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sábado, 19 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P10966: Amílcar Cabral, um agrónomo antes do seu tempo (Carlos Schwarz, Pepito, eng agr) (Parte I)


Amílcar e Maria Helena recentemente chegados a Bissau


1. Em 11 do corrente, o sítio oficial da AD - Acção para o Desenvolvimento publicou um notável texto do nosso amigo Pepito sobre o eng agr Amílcar Cabral e o seu pensamento pioneiro, no domínio da agronomia. A meu pedido, ele de imediato me mandou esse texto, para publicação no nosso blogue.  Dividimo-lo em duas partes, a publicar por ocasião dos 40 anos do seu bárbaro e cobarde assassinato em Conacri, em 20 de janeiro de 1973. Cabral e a mulher, Maria Helena, portuguesa, silvicultora,  sua colega do ISA - Instituto Superior de Agronomia, eram amigos da família Silva (Artur Augusto Silva e Clara Schwarz Silva). Há um texto introdutório na página da AD. Aqui vai:  representa o ponto de vista dos nossos amigos, guineenses,  da AD,  não vinculando naturalmente o nosso blogue e os seus editores (LG).



Página oficial da AD - Acção para o Desenvolvimento


AD - Acção para o Desenvolvimento > Pensar Amílcar Cabral
11 jan112013

Este ano, no dia 20 de Janeiro, assinala-se o 40º aniversário do primeiro assassinato de Cabral, em Conakry.

Depois destes anos todos, os dados são mais claros, conhecendo-se muito melhor os organizadores, os mandantes e os coniventes, já que os executores nunca houve dúvidas sobre eles.

Embora haja quem persista em considerar, ao mesmo nível, a eventualidade da implicação de três organizadores: Spínola, Sekou Touré e alguns dirigentes do PAIGC, cada vez fica mais evidente que o principal organizador foi Spínola, que obteve aí a sua única vitória na vida.

Não foi uma vitória militar, porque ele nunca a teve, mas sim política. O ponto mais forte e simultaneamente mais fraco da Luta, era o da “unidade Guiné-Cabo Verde”. Ele conseguiu jogar essa cartada e mobilizar para a sua causa, militantes politica e mentalmente pouco preparados, predispostos para a traição e com uma ambição desmedida.

No 14 de Novembro, Cabral volta a ser assassinado no golpe de estado dirigido por Nino Vieira. Se durante 3 dias não se falou de PAIGC, já de Cabral então foi o silêncio completo durante longos anos.

Hoje, golpistas e seus mentores, voltam a agitar a bandeira de Amílcar Cabral, dizendo-se seus verdadeiros continuadores. Mas, porque nunca perceberam nem entenderam o pensamento de Cabral, falam do Cabral morto, não das suas ideias, posições políticas e opções ideológicas.

Saberão eles que Cabral recusou, no início da luta, deslocar-se à Argélia após o golpe de estado que derrubou Bem Bela, porque não pactuava com estes métodos?

Conta o jornalista-cronista francês, Gérard Chaliand, que acompanhou e divulgou a Luta de Libertação da Guiné-Bissau, no seu livro de memórias “A ponta da navalha” que quando disseram a Nelson Mandela “tu és o maior”, este respondeu com toda a simplicidade “não, o maior é Cabral”.

Quarenta anos depois, a AD partilha com todos um ensaio sobre o pensamento agronómico de Amílcar Cabral, “Um agrónomo antes do seu tempo”.

É o nosso pequeno contributo. 


2. AMILCAR CABRAL: UM AGRÓNOMO ANTES DO SEU TEMPO


Por Carlos Schwarz
(agrónomo)
Novembro
2012






À memória de meu pai Artur [Augusto Silva] que, desde criança
me incentivou, sem que eu me apercebesse,
a seguir os caminhos da agronomia;


À minha mãe Clara [Schwarz] que sempre esteve solidária 
com as minhas opções e nas mãos de quem vi, 
pela primeira vez e ainda nos tempos da ditadura, 
os símbolos do PAIGC; 

À Isabel [Levy Ribeiro] , minha forte e decidida companheira de sempre
nesta caminhada difícil mas extraordinária;


Aos meus filhos Cristina, Ivan e Catarina 
que partilham corajosamente e sem hesitações 
os sobressaltos políticos da vida dos seus pais;

Às minhas netas Sara e Clara com a esperança
de um dia poderem viver tranquilamente
na terra adiada com que Cabral sonhou.



AMILCAR CABRAL, 
UM AGRÓNOMO ANTES DO SEU TEMPO [, foto à direita,]


Aos 28 anos de idade, em Setembro de 1952, poucos meses após ter terminado o curso, regressava à terra que o viu nascer, o agrónomo Amílcar Cabral.

