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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1504: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (32): Aruma Sambu, o prisioneiro de Quebá Jilã

Capa do mundialmente famoso livrinho de Saint-Exupéry, Antoine Marie Roger de Saint-Exupéry (Lyon, 1900- Mar mediterrâneo, 1944). Ilustrações do autor. 4ª edição. Editorial Aster, Lisboa, s/d.

Le Petit Prince, no original, em francês, foi publicado em 1943, nos Estados Unidos. É considerado o livro francês mais divulgado de todos os tempos e, a seguir à Bíblia, a obra mais traduzida em todo o mundo. Beja Santos considera-o, ainda hoje, umn dos dos seus livros de cabeceira.

Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Texto enviado em 18 de Janeiro de 2007. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1). Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue.


O prisioneiro de Quebá Jilã
por Beja Santos

A 31 de Janeiro [de 1969], à noite, chegou a mensagem de Açor dirigido a Alce: "Apresente-se urgentemente este". Açor, neste caso, é o Comandante de Bambadinca, o incontornável Pimbas (2).

É evidente que a visita de Spínola e Felgas já chegara ao conhecimento de Pimbas, a convocatória não surpreendia, Bafatá (3) aproveitava qualquer pretexto para pressionar Bambadinca/Pimbas , exigindo-lhe energia e vigilância de e para todos os aquartelamentos.

A paternal admoestação do Pimbas, em Bambadinca

O Pimbas dava-se mal com este papel de reitor e vigilante implacável, ele próprio estava a ser enredado nas suas limitações de que começará a cair desamparadamente depois da Operação Lança Afiada (3) e do ataque a Bambadinca de 28 de Maio, de que sairá definitivamente exautorado.

Junto o útil ao agradável, e a 1 de Fevereiro apresento-me muito cedo na sede do Comando. O Pimbas recebeu-me com a afabilidade do costume, levou-me para o seu gabinete, não sem antes ter dito ao Bala, o lendário ordenança, que não queria ser incomodado na próxima meia hora.
- Menino, hoje é um dia terrível para mim, pois vai começar a evacuação de Madina do Boé e tenho que ser áspero contigo. Tu não sabes o que eu ouvi do Felgas. Para ele, tu não passas de uma desilusão, combates destemidamente mas tens o quartel como uma choldra. Ele até cafre te chamou. Vai voltar em breve para ver as alterações na segurança e na repartição entre o que é quartel e população. Peço-te que tenhas tudo limpo, exige à população que escove e se liberte da porcaria, se não ele dá-te mesmo uma porrada. Nesta altura, é mesmo o que nos faltava, eu sou repreendido por tudo e por nada, vê lá se não desiludes e me apoias.


É um cafre, diz o Hélio Felgas

Entendi relembrar ao Pimbas o que ele vira e a diferença abismal daquilo que eu recebera. Diariamente, trinta homens faziam 25 a 50 Km para ir a Mato de Cão, a prioridade das prioridades. As obras, a manutenção, a logística eram devoradoras da outra disponibilidade. As fieiras de arame farpado estavam renovadas, e eram três, ao contrário de duas a cair que encontrei; o plano de segurança, gizado pelo Reis para minar o que era exequível minar num espaço onde viviam várias dezenas de crianças, estava em execução; de duas viaturas permanentemente empanadas, havia melhorias; Finete ia conhecendo melhoramentos, tinha um abrigo novo e valas que podiam dar protecção à população civil no caso de uma flagelação; houvera reparações, funcionava a escola em Missirá, graças ao Payne assistia-se semanalmente a população doente; e o plano dos abrigos também estava em marcha, como o próprio Comandante Chefe constatara.

O que acima de tudo me estava a magoar era esta insidiosa incriminação de sujeira e bandalheira cafre. Era ímpossível, além de indesejável e imoral, meter a população num gueto. Tinham sido dadas intruções rigorosas aos responsáveis civis para haver mais cuidado no arrumo das alfaias e na limpeza doméstica, mas havia que atender que há valores culturais que não se mudam por ordem de serviço. E pus o meu lugar à disposição, se me considerava incompetente havia muita guerra para fazer , não queria ser estorvo para ninguém.

É de imaginar que esta conversa não levava a ponto nenhum, a não ser o Pimbas insistir na limpeza das cubatas e numa segurança revigorada para Missirá... mesmo sem se explicitar se se falava de armamento, da pesquisa de cartuchos na parada ou outras diligências afins.



As ameaças do Mamadu Jaquité

Findo o encontro, fui fazer o relatório ao Major das operações. A novidade da última semana de Janeiro foram documentos de propaganda que o PAIGC deixara numa bolsa de plástico na fonte de Cancumba e um papel garatujado que o Benjamim me ajudou a decifrar:
- Tu não passas de um alferes de merda. Andas a chatear um povo que quer ser livre. Tu vais morrer ou eu ter vergonha de viver na minha Pátria. Se quiseres desertar , tu vens cultivar a bolanha de Madina. O meu nome é Mamadu Jaquité.

O Benjamim, finda a leitura, esboçou um sorriso alargado e perguntou-me:
- E agora, o que o meu alferes vai fazer? Olhe que isto é uma ameaça.

Mais disse ao Major Viriato Pires da Silva que nessa semana acordámos todos pelas três da manhã com um estrondo monumental vindo da estrada de Morucunda, a 2 Km de Missirá. O Reis aceitara a minha sugestão de armadilhar o trilho que, tínhamos detectado, era usado por gente de Madina. Com o estrondo saímos dos abrigos e das cubatas e ouvimos um morteiro a funcionar, seguindo-se algumas rajadas espúrias e depois o silêncio. Não restava dúvidas: uma coluna do PAIGC caíra numa armadilha e estava a reagir.

Na manhã seguinte viera para Mato de Cão e o Casanova fora fazer o reconhecimento, com todas as cautelas possíveis. O que me descreveu à noite era de que havia uma imensa fossa com pastas de sangue, a picada pisada em várias direcções, certamente que a gente de Madina improvisara macas e suposera, no meio do caos, tratar-se de uma emboscada.

Informei o Major de operações que ia em breve visitar o último ponto do Cuor onde eu considerava ser possível patrulhar com um pequeno contigente: Quebá Jilã, para saber se era habitado, quais as redes de circulação até Madina, a escassos 8 Km. Ele deu-me a entender que estava em preparativos uma grande operação a Madina/Belel e que tal reconhecimento era bastante útil.

E do trabalho das armas passei para as coisas da construção civil e da mesa. Depois, cumpriu-se o jogo de futebol com o recém-chegado pelotão de caçadores nativos nº 54. Para além da sova monumental que levámos, recordo que em determinado momento parámos todos para ver o céu escurecido por aviões de diferente porte que avançavam para Leste, com ruído ensurdecedor. Começara a evacuação de Madina Boé e ali vinham bombas, canhões, tropa aerotransportada, munições várias, o conforto e o alívio de quem ia ajudar a evacuar Madina do Boé.

Como eu não sei ler as linhas do destino, não podia antever que a vida dos soldados de Missirá tinha o seu futuro selado aos acontecimentos trágicos que iriam ensombrar a companhia de Galomaro [, a CCAÇ 2405]. Terei essa resposta a descoberto no dia em que aparecemos esfarrapados em Bambadinca, lá para o fim de Março.

Cambámos o Geba com chapa ondulada, cimentos, pregos, rebites mas também com barricas com pé de porco, conservas de feijão verde, leite achocolatado, cerveja, detergentes e outros imperativos domésticos. Fiquei essa noite em Finete, não sem ter enviado uma mensagem ao Casanova para no dia seguinte escolher trinta homens que saíriam connosco na madrugada seguinte, para o patrulhamento de Quebá Jilã. Informei-o que levaria gente de Finete para suprir faltas, na eventualidade de haver uma ida a Mato de Cão. A haver, ele seria o Comandante e Bacari Soncó ficaria a substituir-me com o Furriel Pires.


O azar do Aruma Sambu, 18 anos, agricultor, mansoanque, apanhado em cima de um palmeira

Nessa noite, pedindo o maior sigilo a Bacari Soncó e Fodé Dahaba, expliquei-lhes o que pretendia saber na região de Quebá Jilã. Bacari foi categórico:
-Sabemos que Quebá Jilã tem população civil e faz a ligação com a base de Banir, já no Oio. É melhor levarmos de Finete uma secção de tropa muito bem preparada. É atacar e fugir, não se pode fazer mais.

Em Missirá, no dia seguinte, conversei com o Casanova e, separadamente, com Malã e Quebá Soncó. Tratava-se de um patrulhamento, e eu apostava numa progressão muito rápida a partir das 2 da manhã entre Missirá, o Rio de Biassa, até ao interior do Cuor, a aproximadamente 4 Km de Quebá Jilã. A partir das 8/9 da manhã, eu ficaria nas mãos do picador e dos conhecimentos de Cibo Indjai e Queta Baldé, que já tinham percorrido a região. Conversando com o Queta, ele rememorou os factos:
-Levámos um morteiro 60, uma bazuca, quatro apontadores dilagrama, rádio e várias metralhadoras ligeiras.

Chegámos ao pé de Quebá Jilã ia o sol no alto. Cibo e eu propusemos ao Quebá avançar dentro de uma floresta e contornar, bem protegidos, uma clareira que eu sabia chegar a Quebá Jilã. O Quebá escolheu sempre bem caminho fora de velhas picadas, entrámos na floresta e ao longe comecei a ouvir vozes de gente que cantava. De repente, tínhamos um grande campo de milho e mandioca e ao fundo palmeiras. É a olhar para as palmeiras que o Cibo avista alguém a apanhar vinho de palma.

