acompanhar.

Moló Eigué acompanhou o marabu de Amedalai até Coli (25) , e aí chegados, o marabu despediu-se, dizendo-lhe:

 Todas as terras que comigo percorreste, serão tuas, este será o teu Reino, pois é essa a vontade de Alá.

Moló Eigué ficou confuso e sem compreender as palavras do marabu. Como seria possível ele tornar-se Rei, sendo ele apenas um servo (26) de um rico fula, Samba Eigué, de quem já os seus pais também tinham sido servos…

Moló Eigué tinha em sua casa um carneiro do qual gostava muito, pois estava ensinado de tal maneira, que era como uma pessoa. Andava sempre atrás dele e até quando comia, o carneiro estava ao seu lado.

Um dia, ao voltar da caça, sentou-se à mesa para comer, e o carneiro não apareceu. Então ele perguntou à mulher:

 Onde está o meu carneiro?

A mulher respondeu-lhe:

– Eu queria que você comesse primeiro, para depois lhe contar. Os guerreiros mandingas vieram e levaram o seu carneiro para Cansalá. O Mansa Djanqui
Uali mandou levar o gado de todas as pessoas.

 O quê? –  disse Moló Eigué,  afastando a tigela com a comida.

Sem mais palavras montou no seu cavalo e cavalgou para Cansalá. Quando chegou à fortificação de Cansalá, Moló Eigué pediu aos guardas para falar com o Mansa.

 Está louco! Não pode falar com Mansa  disseram os guardas.

 Roubaram o meu carneiro, e eu quero o meu carneiro de volta! – exclamou Moló Eigué furioso.

 Cuidado, não fales mais assim, senão morres! O carneiro foi o almoço do Mansa. Vai caçar um porco do mato - responderam os guardas rindo.

 O Mansa vai pagar muito caro este carneiro  disse Moló Eigué e abandonou Cansalá.

Moló Eigué foi de tabanca em tabanca, apelando à revolta:

 Os mandingas estão a abusar, não nos respeitam, não param de aumentar os impostos, roubam as nossas coisas, tratam-nos como escravos, temos que nos revoltar.

Alguns responderam:

– Os mandingas são muito poderosos, nós não conseguimos vencê-los.

Moló Eigué a isto respondeu:

 Eu vou lutar! Se não me ajudarem a lutar, terão que fugir, porque quando as balas começarem a voar, então todos terão que fugir.

Muitos homens vieram juntar-se a Moló Eigué, pedindo-lhe para os guiar na luta contra o domínio mandinga, pois por todo o lado se iniciavam focos de revolta contra os abusos mandingas e era grande a vontade de substituir os reinos mandingas por reinos fulas. Além disso os fulas do Reino do Futa Djalon (27) tinham desencadeado uma jihad contra os reinos animistas, e era obrigação de todos os muçulmanos juntarem-se a essa jihad.

Moló Eigué era um devoto muçulmano, que possuía estudos corânicos, era
respeitado, e era também um famoso caçador, o que fazia dele o homem certo
para os conduzir nessa guerra. Assim ele tornou-se o líder de um grupo de 400
homens, na luta contra os mandingas animistas (28) do Império de Cabú.
 
As palavras do marabu, começavam agora a fazer sentido para Moló Eigué.
Moló Eigue pagou o seu resgate ao seu senhor, o nobre Samba Eigué, tornando-se um homem livre, e partiu para a guerra. E embora o seu nome fosse Moló Eigué Baldé, ficou para sempre conhecido como Alfa Moló.

A floresta onde Alfa Moló e muitos dos seus companheiros costumavam caçar, tornou-se a base para lançar a revolta, contra o Império animista de Cabú.

Após a derrota dos mandingas e a destruição da sua capital, Cansalá, o Reino do Firdu é alargado até Coli, com Alfa Moló como Rei, tal como o marabu tinha predito.

O nobre fula Samba Eigué, antigo senhor de Alfa Moló, não aceitou que este pudesse ser agora o Rei de Firdu, e furioso pelo poder que este tinha conquistado,
gritou:

 Um escravo não vai governar aqui!

Desencadeou-se assim uma guerra entre os fulas, mas Alfa Moló (29), com a ajuda do seu filho Mussá Moló e dos seus aliados, venceu os seus inimigos fulas, e tornou-se senhor incontestado do Reino de Firdu.