No pensamento trazia certamente as palavras que seu pai, Juvenal Cabral, escrevera no livro “Memórias e Reflexões”, quando se instalara em Bissau em 1911, após “ter deixado as rochas nuas da Paria Negra, da Achada Grande, do Lazareto, e cujo aspeto, severo e triste, parece simbolizar o sofrimento e a dor, meus olhos, maravilhados, contemplaram sem cessar a paradisíaca majestade da flora que, de modo misterioso parece emergir do mar! Por toda a parte árvores frondosas, lindos e esquisitos arbustos que, verdejantes, se espalham pelo solo como tapetes no chão”. “Tudo isto é opulência e vigor, é maravilha que encanta, é riqueza que seduz e predispõe um rapaz a encarar com otimismo a vida neste país.”

Esta visão de seu pai terá influenciado Amílcar Cabral a optar por exercer a sua profissão na Guiné, para além de que, naquela época, a agricultura em Cabo Verde estar votada ao abandono e onde a maior parte dos homens emigrava para o norte (EUA, Portugal e Holanda) à procura da sobrevivência e da vida, tanto mais que outros, desde o final do século XIX, demandavam a Guiné para se dedicarem à agricultura, especialmente cana-de-açúcar, quase sempre associada ao fabrico de aguardente de cana.

Um agrónomo que quisesse de facto exercer a sua profissão, teria de optar pela Guiné, onde tudo podia ser feito, onde tudo estava por fazer e onde a quase totalidade dos habitantes eram pequenos agricultores “indígenas”.

Acompanhava-o a sua primeira mulher, Maria Helena Rodrigues, silvicultora, que chegando 3 meses depois dele, ia conhecer pela primeira vez a cidade de Bissau, nessa altura uma pequena urbe com muito poucos habitantes, espalhados por duas zonas distintas: de um lado a cidade colonial, dita “civilizada”, que incluía a Fortaleza da Amura, o agora chamado “Bissau Velho”, o porto de Pindjiguiti e a avenida da Republica, hoje Amílcar Cabral. Esta parte estendia-se até ao monumento “Esforço da Raça” e Palácio do Governo, nessa altura ainda em construção; do outro, à volta do centro, localizava-se a parte popular, dita dos “indígenas”, onde vivia maioritariamente a etnia pepel.

Era na parte colonial que moravam os poucos intelectuais presentes no país e se encontravam localizadas as grandes firmas estrangeiras como a NOSOCO e a SCOA, às quais se juntavam as portuguesas (A.C. Gouveia, Barbosa & Comandita, Álvaro Camacho e Sociedade Comercial Ultramarina, entre outras) e uma enorme plêiade de pequenos comerciantes libaneses como Mamud ElAwar, Aly Souleiman, Michel Ajouz, etc.

No resto do país o comércio de produtos e bens elementares era fundamentalmente assegurado pelos “djilas”, comerciantes ambulantes que percorriam de bicicleta e canoa todo o território.



Fotografia atual da casa onde Cabral e Maria Helena viveram na Granja de Pessubé


A agricultura, então chamada de “indígena”, assentava na produção de arroz para o autoconsumo das comunidades rurais, a qual era praticada há cerca de 3.000 anos e na produção de uma cultura de exportação, a mancarra (amendoim) incentivada pelas empresas estrangeiras que se revezam na sua exportação para a Europa (em bruto ou em óleo). O ciclo da mancarra começa na zona de Buba, incentivada por alemães e percorre um itinerário fácil de identificar pela erosão e degradação dos solos que provoca na Guiné e que passa por Bolama, norte do Oio, Bafatá e Gabú.

Os serviços oficiais de apoio aos agricultores eram praticamente inexistentes ou inoperacionais, confinando-se dentro das infraestruturas técnicas e administrativas que construíam. Não existia nenhum centro de experimentação, de formação de quadros ou de vulgarização.

Este foi o contexto global que se deparou a Cabral à sua chegada a Bissau, ele que vinha para como dizia, “viver o seu tempo e a sua época”, iniciar os desafios políticos da luta pela conquista da independência, defender um desenvolvimento centrado na agricultura e promover a dignidade da população guineense.

Ele e Maria Helena instalam-se na casa da Granja Experimental do Pessubé, atribuída ao seu diretor, na altura situada muito longe do centro de Bissau, num bairro popular da periferia e numa zona isolada e de difícil acesso. A Granja dispunha de cerca de 400 ha onde existia grande número de essências florestais e um pequeno número avulso de algumas espécies frutícolas, como por exemplo cacaueiros.

Nesta altura, quando começa a exercer a sua profissão, Amílcar está convencido de que o processo de independência decorrerá de forma pacífica, nos moldes como se virá a processar nos outros países africanos, pelo que decide começar a construção do novo edifício conceptual agrícola que iria substituir gradualmente o modelo colonial existente.

A Granja de Pessubé vai ser o ponto de partida, para começar a pôr em prática uma estratégia, em três vertentes principais, que ele considera importantes para o desenvolvimento da agricultura guineense:


A primeira, foi a de transformar a Granja de mera unidade de produção de legumes destinados às autoridades politicas e administrativas coloniais da praça e num local de piqueniques e passeios recreativos, num centro de pesquisa agrícola, enquanto instrumento para melhorar e modernizar a produção dos agricultores. 