Combinou-se então que um grupo ia a correr para aquela árvore e a coluna avançaria a protegê-los. Assim aconteceu. Estava um jovem de cerca de 18 anos em cima de uma palmeira que quando nos viu tentou atirar-se e fugir. Foi logo preso e, quando ele se preparava para gritar, alguém teve que lhe dar um tabefe. A sua expressão era de terror, usava uma tanga o que deu para ver como o seu corpo vibrava, supondo o horror da morte. Decidimos então trazer o preso para dentro da floresta e interrogá-lo. Quando abordei o Queta Baldé sobre este episódio, ele foi categórico:
-Eu lembro tudo. Chamava-se Aruma Sambu e era mansoanque. Uam conversou com ele em mansoanque. Ali perto do palmeiral estava um grupo de população civil a trabalhar protegido por tropa de Belel, com RPG 2 e morteiros. Foi nessa altura que o alferes decidiu retirar imediatamente com o preso para Missirá, onde chegámos ao fim da tarde. Ele ficou no armazém de géneros e depois do jantar o alferes voltou a interrogá-lo sobre Quebá Jilã. Não foi fácil obter informações. Ele disse viver perto do Banir e não conhecer Madina. Mas lá foi confirmando que havia um bigrupo em Madina e que as vias de abastecimento estavam presentemente a mudar devido à pressão de Missirá. Estava a chegar menos gente de Mero e havia medo nos Nhabijões. A tropa falava em atacar Missirá. Mas ele procurava dizer sempre que não tinha nada a ver com a tropa, era agricultor. E na manhã seguinte, levámo-lo a Bambadinca.


A arte da contra-informação nos mercados de Bambadinca

Assim fora. Nessa noite, tomei a decisão de criar uma corrente de contra-informação que submeti ao critério do Domingos e do Benjamim. A ideia era espalhar pelos mercados de Bambadinca a notícia que um prisioneiro informara as nossas tropas sobre quem ajudava Madina/Belel e quais os caminhos mais utilizados. O Domingos e o Benjamim aprovaram a ideia, escolheram-se intoxicadores para espalhar a atoarda em várias línguas, com relevo para o Balanta, Beafada, Mandinha e Fula. Escrevi uma carta para o Comandante, relatando-lhe sumariamente os acontecimentos e pedindo à sala de operações que tivesse em conta todos os depoimentos de Aruma Sambu, ligando-os às exigências da operação.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Destacamento de Mato Cão > 1973 > Pel Caç Nat 52 > O famoso SDintex com que o Beja Santos (e depois os seus sucessores, aqui na foto o Mexia Alves) fazia a travessia do Rio Geba (4).
Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados
As idas a Mato de Cão vão ser um sorvedouro de energias nos próximos dias. Eu irei a Bafatá, por imposição, ouvir a admoestação do Felgas. Este mês de Fevereiro incluirá as operações Anda Cá e Fado Hilário com dolorosas lembranças e o espectro das abelhas. Vão-se viver os últimos tempos da velha Missirá que vai ficar carbonizada. A grande surpresa reserva para o fim: neste mês de Fevereiro vamos provar a delícia de viajar num Sintex a partir do porto de Bambadinca pelos meandros estreitos do Geba até Gã Joaquim. Os nossos abastecimentos vão ficar transfigurados, se bem que exigindo dura provas no patrulhamento da margem esquerda do Geba, sobretudo entre Boa Esperança, Gã Gémeos e Gã Joaquim.


O Princepezinho, minha leitura de cabeceira

Está decidido que depois da Fado Hilário partirei para Bissau a 1 de Março. As dores no joelho são insuportáveis, sempre que vou a Mato de Cão tenho que estar 1 hora com saco de gelo com a perna hirta. Aproveito para ler e continuo cheio de sorte, dentro deste ciclo de obras magistrais. Desta feita, trata-se de De víbora na mão, por Hervé Bazin, numa tradução de Maria Judith de Carvalho e Urbano Tavares Rodrigues.

Filho muito amado por uma mãe inesquecível, entro a medo nesta história de ódio gélido e recíproco entre um filho e uma mãe. Bazin faz um relato violento, viperinamente violento, de uma família de aristocracia rural decadente onde a mãe, Paule Rezeau, domina tudo e todos. Os Reazeau têm o seu nome ligado à história da França, casam com duques, marqueses, condes e barões. Paule Pluvignec era neta de um banqueiro e filha de um senador. Quando se torna Rezeau traz um dote de 300 mil francos-ouro. Educa os filhos com máxima dureza, manipula sentimentos, neutraliza o marido, mantém os filhos andrajosos e mal alimentados, em regime de internato severo. Os filhos vingam-se, procurando tripodear os planos maléficos da agressiva Sra Rezeau. É um combate sem tréguas que se alimenta de ódio, uma arquitectura literária sublime em que o verbo prodigioso acompanha a decomposição dos valores e sentimentos. O livro é ácido e vai desembocar em posições extremadas de uma mãe que odeia e vive a maquinar o sofrimento dos filhos e estes a crescer como serpentes. Ainda hoje quando pergunto a alguém o que pensa deste relato familiar catastrófico, oiço sempre dizer, entre suspiros e interjecções: "É a obra prima absoluta!".

Leio e volto a reler, incansavelmente, O Principezinho, certamente o testamento poético e humano de Saint-Exupéry. Nesta idade, ainda não sei que este bravo homem vive permanentemente à procura de superar os limites, e que vai morrer, um ano depois de ter escrito O Principezinho, sob os céus da França.

É um monólogo de um escritor ao espelho, sob o disfarce de um piloto que no meio do Saará é obrigado a uma paragem forçada que leva a conversas inocentes com uma aparição de um jovem que veio de um asteróide. Fala-se de embodeiros, ovelhas, muitas flores, pássaros, de outros asteróides, de histórias de encantar, de viagens fabulosas pelo espaço. Até ao dia em que a visita do Principezinho termina como se chegasse o momento de só regressar ao sofrimento humano na paisagem do mundo. O Principezinho é uma estrela quente que nos afugenta os sonhos maus no mundo em guerra. E na minha guerra, no fim do mundo, entre o Cuor e o Oio, cercado pelo Geba, por obrigações inevitáveis, se alguém dissesse ter dúvidas que o livro é melhor companhia eu passava-lhe para a mão a ternura de O Principezinho.

É com os sonhos de O Principezinho que a seguir vou ouvir as admoestações do Coronel Felgas, viajar no Sintex e apanhar dois dias de prisão simples. Ora escutem lá.

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts relativos ao ano de 1969:

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1486: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (31): Abelhas africanas assassinas

25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1442: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (29): Finete contra Missirá mais as vacas e o bombolom dos balantas

10 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1418: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (28): Sol e sangue em Gambiel

(2) Vd. post de 3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1399: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (27): Sinopse: os meus primeiros 150 dias

(3) Badtá era sede do Agrupamento 2957, que abarcava toda a Zona Leste, sendo constituído por cinco sectores. O de Bambadinca era o L1. Este agrupamento, comandado pelo Coronel Hélio Felgas, deu origem mais tarde ao CAOP 2.

Sobre a figura deste oficial superior, que se reformou como brigadeiro, há vários posts no nosso blogue:

24 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIX: O Hélio Felgas do nosso tempo (A. Marques Lopes)

23 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCVIII: Antologia (27): depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (1): os aquartelamentos

25 de Novembro de 20065 > Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIII: Antologia (29): depoimento de Hélio Felgas (3): os ataques aos acampamentos do IN

9 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas


(4) Vd. post de 25 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1115: O Destacamento do Mato Cão, no tempo em que comandei o Pel Caç Nat 52 (1972/73) (Joaquim Mexia Alves)

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > 1968 > O Tigre de Missirá, mais alguns dos seus homens do Pel Caç Nat 52, no famoso burrinho (o Unimog 411), com que reabriu a estrada Missirá-Enxalé antes da visita do comandante do novo batalhão (BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados

Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.






Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1968 > O comandante do BCAÇ 2852, tenente-coronel Manuel Pimentel Bastos, assinalado com um círculo a verde, numa das suas primeiras visitas a uma das suas unidades de quadrícula (neste caso, a CART 2339, Mansambo, 1968/69).




Fotos: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.


Texto enviad0 em 25 de Outubro de 2006. Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, como alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).

Caro Luís, tens que fazer das tripas coração para ilustrar este texto: não tenho fotografias de Enxalé, mas pode ser que possas pôr Mato de Cão. Tudo o que fotografei nesta época ardeu. Tens aí em teu poder uma fotografia em que estou a dar aulas, há outra em que estou com o Quim, o Adão e outros mais. Não tenho fotografias do Pimentel Bastos. Vê o que podes fazer. Estarei em Roma até Domingo à tarde. Na terça feira de manhã, oiço aqui o Queta Baldé para ver se ele me refresca a memória. Depois será a vez do Fodé Dahaba. Por todo o cuidado que tens tido nesta odisseia recebe o reconhecimento do Mário.


A viagem triunfal do Pimbas ao Cuor
por Beja Santos

Entre Outubro e Novembro de 68, Manuel Maria Pimentel Bastos, Comandante do BCAÇ 2852 (ternamente conhecido na caserna pelo Pimbas, ao que consta o seu nome poético) (2), decidiu visitar os diferentes quartéis do sector, começando em Xitole e Mansambo, passando por Xime e Galomaro, depois Missirá e também Demba Taco e Taibatá e algumas tabancas em autodefesa.

