Por aqui passou
Mamadu Indjai, o terrível
por Luís Graça
E de repente
tudo te é estranho,
o muro que corta, rente,
a brisa da manhã,
a fonte onde ainda ontem
os djubis tomavam banho,
o portentoso poilão aonde ias rezar,
à tua maneira, ao teu irã,
a ponta onde colhias a manga e o abacaxi,
o macaco-cão que chora e que ri…
De repente
não sabes donde vens,
não sabes o que és,
aqui de camuflado e de G-3,
nem a verdadeira razão para matar e morrer,
não sabes o que fazes neste lugar,
muito longe da tua terra,
abaixo do Trópico de Câncer,
a 11 graus e tal de latitude norte.
Mal reconheces, pobre periquito,
os sinais da guerra,
o combate em noite de luar,
o cavalo de frisa esventrado,
os pássaros de morte,
os jagudis no alto da árvore descarnada,
a terra revolta, ensanguentada,
o arame farpado,
aqui e acolá cortado,
o colmo das moranças,
carbonizado,
o medo que não se vê mas se pressente,
num olhar de relance, breve,
sobre a tabanca que quiseram riscar do mapa,
as cápsulas de 12.7 da metralhadora pesada Degtyarev,
um par de chinelos,
os caracteres chineses dos invólucros, amarelos,
das granadas de RPG…
Um triste cão, vadio e louco, ladra
ao cacimbo fumegante
e o seu latido lancinante
ecoa pela bolanha fora.
A seu lado, a única velha,
que não se foi embora,
com a sua máscara impassível
de séculos de dor,
de seu nome, Satu.
Mais tarde, saberás tu,
saberão de cor,
os jovens pioneiros,
os "blufos", do PAIGC,
que por aqui passou Mamadu Indjai, o terrível,
hoje valoroso,
amanhã insidioso,
combatente da liberdade da pátria,
hoje herói,
amanhã traidor,
que nunca conhecerá a glória nem a honra
do Forte da Amura,
transformado em Panteão Nacional.
Diz-me tu, Satu, mãe e pitonisa,
onde estão as mulheres da tua tabanca,
com os balaios à cabeça
e os seus filhos às costas ?
Onde estão as tuas gentis bajudas,
de mama firme,
cujo sorriso nos climatizava os nossos pesadelos ?
Onde estão o régulo e os suas valentes milícias ?
Para que lado corre o Rio Corubal
e donde vêm aqueles sons, ambivalentes, de bombolon?
Diz-me tu, homem grande,
onde fica o Futa Djalon ?
E de que ponto cardeal
sopram os ventos da história, afinal ?
Dizes-me onde fica Meca, meu irmão ?
E, no seu conciliábulo,
os nossos deuses, o meu e o teu,
o que sobre nós decidirão, cinicamente ?
Diz-me onde está o velho cego,
mandinga,
a quem demos boleia,
que tocava kora
e nos contava a história
de velhos e altivos senhores
agora servos no seu chão ?
Passei na madrugada
de um final de mês de julho de 1969,
pela tua tabanca, abandonada,
do triste regulado do Corubal,
de que já não guardo o nome,
na memória:
Sinchã qualquer coisa,
Sinchã-a-ferro-e-fogo,
Afiá ou Candamã ?
Que importa, minha irmã,
o topónimo para a história?!...
Venho apenas em teu socorro,
meu irmãozinho,
quando as cinzas ainda estão quentes
no forno da tua morança,
da morança que fora também minha…
Raiva, sim, meu camarada,
Abibo Jau, meu bom gigante,
que serás mais tarde fuzilado em Madina Colhido
com o teu comandante Jamanca,
como eu te compreendo!…
Mas vingança, para quê ?
De guerra em guerra se chega ao nada!
A um espelho partido me estou vendo,
e a mim mesmo me pergunto
quem sou eu,
triste tuga entre tristes fulas, ai!,
para te dar lições de história ?!
Saberei apenas,
muito anos depois,
que, julgado e condenado em Conacri,
fuzilaram o Mamadu Indjai,
no Boé,
que diziam ser região libertada da Guiné…
O mesmo Mamadu Indjai (*),
acrescente-se,
fero e bravo comandante,
que ferimos gravemente
no decurso da operação Nada Consta,
o mesmo Mamadu Indjai,
que, três anos e meio depois,
chefe das "secretas",
será o Judas de Amílcar Cabral.
Versão 10, Lourinhã, 11 agosto de 2016 (**)
___________________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16441: Notas de leitura (874): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte IX: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (V): Finalmente o regresso a casa, depois do pesadelo do Fiofioli, na margem direita do Rio Corubal... Este homem, hoje professor universitário (?), tem histórias para
contar aos netos...
(...) Comentário de Tabanca Grande [LG]:
(...) Neste tempo /1968/70), no nosso setor L1 (Bambadinca), ao longo da margem direita do Rio Corubal, o PAIGC teria 5 bigrupos (Um bigrupo, eraconstituído por 40/50 guerrilheiros), em cinco zonas: Poidom/Ponta do Inglês/Baio Buruntoni, Ponta Luis Dias, Mina/Fiofioli (2), e Galo Corubal, ou seja entre 200 e 250 homens em armas, mais um 1 grupo de artilharia (morteiro 82, canhão s/r 75 e 82) + 1 grupo especial de bazuqueiros (RGP) (em Mangai). A principal "base" era Mina / Fiofioli, uma mata densa, de floresta-galeria... Não estava ao alcance da artilharia do Xime... Em 1969. o comandante era o Mamadu Indjai.
No meu tempo a mata do Fiofioli era vista como um "mito", infundindo muito respeito às NT... Nos últimos da guerra (e nomeadamente em 1973), o PAIGC retirou forças desta região...
Estranha-se que o médico cubano Amado Alfonso Delgado tenha omitido o importantre revés que foi para o PAIGC a baixa do comandante Mamadu Indjai, gravemente ferido pelas NT no decurso da Op Nada Consta, em agosto de 1969
Vd. poste de 7 de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6948: A minha CCAÇ 12 (6): Agosto de 1969: As desventuras de Malan Mané e de Mamadu Indjai nas matas do Rio Biesse... (Luís Graça)
Este Mamadu Indjai é o mesmo que fez parte do complô contra Amílcar Cabral em 1973, em Conacri... Será julgado (?) e fuzilado... Era de etnia mandinga.
Temos dez referências no blogue sobre este homem...que pôs o lado meridional do chão fula a ferro e ferro.
(**) Último poste da série > 31 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16432: Manuscrito(s) (Luís Graça) (94): Salvé, minha safada, pequena, bela Helena, hiena, de Bafatá!