Cabral concebe e põe em aplicação um programa de experimentação baseado na identificação de técnicas culturais para diferentes espécies agrícolas (compasso, armação do terreno, adubação e época de sementeira), de ensaios de adaptação varietal (arroz, cana-de-açúcar, mancarra, banana, algodão e hortícolas), identificação de pragas e doenças, valorização de variedades locais de certas espécies, como a “juta”, e a introdução de novas espécies como o gergelim (sésamo), soja e girassol.

Começa um trabalho de aproveitamento dos terrenos agrícolas da Granja, utilizando critérios inovadores, em função da natureza dos solos e da sua aptidão, apostando na sua fertilização orgânica com base nas camas dos animais da Granja da Pecuária, na consociação de culturas (mandioca-bananeiras), identificação de pragas e doenças, caracterização das diferentes variedades de cada espécie.

Dá início, pela primeira vez, à publicação de resultados da experimentação e de reflexões sobre a agricultura guineense, criando para isso o “Boletim Informativo” trimestral da Granja Experimental de Pessubé onde, para além da descrição das atividades, propunha a reflexão sobre temas importantes, como a “cultura mecanizada”, o “vírus da roseta da mancarra” e a “cultura da juta”.


Amílcar Cabral, Maria Helena e Clara Schwarz [, decana do nosso blogue, à beira dos 98 anos,]na estrada de regresso de Dakar para Bissau em 1954. 

[As presentes fotos do arquivo pessoal de Clara Schwarz. O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos de Cabral para francês. Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949.] [LG]


Com uma regularidade notável, foram publicados, desde Novembro de 1952, cinco “Boletins Informativos”. 

A  segunda, foi o de romper os muros internos em que se confinavam os serviços agrícolas, para os aproximar dos agricultores, que deviam ser os seus principais beneficiários.


Para Cabral, mais do que o refrão da época, “a agricultura é a base da economia”, ele defendia claramente que “a agricultura era a própria economia da Guiné” pelo que era importante os serviços aproximarem-se dos pequenos agricultores.

É assim que a Granja de Pessubé passa a executar ensaios e experiências agrícolas nos postos de Bula, Safim, Bigene, Nhacra e Prábis, fazendo aquilo a que hoje em dia se chama de “ensaios em meio camponês”, como forma de testar a sua adaptabilidade às diferentes condições ecológicas e sistemas de cultura dos agricultores.

O projeto FAO de recenseamento agrícola aprovado pelo governo português em 1947 e logo metido na gaveta, onde pernoitou mais de 4 anos, é rapidamente retomado por Cabral, poucos meses depois da sua chegada a Pessubé, o qual estuda, planeia e executa. Para ele, o censo não era apenas um conjunto de quadros e números, mas também a possibilidade de ler, compreender e agir sobre a dinâmica agrícola prevalecente. 

Este trabalho permitiu-lhe definir de forma precisa a contribuição dos diferentes grupos étnicos guineenses para a produção agrícola, servindo ainda hoje, passados 60 anos, para compreender os sistemas de produção e de cultura por eles praticados.

Por outras palavras, o censo fez sair os serviços agrícolas da sua torre de marfim em direção aos campos dos agricultores, confrontando-os com a realidade que deviam servir e possibilitando a procura de soluções para os seus problemas fundamentais e para a modernização agrícola.


A  terceira, foi a da interação da agricultura guineense com as dos países vizinhos da sub-região


Consciente que o reduzido número de quadros técnicos e a constante falta de recursos impediriam que a pesquisa agrícola fosse realizada e trouxesse resultados úteis e práticos aos agricultores, Cabral fomentou a vinda a Pessubé de diversos técnicos, como a missão pedológica francesa de Dakar, especialistas em cana-de-açúcar, entomologistas, etc. 

A participação de Amílcar Cabral na “Conferência internacional Mancarra-Milheto”, realizada em Bembey, Senegal em 1954, onde apresenta a comunicação “Queimadas e pousios no ciclo cultural Mancarra-Milheto”, é uma prova eloquente da sua estratégia de conhecer os resultados experimentais de estações estrangeiras mais antigas, com maior número de técnicos e para marcar a presença e capacidade dos técnicos guineenses nos circuitos científicos da sub-região, aspeto que ele considerava determinante para o período pós-independência.

Internamente, vai começando a criar um núcleo de quadros técnicos que possa garantir a continuidade e reforço destes programas. Deles, realçam-se dois:

(i) Bacar Cassamá, monitor agrícola da Granja, é a primeira pessoa de quem se aproxima e com quem criará relações de amizade e confiança até ao final da sua vida; alto, forte, sério, de riso difícil, com quem terá repetidamente discussões sempre ultrapassadas, porque na sua maneira de ser, a melhor forma de ser honesto era dizer claramente ao “engenheiro” a sua posição e o que pensava; homem que nunca dobrou a coluna, continuou seu amigo e fiel ao PAIGC, mesmo depois do Golpe de Estado de Nino Vieira, quando houve a tentativa de apagar Cabral da história da Guiné-Bissau; acaba por falecer em 2012, esquecido e abandonado por muitos companheiros, com algumas exceções como a de Pedro Pires, ele que foi quem mais tempo acompanhou Cabral; 

(ii) Júlio Mota Almeida, prático agrícola na Granja, que acaba por estar presente na fundação do PAIGC em Bissau, em Setembro de 1956. Morre em Portugal em 1982.