O novo Comandante de Bambadinca, seguramente por decisão do Comando-Chefe, procedia a auscultações dos régulos da região a que não era alheia o fenómeno do reagrupamento de populações e o reforço das tabancas em autodefesa. Notificado da visita ao Cuor, após consulta dos Furriéis, do régulo e dos comandantes de milícia de Missirá e Finete, tomei as seguintes disposições para aprimorar o programa:

(i) visita a Finete e recepção do régulo que acompanharia o Comandante na visita ao aquartelamento e tabancas, destacando a importância estratégica e a debilidade do sistema defensivo;
(ii) montagem de patrulhamentos entre Missirá e Finete para permitir uma progressão rápida entre quartéis;
(iii) recepção em Missirá, cerimónia do içar da bandeira, visita aos melhoramentos e ao sistema defensivo, seguindo-se uma reunião com régulo e furriéis, bem como os comandantes das respectivas milícias;
(iv) depois da pernoita do comandante em Missirá, trazê-lo de volta a Bambadinca na manhã seguinte, montando os mesmos dispositivos de segurança na estrada até Finete, desde o amanhecer.

Em meados de Outubro, o Pimbas informou-me que se faria acompanhar do David Payne Pereira (3), o médico que começava a ganhar aura de santidade entre as nossas populações civis. Os preparativos incidiram sobre a limpeza das moranças civis e abrigos, metais brunidos, bota luzídia e farda a condizer. Doutor e Umaru Baldé estagiaram na messe de oficiais para conhecer os gostos gastronómicos do ilustre hóspede, procurando reproduzi-los à justa medida. Estava lançado um plano de azáfama, arranjos urgentes, reparação de móveis e alguns toques de estilo.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Dezembro de 1969 > A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos. Na fotografia aparece, na segunda fila, de pé - devidamente assinalado com um círculo a azul - o médico David Payne (já falecido), tendo a seu lado, à direita, o major Cunha Ribeiro, 2º comandante do BCAÇ 2852 e, à sua esquerda, o capitão Brito, comandante da CCAÇ 12. O Payne acompanhou o Pimbas na visita ao regulado do Cuor.



Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Um homem culto, um melómano,


Pimentel Bastos era um homem de cultura, loquaz até à exaustão, um comunicador habituado aos salões, vivendo longe das vicissitudes do nosso teatro de guerra. Nos primeiros encontros que travámos descobrimos rapidamente afinidades que tanto passavam pelo Jorge Amado e Carlos de Oliveira como por Bizet, Verdi e Brahms no tocante a música coral, ópera e sinfonia. Logo comecei a idealizar seja um concerto de música por mandingas seja um serão musical, em Missirá. Quando o sondei, abriu-me os olhos com cupidez e perguntou-me:
-Ouve lá, tu não sabes como eu gostaria de ouvir ópera no mato profundo, deixo o programa ao teu critério. Só com uma ressalva, não me vais obrigar a ouvir uma ópera do Wagner por inteiro. O resto é à tua discrição.

É exactamente neste período de azáfama que uma manhã, pelas 5 e meia, acordando e estando em ângulo recto na cama a olhar os pés inchados e besuntados com Lauroderme, ganhando energia para mais uma viagem a Mato de Cão quando os meus olhos caíram na minha mais que apodrecida carta de 1:50000, juntei-lhe a carta do Enxalé e disse para mim:
-E se voltássemos a abrir a estrada, indo com as viaturas, picando cuidadosamente de Saliquinhé a São Belchior e daqui a Enxalé?

Querendo medir a insensatez da temeridade, e verificar se a hipótese era concretizável, chamei os três cabos mais antigos do pelotão, o Paulo Ribeiro Semedo, o Domingos Silva e o Zé Pereira, gente educada em Bissau, formados em Bolama, em 1964, e já conhecedores do Enxalé. Quando lhes falei da possível visita, trataram o possível acontecimento com a maior das naturalidades:
-E porque não? No passado, quando viemos de Porto Gole para Enxalé, fazíamos regularmente a estrada. Depois começaram as minas e as emboscadas e o nosso alferes Zagalo desistiu. Devíamos era ir pelotão e meio, mais gente a picar, deixávamos depois em Mato de Cão meio pelotão em patrulhamento, picávamos bem até lá e vínhamos depois a correr para impedir qualquer emboscada.

São Belchior, o mais importante entreposto do Rio Geba, depois de Bissau


Do imaginado ao realizado a distância foi curta. Todos pareciam voluntários, pois a maioria do pelotão tinha passado por Enxalé, onde igualmente habitavam fulas e mandingas. Houve imediatamente pedidos da população civil e num ápice apareceram sacos à cabeça, gente com Mausers, vontades adormecidas de comerciar e trocar. Os Unimog estavam reparados e atestados, juntou-se combustível suplementar à cautela. A louca viagem ia começar. E, quando em Mato de Cão passou um comboio de três embarcações onde os tripulantes olhavam surpresos aquele estranho aparato, já um grupo de seis picadores se lançava a espiolhar as condições da estrada.

Saliquinhé tinha sido uma ponta com boas moradias e muito terreno lavrado. Atravessámos um grande palmeiral e depois a extensa bolanha junto do rio de Ganturandim. A seguir, avistámos os vestígios imponentes do que fora S. Belchior. Quem já estudou a história da Guiné do séc. XIX, sabe que S. Belchior foi o mais importante entreposto do Rio Geba depois de Bissau, foi mesmo o limite da presença portuguesa, já que o território a seguir andou permanentemente em litígio até Teixeira Pinto. Tudo em ruínas agora, mas não escondendo o bulício e os negócios de envergadura do passado.

Uma hora depois avistámos copas frondonsas de bissilões e Quebá Soncó, o irmão do régulo, que seguia imponente levando o seu chapéu à turca com estrela de prata, anunciou a proximidade do aquartelamento. Fomos recebidos em Enxalé com muita cortesia e não menos surpresa. Não se duvide que eu estava em transgressão, ultrapassar o meu sector, o alferes do Enxalé começou por suspeitar que se tratava de uma rendição ou operação conjunta, até à despedida tomou esta visita como uma rematada loucura que ele premiou com um almoço de galinha frita regada com vinho do Dão.

Regressámos a toda a brida, as viaturas roncando em estradas completamente esquecidas do que é presença humana e juncadas de restos de viaturas e os mais diversos sinais de civilização abandonada. Resta dizer que, quando ao anoitecer entrámos em Missirá com a alegria estampada do inédito da aventura e o fim dos temores de quem nos esperava, começaram a troar rebentamentos das forças de Madina/Belel [, base do PAIGC, a noroeste].

Seguramente que os sentinelas advertiram de Sinchã Corubal, os de Madina ficaram alarmados julgando tratar-se de uma coluna militar se deslocava a partir do Enxalé, sabe-se lá para onde. Mais tarde, Madina voltou a advertir que estas incursões não eram desejadas: Missirá e Finete serão flageladas, a primeira ao de leve, a segunda para deixar pesadas feridas. Depois falaremos destes acontecimentos.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969> A nova mesquita local. Era também aqui, em Missirá, que vivia o régulo do Cuor.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados


O que interessa agora dizer é que numa manhã cheia de luz, a tropa escoifada e com expressão festiva acompanhou o Comandante de Bambadinca na cambança do Geba, uma viagem de burrinho pela bolanha de Finete, onde teve lugar uma recepção onde não faltaram reverências das mulheres grandes dos Soncó e dos Mané. Pelo caminho ocorreram acidentes como Ussumane Baldé, que ia num brinco, e caiu desamparado dentro da água lamacenta.

O Pimbas sorria, de vez em quando pedia uma garrafa de água, fazia exclamações, estava excitado com aquela pequena mas tocante apoteose. A viagem até Missirá nunca mais a esqueci, pois falámos de tudo menos de guerra., como dois cavalheiros num clube. Quando lhe falei das ruínas monumentais da Aldeia de Cuor, o Pimbas, acicatado pela curiosidade, quis lá ir. Fui peremptório na negativa, sugerindo que tínhamos ali um aliciante para a próxima visita.

Na porta de armas, foi tratado como uma marechal de campo que viesse em visita aos mais destemido dos exércitos. Passeou-se e deslumbrou-se com os elementos de conforto como a messe, o balneário, os arranjos à volta da mesquita, a progressiva segurança dos abrigos. Mas não ignorou a fragilidade, a falta de electricidade, a incapacidade de sermos uma força ofensiva, pondo o inimigo permanentemente a respeito.

A tarde finava-se, o Pimbas preferiu uma bonita alocução aos militares e aos civis. Na messe, conversou com todos, tudo perguntava, parecia que tudo era completamente novo e digno de curiosidade naquele ermo do mundo. Seguiu-se o inacreditável jantar, e ainda hoje pergunto se é verdade que o Umaru serviu com luvas brancas, entregando um trinchante aos convivas, servindo o vinho, a água como se estivesse habituado a banquetes em Missirá (mal sabia o Pimbas que nesse dia faltaram bandejas e outras peças da baixela a Bambadinca...).

Antes do serão musical mostrei-lhe a morança onde ele ia dormir, perguntando se estava tudo a seu gosto. Como não sabia, nem ninguém me explicou se um Comandante no mato faz as suas necessidades como qualquer mortal, mandei comprar um penico no estanco do Zé Maria. O David Payne também foi instalado noutro abrigo, e pareceu-me satisfeito com aquele precário serviço de hotel.