O Reino de Firdu tornou-se assim um Reino de fulas-pretos (30), um Reino em que os antigos escravos e servos são agora os novos senhores. (**)

 Esta é  uma das lendas de Alfa Moló.

Alfa Moló conseguiu um Reino, mas o seu filho Musá Moló teve que continuar a sua luta para manter o Reino do Firdu, pois continuaram a existir lutas internas entre os fulas.

Mussá Moló, para assegurar o seu poder e combater os seus inimigos, fez novas alianças. Uma das mais importantes foi a aliança com os franceses, mas isso não alterou o fim do Reino do Firdu, pois o fim dos Impérios Africanos estava próximo, e os novos senhores seriam em breve os países europeus.

__________

Notas do autor:

(21) Tabanca - é a designação usada para aldeia, a qual tem origem no
termo crioulo tabanka.

(22) Amedalai - situa-se no Firdu.

(23) Marabu - designação dada aos religiosos muçulmanos considerados santos ou sábios, nalguns textos é usado o termo mouro, que tem o mesmo significado. Os marabus tinham grande influência na socie dade fula e mandinga, eram homens letrados, muitas vezes considerados homens santos. Estes homens entendiam que o seu poder era uma emanação de Deus graças ao profeta Maomé, e que era sua obrigação levar a verdade divina aos povos pagãos, que consideram bárbaros ignorantes.

(24) Seku Umaru – um grande marabu também conhecido pelo nome El Hadgi Omar

(25) Coli - o Rio Coli faz fronteira a leste da Guiné-Bissau com a Guiné Conacri, perto de Piche.

(26) Escravos e servos - era costume fulas e mandingas possuírem escravos e servos, Artur Augusto da Silva, na pag. 29 de “Usos e Costumes Jurídicos dos Mandingas”, faz a diferenciação entre estes estatutos sociais:

“Escravos - constituem esta classe os prisioneiros de guerra, aqueles que eram comprados e os que se entregavam voluntária ou compulsivamente para pagamento de uma dívida, e ainda os seus filhos.

Servos - que podiam ser da gleba, quando eram dados em recompensa a algum guerreiro juntamente com a terra a que ficavam adstritos por si e seus filhos, ou servos de ofícios, adquiridos pelos nobres para trabalharem em qualquer oficio. Além da casta a que pertenciam devido ao ofício exercido, eram servos porque trabalhavam por conta de outrem e eram sua propriedade.”

(27) Futa Djalon - O Reino Futa Djalon ou Futa Jalon, foi fundado em 1725, e estava localizado a sul do Império de Cabú, na Guiné-Conacri (República da Guiné).

(28) Mandingas animistas - são igualmente chamados de soninquês.

(29) Alfa Môlo - segundo René Pélissier na “História da Guiné I”, na pag. 212 refere que foi “Rei do Firdu, tendo rejeitado praticamente a tutela do Futa-Djalon, Alfa Molo foi, de 1869 até poucos anos antes da sua morte (1881), um dos coveiros do Gabu e, por todos os meios,
procurou manter a sua independência em relação aos Fulas-Forros.”
 
30 Fula-preto - é a designação dada aos fulas com origens noutras etnias que foram dominadas pelos fulas, e que seguiram o modo de vida fula, na sua maior parte são oriundos das etnias mandingas e beafadas, e de casamentos destes com fulas forros, e futa-fulas.

Fulas-forros - é a designação dada aos fulas originários do antigo Forreá.

Segundo o livro de José Mendes Moreira “Os fulas do Gabú”, o nome teria origem no nome dado à terra conquistada aos beafadas,

Forriá, que significa na língua fula “terra da liberdade”.

Futa-fulas - é a designação dada aos fulas originários do Futa Djalon (reino situado na Guiné-Conacri), normalmente têm as têmporas da face marcada por uma dupla incisão vertical ( || ).

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?


Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

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BIC MPIOPTP

Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com

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10 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P19966: Historiografia da presença portuguesa em África (166): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - II (e última) Parte

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22788: Memória dos lugares (433): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte IV


Guiné > Região de Bafatá > Carta de Bafatá (1955 ) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bafatá, de Dando e  de Tabatô. A distância entre Dando e Tabatô, em linha reta, é de cerca de 4,5 km.   Dando fica na estrada Bafaftá-Gabu. A distância é sensivelmente a mesma: Bafatá-Tabatô (na estrada para Contuboel) e Bafatá-Dando (na estrada para Gabu): cerca de 10 km. O Dando (ou Dandum) é referido pelo grande repórter do "Diário de Lisboa",  Norberto Lopes, na sua viagem à Guiné, na crónica publicada em 27 de fevereiro de 1947 (*). Eis aqui um excerto:

"A caminho do Gabu, a circunscrição do extremo Norte da Colónia, a mais extensa e a menos povoada das nove circunscrições em que se divide a Guiné,passamos na pitoresca tabanca de Dandum, à beira da estrada, onde o régulo  Idriss Alfá Baldé, nos faz as honras da sua morança e nos apresenta, como é da praxe, à sua corte de mulheres e conselheiros. Entre eles, figura o 'judeu' ou 'jalifó', espécie de bobo encarregado de divertir o seu senhor e de lhe exaltar as proezas numa lenga-lenga monótona e interminável, que é as mais das vezes produto da sua fértil imnaginação.

"O velho régulo de Dandum, que gozava de grande prestígio no Gabu, onde  não esqueceu ainda a fama de Monjuro Embalô,o famoso régulo de Coiada, último representante da dinastia gloriosa dos Emablªo-Cunda, morreu em 1944, com 88 anos de idade, caso raro entre os fulas que em geral não  não ultrapassam a médis dos 70!"... (E depois tem dois parágrafos com uma curiosa explicação da "decadência dos fulas", outrora uma tribo viril de pastores e guerreiros, atribuída à deficiente alimentação e ao uso e abuso da npoz de cola pelos jovens e pelos adultos...) (*).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)




A lenda de Alfa Moló: uma das belíssimas ilustração do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos maiores ilustradores e autores de banda desenhada. In: "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5.  
Com a devida vénia..


1. Dois comentários, de 24 e 25 de novembro de 2021,  de Cherno Baldé ao poste P22471 (**):


[ Cherno Baldé: nosso colaborador permanente, e nosso especialista em questões etno-linguísticas, nasceu no chão fula, e é muçulmano; tem formação universitária tirada na antiga União Soviética e em Portugal; é e um acérrimo crítico dos "demónios étnicos" que estão longe de ter sido esconjurados e expulsos do seu país;  além disso, é  membro da nossa Tabanca Grande desde 16/8/2009; com cerca de 240  referências no nosso blogue, é autor da notável série "Memórias do Chico, menino e moço"]

 

(i) Caros amigos,

Acho que a melodiosa música Afro-Mandinga” tomou conta da cena, de toda a plateia de admiradores,  e embriagou alguns analistas da actualidade da Senegâmbia no geral e da pequena Guiné-Bissau em particular de forma que muitos estão a ver a árvore, ignorando a floresta.

Para compreender as origens e existencia deTabató, deve-se antes de mais compreender a história da localidade de Dandum (Dando) ou melhor da trajectoria do Alfa Molo Baldé, o rei de Firdu ou Fuladu,  cuja historia de vida ja aqui foi evocado varias vezes.

O túmulo de que a antropóloga brasileira [, Carolina Carret Höfs, autora da tese doutoramento " Griots cosmopolitas : mobilidade e performance de artistas mandingas entre Lisboa e Guiné-Bissa", Lisboa, Universidade de Lisboa, 2014] , se refere é precisamente o de Alfa Moló, pai de Mussa Moló, ambos régulos de um dos últimos reinos da Africa Ocidental em substituição do Império de Gabu na segunda metade do séc. XIX.

Os griots (músicos) profissionais mandingas da linhagem dos Djabaté, como era seu hábito ao longo de séculos, teriam vindo da Guiné-Conakri (Kankan) ou convidados, como diz a narrativa, para trabalhar à sombra da nova dinastia Fula,  vencedora da guerra que tinha oposto a coligação das forças muçulmanas contra os animistas Soninqués do império de Gabu (e não fulas contra mandingas, como os portugueses a apelidaram no intuito de tirar proveitos de dividir para reinar).