Durante dois anos e meio, Cabral percorre a Guiné de lés-a-lés, observando, estudando e escrevendo sobre o fácies da agricultura guineense. Cite-se o caso do estudo local das queimadas e pousios em Fulacunda. Determinante foi a realização do recenseamento agrícola onde, à frente de uma equipa técnica, contactou agricultores, lideres comunitários, jovens e mulheres, apercebendo-se das diferentes lógicas de pensamento e ação de cada grupo étnico, as suas potencialidades e as fraquezas e, sobretudo, as prioridades mais sentidas na promoção da sua forma de vida. 

Em Março de 1955 sai de Bissau num avião da Air France, por imposição das autoridades políticas governamentais coloniais, que o acusam de exercer atividades conspiratórias pela independência da Guiné, o que efetivamente correspondia à verdade, mas não lhes dava esse direito. Autorizam-no a vir anualmente a Bissau, o que ele aproveita em 1956, para colaborar com outros nacionalistas na fundação do PAIGC, num dia de Setembro que mais tarde acaba por ser arbitrariamente fixado como sendo o dia 19. Também em 1959, já com 35 anos de idade, vem a Bissau no ano do Massacre do porto de Pindjiguiti, momento determinante para Cabral perceber que a conquista da independência teria de ser obtida pela luta armada de longa duração e não da forma pacífica pela qual ele sempre pugnou.

Desde que foi expulso da Guiné, Cabral continuou a desenvolver a sua atividade agronómica em Portugal e Angola, dedicando-se sempre à reflexão sobre a agricultura guineense, salientando-se a publicação na revista AGROS, da Associação de Estudantes de Agronomia, do seu texto: “A agricultura na Guiné, algumas notas sobre as suas características e problemas fundamentais”.

Em 1960, estimulado pela independência da Guiné-Conakry e do NÃO à França dado em 1958, decide estabelecer-se definitivamente em Conakry, certo que era o local ideal tendo em consideração a forma como o Senegal tinha decidido aceder à independência. As vicissitudes que a guerrilha passou neste país durante os 11 anos de Luta, veio mostrar que a sua visão estava correta.

Poucos anos antes do seu assassinato, em 1972, consciente de que a vitória militar era um dado adquirido e surgiria a curto prazo, começa a dedicar mais do seu tempo à conceção do futuro Estado da Guiné-Bissau e aí volta a agricultura a estar presente no futuro programa. A vivência em Conakry permitira-lhe identificar os reais perigos com que o novo país se iria confrontar no pós-independência. Um deles são os “atrativos” que a cidade de Bissau iria exercer na cúpula dirigente dos guerrilheiros, a tendência para a intriga e complot político e, finalmente, o descanso do guerreiro. O outro, era o do inevitável esquecimento e afastamento gradual dos dirigentes em relação às populações que haviam participado na Luta. 

Uma das ideias que Cabral estava a desenvolver quando é assassinado, era o da criação dos diferentes Ministérios governamentais, um em cada uma das capitais regionais do país. Mantinha os dirigentes perto dos cidadãos, empurrava-os para resolverem os problemas concretos das populações e diminuía o risco do “diz que diz”, da conflitualidade estéril e da intriga política. É o retomar da tese de agrónomo de que os técnicos e decisores não se devem fechar entre portas, mas estar perto dos beneficiários do seu trabalho.

(Continua)

Texto e fotos;  © Carlos Schwarz (2013). Todos os direitos reservados

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24218: As nossas geografias emocionais (3): Fá Mandinga, o "Bairro da Paz", ao tempo do Pel Rec Daimler 1113 e do BCAÇ 1888 (1966/68)... Nunca foi atacado, uma das coroas de glória do "alfero Cabral"... Nem aqui viveu e trabalhou o outro Cabral, engenheiro agrónomo... Foi aqui que se formou a 1ª CCmds Africanos.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá (Mandinga) > 1968 > Aqui esteve instalado, de agosto a novembro de 1966, o Pel Rec Daimler 1133 (Fá Mandinga e Bambadinca, 1966/68), comandasdo pel alf mil cav Carlos Manuel de Sá Ramalho; estava então adido ao BCAÇ 1888 e depois ao BART 1904.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá (Mandinga) >  1968 >  Outra perspetiva do "Bairro da Paz"... Fotos do álbum do Jaime Machado, ex-alf mil cav, Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70) (*)