O insólito: A Aída e a Traviata em Missirá

Chegámos agora ao clímax. Proponho em primeiro lugar ouvir árias por vozes sublimes: Maria Callas, Elena Suliotis, Regine Crespin, George London e Giuseppe Di Stefano. No intervalo, enquanto suas excelências beberricavam uísque puro, anunciei o Requiem de Mozart. A proposta foi aprovada com entusiasmo. E quando eu julgava que não teria sentido pelas 10 horas da noite convidá-los aos 4 actos da Aída, os ilustríssimos convidados mostraram a excitação ao rubro. Entrávamos na noite de ópera, como se estivéssemos no Scala ou no Convent Garden.
Ouviu-se a Aída com volume de som desmesurado, duvido que alguém pudesse estar a dormir com o Franco Corelli a protestar amor eterno à escrava etíope.

Encurtando razões, quando os heróis estão agonizantes no termo do 4º Acto, sendo já meia noite, na perspectiva de uma noite em vigilância, propondo ao Pimbas que se recolhesse de acordo com a sua condição, então não é que o David Payne que remexia no vinil e estava esgazeado com La Traviata , cantada por Joan Sutherland, Carlo Bergonzi e Robert Merrill, num elenco de nomes gigantescos, numa versão que ainda hoje continua no top das execuções sublimes, me pediu com aquela delicadeza que lhe era peculiar:
-Não te importas que quando o nosso Comandante se for deitar vamos ouvir a Traviata - Pedi-lhe que tivesse dó por um desgraçado que ia iniciar o turno da noite. Ele conformou-se e ouviu La Traviata sozinho. Pela hora do almoço, despedi-me do Pimbas na outra margem do Geba e ele exclamou para quem o quisesse ouvir:
-Menino, foi uma noite de estalo, quero que se repita por muitas e boas!

O Pimbas só voltará a Missirá nas circunstâncias dramáticas da Op Anda Cá, quando a sua estrela caminha para o ocaso. Foi uma noite tão boa e tão vibrante que quando há tempos eu ouvia o noticiário da Antena 2 que dava notícia da morte da Birgit Nilsson, a Aída daquela noite, não resisti a ir buscar o velho vinil e examinar o disco referente ao 4º Acto todo riscado por me ter levantado bruscamente quando uma morteirada caiu em cima do meu abrigo, lá para Setembro de 1969.

Entretanto, há prodígios que devem ser contados. Por exemplo, o Furriel Casanova vai tomar conta de uma criança, o Braima que morre à fome, comprando biberão e leite de fórmula, vigiando as mamadas e levando a criança ao David Payne. O Casanova que chegara cabisbaixo a Missirá, quase que renasceu com esta imprevista incumbência. Eu tenho que vos falar de Braima Mané e de uma operação em que ele recuperou alguma mobilidade num braço que parecia morto por estilhaços. Vou continuar a fazer patrulhamentos e emboscadas nocturnas. Irei a Salá, onde, do outro lado do rio, ouvirei tiros isolados de caçadores das populações civis de Madina.

Uma dessas manhãs, o Paulo Ribeiro Semedo, que estudou na missão católica de Bissau, irá perguntar-me se podermos ir à missa da capela de Bambadinca. Aproxima-se o momento de ir a Chicri e nesse dia haverá fogo de morte. Nesse dia igualmente irá surgir o primeiro dos 21 feridos graves da minha comissão. Vou procurar controlar as emoções para fazer o relato de tudo isto, do que leio, do que escrevo, dos sonhos realizados e por realizar. Quero que fiquem a saber uma coisa muito importante: estou a ler e permanentemente a reler O Delfim, do José Cardoso Pires. Exijo que partilhem comigo uma das leituras de toda a minha vida.

__________

Notas de L.G.:


(1) Vd. post anterior, de 14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1276: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (20): A (má) fama do Tigre de Missirá em Bambadinca

(2) Sobre o tenente-coronel Pimentel Bastos (nickname, Pimbas), pode ler-se os seguintes posts:

28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1124: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (2): A vida boa de Bambadinca, no tempo do Pimentel Bastos

30 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1041: O Pimbas e os outros (Jorge Cabral)

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1035: Ainda sobre o Pimbas, com um quebra-costelas para o Beja Santos (Paulo Raposo)


4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

(3) Sobre o Alf Mil Medico David Payne ver os seguintes posts:

28 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1238: David Payne Pereira, um gentleman luso-britânico e um grande médico em Bambadinca (Beja Santos)

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1237: Lembranças do David Payne (Torcato Mendonça / Beja Santos)

segunda-feira, 31 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852


Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), à direita, com mais três elementos da sua sub-unidade. Legenda da foto: "Bissau, Outubro de 69. A uma mesa de café, junto das docas de Bissau, Barbosa, o herói das emboscadas, o condutor Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de grato convívio de gente que partilha com resignação os mesmos sacrifícios. A ver se se tomamos uma 'bica' nesta mesma daqui a 2 meses (...)".

Texto e foto: © Beja Santos (2006)


Texto do Beja Santos:

Caro Luís, aqui vai mais um naco de prosa. Dentro das tuas possibilidades, ilustra com fotografias. Tudo farei para que isto não seja uma conversa caquética nem cheire a memórias de um autoconvencido. O que mais me está a empolgar é o fio da memória. Pegando na história do Batalhão [de Caçadores] 2852 [Bambadinca, 1968/70], verifico com curiosidade que o sector L1 era exclusivamente considerado para cá do Geba, o que não era bem assim. Eu estava para lá do Geba, e sem tropas no [regulado do] Cuor a vida do L1 seria um inferno. Ironias do destino. Prometo escrever-te segunda e terça e depois faço férias. Abraços, Mário Beja Santos.


O Saudoso Pimbas,

Cheguei a Bambadinca ao anoitecer de 2 de Agosto de 1968. Foi uma viagem de mais de 10 horas pelo Geba, salvo erro com uma paragem em Porto Gole. Deram-me no cais de Bissau uma ração de combate e comprei três peças de fruta. Houve muitos protestos com o transporte das duas pesadas caixas onde eu transportava livros e discos. Viagem relativamente aprazível, com lindos palmares, muita quietude das águas e o prazer de observar as conversas dos djilas (1) que partiam com as suas mercadorias para o Leste.

Aliás, quando cheguei a Bambadinca e me apresentei ao Comando, informaram-me que eu estava no sector L1. A três, o oficial de operações informou-me que eu ia para uma colónia de férias, Missirá e Finete:
- O régulo vai tratá-lo bem, vai lhe dar umas raparigas para não andar chateado, o Furriel Saiegh fará a guerra por si.

Já se sabe que não foi nada assim e do Saiegh (2) falaremos mais adiante. Ao reler a história do BCAC 2852, com quem convivi ao longo de mais de um ano, saltou-me à memória o nome do seu primeiro Comandante, Manuel Maria Pimentel Bastos (3), de quem guardo uma saudade sem fim. Na caserna, ele era afectusoamente tratado por Pimbas. Conversar com ele era uma delícia, pela sua cultura vastíssima e dotes soberbos de colocar a voz e teatralizar as emoções.

Sobrinho de João Bastos, o famoso criador de revistas do Parque Mayer, conhecia o meio mas adorava igualmente música clássica e frequentava concertos. A sua relação com a guerra era vaga e difusa. Era um cosmopolita acidentalmente colocado num teatro de operações, mantendo notavelmente uma conversa com nexo sem nunca arremessar palavrões ou recorrer ao calão. Os que com ele conviveram recordam a Sra Dona Maria Alzira, a mulher que sempre o acompanhou e que nos fazia rissóis de camarão na cozinha da messe.

Guardo do Pimbas algumas histórias irresistíveis. A primeira, a visita que fez em Novembro de 68 a Missirá. Fui buscá-lo na cambança do Geba, a meio da manhã, com um esquadrão impecavelmente fardado. À chegada a Finete, o Pimbas deslumbrou-se com as reverências das mulheres grandes, muito ao jeito do protocolo mandinga. Fizemos os 14 Km a conversar sobre literatura, astronomia e etnografia. Em Missirá comeu assado numa espelunca transfigurada em refeitório. E pediu música. Ouviu deliciado a Aida, cantada por Nilsson, Corelli, Bumbry e Piero di Palma, dirigida por Zubin Mehta. Acompanhava os momentos triunfais e dramáticos com uísque puro ou copos de água Perrier.

A meio da noite mandou-me patrulhar à volta de Missirá, alegando que um Comandante não podia ser apanhado à mão. Falámos um pouco da guerra e ele tranquilizou-me:
- Menino, mantém-te assim, não há guerra que te aborreça!

O Pimbas voltará a Missirá em circunstâncias dilacerantes, nos momentos patéticos da Op Anda cá (4), submetido às pressões do Hélio Felgas (5), que o desprezava. Aos poucos, o Pimbas foi-se isolando e ficando isolado, se bem que muito apoiado pelo médico, o David Payne, e alferes como Ismael Augusto e o Taco Calado (6). Nunca fora agressivo, e via a guerra com grande distância (salvo erro estivera no Maiombe, talvez em Macau e Índia dos bons tempos) e relativa serenidade. Nessa espiral de isolamento, conversámos muito e fomos úteis um ao outro.