E, Dandum,  no período entre a queda de Cansala (1867), o desaparecimento fisico de Alfa Moló (1881) e a fuga de Mussa Moló  para a Gâmbia, para tentar escapar da tutela da França (1903), foi o centro e capital de toda a região sul do reino de Fuladu e, como tal atraia todos os tipos de artistas e músicos que viviam à sombra do poder instalado no momento, da mesma forma que o faziam no passado, durante a epopeia mandinga de Gabu do séc. XIII ao séc. XIX.

Era a continuação da tradição que não conhecia fronteiras tribais, não se limitava na simples nomenclatura dos grupos étnicos, o mais importante sempre era: Quem detinha o poder no momento e como era possivel conseguir a sua graça e tutela e que eram merecedores de todos os louvores e a glória dos vencedores.

Foi Dandum que deu origem a Tabatô (se é que não é a mesma localidade?) que, etimologicamente,  significa a sombra do Tabá, uma árvore gigantesca, frondosa e que, provavelmente só existirá nessa região, detentora de uma longa lista de crenças magicas e de mística tradicionais entre os africanos da costa ocidental e que, para os grupos hoje muçulmanos, ocupa o mesmo lugar que os Poilões na tradição dos povos animistas do litoral guineense e não só.

É o facto que explica, o chefe da tabanca, não sendo mandinga nem músico (griot), ser o chefe tradicional da tabanca, pois que é a herança da família ao longo dos anos desde a épica caminhada de Alfa Molo na conquista desse feudo mandinga, pondo a região a ferro e fogo, mesmo nas barbas dos portugueses, acoitados no pequeno presídio de Geba. 

O griot (músico) não é detentor do poder nem da terra e as regras da tradição mandam que, tudo o que os griots fazem carecem da autorizaçao dos donos da terra, no caso os fulas. Todavia a modernidade e a conjuntura sócio-politica e económica, estão a alterar a situação e as próximas gerações viverão num ambiente completamente diferente e, provavelmente mais liberal e de maior responsabilizaçao pessoal e colectiva,  numa comunidade onde já não haverá a distinção étnico-tribal.

No quadro das grandes transformações que sofreu o território que, entretanto, passou para a administração portuguesa, no último quartel do séc. XIX e, diga-se em abono da verdade, graças aos régulos fulas que queriam fugir ao dictat de Mussa Moló, pese o facto de isso nunca ser referido na historiografia portuguesa, preferindo dar os louros ao seu sobrinho, o mestiço Honório P. Barreto. Na verdade, só o sector de Boé é, territorialmente, muito superior à cidade de Cacheu e arredores que, pretensamente ele teria comprado como se fosse comprar terras indígenas nos territórios da antiga Senegâmbia.

Caro Luis Graça, também desconheço os instrumentos designados por Neguelin, Mirantelen e Cutil. Em contrapartida o Dumdumtama é um instrumento Fula, uma espécie de tambor (dumdum) e que se toca dos dois lados com a ponta arredonda de pau curvo, de formato curvo.

As expressões "dimbasumo" e “cambanicafó" sao derivadas do substantivo feminino “Dimba”,  ou seja mulher em idade fértil,  e “Cambani” quer dizer rapazes. Os sufixos “sumo” e “Cafo” quererão dizer grupos de idades, socialmente organizados para certas finalidades julgadas úteis para a comunidade.

Sobre “Jacatu”, o Gouveia (#)  já respondeu e bem, falta acrescentar que é tão amargo como a famosa cola, mas que é considerado um afrodisíaco que as mulheres gostam de oferecer aos esposos, “soit disant” para dar força e carácter masculino. Alguns acreditam e outros não tanto.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé 24 de novembro de 2021  


(ii) Sobre o comentário do Luis Graça (**):

"Sei que Tabatô também tem bolanha, e deve por isso haver cultura do arroz...
Curiosa é esta mistura, não habitual, entre fulas, mandingas e jacancas... Ser "artista" e "agricultor" não deve ser fácil... Mas vê-se, pelas fotos mais recentes, que há moranças com cobertura de colmo, novo!..."

Tenho a dizer que:

(i) A prática da agricultura de subsisténcia é generalizada em todo o território da Guiné. No caso de mandingas e fulas há uma divisao do trabalho que ordena que os homens trabalhem nas terras altas para o cultivo de diferentes tipos de milhos (preto, bacil,  etc.) e de produtos de renda (algodão, amendoim, gergelim,  entre outros) e as mulheres se dedicam ao cultivo do arroz nas terras baixas e alagadas (bolanhas). Mesmo entre os artistas de diferentes profissões as suas mulheres sempre trabalham nos arrozais para suprir as necessidades da família e suas próprias economias pessoais.

(ii) Na zona Leste o normal é, precisamente, a mistura que o Luís considera de "não habitual entre fulas, mandingas e jacancas...". E ao contrário do que afirma a antropóloga brasileira, quase todas as localidades dignas deste nome ainda continuam a ostentar o nome que tinham na época do domínio mandinga, e os exemplos são inumeráveis, porquanto todos os topónimos que não tenham o "Sintcha" ou "Saré", sao topónimos mandingas. 

Alguns exemplos: Bafatá-Contuba-Contuboel (versão fula)-Cambaju-Fajonquito-Canjadude-Paunca-Jabicunda-Farim-Canjambari-Can-sissé-Tabajan-Tabassai-Sonaco-Tubandin-Berecolon-etc...etc. E na maior parte destas localidades, mandingas e fulas e outros grupos mais pequenos coexistem de forma pacífica há séculos. E, sempre que houve problemas no passado recente, os culpados foram ou administradores do então regime colonial ou dos nossos pseudo-políticos da actualidade, na procura de benefícios políticos como acontece um pouco por todos os paises de Africa.

Cordialmente,  Cherno Baldé  25 de novembro de 2021 

(#) Comentário do Fernando Gouveia:

Luís, "jacatu" tem todo o aspeto de um tomate mas o gosto é completamente diferente. Não se come cru como o tomate mas tem que se cozinhar. Quando lá estive em 2010,  comprei-o várias vezes no mercado de Bula para cozinharmos,  eu e o Chico Álen,  no empreendimento, meio abandonado, de Anura, onde estávamos.
Abraço.

Fernando Gouveia
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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 22 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22741: Memória dos lugares (431): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte II

Vd. também o poste anterior (P22738) e posterior (P22747)

21 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22738: Memória dos lugares (430): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte I

24 de novembro de 2021 >
Guiné 61/74 - P22747: Memória dos lugares (432): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte III

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19966: Historiografia da presença portuguesa em África (166): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - II (e última) Parte


Guoleghal, a ave mensageira do conto de Canhánima (Sancorlã) e de Fuladu ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina). Conhecida na Guiné, coloquialmente, como ganga... Havia muitos na grande bolanha de Bambadinca.

Foto (e legenda): © Armando Pires (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Notas de leitura:  ALFA MOLÓ E O MITO FUNDADOR DO REINO DE FULADU - II ( e Última) Parte (*)

por Cherno Baldé [, foto à direita]


(iii) A passagem e as predicações místicas do Marabu El-Hadj Omar Tall

Foi por ocasião das suas longas e numerosas peregrinações através do continente que El-Hadj Omar passou na região de Firdu a caminho de Futa-Djalon. A data desta passagem do Marabu "toucouleur" [subgrupo, muçulmano, de língua fula, que vive sobretudo no norte do Senegal, resultante da mistura de fulas com outros povos na época de Koli Tenguella] é controversa. 

A tradição oral, diz-nos Abdarahmane, avança a data de 1854, mas esta última não está em conformidade com as fontes escritas que situam esta passagem do sábio Toucouleur por Futa-Djalon em meados de 1845. De qualquer modo, para o caso que nos interessa, é que quando ele chega a Sulabali, vai directamente à morança (casa) do nobre, Samba Egué.

Chegado a entrada da morança deste, ele cumprimenta em voz alta, à maneira muçulmana, dizendo: « Assaláamu alaykúm, matchubhê Allah ! » (Salvé, servos de Deus !). Mas, o termo « matchubhê » (Servos) utilizado na fórmula do religioso islâmico, não convinha aos membros da família dos Fulas-forros que o intimaram a continuar para a morança dos « matchubhé » que era do outro lado.

Mol Egué (futuro Alfa Moló) tinha ido a caça, como habitualmente. O Homem Grande foi recebido com todo o respeito por Cumba Udé (mulher de Moló Egué) que, segundo algumas fontes orais, tinha percebido por intuição que o peregrino não era um homem vulgar. Ela fez tudo o que era necessário para que o arabu tivesse as condições de hospitalidade dignas do seu nivel e notoriedade. Outra das versões sustenta que Molo Egué tinha recomendado à sua esposa para cuidar de qualquer estrangeiro que se apresentasse durante a sua ausência.

Com essa preocupação na cabeça, a mulher vai buscar a única galinha que possuíam em casa no momento e, como mandavam as regras, a levar ao Marabu, pedindo-lhe que a mandasse imolar de acordo com o rito muçulmano o que serviria para a preparação da sua refeição. O velho, conhecedor de toda a situação, tendo agradecido a mulher, ordenou-lhe para devolver a galinha onde ela a tinha retirado,  ou seja em cima dos seus ovos, pois que o seu marido estaria brevemente de regresso trazendo consigo alguma peça de caça que serviria para preparar o jantar. Com estas palavras a mulher ficou ainda mais aflita e não sabia o que fazer perante tamanho assombro.

Quando Moló Egué regressa a casa, a mulher vai ao seu encontro e diz-lhe : « Moló, vai tomar banho e veste-te convenientemente, pois temos hóspedes em casa ». Depois de colocar no corpo as suas melhores vestes, ele vai cumprimentar o Marabu, tendo este ficado por alguns dias antes de se despedir. Teria sido durante aqueles dias que o Homem Grande teria informado ao Moló Egué da sua missão, relacionada com a necessidade da islamização das populações pagãos de Firdu e que passava, necessariamente, pela conquista do poder das mãos dos irredutiveis pagãos soninquês.

Moló Egué ouvindo atentamente a predicação e conselhos do velho sábio, defendia-se, educadamente, tanto quanto podia e sabia, que ele era um homem humilde sem meios e sem qualquer ambição de poder e ainda por cima de condição servil; que os mandingas estavam bem organizados e eram muito aguerridos etc. Todavia, não podendo fugir ao que lhe estava predestinado, o velho acabou por convencê-lo a desafiar o seu destino, dando-lhe todas as garantias que ele era a pessoa indicada para superar o desafio de combater e vencer os mandingas e acabar com os abusos a que, diariamente, eram sujeitos.

Para isso, seria preciso preparar-se seriamente, discretamente e sobretudo respeitar escrupulosamente as directivas que lhe iria dar, a saber : primeiro, matar alguns elefantes, totém dos mandingas e extrair das suas panças os orgãos vitais que serviriam para a confecção de mesinhas de protecção e de invulnerabilidade. De seguida seriam retirados e postos à venda os dentes dos elefantes para a compra de armas e pólvora que ele esconderia em lugar secreto. 

A segunda directiva consistia na criação de um carneiro ao qual ele daria uma poção mágica (nassi). Depois o Marabu diz-lhe « quando o Farim (chefe de provincia) mandinga vier tomar o teu carneiro para comer, sabes que chegou o dia e podes passar à acção com os teus homens sem hesitar ».

Após ter dado estes diferentes conselhos, o Marabu despediu-se. Moló Egué, bom conhecedor das pistas que atravessavam a floresta, acompanhou-o até a actual localidade de Dandum (perto de Bafatá), onde se separam. Aqui o Marabu o teria dito que aquele local seria o limite do seu reino, desde o rio Gâmbia, o que veio a acontecer. Desde então, Dandum será para o Alfa Moló, um lugar abençoado e, quando sentiu a proximidade da sua morte, escolheu aquele lugar para ser enterrado (o que, segundo Armando da Silva, teria acontecido entre finais de 1881 e principios de 1882, posto que em Julho de 1882 o seu irmão, Bacar Demba, se apresentou em Geba, na qualidade de monarca, para a assinatura de um novo tratado com as autoridades portuguesas).

As tradições orais normalmente são muito fecundas e algumas vezes contraditórias quando se trata de relatar a história da passagem do Marabu "Toucouleur", El-Hadj Omar, pelo território de Gabu. Todavia todos são concordantes relativamente aos três elementos considerados fundamentais : a recepção do Marabu por Cumba Udé, o Elefante e o Carneiro.

Em jeito de conclusão, Abdarahmane na sua tese, revela-nos que a narrativa desta passagem se articula à volta destes três elementos fundamentais que estão na base da história e a tornam mítica para não dizer legendária. Para Abdarahmane, a dimensão mítica deste encontro vai encontrar a sua verdadeira razão de ser no estatuto dos dois protagonistas da cena : O Marabu, impregnado de Islão e da mistica religiosa,  e o Caçador, detentor de conhecimentos místicos pré-islâmicos, em que, em vez de uma confrontação lógica, como seria de esperar, assistimos a uma convergência que, a hospitalidade concedida por uma mulher pobre e de classe mais baixa da sociedade, vai selar para sempre. 

Para além do símbolo mítico deste encontro inesperado e fortuito se profila o destino de um homem, de um povo e de um país inteiro. Assim, a passagem do predicador, El-hadj Omar, no Firdu vai acentuar a necessidade de se organizar as hostes, a fim de retirar o poder das mãos dos mandingas, acabando com a sua dominção secular.


(iv) A luta pela emancipação ou quando o escravo liberta o seu mestre.

Moló Egué (Alfa Moló) tinha seguido à risca todas as instruções que o Marabu "Toucouleur" lhe havia dado. Com efeito, ele criou um carneiro e seguiu as instruções recomendadas. A partir desse dia, Alfa Moló reuniu aqueles que estavam a sua volta como auxiliares e aprendizes do ofício da caça, convocou todos os homens grandes dentre os Fulbhê, para os informar que ele iria lutar contra os chefes mandingas cujas atitudes e abusos os causavam enormes prejuizos. 

Os grandes dentre os fulbhê consideraram a operação demasiado arriscada, na medida em que os combatentes da parte dos fulas ainda não estavam preparados e suficientemente aguerridos. Preocupados com as consequências desastrosas que dai poderiam advir em caso de derrota, muitos dentre os nobres recusaram participar na revolta contra os mandingas. Foi então que Alfa Molo proferiria a frase que entraria nos anais da historia épica de Fuladu, com a frase seguinte : « Máh-ôn mballi-kam fêlludê sébbhê; Máh-ôn mballi-kam dogdê ("Ou vocês me ajudam a combater os mandingas ou, então  ajudarão a fugir").

Quando viram que o Alfa Moló estava decidido a dar luta ao poder dos Soninquês, numerosos fulas dentre os chamados « nobres » fugiram para outras províncias distantes, enquanto que alguns deles, muito poucos, aceitaram o sacrifício do combate pela emancipação que se apresentava no horizonte. 

Segundo Abdarahmane, a guerra teria sido feita em duas fases distintas. O reino mandinga [do Gabu] enfraquecido pela desorganizaçao e sobretudo por querelas e dissenções internas, aliado ao disfuncionamento dos poderes central e provincial, não conseguia manter a sua unidade e força para se defender contra os ataques repetidos dos exércitos fulas. Este disfuncionamento dos dois poderes tinha conduzido à independência progressiva dos Farin-mansa (governadores de província) que continuavam a exercer um peso crescente sobre os seus súbditos.

A provincia de Firdu que parecia, por excelência, ser a dos fulas, não podia escapar a esta situação de crise generalizada. O chefe desta provincia, Mofa Djenu ou Karabuntim Sané para outros (Roche,  1985), com capital em Kansonco, semeava o terror nesta província do reino que era a mais distante e a mais rica de todas as outras, em virtude do elevado número de fulas nela radicados. 

Os fulas de Firdu eram prósperos, mas o seu gado e as suas colheitas eram objecto de assaltos permanentes da parte dos mandingas. Este facto levou a que, os fulas conduzidos por Alfa Mol atacassem Kansonco e destruissem a sua capital (Bercolon) defendido por guerreiros mandingas. Aproveitando esta situação de confusão  e com o apoio dos Almames de Futa-Djalon, em 1869 (Roche 1985), de Bundu e de combatentes "Toucouleurs" de Kabada, os fulas destruiram todos os cercados (tatas) mandingas. As províncias tombaram umas atrás das outras e com elas a dominação dos mandingas.

Uma das mais importantes consequências desta guerra seria a dispersão da população através do territorio "pacificado". Com efeito, a extensão do povoamento dos fulas foi feita após esta guerra. Confinados, no início, em zonas de pastagens, os fulas dispersam-se e reocupam as antigas aldeias mandingas, conservando, muitas vezes, o antigo topónimo (Bercolon, Cambaju, Mansajã, Canquelifa, Salquenhe, Contuba, etc. etc). E passaram a plantar arroz nas mesmas bolanhas que pouco tempo antes eram propriedade exclusiva dos seus suseranos mandingas.

 A partir deste momento assistimos a uma reconfiguração do território e a paulatina estabilização a favor dos fulas. O Firdu que era apenas uma provincia passou a ser um estado independente com a designação de Fuladu. Todavia seria de curta duração, pois este período coincide com a ofensiva « diplomática » de algumas potências europeias, nomeadamente Portugal e a França,  e a concorrência para a posse efectiva dos territórios da região.

Entretanto, no decorrer deste período agitado de recomposição política, económica e social, o Fuladu será atravessado  por clivagens sociais que deixam transparecer em filigrana o que serão, mais tarde, as relações, por um lado, entre os antigos senhores do território, os mandingas, que continuavam a tentar recuperar a sua hegemonia perdida, organizados em grupos de guerrilha no interior do mato,  e os fulas, na condição de novos detentores do poder ; por outro lado, entre os  «Jiáabhé» (antigos servos comummente chamados na literatura colonial de fulas-pretos) e  os «Rimbhé» (antigos senhores, chamados de fulas-forros).

Estas guerras, dissenções e clivagens sociais, ainda não estavam bem resolvidas quando as potências coloniais tomaram conta desses territórios, em finais do séc. XIX e princípios do séc. XX.  Os fulas, depois dos primeiros reencontros e reconhecendo a superioridade tecnológica e militar dos europeus, escolheram a estratégia das alianças em lugar de oferecer resistências condenadas ao fracasso. 

E, passados alguns anos, quando os nacionalistas iniciam a mobilização para a luta de libertação nacional no território da antiga Guiné-portuguesa, a percepção dos chefes tradicionais fulas, agudizada pela estratégia da administração portuguesa, é que era mais uma tentativa de recuperação do poder da parte dos seus arqui-inimigos mandingas, facto que não estava longe da verdade, porque se a elite dirigente [do PAIGC] era urbana e escolarizada, nas fileiras dos seus combatentes no mato, pelo menos no Norte, a maior parte eram mandingas, o que era inaceitável para as elites fulas.

A independência da Guiné-Bissau, concedida ao PAIGC por Portugal em 1974, foi um duro golpe sofrido pelos fulas, uma autêntica traição aos seus interesses estratégicos e de sobrevivência como grupo que, tudo somado, talvez preferissem continuar a guerra, em vez de capitular e entregar o país aos «bandidos » que, já era sabido, para além da retórica pseudo-revolucionária, a única coisa que sabiam fazer e bem, era oprimir e roubar o bem alheio. 
Numa das suas intervenções sobre as lutas contra a dominação e opressão social e económica das populações em África e referindo-se, provavelmente, a rebelião bem sucedida de Alfa e Mussa Moló Baldé, Amílcar Cabral dizia assim : «sempre que os africanos fizeram grandes lutas para acabar com a dominação dos outros, acabaram por se tornar, eles mesmos, ainda piores tiranos para os seus povos do que aqueles que tinham combatido no passado ». 

Sim, verdade, uma grande verdade, sobretudo se tivermos em conta o que representa hoje o brilhante legado do seu Partido no nosso pobre país, a Guiné-Bissau. (**)

Cherno Abdulai Baldé
Bissau
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Bibliografia:

Ngaidé Abdarahmane : Le royaume Peul du Fuladu, de 1867 a 1936 (L’Esclave, le Colon et le Marabout, 1997/98, Thèse de doctorat de troisième cycle en histoire, UCAD (Université Cheik Anta Diop, Faculté des Lettres et Science Humaines, Dakar, Sénégal.

Gloria Lex : Le Dialecte Peul du Fouladou (Casamance, Sénégal); Thèse de doctorat en Linguistique et Phonétique.

Mouhamadou Moustafa Sow, Professeur d’histoire, Lycée Régional de Kolda, Sénégal, Blogue Seneweb.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19956: Historiografia da presença portuguesa em África (164): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - Parte I