Fotos (e legendas): © Jaime Machado (2008).Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá (Mandinga) > 1968 > CART 2339 (1968/69) > Parada do quartel: o grupo de combate do alf mil Torcato Mendonça (1944-2021), cerimónia do arriar da bandeira... Os "Viriatos" estiveram aqui três meses (de fevereiro a maio de 1968) antes de partirem para Mansambo para ali construirem um quartel, novo, de raiz. (**)

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Zona Leste > Sector L1 >  Bambadinca > 2.º semestre de 1970 > Velhinhos e periquitos > A rapaziada, à civil, em Santa Helena, nos arredores de Bambadinca, a caminho do bife com batatas fritas da Transmontana e das bajudas de Bafatá. Malta da CCAÇ 12, na sua maioria, e da CCS do BART 2917 (1970/72). Eis a legenda do fotógrafo:

(...) "Passeio dominical à Transmontana, em Bafatá, para ir comer o célebre bife com batatas fritas, pois batatas era um luxo na messe. Reconhecem-se na 2.ª fila da esquerda para a direita: o 1.º não me lembro, o 2.º, de camisola azul, é o Bilocas da Cooperativa de Riba d'Ave, ex-alf mil dos reabastecimentos do BART 2917 [o Abílio Machado, de contabilidade e adminmistração]; o 3.º, fardado, era o alf mil de, julgo, transmissões do BART 2917; e o condutor era o Rocha da CCAÇ 12.

"Na 1.ª fila são todos da CCAÇ 12, a começar pelo José Luís Vieira de Sousa, furriel miliciano, o Zé da Ilha, tocador de viola, baladeiro, hoje mediador de seguros no Funchal; a seguir, o 2.º é o Pedrosa, que era o fur mil mecânico (periquito que foi substituir o nosso 1.º mecânico que era o Joaquim Moreira Gomes, do Porto e que quando cá veio de férias em 69 arranjou uma cunha no Hospital Militar lá no Porto e já não voltou à Guiné); em 3.º temos o Arlindo Teixeira Roda, fur mil, natural dos Pousos-Leiria, mas agora a residir em Setúbal onde dá, ou já deu, aulas (chmávamos-lhe o Tê Rodas); o 4.º é este ilustre vosso servo com 23 ou 24 anos (que saudades!) e vestido de verde, eu que até sou simpatizante, de meia tigela mas sou, do SLB; a seguir em 5.º é o António Manuel Martins Branquinho
 [1947-2103], fur mil. alentejano de Évora (trabalhou no Centro Regional de Segurança Social de Évora); e por último o alf mil José António Gonçalves Rodrigues, já falecido, e que trabalhava no Centro Regional de Segurança Social, aqui em Lisboa na Av Afonso Costa no Areeiro"(...)
 

Guiné >  Região Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > 1970 >  Era aqui a sede do Pel Caç Nat 63 e da 1.ª Companhia de Comandos Africanos... Diversos furriéis e alferes da CCAÇ 12 e da CCS / BART 2917, de visita a Fá Mandinga (e possivelmente a caminho de Bafatá para almoçar, em traje domingueiro, em meados de 1970: reconheço do lado direito, o alf Machado (CCS) e o alf Abel Maria Rodrigues (CCAÇ 12). Do lado esquerdo, também à civil, de camisola vermelha, o fur António Branquinho 
[1947-2013] e de camisola verde o fur Humberto Reis, ambos  da CCAÇ 12.

Fotos (e legendas): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados 
[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > Carta de Bambadinca (1955), escala 1/50 mil (1955) > Posição relativa de Fá Mandinga, a escassa meia dúzia de quilómetros de Bambadinca, na direção de Bafatá. Ficava na margem esquerda do rio Geba Estreito. Foi, durante anos, sede de batalhões e também Centro de Instrução Militar: nele foi formada, por exemplo, a 1.ª CCmds Africanos.


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá >  Setor L1 (Bambadinca) > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nhabijões, Mero e Santa Helena, três tabancas consideradas, desde o início da guerra, como estando "sob duplo controlo", ou seja, com população (maioritariamente balanta) que tinha parentes no "mato" (zona controlada pelo PAIGC) e que recebiam "visitas do mato"...

Em Finete, Missirá e Fá Mandinga havia destacamentos das NT. Entre Bambadinca e Fá Mandinga ficava Ponta Brandão. Havia aqui uma destilaria, de cana de acúcar... Bambadinca era sede de posto administrativo e tinha correios, telégrafo e telefone, além de um posto sanitário ("missão do Sono")... Era, além disso, um importante porto fluvial. Era banhado pelo caprichoso Rio Geba (ou Xaianga), temível em Mato Cão... Até 1968 as LDG da Marinha chegavam até lá... Depois, já em 1969, ficavam-se pelo Xime que passou a ter "porto fluvial" (na realidade, um cais acostável)... De Bambadinca a Bafatá (cerca de 30 km) a estrada era já alcatroada... no tempo da CCAÇ 12  (1969/71).

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).


1. Esta série é dedicada à(s) "Memória(s) dos lugares"... Logo no princípio do nosso blogue, tínhamos, na badana (ou coluna estática) do lado esquerdo uma listagem (com links) de lugares por onde passámos, documentados com fotografias e infografias...