Trocávamos livros, confidências e outras notas íntimas. A operação Lança Afiada (7) foi o ponto culminante que levou à sua queda, acusado de incapacidade, negligência e nulo sentido das realidades. Foi graças ao Pimbas que aprendi que estar numa guerra não é só uma questão de cultura, de assertividade ou convicções. Havia o problema do sentimento. Por sensibilidade, o Pimbas não estava na guerra, mas moldou-se até ao limite das suas forças por se manter enérgico e determinado. Mais tarde, visitei-o em Lisboa e ele recuperara para a vida cosmopolita o que perdera definitivamente com a humilhação da passagem à reserva.
Creio que está por fazer um conjunto de inventários: os oficiais do quadro permanente que não podiam transformar-se em oficiais prussianos e contra-guerrilheiros inflamados, por razões da trajectória profissional e moral; os oficiais milicianos, sobretudo os capitães, que eram lançados na fogueira dos acontecimentos bélicos sem qualquer preparação, pondo entre parêntesis a vida pessoal, profissional e familiar, por vezes com uma violência inaudita. Foi o que foi dado a verificar com homens como o Capitão Maltez, com quem colaborei no Xime.

Vergo-me respeitosamente à memória do Pimbas e logo à noite vou ouvir a Aída em sua homenagem.

___________

Notas de L.G.

(1) Djila: comerciante ambulante, em geral fula, futa-fula ou mandinga, que percorria a Guiné, em especial a zona leste, que tinha acesso privilegiado aos países limítrofes (Senegal e Guiné-Conacri). Em geral falava nelhor o francês do que o português. Eram considerados agentes quer da PIDE, quer do PAIGC, sendo os seus serviços (de informação) disputados por uns e por outros.

(2) Segundo informação do Beja Santos, o Pel Caç Nat 52 esteve um ano sem alferes, sendo comandado por Zacarias Saiegh, então furriel miliciano, que mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência: vd post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
(3) Tenente coronel de Infantaria Manuel Maria Pimental Bastos, comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), transferido por motivos discipinares, tendo sido substituído em Julho de 1969 pelo ten cor inf Jovelino Pamplona Corte Real.
(4) Op Anda Cá: decorreu entre 20 e 22 de Fevereiro de 1969, com o objectivo de atacar as posições da guerrilha instalada em Madina / Belel. Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(5) Coronel, na altura, comandante do Agrupamento 2957 (com sede em Bafatá), mais tarde COP 2.
(6) Alf Mil médico David Payne Rodrigues Peereira; Alf Mil Manutenção Ismael Quitério Augusto; e Alf Mil Transmissões Fernando Carvalho Taco Calado. Pertenciam ao Comando do BCAÇ 2852.
(7) Vd posts de:
31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)



Guiné > Bambadinca > 1968 > Aspecto parcial do novo quartel de Bambadinca, no início da comissão do BCAÇ 2852 (1968/70). O Batalhão anterior tinha sido o BCAÇ 1904 (1966/68): foi no tempo deste batalhão que terá explodido, por acidente, o depósito de material de guerra.

Foto: © Beja Santos (2006). Todos os direitos reservados


1. A honra dos nossos camaradas é um valor que muito prezamos, mas a verdade deve estar acima de tudo: o Pimbas, diminuitivo de Pimentel Bastos, tenente-coronel e comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), partilhou connosco as coisas boas e más da guerra, esteve em Bambadinca de saudosa memória, dormiu em Missirá, passou à reserva e morreu amargurado, segundo me diz o Beja Santos que era seu amigo e admirador…


Eu já não o conheci pessoalmente. Quando fomos colocados em Bambadinca (18 de Julho de 1969) o patrão já era outro, o Pamplona Corte Real… Os oficiais superiores nunca os considerei meus camaradas, nem nunca privei com eles – porque camarada é, etimologicamente falando, quem dorme comigo no mesmo buraco, no mesmo chão, na mesma cama, na mesma caserna; nem sequer companheiros, porque nunca comi,  à mesma mesa com eles o mesmo pão (do latim cum + pane)…


Infelizmente, o Pimentel Bastos já morreu, e até por isso, não devemos manchar a sua memória… O episódio do “Ó Pimbas, não tenhas medo!” não é factual, é ficcional (vd. post de 1 de Agosto de 2006, da minha autoria > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo!)…


2. O Beja Santos, que como sabem veio a correr, como mais 20 voluntários, de Missirá em socorro de Finete (que ele julgava que estava a ser atacada) e que, chegado aí, descobriu que o ataque era a Bambadinca, e que foi o primeiro a chegar à sede do batalhão, nessa noite de 28 de Maio de 1969 (vd. post de 1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável ), vem em defesa da honra do seu comandante e seu amigo (um homem culto e sensível), garantindo-me, sob palavra de honra, que o Pimbas não estava em Bambadinca, mas sim em Bissau, de férias ou talvez em serviço, tanto faz… Logo nunca poderia ter sido ele o protagonista da humilhante cena no corredor, nas instalações dos oficiais, com o 2º comandante, de pistola em punho, a gritar: - Ó Pimbas, não tenhas medo!...


Aproveitou, o Beja Santos, no telefonema que me fez, na manhã do dia 2 de Agosto, antes de ir de férias, também para me corrigir o seguinte ponto: o major que tinha a mania de andar com pistolas Walther em punho, à cowboy, era o de operações, o Viriato (Viriato Amílcar Pires da Silva), e não o 2º comandante, major Bispo (Manuel Domingues Duarte Bispo)…


3. O meu texto, repito, é ficcionado, baseado em notas do meu Diário de um Tuga (1969-71) e fez parte de um pré-romance que comecei a escrever em 1981 e que continua incompleto (Na Guiné, longe do Vietname…)… Estas cenas, que eu anotei, contaram-me os gajos de Bambadinca, por onde passei – eu e o resto dos meus camaradas da CÇAÇ 2590/CCAÇ 12 -, a caminho de Contuboel, cinco dias depois do ataque a Bambadinca: de facto, tínhamos desembarcado no Xime, na LDG, na manhã de 2 de Junho de 1969, fomos saudados e escoltados pela companhia do Gilberto Madaíl (a CART 1746, que também estava à espera dos seus periquitos, a CCAÇ 2520, que lá ficou), passámos por Bambadinca (onde comemos a nossa ração de combate e onde ainda havia vestígios do ataque de 28 de Maio, não se falando aliás de outra coisa), tendo chegado à noite a Contuboel, via Bafatá…


Lembro-me muito bem de falar com o meu amigo e conterrâneo, o 1º cabo de transmissões de infantaria, Agnelo Pereira Ferreira – com quem, de resto, me cruzo frequemente, em férias, nos meus passeios matinais na maré vazia entre a Paria da Areia Branca e a Praia do Paimogo… ) e que me pode confirmar se o Pimbas estava ou não estava em Bambadinca nessa noite, por ocasião do ataque que ocorreu à meia noite e vinte e cinco minutos…


A maioria dos soldados dos batalhões, mesmo os da CCS, mal conheciam os seus comandantes, estando longe de saber qualquer era a sua agenda… Já os tipos das transmissões tinham, por obrigação, acompanhar as suas andanças via rádio… Compulsando a história do BCAÇ 2852, constato o seguinte, relativamente à actividade das NT no mês de Maio de 1969:


(i) dia 1, o Cmdt (Pimentel Bastos) deslocou-se ao local da Op Cabeça Rapada III;
(ii) a 8 acompanha o major de operações em visita ao Xitole e à Ponte dos Fulas;
(iii) a 12, os dois estão em Fá;
(iv) a 14, o Cmdt acompanha o Cmdt do Agr 2957 (coronel Hélio Felgas) em visita a Mansambo, Ponte dos Fulas, Xitole, Saltinho, Quirafo, Dulombi e Galomaro;
(v) a 24, o Cmdt deslocou-se ao Agr 2957 (com sede em Bafatá);
(vi) a 25 o Cmdt Militar e o Cmdt Agr 2957 visitam Bambadinca;
(vii) a 28, o Cmdt do Agr 2957, visita Bambadinca (depois do ataque, obviamente)…


Com esta actividade toda, não me parece razoável que o Pimental Bastos estivesse de férias, embora provavelmente já as merecesse: O BCAÇ 2825 partiu no Uíge, a 24 de Julho de 1968, e na estação seca de 1968/69 teve uma intensa actividade operacional, incluindo a Op Lança Afiada, a qual, segundo o Beja Santos, marca o princípio da desgraça do nosso tenente-coronel…

4. Eu vou inserir esta nota de esclarecimento no blogue… Como é timbre da nossa tertúlia e e de acordo com o nosso código de ética, temos o direito à verdade, devemos sempre prezar a verdade dos factos… Temos também que prezar a honra dos nossos camaradas e até daqueles que mandaram em nós (umas vezes bem, outras vezes mal, não vamos agora discutir isso)… E sobretudo temos a obrigação de respeitar a memória dos nossos mortos – de todos os nossos mortos - que, esses, já não podem infelizmente defender-se nem apresentar a sua versão dos acontecimentos…


Se algum de vocês quiser acrescentar mais elementos para esclarecimento do caso do Pimbas, estejam à vontade… Há muita malta desse tempo, e que esteve em Bambadinca ou no respectivo sector, entre 1968 e 1970: para além do Beja Santos, temos o Carlos Marques dos Santos, o Ernesto Ribeiro, o Hernâni Acácio Figueiredo, o Mário Armas de Sousa, o Paulo Raposo, o Torcato Mendonça, o Victor David, o Rui Felício, os meus camaradas da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Humberto Reis, Tony Levezinho, Joaquim Fernandes, Sousa)…


5. Fiquem, por fim, com a minha opinião: a famigerada expressão Ó Pimbas, não tenhas medo! – que o Beja Santos, por exemplo, nunca ouviu em Bambadinca – não é uma invenção minha, nem muito menos é uma infâmia que atinja a honra e o brio de um militar que eu não conheci, e que até poderia ser um homem afável e cosmopolita, sem vocação para comandar outros homens no teatro de guerra; é muito provavelmente uma expressão – satírica, grotesca, burlesca, caricatural, vicentina – que o nosso Zé Soldado criou para invectivar e ridicularizar o comportamento – muitas vezes deplorável, pouco honroso – de alguns dos nossos oficiais superiores do Exército que eram de facto militares de opereta… Falo, obviamente, dos poucos que conheci ou de quem ouvi falar...