Ia já em 24 topónimos, mas faltavam muitos mais... Começámos a sua recuperação com o topónimo Bafatá, e depois Bambadinca.(***)

As imagens estavam originalmente alojadas na página pessoal do nosso editor, Saúde e Trabalho - Luís Graça, no servidor da ENSP/NOVA. Foi descontinuada, em 2022, com o redesenho da página oficial da instituição. Estamos agora a recuperá-la através das capturas feitas pelo Arquivo.pt, bem como dos ficheiros originais. É uma tarefa morosa e ingrata...

Luís Graça > Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné > Antologia, preservada pelo Arquivo.pt

E vamos aproveitar para refrescar e atualizar os nossos álbuns fotográficos, por topónimos da Guiné (se não todos, pelo menos os principais). Afinal, trata-se de não perder  as nossas "geografias emocionais". Muitas das fotos que vamos publicando estão dispersas. São de diferentes autores e anos... É agora a altura de as tentar reunir.


2. Fá Mandinga ficava na margem esquerda do rio Geba Estreito. Durante anos foi sede de batalhão (ou de subunidades de diversas armas: infantaria, cavalaria, artilharia), sucedendo-lhe Bambadinca (como sede do Sector L1). 

E, mais tarde, foi centro de instrução militar: no 1.º semestre de 1970, foi lá que se formou a 1.ª CCmds Africanos, comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló. Foi de lá  que partiu, a 1.ª CCmds Africanos, para a aquela que viria a ser mais tarde, em 22 de novembro de 1970, a Operação Mar Verde (invasão anfíbia de Conacri). E a seguir à 1.ª, vieram lá formar-se as 2.ª e 3.ª CCmds Africanos, com as quais se constituiu mais tarde o Batalhão de Comandos Africanos.

Também foi sede do Pel Caç Nat 63, ao tempo do  nosso glorioso "alfero Cabral" (1969/70), antes de ser transferido para Missirá em meados de 1970. 

Aparentemente  Fá (Mandinga, havia outra, Balanta, perto de Santa Helena) teve um papel discreto na guerra... Pertencia ao regulado de Badora. Ao que parece, nunca foi atacada ou flagelada, contrariamente a Missirá (que já pertencia ao regulado do Cuor).

Durante muito tempo esteve associada, erradamente, ao nome do engº agrónomo Amílcar Cabral. De facto, a estação agrária experimental de Fá tinha boas instalações, entretanto desafetadas com o início da guerra. Mas Amílcar Cabral nunca ali trabalhou, e muito menos lá viveu. Ele e a sua primeira esposa, portuguesa, Maria Helena Rodrigues, silvicultora, viveram e trabalharam na estação agrária experimental de Pessubé, nas imediações de Bissau, entre setembro de 1952 e março de 1955, como recordou o nosso amigo Pepito, também ele engenheiro agrónomo (1949-2014) (****)

Também houve aqui, em tempos (1947), uma moderna serração mecânica, do empresário Fausto da Silva Teixeira, antigo deportado político.


Guiné - Bissau > Regiáo autónoma de Bissau > Pessubé >2013 >  Fotografia atual da casa onde Cabral e Maria Helena viveram na Granja Experimental de Pessubé, de 400 hectares.  Num notável artigo sobre o Amíllcar Cabral enquanto engenheiro agrónomo na Guiné, o nosso amigo Pepito (1949-2014) escreveu:

(...)  Ele e Maria Helena instalam-se na casa da Granja Experimental do Pessubé, atribuída ao seu diretor, na altura situada muito longe do centro de Bissau, num bairro popular da periferia e numa zona isolada e de difícil acesso. A Granja dispunha de cerca de 400 ha onde existia grande número de essências florestais e um pequeno número avulso de algumas espécies frutícolas, como por exemplo cacaueiros.

Nesta altura, quando começa a exercer a sua profissão, Amílcar está convencido de que o processo de independência decorrerá de forma pacífica, nos moldes como se virá a processar nos outros países africanos, pelo que decide começar a construção do novo edifício conceptual agrícola que iria substituir gradualmente o modelo colonial existente.

A Granja de Pessubé vai ser o ponto de partida, para começar a pôr em prática uma estratégia, em três vertentes principais, que ele considera importantes para o desenvolvimento da agricultura guineense- (...) (****)

Foto (e legenda): © Carlos Schwarz (2013). Todos os direitos reservados, [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Unidades que passaram por Fá Mandinga 