O Pimbas não era necessariamente o tenente-coronel Pimentel Bastos, mas sim um boneco que nós, soldados, criámos, para causticar os nossos comandantes, um boneco para consumo dos programas de crítica social, na caserna, no bunker, no abrigo, na hora do lobo… Um pouco à semelhança do actual, popular e divertido, Contra-Informação da RTP 1…


De resto, muitos nós também tínhamos o nosso boneco: o Turra, o Vermelhinha, o Campanhã, o Alfero Cabral, o Camarada Sov, o major Eléctrico, o Tigre de Missirá… Temos que dar a conhecer, divulgar… e amar estes bonecos… Afinal, de contas, eles são nós, todos nós fizemos parte desta trágico-comédia…


Luís Graça

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desastrosa operação a Madina/Belel

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "O Campino era verdadeiramente um dos heróis do pelotão. Tinha pose de gingão, penteava-se imaculadamente e punha um barrete de campino, oferecido por um dos meus antecessores. Estou a ver o Brigadeiro António Spínola (1) a cravar nele o monóculo antes de lançar a sua observação cáustica quando nos visitou em Janeiro de 1969: 'Tenho a impressão que você está à frente de um circo'. Adulai vai ficar ferido no rio Gambiel, logo na primeira semana de Janeiro de 1969 bem estilhaçado nas pernas quando ripostava ao fogo dos rebeldes. Recompôs-se cedo e veio averbar páginas gloriosas de combatente destemido" (BS).

Texto e foto: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao ex-furriel miliciano Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.

Texto enviado em 30 de Janeiro último. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue.

Caro Luís, se tudo correr bem, esta semana enviarei ainda mais um texto. Com muito frio e tudo, espero passar uma animada semana, a próxima, em Paris, onde entro e saio a correr. A ver se tenho tempo de me passear pelo Bairro Latino, pelos alfarrabistas e visitar exposições. Escrevi ao Torcato Mendonça para ver se ele me pode ajudar acerca da Operação Fado Hilário. Vou digitalizar duas capas e envio-te os elementos correspondentes. Peço-te que não te esqueças que vou passar cerca de dois episódios em Bissau, em Março de 1969, razão pela qual espero que tu ilustres com os postais que em tempos te ofereci. Recebe um grande abraço do Mário.


Operação Anda Cá

por Beja Santos


Em 18 de Fevereiro, envio uma carta pessoal ao Pimbas (3), através de uma coluna que ia para Finete. Nela peço ao comandante de Bambandinca que me receba em privado nesse dia ou no seguinte. Terei escrito algo como isto:
- Meu Comandante, há duas noites que não durmo a pensar nesta operação que dentro de dias vem para o Cuor. O que me foi dito pelo Major Pires da Silva é que há dois destacamentos que deviam partir juntos e teme-se que não haja condições para tal. Gostava que revêssemos outras possibilidades para não deslocarmos mais de 300 militares em bicha, com todas as desvantagens. Por favor, peço-lhe como seu amigo que converse comigo em particular nas próximas horas.

Efectivamente, o convite para ir a Bambadinca chegou duas horas depois. Parti, articulando a saída com um patrulhamento a Mato de Cão, aprazado para as 10h da noite, em que passaria um forte contingente de batelões.


Tu és capaz de ter razão mas faz o que o major quer, diz-me o Pimbas

No início da conversa, expus as minhas apreensões ao Pimbas:
- O objectivo desta operação é atacar Madina/Belel e Banir (4), em dois destacamentos separados. Contava-se em cambar o Geba junto a São Belchior, e daí um destacamento partia em direcção a Madina, a partir de Missirá sairia outro destacamento em direcção a Banir. Agora, descobre-se que não há condições para cambar o Geba em São Belchior e vai tudo junto. Desculpe-me, é um erro, seria preferível o outro destacamento ir até Finete, eu preparo um grupo de picadores e guia, gente que conhece bem a região, e o destacamento vai por aí, passa por Mato de Cão e sobe até Madina. No outro destacamento, eu levo o prisioneiro de Queba Jilã (5), tenho soldados que conhecem perfeitamente esta região, dali seguiremos até Banir. O apoio aéreo não será dificultado, o inimigo será apanhado pela surpresa.

O Pimbas cofiava o bigode, aclarou a voz, olhou-me com estima e não escondeu as suas dificuldades:
- Ouve lá, tu até és capaz de ter razão mas o Pires da Silva tem desenhado esta operação com minúcia e está muito determinado. Faz-me o favor de não o causticares, actua como se ele tivesse razão.

Eu sentia o corpo moído, as pernas dormentes, a cabeça vazia, o coração atormentado, preferi renunciar a este diálogo, reservando as últimas energias do combate para a conversa que queria ter com o Pires da Silva.


O autismo e arrogância do major de operações

Era cedo, a luz da tarde começava a desmaiar, pedi para ser recebido pelo Major de operações, o que veio a acontecer. Entrei na sala de operações onde só se ciciava - falar alto era impensável - uma parede dominada por um mapa gigantesco pejado de alfinetes de cabeça verde, encarnada ou azul consoante os alvos amigos ou inimigos, e logo pensei: desta sala ao mato quantas diferenças...

O Major era um homem entusiasta, nesta altura o seu discurso era exuberante. O seu ponteiro metálico zumbia no ar, havia sempre desfechos empolgantes para o desenho das suas operações. Intitulava-as ou com uma palavra sóbria ou com duas (A e C, B e D, E e G, etc.) com sabor a criptograma, abarcando patrulhamentos ofensivos, reconhecimentos, rusgas, assaltos e golpes de mão. É nesta sala de operações que se parte para o Cuor, como para a Ponta do Inglês, Xitole ou Fiofioli ou a Mata do Poidon. Nesta tarde está visivelmente coloquial e vencedor. A operação é para começar a 22 de Fevereiro ao amanhecer. Guardo a sua voz:
- Beja, escavaque-me Madina, incendeie todas as barracas à volta, destrua o Banir. Consigo irão 300 homens.

Aproveito o balanço em que vai empolgado para lhe pedir uma recapitulação do itinerário: cambar o Geba é demorado, atravessar a bolanha de Finete a pé é cansativo, 300 homens até Missirá só a pé, mais valia aumentar a operação para 3 dias. Não, não podia ser, é dispendioso, a concentração vai acontecer ao fim da tarde de 20, avança-se até Missirá, parte-se imediatamente. Não haverá mais reuniões, o nosso Major irá falar a dois capitães, cabe ao destacamento de Missirá dar todo o apoio logístico e eu irei na vanguarda, como me compete.


A verdade que o relatório oficial da operação nunca contou

O relatório desta operação (que consta da história do BCAÇ 2852) não contava a completa verdade dos factos. É verdade que as viaturas foram buscar as tropas a Fá Mandinga, tarde e a más horas. É verdade que o Macaréu dificultou a cambança. É verdade que o martírio da viagem começou às 3h e acabou às 6h da madrugada e uma hora mais tarde chegou uma outra companhia.

Como eu suspeitava, a tropa está exausta, entrámos na época seca, vamos conhecer as quatro estações do ano num só dia, 300 homens numa floresta galeria, procurando usar de todas as cautelas, tornou a progressão lenta, incompatível com o objectivo previamente designado de atingirmos Madina ao princípio da tarde. Começaram os casos de insolação, as indisposições de todo o tipo e os nervos à flor da pele.

Quando anoitece estamos próximos de Sinchã Camisa e aí vamos pernoitar. Estou a ser tomado por uma angústia indisfarçável. Os rádios não funcionaram durante o dia todo e o PCV rondou-nos insistentemente lá do alto. Pela uma da manhã, no meio de gemidos e suspiros Bacari Soncó traz uma terrível notícia: o prisioneiro de Quebá Jilã, entregue à custódia de Ieró Seidi, acabara de fugir.


Uma das cenas mais horríveis que presenciei em toda a minha vida


De imediato, fui comunicar o sucedido aos dois capitães propondo que assim que houvesse luz eu avançaria para Madina sem perda de tempo. Ainda insisti na separação dos dois destacamentos, sem qualquer sucesso. Cerca das 5h da manhã avançámos fora de um trilho batido. Logo a seguir, Fodé Dahaba detecta uma mina antipessoal, pedi-lhe para ficar ali com a missão de afastar as tropas deste local. Relata-se que havia um segundo engenho, os meus soldados disseram-me mais tarde que não.

Toda a tropa de Missirá avançava para o acampamento de Madina, ouvia-se distintamente os pilões a funcionar e cânticos de mulheres quando uma explosão ensurdecedora encheu os ares, e após um angustiante silêncio ouviram-se os urros de dois homens. Retrocedo e vou ver uma das cenas mais horríveis que me foi dado presenciar em toda a minha vida: era uma fossa imensa, polvilhada de pedaços de metal, lá dentro agonizava um soldado e na berma gemia o Fodé sem uma perna e um pedaço de uma mão.

Lisboa > Hospital Militar Principal > 1969 > Fotografia do 2º sargento Fodé Dahaba. Pertencia ao Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Missirá ). Foi gravemente ferido em 22 de Fevereiro de 1969, na Op Anda Cá, aqui relatada.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Seguiu-se uma conversação duríssima em que eu pedia compreensão para avançar imediatamente sobre o objectivo, ao qual me foi respondido que os feridos graves tinham prioridade, que era melhor retirar para perto e pedir uma evacuação. De uma retirada para transportar feridos fomo-nos progressivamente afastando de Medina e pelas 8h da manhã eu sabia que a operação estava completamente perdida. Os rádios que não funcionaram na véspera passaram agora a funcionar, o desânimo aumenta, aqueles gritos de um soldado que vai morrer e de outro que vai ficar estropiado contagiam o moral das tropas. Já não estamos a evacuar feridos, estamos a recuar em direcção a Missirá enquanto se passa por rádio a batata quente para o PCV.


Mais uma vez as abelhas, o pânico, a debandada (6)...

Alguns soldados exaustos atiram-se para o fresco da floresta galeria e imprevistamente anuncia-se outro inimigo: as abelhas. Estala o pânico, largam-se armas, incendeia-se o capim, o pânico redobra, foge-se em todas as direcções. É nesta atmosfera caótica que desce um helicóptero de onde sai o Pimbas e se evacua um moribundo e um ferido grave. A retirada é formal, parece um exército em fuga, o dia aquece, os corpos gemem em invólucros de suor, e quando se avista Missirá guardo a recordação de uma força destroçada que se atira para o chão a pedir água fresca, a tirar as botas, os enfermeiros não param, manda-se fazer pão, toda a cerveja e refrescos que aparecem são ingeridos.

Na minha cubata reúne-se o Pimbas, os dois capitães e eu. O Pimbas insiste em que a operação recomece.
- As ordens de Bafatá (7) são para ser cumpridas. Mesmo com menos homens, vai-se partir de novo para Madina.

A discussão é interminável, há objecções que o desastre é irremedíável. Os recalcitrantes vão vencer, apoiados pelo coro de sofrimento que ecoa dentro de Missirá. E ao anoitecer o fogo de reconhecimento de Madina anuncia que os rebeldes já dispõem de informação suficiente para eliminar qualquer factor surpresa. As exigências de regressarmos ao combate vão esmorecendo. Na manhã seguinte, despeço-me da força que retira para Bambadinca e vou com os milícias recuperar o armamento que ficou abandonado no ataque das abelhas.

A 24 apresento-me na sede do batalhão para entregar todo o armamento recuperado. É aí que tomo conhecimento de que estou punido com dois dias de prisão por ter apresentado o aquartelamento de Missirá "em fracas condições de defesa e em deplorável estado de limpeza, arrumação e asseio" (2).

Quer os elefantes lutem quer copulem, quem se lixa sempre é o capim (Provérbio africano)


O Pimbas está consternado:
- Tu és o primeiro, a lista não vai ficar por aqui (8). Bom, tu podes recorrer, tens argumentos a teu favor. Desejo-te coragem.

E, com efeito, regresso imediatamente a Missirá e peço ajuda ao Furriel Pires, um hábil amanuense, um bancário que tem uma letra enfeitada e graciosa:
- Pires, vou ditar-lhe a minha resposta para a apresentar amanhã em Bambadinca, enquanto eu seguir para Mato de Cão.

Evitei defender-me com a referência a uma visita inexistente do Comandante Militar que nunca ocorrera. Limitei-me aos factos e ao conhecimento das realidades pelos superiores, com destaque para quem me punia. Dava à partida como incomprovado haver negligência nas fracas condições de defesa, demonstrando até com cartas escritas para o batalhão, a pedir insistentemente material, armamento e munições.

Recorri com veemência mas com poucas ilusões. Mais tarde virá o despacho de Hélio Felgas dando como improcedente o meu recurso. Não vou desistir de lutar, como se verá, vou até ao Comandante Militar. Será penoso, desgastante, mas estou a aprender muito com esta luta, vou conhecer o vigor de solidariedades e perceber mesmo que fui apanhado num vendaval que levará à punição de muita gente.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá

(2) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1531: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (33): O Sintex: A Marinha Mercante chega até Missirá

(3) Tenente-coronel Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Será substituído, por motivos disciplinares, a seguir ao ataque do PAIGC, de 28 de Maio de 1969, ao aquartelamento de Bambadinca. Vd. post de:

22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

(4) Madina e Belel: ficavam a noroeste de Missirá, já no início do Oio e no limite do Sector L1. Vd. carta de Bambadinca. Banir ou Sinhã Banir, ainda no Cuor: vd mapa de Mambonco. Sobre a caracterização do Sector L1, vd. post de 28 Abril 2005
Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1) (Luís Graça)

(5) Vd. post de 8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1504: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (32): Aruma Sambu, o prisioneiro de Quebá Jilã

(6) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1486: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (31): Abelhas africanas assassinas
(7) Leia-se: do Tenente-Coronel Hélio Felgas, comandante do Agrupamento nº 2959 (Bafatá) a que pertencia o sector L1 (Bambadinca). Sobre a figura deste oficial superior, que se reformou como brigadeiro, e que ainda é vivo, há vários posts no nosso blogue:

24 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIX: O Hélio Felgas do nosso tempo (A. Marques Lopes)

23 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCVIII: Antologia (27): depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (1): os aquartelamentos

25 de Novembro de 20065 > Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIII: Antologia (29): depoimento de Hélio Felgas (3): os ataques aos acampamentos do IN

9 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"

13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas

(8) O Pimbas será também uma das vítimas da ira de Spínola,d eppois do ousado e surpreendente ataque a Bambadinca (em 28d e Maio de 1969). De resto, o mês de Fevereiro foi de má memória para as NT na Zona Leste. Logo no ínicio do mês tinha-se procedido à retirada de Madina do Boé, com as trágicas consequências que são conhecidas:

Vd. post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

Em Março, irá realizar-se a Operação Lança Afiada, que correu mal para o Hélio Felgas, que a comandou, e que envolveu cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores. Os resultados ficaram muito aquém das expectativas do Com-Chefe. As relações entre os dois homens (Spínola e Felgas) agravaram-se depois disso, ao que parece. Mas terá sido em Madina do Boér, ou melhor, em Cheche, que começou a desgraça do Hélio Felgas (de quem iremos publicar em breve um depoimento sobre o trágico desastre do Cheche: já temos a sua competente autorização, dada por via telefónica, através da sua esposa).

Vd. posts:

31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1035: Ainda sobre o Pimbas, com um quebra-costelas para o Beja Santos (Paulo Raposo)

Foto: © Paulo Raposo (2006)

Mensagem do Paulo Raposo, datada de 31 de Julho de 2006:

Meu caro Luís Graça:

O meu cripto está de férias, foi para águas para o Cartaxo. É coisa para estar sempre com uma cadela. Não sei como o fígado dele aguenta.

És capaz de re-enviar este rádio em claro ao baixinho do Beja Santos ?

Olá, rapaz:

Leio com gosto os teus escritos, escreves muito bem e com muita amizade para com todos, o que me agrada muitissimo. Bem Hajas.

Depois de sair de Mafra fui para o extinto BC 8 em Elvas, como comandantes estavam o Pimbas e a Alzira (1).

De lá seguimos para Abrantes para formar o Batalhão [de Caçadores] 2852 e depois Guiné (2).

Só tenho boas recordações deles. Ainda serão vivos ? Bem espero. O Pimbas nasceu para ser professor, nunca um militar. Na casa comercial que era do meu Pai, na Rua da Prata, Casa dos Pneus, cruzei-me com ele. Falámos, estava ele na altura no tribunal, em Santa Clara.

O Payne, ao que ouvi dizer, já morreu. O Trigo de Sousa, outro médico que esteve comnosco na Guiné e também era do foro psico, está neste momento no mesmo ramo em Évora nos canaviais.
[Alferes] Augusto e Calado: Recordo-me bem deles. Qual era a especialidade de um e outro?

E tu, rapaz, como estás? Eu estou velho e pesado. 4 filhos, 5 netos. Minha filha casou na semana passada com os seus 22 anos. Estava tão feliz. Já estou na idade de repetir a mesma história montes de vezes.

The best is yet to come.

Um quebra-costelas para ti do

Paulo Lage Raposo
Caçanho da 2405

______________

Notas de L.G.


(1) Vd. posts de:

12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

(...) "A largada foi terrível. O barco a afastar-se do cais é muito doloroso para nós, com as carpideiras que para lá eram enviadas, para nos desmoralizarem ainda mais.

"Depois do navio largar e passar S. Julião da Barra, fomos para o bar à espera que nos chamassem para o almoço.

"O Major Branco, que comandava interinamente o nosso Batalhão [o BCAÇ 2852], uma vez que o nosso Comandante, Ten. Cor. Pimentel Bastos, já tinha seguido de avião, perguntou ao nosso Capitão:- Embarcaram todos os rapazes?O Capitão respondeu de imediato:- Sim, sim, meu Comandante.

"Ele sabia lá!" (...)

(2) Vd. post de 1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )
Sobre o primeiro comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, vd ainda os seguintes posts da minha autoria:
Também o Jorge Cabral escreveu recentemente um apontamento sobre este controverso militar:

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1161: O nosso Major Eléctrico, Cunha Ribeiro, 2º comandante do BCAÇ 2852 (Beja Santos)

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Esposende > Fão > Convívio do pessoal de Bambadinca (1968/71) > 1994 > O Mário Beja Santos (ex-comandante do Pel Caç Nat 52) com o actual Coronel Ângelo Augusto da Cunha Ribeiro, que foi segundo comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), a partir de Setembro de 1969, altura em que substitui o major Viriato Amílcar Pires da Silva, transferido por motivos disciplinares. Era afectuosamente conhecido, entre as NT, como o major eléctrico...