Unidade
Origem
Chegada
Saida
Destino
BCaç  697 -   CCS
RI 15
Jul 64
Abr 66
Fim comissão
CCaç   674
RI 16
Jul 64
Jul 64
Fajonquito
CCav    678
RC 7
Set 64
Jan 65
Ponta do Inglês
Pel Rec  Daimler 809
RC 6
Nov 64
Jan 66
Dulombi
BCaç 1856 - CCaç 1417
RI 1
Set 65
Mai 66
Bajocunda
Pel Mort 1028
RI 2
Set 65
Nov 66
Bambadinca
BCaç 1888 -  CCS
RI 1
Abr 66
Nov 66
Bambadinca
BCav  705 - CCav   702
RC 7
Abr 66
Mai 66
Fim comissão
BCaç 1887 - CCaç 1547
RI 1
Mai 66
Set 66
Bula
Pel Rec Daimler 1133
RC 6
Ago 66
Out 66
Bambadinca
BCaç 1887 - CCaç 1546
RI 1
Out 66
Dez 66
Bissau
BCaç 1888 - CCaç 1551
RI 1
Nov 66
Jan 67
Xitole
BCaç  1894 - CCaç 1589
RI 15
Dez 66
Abr 67
Madina do Boé
CCaç   817
BC 10
Jan 67
Fev 67
Fim comissão
CCaç   818
BC 10
Jan 67
Fev 67
Fim comissão
CArt  1661
RAC
Fev 67
Abr 67
Enxalé
BCaç 1912 – Ccaç 1685
RI 16
Abr 67
Out 67
Fajonquito
CCaç 1426
RI 16
Abr 67
Mai 67
Fim comissão
CCaç 1439
BII 19
Abr 67
Mai 67
Fim comissão
BArt 1913 - CArt 1689
RAP 2
Mai 67
Jul 67
Catió
BArt  1904 - CArt 1646
RAP 2
Ago 67
Jan 68
Xitole
BArt  1904 - CArt 1646
RAP 2
Set 67
Out 69
Fim comissão
BCaç 1933 - CCaç 1790
RI 15
Out 67
Jan 68
Madina do Boé
BCaç 1888 - CCaç 1551
RI 1
Nov 67
Jan 68
Fim comissão
CArt  2338
RAL 3
Jan 68
Abr 68
Nova Lamego
CArt  2339
RAL 3
Fev 68
Mai 68
Mansambo
CCaç 2383
RI 2
Mai 68
Jul 68
Nova Lamego
CArt  2413
RAP 2
Ago 68
Set 68
Xitole
BCaç 2852 - CCaç 2405
RI 2
Dez 68
Dez 68
Galomaro
BCaç 2851 – Ccaç 2403
RI 1
Fev 69
Abr 69
Mansabá
1ª CCmds Africana
CTIG
Jul 69
Jul 69
Bajocunda
1ª  CCmds Africana
CTIG
Set 70
Jul 71
Brá
Pel Caç Nat  52
CTIG
Jan 71
Jul 71
Missirá
2ª CCmds Africana
CTIG
Abr71
Out 71
Brá
3ª CCmds Africana
CTIG
Abr 72
Set 74
Extinção  Unidade
Pel Caç Nat   52
CTIG
Abr 72
Jul 72
Ponte R Unduma
Pel Caç Nat 63
CTIG
Jul 69
Ago 74
Desativada
BArt 3873 - CArt 3493
RAP 2
Dez 73
Jan 74
Bissau

Fonte: José Martins (2014) (com correções do nosso saudoso Jorge Cabral: (i) O Pel Caç Nat 63 foi para lá em julho de 1969; e  (ii) a 1ª CCmds Africanos chegou em fevereiro de 1970.


3. Estranhamente não temos muitas fotos de Fá Mandinga, a não ser as que se salvaram do álbum do Jorge Cabral (1944-2019). Mas temos cerca de 150 referências a este topónimo.

Em contrapartida, temos alguns descrições do aquartelamento. Escolhemos três:

(i) Armandino Alves [1944-2014] , ex-1.º Cabo Aux Enf,
CCAÇ 1589 (1966/68)

(...) Sobre o Aquartelamento de Fá Mandinga, ainda recordo que:

Em Dezembro de 1966, a minha CCAÇ 1589, recebeu guia de marcha para Fá Mandinga.  Embarcámos em Bissau numa LDG em direcção a Bambadinca e daí seguimos em viaturas, pela estrada em terra batida, que estava a ser aberta pelo Batalhão de Engenharia, em direcção a Bafatá [mais tarde alargada e asfaltada, no 2º semestre de 1967].

A certa altura virámos à esquerda e entrámos na picada que nos ia levar a Fá. Era tão estreita que mal lá cabiam uma GMC ou uma Mercedes. Passámos o Aquartelamento de Fá de Cima e começámos uma íngreme descida até Fá de Baixo.

O Aquartelamento era constituído por 4 grandes barracões, dois de cada lado, com uma grande parada no meio. À volta era só capim, que era preciso desbastar para podermos ver mais longe e evitar surpresas “desagradáveis”, embora o pessoal de Fá de Cima nos protegesse pois, devido à sua posição no cimo da colina, viam muito mais longe. Mas, pelo que eu sei, Fá nunca foi atacada.

A partir daqui fizemos várias operações, com outras Companhias que tinham a sua base em Porto Gole. A maior delas foi à mata do Saraoul, durou 10 dias e foi feita a nível de Batalhão.

(...) Pouco tempo depois recebemos guia de marcha para Madina do Boé.

Quanto ao quartel de Fá, lembro-me que o 1.º barracão se situava do lado direito de quem entrava no quartel e servia de caserna dos praças e quartos dos sargentos, e o 2.º destinava-se aos Comandantes e, creio que também, a camarata dos oficiais.

Nas traseiras do 1.º barracão estava instalado o “meu” Posto de Socorros e o reboque com o material de Campanha do SS, que nunca foi usado. O 2.º pavilhão, do lado esquerdo, só estava meio ocupado por nós, pois a outra metade estava vedada com rede e tinha guardado o material, para a fazenda do Amílcar Cabral [informação errónea, já que o eng agr Amilcar Cabral nunca trabalhou aqui, mas sim na Granja de Pessubé, a norte de Bissau (LG)].

Não me lembro onde ficavam a cozinha nem as oficinas auto. (...) (*****)


(ii) Torcato Mendonça  [1944-2021], ex-alf mil art, CART 2338 
(Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69)

(...) Finalmente chegaram. Já a tarde ia alta e Fá Mandinga aí estava. Não parecia um aquartelamento. A entrada tinha a cancela com arame farpado, uma leve protecção para o militar da porta de armas e, enquanto rolavam aquartelamento dentro, iam aparecendo os edifícios adaptados à tropa. 

Coluna parada e ordem para desembarcarem. Deu-se então o reencontro com um alferes e um sargento que, umas semanas antes, por via aérea os tinham precedido a fim de tratarem das burocracias e instalação da Companhia Independente. Tiveram recepção calorosa e a vida, de burocracias e instalação facilitada. Breve formatura, material diverso arrumado e está a tratar da instalação. 

A ele e ao outro alferes indicaram-lhe uma “vivenda”. Já lá estava o outro alferes instalado. A dita vivenda, certamente de algum antigo colaborador de Amílcar Cabral, tinha quartos para os alferes, messe de oficiais e sargentos, cozinha e arrumos e duas ou três casas de banho. Não sabia que aquele quarto, que agora ocupava e onde ia arrumando as suas roupas, livros e demais haveres, seria o primeiro e único quarto onde viveu na Guiné. Nunca mais teve tal luxo. No futuro seria o abrigo, a morança das tabancas ou, se pernoitasse em Bambadinca ou noutra cidade, lá teria o quarto de empréstimo. Houve outros poisos mas são outras vidas… 

Bateram à porta e disse: 
- Entre. 

Abre-se a porta e aparece um africano com um sorriso alvar e franco. 
- Sou o Lali e trabalho aqui para os oficiais. Venho acender o Lion Brand. 
- Vem acender o quê? - disse. 

O Lali ria, mostrava uma caixa e disse: 
- É para os mosquitos fugirem. 

Foi a vez de ele rir. Depois de acender, perguntou se ele precisava de alguma “coisa”. 

- Sente-se aí, que quero fazer umas perguntas. 

De pronto o Lali respondeu: 
- Não posso sentar… 

Olhou-o e compreendeu.
 - Logo falamos então. 

Saiu e dirigiu-se às instalações do Grupo, apanhando o ar, ainda quente, do final da tarde, sentindo aqueles cheiros e sons tão diferentes. Estava tudo a correr bem, conversaram um pouco, viram escalas e serviços e sentia-se, os outros também certamente, deslocado naquele ambiente. Depois do jantar veio até cá fora um pouco e não tardou a regressar ao quarto. Agora é que era e “a dança ia começar”. (...) (**)


(iii) António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto,
CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba 
e Bissau, 1972/74) 

(...) Em Fá Mandinga, local onde passámos "uma espécie de férias”, existiam instalações de grandes dimensões em que as telhas que as cobriam, pelo menos algumas, tinha sido fabricadas na então metrópole, na região de Porto de Mós, onde existiam muitas fábricas, o que me tocava ainda mais dada a proximidade da minha terra. 

Existia também no local, um espaço em mau estado com vários motores inoperacionais que noutro tempo ali teriam funcionado para produzir energia. Um pouco mais abaixo, junto à bolanha, havia mais instalações, onde os padeiros da nossa companhia iam fazer o pão. Creio que não estou errado… foi há muito tempo...

Dizia-se que aquelas instalações pertenciam a Amílcar Cabral quando a guerra começou. Mas diziam-se tantas coisas…

Durante o tempo que lá estivemos, para além do pessoal da cozinha e os padeiros, não me lembro que mais alguém tivesse feito qualquer serviço, eu sei que não fiz assim como os outros condutores. Mas o lado psicológico não deixava ninguém tranquilo. A mais pequena coisa... levava a comportamentos nada comuns. 
(...)  (******)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2918: História da Cavalaria em Bambadinca (1): Pel Rec Daimler 1133 (1966/68) adido ao BCAÇ 1888 e ao BART 1904 (Jaime Machado)

(**) Vd. poste de 11 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4809: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Fá Mandinga, o único sítio onde tive direito ao luxo de um quarto