Texto e foto: © Beja Santos (2006)


Mensagem enviada a 4 de Outubro de 2006

Caro Luís, durante o resto da semana trabalharei nas histórias de Missirá. Tu resolveste trazer à superfície uma nota nostálgica à volta do Major Cunha Ribeiro, e eu acompanho-te (1). Oxalá os tertulianos pretendam comunicar com ele. Mantém-se de espírito alertado, mordaz e pronto à polémica. Recebe a cordialidade do Mário.

Recordações fulgurantes do nosso Major Eléctrico

por Beja Santos

Quem se der ao trabalho de ler a história do BCAÇ 2852, certamente que se questionará de tantas mudanças no oficialato em Bambadinca (2). Mudámos de Comandante, de 2º Comandante, de Major de Operações, de Comandante da CCS, de médico e até de padre, com alguma surpresa e imprevisto, e nem sempre para benefício de todos. 1969 foi um ano horrível com punições e afastamentos, humilhações e dolorosas expectativas.

O Major Ângelo da Cunha Ribeiro é o 2º Comandante que vem numa vaga de substituições. Era loquaz, irónico, interveniente e um conversador compulsivo. Devo-lhe pessoalmente vários gestos ternos: foi ele que me passou a tratar por Tigre e incentivou a socialização do termo; foi extraordinário nos acontecimentos da mina anti-carro de Canturé, em Outubro [de 1969] (3); perguntava sempre sobre as necessidades em comida e material, interferia, imaginava e fazia lobby por Missirá e Finete. Não fica nada mal, parece-me, contar aqui em água forte um punhado de situações.

Começo pelo fim, pelo desastre que o vitimou na rampa de Bambadinca. Alguns dos tertulianos presenciaram ou foram forçados a salvá-lo dentro da viatura destroçada, furada pelos barrotes de cibe onde ele jazia com múltiplas facturas num jipe transformado em sucata.

Transportado para o HM 241 [Bissau], foi um doente dócil e nas primeiras semanas, irreconhecível com tanta ligadura, parecia a múmia. Quando a Dona Maria Helena Spínola lhe perguntou em que podia ser útil, ele respondeu determinado:
- Pode muito, ofereça-me a Enciclopédia Britânica, vou ter tempo de sobra para a ler.

Numa situação de desespero ou desencontro, ele aliviava com uma frase que passou a ser lendária:
- Sosseguem, o mal disto tudo começou com o Infante D. Henrique.- E o ambiente tenso logo se descomprimia.

Por ocasião das duras guerras entre o médico e o capelão (essas vivi-as eu, gritavam noite alta sobre a existência e a misericórdia de Deus...), ele ameaçou-os com uma ordem de serviço em que o médico daria a missa e o padre consulta, para verem como os outros se sentiriam desconfortados com a troca de papéis. A rábula foi curiosa, mas as discussões continuaram. Finalmente, a vivacidade e a brusquidão com que interrompia uma conversa, ao menor som suspeito:
- Pára aí, Tigre, estou a ouvir canhoada. - Eu respondi estupefacto:
- Ó meu Comandante, foi a porta do frigorífico. Simões, repete lá o que fizeste para o nosso Comandante ficar descansado.

Continuo a escrever-lhe pelo Natal e começo sempre "Meu inesquecível Comandante". Não é nenhum excesso de sentimentalismo, ele comandava mesmo, era fraterno e aquela electricidade fez bem a Bambadinca depois dos desastres humanos que vivemos a partir da flagelação de 28 de Maio [de 1969] (2).

Para quem quiser, eu dou os contactos dele. A guerra acabou com aquele acidente de viatura, mas como se viu no encontro de Fão, em 1994, ele não nos esqueceu. Como também vivemos a solidariedade intergeracional, talvez fosse interessante tirá-lo do esquecimento.

Beja Santos

Comentário de L.G.:


Meu caro Mário: As minhas relações com o major Cunha Ribeiro foram estritamente hierárquicas, formais, episódicas... Terei falado com ele, em duas ou três ocasiões... Na nossa tertúlia, não funciona a hierarquia militar mas a lógica da camaradagem... O Cunha Ribeiro tem o mesmíssimo direito de cá estar do que tu e eu... Conheces as regras da casa. Podes apadrinhar a sua entrada... Sei que ele continua a frequentar as reuniões de convívio da malta de Bambadinca de 1968/71... Estivemos juntos, em Fão, em 1994... Não lhe falei, por que não houve oportundidade... Hoje gostaria de ouvir as suas estória, a sua versão dos acontecimentos... Por mim, será bem recebido... Se ele quiser, pode ser testemunha privilegiada dos tempos em que estivemos juntos em Bmbadinca, em posições diferentes, ele oficial superio, major, 2º comandante de um batalhão, e eu, ssimples furriel miliciano de uma companhia de nharros...
___________

Notas de L.G.:

(...) Nota de L.G.: (...) "Major do BCAÇ 2852. Substituiu em Setembro de 1969 o major Viriato Amílcar Pires da Silva, transferido por motivos disciplinares. Foi vítima de acidente grave com um jipe. Era mais conhecido, na caserna - e nomeadamente pela malta da CCAÇ 12 - como o 'major eléctrico', devido à sua energia" (...).

(2) Vd. , entre outros, os postES de:

(...) "Este é um cínico relato da dura condição da guerra da Guiné, vista pelo lado dos tugas. Por outro lado, há críticas veladas, do autor do relatório, ao Comandante-Chefe, ao Quartel General e à Força Aérea (que se teria comportado como umas verdadadeira prima dona...).

"Há coisas, pouco abonatórias paras as NT, que se passaram neste operação e que eu deixo à atenção e consideração dos tertulianos e demais visitantes deste blogue. Cada um de vós que faça a sua leitura desapaixonada... Aqueles de nós, que foram operacionais, rever-se-ão mais facilmente no cenário que foi o da Op Lança Afiada... 

Sobre o desempenho dos actores, já não vale a pena assestar as bateria da crítica... Felizmente que a guerra acabou! War is over, baby!

"Seria interessante ouvir, entretanto, o depoimento de camaradas do BCAÇ 2852 que participaram na Op Lança Afiada. Infelizmente, ainda não temos ninguém dessa unidade, na nossa tertúlia.

"(...) Deixem-me só lembrar que, dois meses depois desta operação, o PAIGC retribuiu a visita das NT e apareceu às portas de Bambadinca em força: mais de 100 homens, três canhões sem recuo, montes de LGFoguetes, morteiros... Esse ataque ficou célebre: os tipos de Bambadinca foram apanhados com as calças na mão, faziam quartos de sentinela sem armas; enfim, um regabofe...

"Claro que no dia seguinte o Caco Baldé deu porrada de bota a baixo, nos oficiais todos, do tenente-coronel (o célebre Pimbas) até ao capitão da CCS... Um caso exemplar, divertido e hilariante, da guerra da Guiné... A sorte dos gajos de Bambadinca foi os canhões s/r terem-se enterrado no solo e a canhoada cair na bolanha...

"Quando nós, periquitos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), lá passámos, uma semana depois, vindos de Bissau e do Xime a caminho da nossa estância de férias (Contuboel, um mês e meio de paraíso... seguido depois de18 meses de inferno...quando fomos justamente colocados no Sector L1), os nossos camaradas da CCS do BCAÇ 2852 ainda estavam sem pinga de sangue..."Podíamos ter morrido todos", dizia-me 1º cabo cripto Agnelo Ferreira, da minha terra, Lourinhã... Fomos depois nós , para lá, com os nossos nharros, e em 18 meses nem um tirinho: que o respeitinho (mútuo) era muito bonito... Porrada, porrada, era só quando a gente se atrevia a meter o bedelho na terra deles, que já estava libertada... Eu faria o mesmo, na minha terra...

"Na história do BCAÇ 2852, o ataque a Bambadinca é dado em três linhas, em estilo telegráfico: 

Em 28 [de Maio de 1969], às 00H25, um Gr In de mais de 100 elementos flagelou com 3 Can s/r, Mort 82, LGF, ML, MP e PM, durante cerca de 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros" (...)

(...) "Depois de sair de Mafra fui para o extinto BC 8 em Elvas, como comandantes estavam o Pimbas e a Alzira. De lá seguimos para Abrantes para formar o Batalhão [de Caçadores] 2852 e depois Guiné.

"Só tenho boas recordações deles. Ainda serão vivos ? Bem espero. O Pimbas nasceu para ser professor, nunca um militar. Na casa comercial que era do meu Pai, na Rua da Prata, Casa dos Pneus, cruzei-me com ele. Falámos, estava ele na altura no tribunal, em Santa Clara" (...).

(...) "Conheci mal o Pimbas, conheci mal o Corte-Real, conheci mal o Magalhães Filipe, e ainda bem... Parece que eram todos bons homens, ex-professores, que ao fim de trinta anos de carreira, haviam descoberto não ter vocação militar...

"É necessário distinguir, entre a tropa miliciana, civís militarizados à força, e investidos em funções para as quais não estavam preparados, e os profissionais, designadamente os Oficiais Superiores. Comandar um Batalhão exigia possuir qualidades de liderança, determinação e coragem, que a não existirem, deviam ter impedido a Promoção. Sabemos todos, e alguns pelas piores razões, que assim não sucedeu. (...) Muitos viram, sentiram e sofreram, as prepotentes arrogâncias, os ocos autoritarismos e as criminosas incompetências" (...).

(3) Vd. posts de: