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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24987: Notas de leitura (1651): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Os autores descrevem a viragem introduzida pelo Fiat e pelo Alouette III sobretudo na vida operacional. O texto é minucioso sobre a natureza dos armamentos usados e das alterações registadas em 1966 na reorganização de Bissalanca, relevam igualmente o acréscimo trazido ao poder operacional pelas forças paraquedistas que irão em 1970 conhecer modificações, quando o BCP12 se transformou na CCP121, 122 e 123. O poder bélico intensificou-se mas concomitantemente cresceu a área de intervenção do PAIGC, operando densamente no Sul, no Corubal, no Boé, na região do Morés, fortalecendo-se nas regiões transfronteiriças do Senegal e Guiné-Conacri. Mas em 1966, ainda havia a esperança no comando-chefe que as novas potencialidades de meios aéreos iriam desencadear o recuo do PAIGC, o que de modo algum aconteceu.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (4)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 1: Um Comando “Desconfortável”

Como se fez referência no texto anterior, o equipamento aéreo da Guiné vai conhecer em 1966 uma alteração de tomo: chegou um caça que se irá tornar temível e prontamente colaborantes nas atividades operacionais e de bombardeamento, o Fiat, e o helicóptero Alouette III, de maior capacidade que o seu antecessor, que se irá revelar altamente prestante na atividade operacional, na evacuação de feridos e nos mais diferentes tipos de transporte.

Oficiais portugueses observadores das operações argelinas, durante o final da década de 1950, depuseram que “a utilização de helicópteros no caso particular da guerra subversiva, oferece excecionais possibilidades. Isto era especialmente verdade nas operações de assalto, ofereciam às tropas francesas surpresa e superioridade e mobilidade no combate face a um adversário que operava num terreno praticamente inacessível.”

Todos estes depoimentos motivaram o General Venâncio Deslandes, do Secretariado-Geral para a Defesa Nacional a recomendar o emprego de helicópteros nas forças de intervenção, logo em 1963. Como se referiu anteriormente, o Alouette III só apareceu em novembro de 1965, chegaram a Bissalanca seis de uma encomenda de 21 helicópteros. Foi momento afortunado, concomitantemente chegaram os G.91 e entraram também ao serviço. Como observou o historiador militar Luís Alves Fraga, a conjugação destes dois meios aéreos garantia precisão quando havia limitações de tempo, ganhava-se no efeito surpresa, bombardeava-se por um lado e os helicópteros depositavam ou recolhiam as tropas envolvidas na operação. Com um alto grau de sincronização, o desembarque de forças operacionais era precedido pro um ataque de Fiat e/ou T-6, de maneira que a última bomba a cair no solo explodia imediatamente antes do primeiro homem saltar do helicóptero, era assim que se procurava manter o inimigo paralisado e garantir a proteção à força atacante.

Muitas vezes era indispensável uma proteção adicional. Os helicópteros eram alvos tentadores para o fogo dos guerrilheiros, especialmente durante o pouso e desembarque, era um momento de maior vulnerabilidade para as nossas forças operacionais, como lembrou o general aposentado António Bispo, lembrando que em 30 de março de 1966, um helicóptero fora imobilizado pelo fogo inimigo durante a Operação Narceja. A Zona Aérea procurou os meios de conjugar vigilância e apoio de fogo durante as operações aerotransportadas. Inicialmente, militares armados com espingardas de caça foram colocados a bordo de alguns helicópteros para fazer fogo supressivo. Nenhum expediente se mostrou suficientemente dissuasor, houve testes iniciais com a metralhadora MG-42 montada em tripé, rapidamente se abandonou o seu uso pelo difícil manuseio da arma e pela trajetória irregular do fogo; montou-se depois uma Browining M3 na porta lateral do Alouette III, mostrou-se inconveniente devido ao tamanho da arma, ao seu peso e às vibrações durante os disparos. Encontrou-se finalmente uma resposta instalando um canhão montado num sistema giratório na porta do helicóptero. Em 1965-1966, a FAP testou o canhão Matra MG-151 20mm no campo de tiro de Alcochete, os resultados foram satisfatórios e em dezembro de 1966 chegaram a Bissalanca os primeiros canhões MG-151. O emparelhamento destas armas com o Alouette III resultou no helicanhão, conhecido na gíria como lobo mau. Alimentado por dois cintos de munição de 200 cartuchos e disparando munições altamente explosivas ou incendiárias em grande quantidade por minuto, revelou-se “uma arma de extraordinária eficácia”, como contou o veterano da Guiné, General José Brochado de Miranda. Embora os canhões e a suas munições reduzissem a quantidade de carga do Alouette III, o emprego do helicanhão revelou-se determinante nas fases mais delicadas de operações de assalto com helicópteros.

A crescente frota de helicópteros Alouette III também passou a realizar as missões de apoio anteriormente operadas pelo Alouette II: transporte, observação e evacuação de feridos. “Milhares de vidas foram salvas pelos esforços abnegados de centenas de pilotos e tripulantes, com risco de vida e muitas vezes sob fogo inimigo, tudo para salvar a vida dos outros. Na Zona Aérea, os Alouette III transportaram mais de mil vítimas em missões de evacuação em 1967 e 1968, o que representou 37% de todas as evacuações realizadas neste período, aliviando os DO-27. Apenas o Alouette III poderias resgatar o pessoal ferido em zonas de combate em áreas inacessíveis. A integração dos Alouette III e dos G.21 coincidiu com mudanças organizacionais importantes na Base Aérea 12, a principal instalação da FAP na Guiné e sede da Zona Aérea. Anteriormente conhecida como Aeródromo-Base 2, a expansão contínua que vinha ocorrendo desde 1961 resultou na redesignação de Bissalanca como principal base nacional em maio de 1965. A Esquadra Operacional também teve um crescimento significativo tornando-se no Grupo Operacional 1201 composto por três esquadras: Esquadra 121, responsável pelo ataque, apoio de fogo, comando e controlo aerotransportado, eram os Fiats (os Tigres), os T-6 (Roncos) e DO-27 (Cafeteiras); Esquadra 122, incorporando todos os helicópteros, tanto os desarmados (os Canibais) como os apetrechados com canhões (Lobo Mau); a Esquadra 123, destinado ao transporte aéreo, observação e ligação com a legenda “Tudo Alcança”, composto por Dakotas".

Os Fiat e os Alouette III eram informalmente agrupados em esquadras de intervenção que se ativavam para apoiar operações aerotransportadas, que começaram a aumentar em frequência a partir de 1966. Para equipar adequadamente estas operações aerotransportadas, a FAP enviou paraquedistas adicionais. Em 1963 havia um único pelotão de paraquedistas, esse número foi crescendo nos anos subsequentes, primeiro uma companhia, depois um batalhão. Em 20 de outubro de 1966 foi criado o Batalhão de Caçadores Paraquedistas 12 e em julho de 1970 este batalhão passou a ter três Companhias de Caçadores Paraquedistas; CCP 121, 122 e 123. O helicóptero continua a ser o “principal veículo de ataque principal”. Deu-se outra mudança na aviação militar portuguesa na Guiné: a fusão dos Comandos da Zona Aérea e da Base Aérea 12 em Bissalanca, que anteriormente tinha dois oficiais distintos, o que se revelou suscetível de atritos. O Coronel Abecasis criticou especialmente “a incompetência dos sucessivos comandantes da Zona sem qualquer serviço anterior no voo, esquadrão ou ao nível de operações”, que inevitavelmente tentaram esconder a sua competência intrometendo-se constantemente nos assuntos da unidade, coisa que devia ficar ao cuidado dos seus subordinados. “Vítimas de uma mistura de vaidade e rancor” concluiu ele, tais comandantes “foram a origem do mal-estar e dos problemas supérfluos”. Após a redesignação de Bissalanca como Base Aérea 12, as funções da Zona Aérea combinaram-se com o Comando da Base, e Abecasis assumiu o Comando em junho de 1965.
Fiat da Esquadra 121, maio de 1966 (Arquivo Histórica da Força Aérea)
Raio de ação do G.91 (Matthew Hurley, baseado no Secretariado-Geral da Defesa Nacional), novembro de 1967
O número de operações do G.91 esteve restringido devido a numerosas questões técnicas e logísticas durante os primeiros cinco meses de serviço na Guiné (Arquivo Histórico da Força Aérea)
O Fiat e o diferente tipo de munições que podia utilizar (Coleção Egílio Lopes)
Material de combate usado pelo G.91 (Matthew Hurley, baseado no “Relatório da missão à Alemanha relativa ao Projeto Feierbend”, março de 1966)

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 15 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24960: Notas de leitura (1649): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24971: Notas de leitura (1650): "Comandante Pedro Pires, Memórias da luta anticolonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde - Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel"; FGV Editora, Brasil, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. O piloto era o Coelho, diz a legenda do fotógrafo, o Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp, CCAÇ 12 (1969/71). O Humberto Reis conviveu, de muito perto, com a malta da FAP, o que lhe permitiu tirar algumas das melhores fotos aéreas que já aqui publicámos... Inclsuive ele julga conehcer o Joirge Félix, que o etrá desenrascado numa situaçãod e apuro em finasi de Julho ou princípios de Agosto de 1969, em Madinba Xaquili (1)...

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada (2, 3). O temível helicanhão. Um Alouette III, com canhão lateral de calibre 20 mm. No mato, em operações, o helicóptero era o nosso anjo da guarda, como muito bem diz o nosso camarada Paulo Raposo que estve na Op Lança Afiada, como Alf Mil Inf da CCAÇ 2405 (2). A presença do heli e sobretudo do helicanhão era sempre securizante e protectora. Até ao dia, nos primeiros meses de 1973, em que a nossa supremacia aérea foi sa ser contestada pelos foguetões terra-ar Strella... (LG).


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros. O número de evacuações, por insolação, desidratação, doença, ataque de abelhas e esgotamento foi enorme: mais de uma centena de casos (3)

Fotos: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados


1. Mensagem do novo habitante da nossa Tabanca Grande, Jorge Félix (que foi Alf Mil Pil Aviador de helicóptero Al III, Guiné , 1968/70) (1)

Caro Luís Graça.

Ontem eram 5 da madrugada , hoje são 4:50, voos noturnos que a idade nos vai permitindo ter.

Não é facil contar histórias da nossa Guiné, nunca conto, e julgo que nem quero contar, no entanto o vosso Blog é ganda ronco e merece uma colaboração. Fotos, tenho muito poucas, foram-se para os álbuns dos filhos e estão muitas perdidas. Espero que na continuidade da nossa correspondência apareçam fotos, sabe-se lá.

As recordações contadas a mais que uma voz, porque o tempo dilui muita coisa, podem vir a ser mais reais.

... No seu tempo fui a Bambadinca no dia 12 de Março de 1969. Na caderneta de voo consta o seguinte: Bs- Buba -Bambadinca (1 hora 40 minutos). Depois de estar em Bambadinca fiz TGer (transporte geral) e Tevs (transporte evacuações)- Bambadinca-Zops (zona operacional) com cinco aterragens e a duração de 1 hora e 40 minutos.

No mesmo dia mais 35 minutos outro voo de Tevs Zops-Bambadinca, duas aterragens. Mais uma hora e 20 minutos voo de TGer - Tevs Bambadinca-Mansambo-Zops, 10 aterragens. Mais um voo de 30 minutos com duas aterragens a fazer Tger e Tevs. Finalmente para terminar esse dia viagem de 15 minutos para Bafatá, onde devo ter dormido. Este dia longínquo de 12 de Março de 69 voei seis horas nos Céus da sua Bambadinca.

Virei a página da caderneta e vejo que no dia 13 foi a mesma "movimentação" , 25 aterragens e 3 horas de voo; no dia 14 Bafatá-Bambadinca-Zops duas horas e meia de voo; dia 15 mais seis horas e 15 de voo com Tevs e Tger para a Zops; no dia 16 Bambadinca- Bafatá- Zops com duas horas de voo. Voltei para Bafatá numa DO27. No dia seguinte vim para Bissau. Viagem que demorava mais ou menos 5o minutos.

Isto tenho eu aqui escrito mas não me recordo que manobras foram estas e com quem.(De momento estou com arrumações e tenho o scanner perdido, logo que acabe as obras, vou lhe enviar estas páginas da caderneta).

Será que a memória do seu Blog terá imagens e relatos destes dias ? Alguém se lembra o que aconteceu nesses dias? (3) Tenho a ideia que foi numa dessas operações que um exame de abelhas entrou por uma porta do Heli e saiu por o outro lado sem incomodar ninguém.

Não é estranho que me recorde disto e nada mais ...

Já são seis horas, vou me deitar.

Boa viagem para a terra das bolanhas, beba lá um copo por mim, dê saúdades àquele Povo.
Jorge Félix

__________

Notas de L.G.:

(1) Mensagem que recebi hoje, do Humberto Reis:

(...) Este nosso novo tertuliano Jorge Félix, ex-alf mil pil av, julgo que era um que andava quase sempre com botas de cano alto. O comandante da esq 123 era o cap Cubas, de alcunha o Canibalão, pois a esquadrilha era a de Os Canibais. O Cubas foi substituído em 70, se não me engano, pelo cap Morais da Silva, que chegou a ser CEMFA depois do 25 de Abril.

Se a memória não me falha, 39 anos depois, foi o Félix que me aterrou em Madina Xaquili, em Agosto de 69, e deu o alerta (tínhamos ficado sem rádio após a flagelação) de que necessitávamos de evacuações Y para os feridos graves e munições várias. Ele aterrou porque viu os nossos sinais de cá de baixo e desconfiou que tinha havido problemas (acertou).

Transportava alguns pára-quedistas que tinham nessa altura uma companhia em Galomaro, e foram eles que nos enviaram os primeiros cunhetes de munições para nos desenrascar Chegou-nos um héli 1 ou 2 horas depois com as munições e fez as evacuações dos 2 feridos graves que vieram para o HMP na Estrela.

Deve ter sido contemporâneo do ex-alf mil pil av (Al III) Solano de Almeida que eu conheci lá e o pai, comandante da TAP, conheci-o cá muito bem com o seu belo barco (gostava de andar no ar e na água).

É do tempo dele tb o ex-fur mil pil av Rui Branco que depois de vir de lá foi instrutor de voo no Aero Clube de Torres Vedras. Tb o Manuel Santana, ex-alf mil pil av que morava aqui em Sete Rios, foi do tempo dele.

Enfim tanta malta conhecida a quem perdi o rasto. Eu que tantas noites dormi lá na base e convivi com muitos deles, nunca mais soube nada. Pode ser que o Félix tenha contactos dessa malta do nosso tempo em comum, 69 e 70, e esteja disposto a repartir connosco algumas memórias daquela época. Contacta com ele nesse sentido. Ela mora aqui na zona de Lisboa? Tens um contacto telefónico? Se necessário podes dar o meu 918 776 460 (esquece o outro 919 039 672, que só me dá problemas) (...).

Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2587: Gandembel: Será que ainda estão vivos os jovens que eu evacuei, em Outubro de 1968 ? (Jorge Félix, ex Alf Mil Piloto Aviador)

(2) Vd. poste de 6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

(...) A mata do Fiofioli era uma mata bem controlada pelo inimigo. Era um tufo rodeado de bolanha por todos os lados, fazia lembrar uma ilha.

Para se desalojar o inimigo, preparou-se uma grande operação, prevista para durar oito dias, com várias companhias envolvidas. Todo o abastecimento tinha de ser feito por heli. E lá fomos mais uma vez.

Houve um dia que os helis não conseguiam descer para nos abastecer de água devido à vegetação densa. Passámos muita sede. Nesse dia tivemos de beber água de um charco lamacento. Como? Tirámos o quico, nome que dávamos ao boné, que estava todo sebento, enchemo-lo de lodo, e, por baixo, íamos apanhando a humidade às gotas. Só acredita quem por lá passou.

(...) As baixas até ao fim da operação foram muitas, umas por exaustão, outras por oportunismo. Um dos meus rapazes, que transportava o cano da bazuca, a meio da operação, quando passou por perto de um heli, meteu-se nele para ir embora, deixando no chão o tubo abandonado.

(...) De lá trouxe um livro do inimigo, que ensinava as crianças a ler. Depois foi o regresso. Mais uma penosa caminhada. Os helis andavam no seu vai vem abastecendo-nos de água e rações de combate. Tínhamos de ser nós, os oficiais, a tomar conta da água e a distribuí-la por todos igualmente. Os helis eram assaltados se não tivéssemos organizado este sistema. (...)


(3) Sobre a Op Lança Afiada (8-18 de Março de 1969, Sector L1, Bambadinca), vd. postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII: Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli (Luís Graça)

(...) Iniciada em 8 de Março de 1969 com a duração de 11 dias, a Op Lança Afiada foi uma das grandes operações que se realizaram na época, ainda no início do consulado do brigadeiro António Spínola (1968-73), um mês depois da trágica retirada de Madina do Boé.

A Op Lança Afiada envolveu cerca de 1300 homens, entre militares, milícias e carregadores. Houve cerca de duas dúzias e meia de flagelações das NT por parte dos guerrilheiros, os quais no entanto se furtaram ao contacto directo.


As populações sob controlo do IN passaram, com alguma segurança, para o outro lado do rio Corubal. Os fuzileiros não puderam ou quiseram participar nesta operação, que também não envolveu outras tropas especiais (comandos e páras). Foi, pois, uma operação só com tropa macaca, embora a nível de regimento, sendo comandada por um coronel (Hélio Felgas). Quase um terço dos efectivos eram carregadores !!!

Pensava-se que em Mina, junto ao Rio Corubal, estaria sedeado o Comando do Sector 2, da estrutura político-militar do PAIGC. Pensava-se também que havia um grande hospital, com médicos e enfermeiras... cubanos!

Do ponto de vista militar, a operação foi um bluff... Em contrapartida, houve inúmeras evacuações (n=110) dos nossos combatentes, devido a problemas de desidratação, desnutrição, esgotamento físico e stresse psicológico...


É interessante a análise do autor do relatório sobre os sucessos e os insucessos desta megaoperação de...limpeza.

Damos hoje início à publicação de alguns excertos desse relatório. Tratando-se de uma fotocópia de um documento dactilografado e possivelmente policopiado a stencil, com data de 1970, há erros e omissões que eu procurei colmatar ou corrigir, sempre que possível. Também substituímos algumas abreviaturas para tornar o texto mais legível para os paisanos ou os que não fizeram tropa nem estiveram na Guiné. L.G. (...)


9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas (Luís Graça)

Negritos, da responsabilidadfe do editor L.G.

(...) Dia D + 4 (12 de Março de 1969)

Os Dest A e B continuaram batendo a área 6 sem nada encontrarem.

Na área 4, o Dest B foi flagelado às 10H10 tendo sofrido um ferido ligeiro mas feito baixas confirmadas. Combinando a manobra com o Dest C, capturou 3 nativos e queimou diversas tabancas na área. O Dest C foi flagelado às 11H00 tendo 3 feridos ligeiros que não evacuou e fez um morto confirmado ao IN.

Quanto ao Dest E, dera a volta próximo da margem esquerda do Rio Buruntoni, queimara 2 toneladas de arroz numas casas junto ao caminho para Ponta do Inglês, capturara inúmeros animais domésticos e tivera contacto com o IN às 13H00, sofrendo um ferido que fora evacuado. Apreendera material ao IN.

O Dest F, agora reforçado por um Gr Comb do Dest G, devido às numerosas evacuações que tivera que fazer, mantinha-se emboscado a Norte da Foz do Rio Bissari. O resto do Dest G continuava emboscado a Norte do Galo Corubal. E os Dest H e I bateram a área 10, tendo a sua actuação sido prejudicada pela demora dos reabastecimentos e evacuações.

O milícia ferido em 111630 (gravemente, segundo o parecer do enfermeiro) só foi evacuado em 121315 embora os comandantes da Operação e do Agrupamento Táctico tivessem sido largados no local cerca das 9H00. Por razões desconhecidas, porém, o piloto não quis evacuar o ferido em nenhum das 2 vezes que lá foi deixar água.

Na margem oposta do Rio Corubal viam-se elementos IN que foram metralhados pelo helicanhão. A tabanca de Inchandanga Balanta ficou a arder.

Durante o incêndio de uma das tabancas entre Galo Corubal e Dando rebentaram inúmeras munições que provavelmente estavam escondidas no colmo dos tectos.

Os ataques das abelhas continuavam a mostrar-se mais perigosos que as flagelações IN pois o pessoal carregador tudo abandonava para fugir aos enxames que, nesta época, são extremamente agressivas.

Cerca das 13H15, num helicóptero insistentemente pedido, os comandantes da Operação e do Agrupamento Táctico foram transportados a Bambadinca juntamente com o milícia ferido, o qual seguiu para Bissau.

A deficiência do apoio aéreo em reabastecimentos, evacuações e recomplementos levou a fazer mensagens e a focar o assunto no RELIM [Relatório de Informações sobre a Actividade Operacional].


Dia D + 5 (13 de Março de 1969)


Os Dest A e B aproximaram-se de Tubacutá (área 5). Durante a noite anterior ouviram um motor dum barco fazendo travessias do Rio Corubal na região entre Queroane e Fiofioli. O movimento durara desde as 19H00 do dia 12 e as 4H00 do dia 13.

Os Dest C e D continuaram destruindo a enorme tabanca de Ponta Luís Dias, com uma grande escola onde havia muitos livros e cadernos. Por seu lado, o Dest C, às 7H30, destruíra cinco canoas em local com indícios de ter tido grande movimento durante a noite. Todos estes Dest apanharam e consumiram centenas de animais domésticos. Cerca das 19H30 o Dest E sofreu nova flagelação, tendo nove evacuados no dia seguinte.

Os Dest H e I detectaram e destruíram o acampamento IN de Gã Júlio, enquanto os F e G faziam o mesmo ao de Mina. Ambos estes acampamentos haviam sido recentemente abandonados. Tais como outros, ainda tinham comida quente. Este facto constou do comentário ao RELIM deste dia, no qual pedia o estabelecimento de emboscadas nocturnas na outra margem do Rio Corubal.

Neste dia houve uma reunião em Bambadinca com Sua Excia. o Comandante-Chefe e o Exmo. Comandante da Zona Aérea que disseram ao Comandamte da Operação estar a ser excessivo o esforço pedido à FA [Força Aérea]. Expondo-se como esses meios estavam a ser empregues.

Por outro lado Sua Excia. deu Directivas sobre a recolha do arroz IN. Ficou ainda estabelecido não proceder a quaisquer recompletamentos, excepto de oficiais e sargentos, a fim de aliviar os meios aéreos. (...)


9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli (Luís Graça)

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)

(...) Dia D + 8 (16 de Março de 1969)

Os Dest A, B e C actuaram entre Queroane e Mangai destruindo tudo à sua passagem. O que sobrara de Mangai ficou reduzido a cinzas. Foram ainda capturados 3 nativos e feitos 2 mortos confirmados.

Os Dest F, G e I voltaram a bater a mata do Fiofioli mas agora no sentido Leste-Oeste. Inicialmente, porém, deslocaram-se por indicação do guia à zona (C8-71) e aí do lado de lá da bolanha, e portanto já fora da mata do Fiofioli, encontraram espalhado pelo mato, além de novos documentos, importante e valioso material de guerra que deu para encher mais de dois helis.
Os Dest E e H bateram também no sentido Oeste-Leste e Sul da mata e foram acabar de destruir a tabanca de Fiofioli, capturando ainda muitas munições.

Nesse dia, às 10h30 houve nova reunião em Bambadinca com Sua Excia o Comandante-Chefe. Sua Excia informou que em virtude de ter de realizar uma operação noutro Sector, determinava a suspensão do apoio aéreo em 17 [de Março] e o embarque dos Dest A, B e C em Ponta Luís Dias nesse dia com destino ao Xime. Os outros Dest do Agrupamento Sul não seriam reabastecidos em 17. Que o seriam em 18 mas compreendeu-se mal pois, segundo Sua Excia, em 17 o esforço aéreo não poderia ser mantido e só seria deixado o heli de evacuações. No entanto, os Dest do Agrupamento somavam nessa altura mais de 750 homens que seria necessário reabastecer de água e alimentação (os Dest A, B e C somavam entre 450 e 500 homens). (...).

c. Apoio aéreo

Inicialmente o apoio aéreo, no que respeita a reabastecimentos, revelou-se deficiente. O facto de não ter sido cedido o heli ao Comandante da operação, dificultou a acção de comando e influiu nos rendimentos dos meios à disposição, pois previra-se que esse heli colaboraria com o das evacuações e com o dos reabastecimentos.

Além disso, a coordenação levou o seu tempo a rodar, o que é naturalíssimo pois não tem havido muitas operações como esta.

Em terceiro lugar, os meios aéreos não deram inicialmente o rendimento que se esperava, uns por avarias, outros por serem desviados para outras missões e outros por estarem na altura das inspecções e revisões.

A situação quanto ao apoio aéreo era a seguinte em 13 de Março de 1969, às 13H45 (MSG 735/I/BCAÇ 2852):

- 1 DO estava avariado havia 2 dias;
- O outro DO só começou a trabalhar às 10H00;
- O heli trabalhava pouco mais de 1 hora, seguindo para Bissau;
- O outro heli seguira às 08H00 directo de Bafatá para Bissau (parece que podia ter ido ficar a Bissau na véspera);
- O helicanhão saira para Bissau às 10H30, só regressando no dia seguinte às 11H00;
Os helis que haviam seguido para Bissau só foram substituídos cerca das 11H00 ; só depois desta hora, portanto, se regularizou o serviço de reabastecimentos e evacuações.

No dia 13 a actividade dos meios aéreos fornecidos para a operação foi a seguinte:

- A DO levantou de Bafatá para a área 9 [ Mina – Gã Júlio ]às 07H20 com o Comandante do Agrupamento Táctico Sul, o Major Negrão da FA e o Cap Lopes que ia assumir o comando do Dest G e ficou no Xitole; à tarde foi para Bissau;

- Os 2 helis levantarm às 07H30 com o comandante da operação para Bambadinca (serviço normal);

- O helicanhão, saúdo da zona de operações em 11 de Março, às 10H30, e regressado a 12, às 11H00, fez escolta ao heli de Sexa Comandante-Chefe; não prestou serviço à operação, que se tivesse conhecimento;

- A DO chegou de Bissau, foi a Piche buscar o Coronel Neves Cardoso para uma reunião em Bambadincas onde chegou às 11H00; à tarde voltoiu a levar a Piche o mesmo oficial.

Em 14 os helis chegaram a Bambadinca às 08H30 e só aqui é que se abasteceram (pelo menos um). Podiam tê-lo feito em Bafatá. No entanto, a situação melhorou por vários motivos. Primeiro, porque se acabou com os recomplementos. Segundo, porque a selecção natural fez baixar o número de evacuações. Terceiro, porque os meios aéreos ficaram mais tempo na zona da operação. Quarto, porque a coordenação ar-terra ganhou experiência e tornou-se por isso mais eficiente. (...)

Vd. ainda o poste de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

terça-feira, 12 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16296: FAP (96); Algumas correções, para a história: (i) Morais da Silva comandava a Esquadra121, também dos Fiat G-91 e nunca voou helicópteros; (ii) quem veio substituir o cap pilav Cubas em 1970 foi o cap pilav Zúquete da Fonseca, o meu primeiro comandante de Esquadra; (iii) não foi a Esquadrilha mas a Esquadra de voo 122, que sempre se designou por Canibais; (iv ) quando lá cheguei, em 8/12/1970, ainda conheci a "velhice", o Jorge Félix, o Solano de Almeida, o Heleno e o Falé... (Lino Reis, ex-alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1970/72)

Alouette III. Bambadimca (c. 1969/70). Foto:
Humberto Reis (2006)
1. Mensagem do nosso leitor e camarada Lino Reis [e, além disso, amigo e conterrâneo do nosso editor LG; foi alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1970/72, hoje cor pilav ref; tem página no Facebook]


De: Lino Reis
Data: 8 de julho de 2016 às 12:36
Assunto: Mais uma correcção cirúrgica.


Luís, bom dia.

Pensava entretanto encontrar-me contigo no Táss....qualquer coisa,[Bar da Praia da Areia Branca, Tasse-Bem] para te comunicar uma pequena correcção a um dado colocado por Humberto Reis que colo abaixo [, na sequência de uma pesquisa que fiz no teu blogue, sobre os Canibais]

" Notas de L.G.:

(1) Mensagem que recebi hoje, do Humberto Reis:

"(...) Este nosso novo tertuliano Jorge Félix, ex-alf mil pil av, julgo que era um que andava quase sempre com botas de cano alto. O comandante da esq 123 era o cap Cubas, de alcunha o Canibalão, pois a esquadrilha era a de Os Canibais. O Cubas foi substituído em 70, se não me engano, pelo cap Morais da Silva, que chegou a ser CEMFA depois do 25 de Abril."


Para que a verdade histórica seja uma meta suprema, sugiro que a referência a Morais da Silva, na altura Capitão Piloto Aviador e que mais tarde foi CEMFA após o 11 de Março [de 1975], seja corrigida.

Ele comandava a Esquadra 121, também dos Fiat G-91 e nunca voou Helicópteros na sua carreira militar.

Entretanto partiu há meses para o seu último voo. [José Alberto Morais da Silva, cor pilav ref, 1041-2014]

Quem veio substituir o Capitão Piloto Aviador Cubas em 1970 foi o Capitão Piloto Aviador Zuquete da Fonseca, que foi o meu comandante de Esquadra durante quase toda a Comissão [, na Guiné, 1970/72].

Não foi a Esquadrilha mas a Esquadra de voo 122, que sempre se designou por Canibais.

Quando lá cheguei, dia 8 de Dezembro de 1970, ainda conheci o Jorge Félix [, foto à direita], sempre com as suas máquinas a tiracolo, o Solano de Almeida (que teve a sua carreira civil na TAP seguindo o seu pai e o seu irmão), o Heleno (continuou a voar na TAP) e o Falé, pelo menos.

"Eram a velhice" e eu um garboso "periquito" ou abreviando um"PIRA".

Foram escassos dias de sobreposição ou de "largada" dos piras (graças às nossas qualidades no domínio das máquinas voadoras,kkk), pois desapareceram pouco tempo depois rumo à Metrópole; felizmente chegara a sua hora.

É um pequeno contributo para, repito, a verdade dos factos históricos. (**)

Desapareço com saudações aeronáuticas.

Um abraço

Lino Reis

Piloto Cmdt. de Linha Aérea de Aviões ref.

2. Comentário de LG:

Obrigado,  meu caro, pelas tuas "correções cirúrgicas"...  A verdade também é uma questão de detalhes. O meu camarada Humberto Reis (, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) não era da FAP, mas tinha amigos na BA 12 e tirou magníficas fotos áereas da zona leste, graças às boleias de heli...

Quanto ao Jorge Félix, há um vídeo dele (ou melhor, do  Pierre Fargeas),  a que ele acrescentou uma conhecida e nostálgica canção do Ch. Aznavour, com letra em espanhol, e carregou no You toube, na sua página... Está reproduzido no nosso blogue. Merece ser visto, revisto e comentado. Na altura escrevi-lhe o seguinte:

"Jorge, é um vídeo que eu vejo e revejo... Por muitas razões: por ti, amigo e camarada do meu tempo; pelo regresso ao passado; pelas saudades da doce, tranquila e bela Bafatá; pelos nossos 20 anos. tão generosos quanto verdes; pela beleza (pertubadora) da Ivete Fargeas; pela 'canción desesperada' do Ch. Aznavour... Uma combinação perfeita!...Um Alfa Bravo".

Julgo que ainda é do teu tempo este casal francês, os Fargeas, que suponho vivia na Base. O Pierre Fargeas (n. 1932) era o técnico francês de manutenção do Alouette  III, e representava o fabricante, a Aérospatiale, Terá estado na Guiné até 1974, segundo informação do Jorge Félix. No vídeo vê-se também o então cor pilav Manuel Diogo Neto (1924-1995).

___________________

Notas do editor:

(*) 28 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9879: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte IV : Em Piche, com um Pel Art com 3 peças de 11.4


Foto nº 73/199 > Setembro de 1968 > Chegada da LDG a Bambadinca [Sobre a viagem de Bissau a Piche, vd. poste 9593]




Foto nº 85/199 > Setembro de 1968 > A caminho de Piche, antes de Nova Lamego > Furo em plena picada. Últimos da coluna. Sós. Aguardando ajuda ou o inimigo...



Foto nº 90/199 > > Paragem obrigatória para descansar... [Em primeiro plano, uma das 3 peças de artilharia, 11.4]




Foto nº 103/199 > Setembro de 1968 > Nova Lamego > Pedro Sá da Bandeira, antigo colega de turma no Liceu Nacional de Oeiras e vizinho da mesma rua em Algés.



Foto nº 98/199 > Setembro de 1968 > Piche > Os meus camaradas, alferes de cavalaria.




Foto nº 99/199> Setembro de 1968 > Piche > Em Piche nunca entrei em combate, mas tive encontros imediatos de grande perigo, porque facilitei em demasia... [Na foto, canhão s/r montado em jipe... Não era uma arma de acavalaria, mas uma arma pesada de infantaria...]




Foto nº 101/199> Setembro de 1968 > Piche > [O JoãoMartins com uma temível granada de canhão s/r]


Foto nº 109/199 > Piche > 1968 > Portugueses da Guiné solicitando a ajuda Nacional.


Foto nº 112/199 >  Piche  > 1968 > Mulher amamentando uma cabrinha (!)...


Foto nº 111/199 > Piche > [Fulas partilhando uma refeição]



Foto nº 108/199 > Piche > Setembro de 1968 > Régulo afirmando a sua amizade, veio cumprimentar-nos.




Foto nº 117/199 > Piche > s/d > [Uma bela paisagem, não tenho a certeza se é de Piche... ou de Catió por onde o autor passou, a caminho de Bedanda].



Fotos do álbum do João José Alves Martins, em grande parte disponíveis na sua página do Facebook... 


Fotos (e legendas): © João José Alves Martins (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados. (Fotos editadas e parcialmente legendadas por L.G.)


Memórias da minha comissão na Província Ultramarina da Guiné - Parte IIV (*)

por João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69)

(Continuação)



___________

ÍNDICE

1 – Curso de Oficiais Milicianos
1.1 – Mafra – Escola Prática de Infantaria
1.2 – Vendas Novas – Escola Prática de Artilharia – Especialidade: PCT (Posto de Controlo de Tiro)
2 – Figueira da Foz – RAP 3 - Instrução a recrutas do CICA 2
3 –Viagem para a Guiné (10 de Dezembro de 1967)

4 – Chegada à Bateria de Artilharia de Campanha Nº. 1 (BAC 1) e partida para Bissum

9 – Gadamael-Porto

10 – Guilege

11 – Bigene e Ingoré
_____________________



7. Piche


Chegado a Bissau [, de férias na metrópole], novo pelotão e novo destino me esperavam, Piche, e em Setembro de 1968 embarquei numa Lancha de Desembarque Grande (LDG) com um pelotão constituído por três peças de Artilharia 11,4 cm.

Em Nova-Lamego encontrei um ex-colega de turma do Liceu Nacional de Oeiras, o Pedro Sá da Bandeira, a quem tirei uma fotografia.

A viagem estava a decorrer sem qualquer contacto com o IN, até parecia que já não estava em teatro de guerra, e, como tinha vindo da Metrópole, já tinha esquecido um pouco o que era entrar em combate.

Quase a chegar a Piche, depois de passadas Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego, indo eu na última viatura da coluna para me certificar que tudo à minha frente decorria da melhor maneira, a viatura teve um furo na roda esquerda dianteira,  como mostra a fotografia. Éramos dois ou três, isolados, sem armas, só com munições de artilharia que para o efeito não serviam para nada, e assim ficámos bastante tempo, parados na picada à espera que acontecesse alguma coisa.

Apareceram então elementos da população, muito simpáticos e prestáveis como são em geral os fulas e os futa-fulas. Prontificaram-se a remover algumas caixas de munições e a arranjar o pneu da viatura. Entretanto, chegou o auxílio vindo da coluna porque acabaram por dar pela nossa falta.

Por feitio, gosto de interagir com os outros, para mim, era essencial compreender as motivações, as queixas, o que ia na cabeça daquela gente, de modo que mantive sempre uma relação muito próxima, não só com os soldados dos meus pelotões mas também com os que tinham sido colocados circunstancialmente na sede, BAC 1, por começarem a especialidade, por irem ou regressarem de férias ou por estarem a terminar o serviço militar, na sua grande maioria recrutados de todas as etnias da Guiné, e ainda, com todos os que me rodeavam, muito particularmente, quis compreender o verdadeiro sentir das populações e a sua relação com aquela guerra.

O que me deixa verdadeiramente satisfeito, é ter conhecido aquelas gentes, melhor dizendo, aqueles portugueses, verdadeiros portugueses na medida em que, na sua maneira de ser, se aproximam muito de nós, muito provavelmente pela ação missionária e de evangelização a que todos nós, portugueses, fomos de algum modo chamados desde a “Fundação de Portugal”.

Assim como os portugueses da Metrópole têm ideologias diferentes, religiosidades específicas, modos de convivência diferenciados, com o sentimento do “amor ao próximo” vivido de maneiras diferentes, uns, mais crentes, portadores de uma religiosidade mais profunda, outros, menos crentes ou até ateus, também na Guiné fui encontrar as maiores disparidades, até porque não se trata de um povo, mas de uma miscelânea de povos das mais diversificadas origens com dialetos distintos, tendo inclusivamente alguma dificuldade em comunicar uns com os outros, pelo que têm o crioulo em comum que lhes permite entenderem-se. Inclusivamente, informaram-me que os membros de uma das etnias, os felupes, eram canibais.

A única característica comum para além de serem africanos era o fato de serem portugueses. Só esse facto os une, pelo que muito dificilmente se poderão constituir como uma Nação. Mais, o sentimento mais profundo que trago como recordação, é que, na Guiné, eu não estava no estrangeiro, mas em Portugal, e quando estou com alguém de lá, não posso deixar de lhe dar o meu abraço de “irmão”, porque vejo nele um português que vive no estrangeiro.

O mesmo não se passa com os espanhóis com os quais ainda temos um diferendo fronteiriço, o caso de Olivença, e recordamos que no passado, fomos uma região autónoma espanhola, nem temos afinidades com os franceses que nos invadiram no tempo do imperador Napoleão Bonaparte, cujas tropas “saquearam” o que puderam, e ainda menos, com os alemães, com os quais estivemos em guerra e recordo a batalha de “La Lys”, durante a 1ª Guerra Mundial, em que estivemos envolvidos sem grande justificação, entrando em combate em condições verdadeiramente desumanas e em que, em consequência, muitos portugueses perderam a vida.

Parte de mim ficou na Guiné, para sempre, não só pelo sentimento do dever cumprido que é independente do regime que vigorava na altura, mas sobretudo, pela experiência e pelo reconhecimento de cerca de 500 anos de convivência e de pertença à mesma Nação, e esta realidade não se esquece, não se apaga e não está à venda…

Em Piche, aconteceu-me um episódio que não esquecerei. Como não sentia qualquer animosidade por parte da população, nem pressentia qualquer perigo, não pensei que o perigo sempre espreita. Nem mesmo pensei nisso quando chegou ao aquartelamento um carregamento de garrafas de cerveja, e, como estava calor e tinha sede, dirigi-me ao bar para comprar uma; para meu espanto, informaram-me que já tinham sido todas vendidas; não queria acreditar, e perguntei como é que podia ser. Responderam-me que tinham sido vendidas a um libanês que tinha uma tasca a poucos metros do aquartelamento; fiquei sem saber quem é que lucrava com aquele “negócio”.

Sem alternativa, fui até lá e pude apreciar o ambiente. Realmente, sentíamo-nos fora do quartel, e como não estava acompanhado fui-me inteirando do que se passava à minha volta, reparei que havia quem conversava de uma forma muito discreta e pus-me a ouvir, falavam em francês, o que era estranho, mas mais estranho foi o facto de, quando repararam que eu os estava a escutar, terem-se posto em fuga. Realmente, podia concluir que, verdadeiramente, nenhum lugar era seguro, mas não dei demasiada importância.

Dias mais tarde, vieram-me dizer que havia falta de géneros e que era conveniente procurar nas tabancas das redondezas quem vendesse alguns frangos. Como não tinha muito que fazer, dispus-me a dar uma volta para ver se encontrava alguns e também para quebrar a monotonia. Meti-me num “jeep” e fui com um furriel, levava comigo uma G3 e uma pistola à cintura.

Andámos alguns quilómetros para Norte, passámos por uma palhota onde se encontrava uma mulher a dar de mamar a uma cabra, tirei-lhe uma fotografia, e continuámos na esperança de encontrarmos uma tabanca com galinhas.

A certa altura, chegámos a uma, mas só depois de muito andarmos; não se vislumbrava ninguém, o que achei muito estranho, pedi ao furriel que fosse à procura de alguém, e, como estava muito calor, sentei-me à sombra de uma árvore ficando descontraidamente à espera e a descansar de tanto solavanco a que nos obrigavam aquelas picadas.

Passados uns cinco a dez minutos, para espanto meu, vindos do fundo da tabanca, vejo a cerca de cinquenta metros, uns seis africanos cobertos de panos compridos a correrem para mim e a fazerem muito barulho, com catanas nas mãos e com ar de “poucos amigos”… Percebi que estava em “maus lençóis”, e que tinha que tomar rapidamente uma decisão.

Se fugisse, não ia longe porque algum deles correria mais do que eu, se puxasse pela pistola, também não me safava porque nem sabia se estava carregada, a solução só podia ser uma, rezar e encomendar a minha alma ao Senhor, entregando a minha vida nas sua mãos; e foi o que fiz, e serenamente, na “graça do Senhor”, fiquei à espera…

Face à serenidade que se apoderou de mim, e à “Luz” intensa que me envolvia, ficaram espantados, e resolveram espetar as catanas na árvore, mesmo por cima da minha cabeça, e foram-se embora.

É claro que não ganhei para o susto… Pouco depois, apareceu o furriel dizendo que estranhamente não tinha encontrado ninguém porque tinham fugido todos e a aldeia encontrava-se deserta.

Metemo-nos no “jeep” e viemo-nos embora. No caminho, deparámo-nos com uma árvore de pequeno porte a barrar a picada e uns tantos homens, mas poucos, “à nossa espera”. Tinha-me safado de uma vez e não quis abusar da sorte, disse ao furriel que acelerasse a viatura passando por cima da árvore, enquanto eu de G3 em posição e devidamente carregada, apontava para os nossos “amigos”, agora era eu que estava com “ar de poucos amigos”; é claro que nem se mexeram, passámos sem mais problemas e regressámos ao aquartelamento.

Dias mais tarde, por sinal, andando na mesma viatura, observei que algo de anormal se estava a passar; à entrada da povoação encontravam-se uns quatro homens vestidos com os tais panos, portanto, de uma forma diferente do que era normalmente usado pelo pessoal de Piche. Estavam rodeados por muitos populares, que olhavam para eles muito intrigados quanto às suas pretensões, e era bem visível a diferença de uns e de outros porque os habitantes locais, usavam regra geral, calções e camisas.

Por curiosidade e sentido de responsabilidade, aproximei-me convencido que havia problema, parei a viatura relativamente perto e nem queria acreditar no que via. Eram aqueles que tinham corrido para mim com as catanas na mão, sem dúvida sem as melhores das intenções, e que agora se dirigiam para mim.

Ficaram muito felizes quando me viram, demonstrando-o dando-me grandes abraços como se fossemos amigos de longa data que não se viam há muito tempo, o que não era propriamente o caso, e deixando atónitos os populares que apreciavam toda a cena; devem ter concluído que “eu estava feito com os turras”; não falavam português, provavelmente só o crioulo, mas deu para perceber que o que pretendiam era entrar na povoação para comprar agulhas e linhas para cozerem os seus panos; pelo menos, foi o que eu entendi por gestos e por algumas palavras. É claro que esta cena era completamente incompreensível para quem a observou, e devem ter transmitido isso mesmo ao comandante da companhia que mais tarde me perguntou o que se tinha passado.

Como a realidade era um pouco “sui generis”, resolvi dizer que aqueles homens me tinham salvado a vida, na verdade, devia ter dito que me tinham poupado a vida, de qualquer modo, o que quer que dissesse era pouco compreensível, pelo que não deve ter acreditado na minha versão e poucos dias depois tinha uma guia de marcha para me apresentar em Bissau. 

Lembro-me de ter regressado num “Dakota”, que parecia ser da última grande guerra tal era a vibração da fuselagem e o barulho que fazia o motor. (**)

_________________

Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > Guiné 63/74 - P9857: Memórias da minha comissão (João Martins, ex-alf mil art, BAC 1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69): Parte III - BIssau e férias em São Martinho do Porto, em agosto de 1968


(**) Vd. ta,bém poste de 10 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9593: Álbum fotográfico de João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) (1): Viagem de Bissau a Piche, pelo Geba e pela picada, com 3 peças de arilharia 11.4, em julho de 1968

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P495: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite


Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)

© A. Marques Lopes (2005)


Começamos hoje a dar ínicío à publicação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66).


Um cabaço de leite

Naqueles longínquos anos da década de 50 (do século passado) cheguei à Guiné ainda adolescente. Como qualquer pessoa nessa fase da vida, também o apelo da magia africana me enfeitiçava. Trazia a cabeça cheia com as descrições fantasiosas sobre África:
- Cuidado com os leões. Há bichos perigosos por todos os lados. Os pretos são muito maus. Ainda há antropófagos. É tudo selva inóspita.

Depressa verifiquei quão erradas eram as atoardas que um pouco por todo o lado pretendiam caracterizar aquelas terras. Encontrei um povo afável, uma terra linda, linda, linda como não imaginava pudesse existir. Foi amor à primeira vista!

Bissau era uma cidade pequena mas onde apetecia viver. Desfeito no meu espírito o mito de leões a rondar as casas, de selvagens canibais e de outras intimidantes tragédias, parti à descoberta da terra.

Guiado pelos amigos que rapidamente fiz, onde se incluíam naturais da Guiné, iniciei-me no convívio com os guineenses. Terminado o trabalho diário, lá íamos nós, avenida da República acima, praça do Império, - vira aí à esquerda, pá - direitos ao Alto do Crim. À nossa esquerda iam ficando os que se entretinham a treinar futebol no então chamado estádio Sarmento Rodrigues (1). Os mais esclarecidos informavam:
- Hoje é a UDIB. Estás a ver as camisolas com aquela risca verde larga, ao meio da camisola branca? É o equipamento deles. O Benfica tem camisolas iguais ao de Lisboa e o Sporting também.

Mais ao fundo, os mais afortunados jogavam ténis e nos campos ao lado praticava-se basquetebol e hóquei em patins. E a alegre comitiva prosseguia rua fora até alcançar o intrincado labirinto de ruas bordejadas por casas e moranças. À sombra de frondosas árvores, os habitantes repousavam as fadigas do dia conversando ou simplesmente meditando - sabe-se lá - talvez na dureza da vida que nem para todos era fácil. E, conforme avançávamos, íamos lançando à esquerda e à direita:
- Bôs tarde, bu ´stá bom ? qui noba di corpo? - Rostos afáveis e sorridentes nos respondiam, cabeças respeitosamente se descobriam. Uma ou outra mulher, atarefadas à volta dos potes de ferro onde se cozinhava a bianda, convidavam:
- Branco, bim nó cúmi.
- Obrigado, pa Deus djudábo. (Deus te ajude). - E neste doce deambular, o dia ia chegando ao fim. Quando as garças rompiam o céu direitas ao Ilhéu dos Pássaros onde pernoitavam pousadas nos frondosos poilões, sabíamos que eram horas do regresso. O crepúsculo era rápido e a noite calma caía sobre a terra tudo envolvendo no seu misterioso manto.

Estes passeios exploratórios eram muito frequentes e assim fiquei a conhecer, Gambeafa, Cupelon (2), Chão de Papel, Santa Luzia, Bandim, e mais bairros à volta de Bissau (3). Surgiu, porém, uma actividade em que me iniciaram e conquistou a minha preferência: a venatória. Nada de leões ou outras feras. Nem gazelas ou outros antílopes, que essas exigiam armas de maior calibre que não tínhamos nem autorizavam - devido a sermos menores - e só se encontravam em zonas já mais afastadas da cidade. Simplesmente rolas ou os saborosíssimos pombos verdes que abundavam por todo o lado e caçávamos com as pequenas espingardas de cartuchos de 9 mm conhecidas por flauberts.

Aos poucos fui-me tornando, ou julguei ser, um perito. Já me sentia na pele dos caçadores de feras africanas que povoavam os meus sonhos nos verdes anos. E foi assim que um belo dia, resolvi que estava na hora de me aventurar sozinho. Pensei, pensei, e decidi.

Num belo domingo, ainda o dia não tinha despontado, sorrateiramente peguei na flaubert e, pé ante pé para não acordar ninguém, saí da cidade caminhando para os lados de Bór. Antevendo a fartura de rolas e pombos verdes com que iria surpreender o meu pai e irmãos estuguei o passo. O local onde, com os meus amigos, anteriormente tinha visto e caçado muitas, ainda ficava longe. Quando finalmente lá cheguei, delas, nem sombras. Que desilusão! Fugiram? Naquela altura ainda não sabia que as aves, só de manhã muito cedo e ao fim do dia, ali se encontravam para passar a noite. Durante o resto do dia deambulavam por bolanhas ou por onde houvesse cereais e outras sementes.

Decidido a não voltar de mãos a abanar, continuei campo fora, olhar fixo nas árvores, ouvidos tentando escutar o arrulhar das aves. A manhã escoava-se. Nada. Raios dos pássaros, por onde andariam? À desilusão, sobrepunha-se a minha vontade de conseguir uma frutuosa caçada; doutra maneira iria ser alvo de gozo. E pensando no fracasso, dizia com os meus botões que o melhor seria não contar a ninguém tal desaire. Continuei o caminho e andei, andei, andei… o sol queimava, como é sua obrigação. Não sei se instintivamente, porque o calor era muito, ou por pensar que no meio do arvoredo seriam maiores as possibilidades de encontrar os fugidios pombos, fui-me internando no bosque, que depois já era mata, e depois floresta cerrada. Como era de esperar, às tantas já não sabia onde estava nem para onde me dirigir. Estava perdido. A tarde avançava e o estômago reclamava pois apenas tinha comido o pequeno-almoço que, embora substancial, à boa maneira africana, não era suficiente para tantas horas de jejum. Não entrei em pânico pois sabia que nada de mal me aconteceria e, além disso, o prazer da caça dominava o meu pensamento.

Finalmente alcancei uma clareira. Ah!... que bom. Aqui talvez conseguisse, pelo menos, um par de rolas. Olhando atentamente uma árvore, para ela me dirigi sempre olhando para a ramagem. E tão atento ia, que nem reparei num tronco partido atravessado no meu caminho. Deu-se o inevitável: tropecei e estendi-me ao comprido no chão cheio de carvão e cinzas do capim recentemente queimado. Fiquei todo enfarruscado; cara, braços e pernas, além de alguns pequenos arranhões.

Continuando a andar, algum tempo depois escutei vozes. Para lá me dirigi sabendo que me indicariam o caminho para alcançar a estrada que me conduziria a Bissau. Deparei com uma morança, debaixo de duas frondosas mangueiras à sombra das quais um homem sentado chupava fumaças do cachimbo. A ele me dirigi e, mal me viu, reparando ma minha figura, soltou um divertido:
- Có, có, có… éh, brancozinho, kuma qui bu fungli sim? (Como é que está assim enfarruscado?). - Contei-lhe, num incipiente crioulo que na altura ainda pouco dominava, a minha odisseia. A cada peripécia ria, bem disposto mas sempre com uma suave compreensão no semblante. Quando terminei e lhe pedi se me podia indicar o caminho que me levasse a alcançar a estrada, disse: Espera. E voltando a cabeça em direcção à palhota chamou. Surgiu uma mulher a quem deu algumas indicações na língua papel que era a sua. Nada percebi mas de imediato soube de que se tratava. A mulher pegou num pequeno cabaço e com ele se dirigiu a uma vaca que se encontrava ali perto e diligentemente a ordenhou. Regressou com o cabaço cheio de leite que, sorridente, me estendeu dizendo:
- Bibi. - Bebi, senti-me reconfortado e agradeci. Visivelmente satisfeito por me ver mais animado, o homem levantou-se e guiou-me até à estrada que, afinal, até nem era longe dali; simplesmente eu, na minha ainda pouca experiência de orientação e no entusiasmo de encontrar os pombos verdes ou as rolas, tinha andado às voltas sem me aperceber.

Enquanto caminhava de regresso a Bissau, fui meditando na afabilidade e simpatia daquela gente da Guiné que nesse dia me tinha sido revelada e se viria a confirmar durante os 14 anos que por lá vivi. Como tudo, afinal, era tão diferente do que corria entre os europeus como sendo a "selvajaria" dos africanos!

Algum tempo depois, logo que um colega de trabalho se disponibilizou a levar-me no carro dele até à morança do meu salvador, fui agradecer-lhe. Levei um garrafão de vinho, bebida que sabia muito apreciarem. Deixámos o carro na estrada, junto do caminho que nos conduzia, a pé, até à casa. Fomos recebidos com evidentes sinais de alegria pelo homem, que continuava a chupar o cachimbo. Oferta entregue, os cumprimentos do costume, as habituais mantenhas, e já nos dispúnhamos a regressar quando ele disse:
- Espera.- E mais uma vez chamou a mulher e deu as suas instruções na língua papel. (ficámos a zero).

A mulher torneou a casa e surgiu com uma galinha que de imediato degolou, depenou, temperou e pôs a assar nas brasas de uma fogueira. Não demorou muito a ficar pronta, tostadinha e apetitosa. Com o nosso hospedeiro foi por nós prontamente devorada, com lamber dos dedos e tudo, acompanhada de alguns copos do vinho que lhe havia trazido. Foram momentos de confraternização e são convívio que demonstra bem como dois povos tão diferentes, ao contrário do que propalavam os que denunciavam atrocidades dos colonos e incompatibilidades ou hostilidade por parte dos nativos, afinal, entendiam-se bem.

Assim era antes da guerra, assim continuou apesar dela ou por causa dela, e assim continua sendo.

© Mário Dias (2006)
___________

Notas de L.G.

(1) Oficial da marinha, governador Geral da Guiné, entre 1945 e 1949.

(2) Pilão, para os tugas do meu tempo...

(3) Vd planta de Bissau.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19647: A galeria dos meus heróis (26): Aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre (Luís Graça)




Luís Graça, Guiné, Região de Bafatá, Centro de Instrução Militar de Contuboel, junho de 1969,
CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)




A galeria dos meus heróis: Aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre (*)



por Luís Graça (**)



1. Nascido no ano zero, 1945... Lembro-me de tu, Luís, teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... Lembras-te do SNI,o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, nos Restauradores ?

Lembras-te, dessa história, em 1965 ?!... Ainda pensámos em "dar o salto" até Paris, éramos vagamente existencialistas, e ainda mais vagamente anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmartre, a boémia e as copines das belas artes (o meu lado mulherengo!),enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre e querias estudar filosofia, jornalismo ou sociologia, ou coisa parecida,  na Sorbonne!...

Estava quase a completar os meus vinte anos, com a tropa à perna, sem o saber. E tu ligeiramente mais novo, um ano e picos, mas com a mania da filosofia, da crítica literária e do jornalismo, acho que eram esses os teus interesses na época.  Convidei-te para passares uns dias comigo, em Lisboa, por ocasião da montagem da minha primeira exposição de pintura. E, claro, escreveres o texto para o catálogo.


Não conseguimos convencer o nosso "gestor de conta" a financiar os nossos inconsistentes projetos de aventura. Ou melhor, só queríamos chegar a Paris, de comboio, à boleia, ou "a salto", o que desse mais jeito. Contámos os tostões. Quanto é que tu tinhas no bolso e no mealheiro ? Se calhar, menos do que eu...E, quando descobriram a marosca, os meus "padrinhos" de Lisboa, expulsaram-te de casa e, a mim, cortaram-me a "mesada"... Foi nessa altura que eu te pus a dormir  na casa que a Flora partilhava com mais duas amigas, estudantes, no Campo Grande. A Flora, a minha namorada, madeirense, estás recordado ?!

Eu era mais corajoso do que tu. Tu eras mais politizado e, sobretudo, mais pragmático do que eu:
– E os nossos pais ? – interrogavas-te tu. – E a PIDE à perna ? E a Guardia Civil espanhola antes de chegares aos Pirinéus?

E não te calavas, chamando-me à razão:
E os dez contos de réis para dares ao passador ? E vais fazer o quê, em Paris? Trabalhar como maçon ? E dormir no bidonville? E comer baguettes com marmelada ?


2. Ano zero da idade atómica. 1945… Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, diziam os parisienses, ainda em 1944. Para eles, era o fim do pesadelo da ocupação nazi e o início de uma nova era. O direito à esperança, ao sonho, incluindo na nossa terra, o recomeço da história da humanidade... Blá-blá, blá-blá... 

Mas ainda não foi dessa que o Salazar caiu da cadeira...

As palavras eram tuas, escritas  no meu catálogo (exceto a referência ao Salazar, claro!)...   Até estava bonito e original, o catálogo ... não estava ?! ...Original,  "subversivo", no mínimo, provocador... Com o  teu treino de jornalista, aprendeste a  escrever nas entrelinhas, e a cultivar o sarcasmo, a ironia, o humor negro, para iludir a vigilância dos censores da nossa praça...

Uma exposição no SNI em 1965!... Que privilégio!... Lembras-te do SNI, o Secretariado Nacional de Informação, no Palácio Foz, nos Restauradores ?!...Criado pelo António Ferro,  tu até tinhas relutância em lá entrar,,,

Não havia artista que não quisesse expor no SNI naquela época!... Ora, um merdas como eu a expôr no SNI!... Um casapiano, serigrafista, sócio de uma cooperativa de artes gráficas, estudante de Belas-Artes, afilhado de um gajo do regime, aprendiz de pintor que sonhava ir para as belas-artes em Paris e pintar, ao ar livre, nas ruas de Montmartre, de boina preta, lenço de seda vermelho ao pescoço, e uma rosa na lapela... Sempre adorei o preto e o vermelho.

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro, só por que eu já frequentava o 3ºano das Belas Artes, e tinha um "padrinho", em Lisboa, que terá metido uma cunha, ao César Moreira Baptista, para eu poder fazer a minha primeira exposição no SNI, ali nos Restauradores…

Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas, com mais de meio século de atraso... Vagamente impressionistas, mas já a caminho do abstracionismo... Enfim, aprendiz de Renoir, talvez imitador da Vieira da Silva, de que só conhecia umas reproduções de má qualidade. Alguns amigos, como tu, faziam-me o favor de me incentivar, mostrando que eu tinha talento!... Sim, ao nível da gravura, acho que podia ter ido mais longe!...

Ainda ganhei, confesso, uns tostões com as serigrafias, havia gentinha com dinheiro fresco que comprava tudo que fosse obra de arte, naquela ... A começar pelos amigos do meu "padrinho" de Lisboa... 

Enfim, aprendiz de Renoir, aprendiz de pintor, que o sonho naquele tempo não pagava imposto!...


3. Na minha cédula pessoal, um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Qualquer coisa como "mais uma boca com direito a senha de racionamento". Milho, açúcar, farinha, azeite, café, etc., que tinha que se ir à vila de Cinfães buscar, serra abaixo, serra acima… Uma porrada de quilómetros a pé ou de burro... Ou então na loja do "Francês", na minha aldeia, tudo mais caro, porque aqui não havia concorrência...

Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não te lembres, nasceste já depois, em 47, não apanhaste esses tempos que foram duros para a minha mãe e os meus avós, e para todos os demais pobres da minha aldeia. Tu estavas muito mais perto da capital, no Oeste Estremenho, imagino que lá se vivia melhor, à beira-mar.

Nesse mesmo ano em que nasci, filho de mãe solteira e de pai incógnito ( um estigma que me perseguiu até ir para a tropa, ou me persegue ainda hoje!), acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do "Francês", o cabo chefe da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 

Seria depois o primeiro filho da terra a estudar na Universidade. Casou-se no Porto, teve um primeiro filho em 1947, o Gustavo.  E no Porto arranjou um tacho como advogado de uma conhecida empresa. 

O "Francês" tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara herói medalhado de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa, Salazar e Franco. Vociferava contra "a corja dos republicanos e dos 'rojos' que tinham destruído a Espanha". Berrava, igualmente, contra a malta do "reviralho", os que eram contra a "situação", como então se dizia. Mas não havia malta do "contra", na minha aldeia, a não ser um pobre diabo, sem eira nem beira, que ficava na corte dos animais, e que era meio atolambado, sobrevivendo à custa de pequenos fretes que ia fazendo, a este ou aquele.

O regedor era o meu... padrinho de batismo! Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus avós e a minha pobre mãe!... Nunca soube quais. Nunca quis saber. Ou melhor, acabei por saber, ainda muito novo: havia quem na aldeia insinuasse que ele era o meu pai biológico... Na escola, chamavam-me "o filho do Francês", o "zorro", o filho bastardo... Nas aldeias, toda gente sabe tudo (ou quase tudo) da vida da gente. Mas eu ia aos arames, cheguei a andar à porrada na defesa do bom nome da minha mãe e dos meus avós, mal vistos na aldeia.

A minha mãe tinha sido criada de lavoura na casa do "Francês", desde muita nova, ao longo dos anos da guerra... Solteira, menor, com 18 anos, apareceu grávida, teve-me a mim em agosto de 1945...Uma mulher, muito bonita, e sobretudo de enorme coragem, como muito poucas que conheci na vida: recusou casar à pressa, só para salvar as aparências, não acatando o conselho do padre de Cinfães ou de Resende (já não me lembro), que ainda era aparentado com os meus avós... Casaria, sim, mais tarde, "de livre vontade",  com um rapaz bastante mais novo, pastor de cabras, o "cabreiro", de quem teve mais filhos, meus meios-irmãos, com quem, de resto, pouco convivi. E de quem perdi praticamente o rasto, lamento dizê-lo.


4. Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo, dependência e nepotismo que vigoravam na aldeia. A minha aldeia da serra de Montemuro, a meia encosta, uma aldeia de pastores e de rendeiros que não era muito diferente de tantas tabancas fulas por eu onde passaria, depois, na Guiné…


Gostava que ainda chegasses a conhecer a minha aldeia. Não sei se terei coragem para lá levar-te. Disseste-me que de Candoz, a que chamas a "tua tabanca", se via Cinfães, do outro lado do rio Douro, com a serra de Montemuro à tua frente... Em agosto, no teu querido mês de agosto, bem podíamos lá dar um salto!…

Eu, confesso, que ainda gostaria de regressar, pela última vez antes de morrer, às minhas raízes telúricas, mas tenho uma relação de amor-ódio com a terra que me viu nascer. Voltei lá uma meia-dúzia de vezes, se tanto, depois de regressar da Guiné, a última das quais, para enterrar a minha pobre mãe, nos anos 90... Morreu cedo, a pobre, de doença oncológica, com sessenta e poucos anos. E os seus filhos, meus meios-irmãos, são-me completamente estranhos, conheci alguns de vista, no enterro da nossa mãe, mas já não seria capaz de os reconhecer se os encontrasse. Foram à vida, espalharam-se pelo mundo. Tal como eu, a partir dos 10 anos.

5. Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. Mais tarde, Ultramar. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. O filho mais velho e herdeiro do "Francês", estava a chegar em meados de 1945, no final da guerra, tinha eu uns escassos meses, e uma ama de leite, a minha mãe ficara sem peito, talvez devido a depressão pós-parto...Os meus avós maternos, com quem fui criado, é que me contaram, mais tarde, quando eu já tinha entendimento para as coisas da vida e do mundo...

Quando puto, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce. Estás-me a imaginar de sotaina branca e longas barbas pretas, não estás ?! E acabar, mártir e santo, frito no caldeirão de uma tribo de canibais! Ah!, como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!... 


Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça, por certo o padre, a catequista ou a professora, o pregador da quaresma que vinha de fora... Ou o próprio regedor... Mas a serra de Montemuro, que abarca Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire e Lamego, deu muita gente para as colónias e depois para a guerra, mas também para a emigração. Eu próprio estava longe de imaginar, no verão de 1965, que três anos depois estaria a desembarcar em Bissau!


6. No início de 45, quando nasci, os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, nas minas de água, o milho, o centeio, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Como sempre se escondera o pão (e o gado), da vista de todos os invasores e usurpadores. Contavam os meus avós, maternos, esses com quem vivi até ir para a Casa Pia, em 1955. Mesmo assim fazia-se festa rija quando os nossos rapazes regressavam das guerras do Ultramar, ou alguém, mais raramente, voltava do Brasil... para casar!...

O foguetório não era como hoje, em que se gastam rios de dinheiro... Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João, que era a festa anual do concelho. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o magro orçamento das gentes da minha aldeia. Não havia dinheiro, pura e simplesmente. Não me recordo até aos dez anos de ver uma nota de 20, 50, muito menos de 100 escudos. Só tostões, pretos, encardidos como as mãos, sebentas e rugosas, daquela gente.

Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Os cabritos e os anhos. Ou até nos barcos rabelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. À boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem, com um percurso cheio de cachões… Hoje está completamente amansado, e já aqui não chegam a lampreia e o sável.


7. O "Francês", meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. O homem mais rico da aldeia. Negociante de gado arouquês, com clientes no Porto e até em Lisboa. Antes disso, ganhara muito dinheiro no garimpo e no contrabando do volfrâmio, com um sócio de Moncorvo, seu antigo camarada de armas, a quem também chamavam "Francês", por ter andado na guerra. 


Tinha fama de ser violento e andava sempre armado, o meu padrinho. Percorria os concelhos à volta da serra, de Resende a Castro Daire, numa velha camioneta Ford. Foi o primeiro a ter transporte automóvel. Além disso, era o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali nas redondezas… Vendia a fiado. Não havia luz elétrica, nem sequer a barragem do Carrapatelo, mas ele já tinha gerador... 

Ia lá a casa o povoléu para ver (e, de olhos arregalados,  benzer-se!...) aquela máquina que "parecia coisa do demo", que transformava a noite em dia...E tinha também o único telefone da aldeia... Por todas estas razões, mais o rol dos fiados, era o homem mais importante, mais poderoso e sobretudo temido e venerado da aldeia... Todos, de uma maneira ou doutra, lhe deviam favores...

Ainda por cima, dava-se bem com a gente graúda de fora: por exemplo, o major de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto, e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época, a nível do distrito de Viseu. Não sei, nunca o conheci, nem posso confirmar.

Ao que parece, a esposa do major, a "Fidalga", mandava cartas diretamente ao Salazar, contava a minha mãe, a pobre da minha mãe, sempre atenta a (e não menos temerosa de) os fios com que se costurava o poder.

Nem por isso o meu padrinho, que era militante da União Nacional e amigo dos presidentes das câmaras da região e do governador civil do Porto, metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe (a quem chamávamos a "Madama").

Ele, o meu padrinho, sempre teve um grande carinho por mim. Ou, talvez melhor,  algum discreto  carinho por mim: chegava a beijar-me na testa, mas nunca em público. Aos 10 anos deixei de o ver... Ele, o padre, a professora da escola primária e os meus avós arranjaram maneira de me mandar para a Casa Pia em Lisboa, para "aprender um ofício"...

E foi em Lisboa que arranjei (ou me arranjaram) uns novos "padrinhos", um casal sem filhos, que me "adotou" e me "protegeu" até à minha ida para a tropa...Ao fim de semana, saía da Casa Pia, em Belém, apanhava o elétrico,  e ia ficar na casa deles, em Benfica. Depois de fazer o 5º ano, passei a viver com eles, fiz o liceu e matriculei-me nas Belas Artes. Ele era um quadro superior do Ministério das Corporações e Previdência Social. Sempre o tratei cerimoniosamente como "padrinho". Nunca houve adoção legal, porque eu já não tinha idade para isso.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu outro padrinho, o da terra natal,o de batismo (meu hipotético pai biológico!),  soube da minha partida para África em 1968, depois de eu ter chumbado em Belas Artes, por ser cábula. Eu nunca lhe pedira nada, nem ele nunca me dera nada, sequer o tradicional folar da Páscoa. E muito menos lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. Inclusive proibi a minha mãe e os meus avós, ainda vivos, de o fazerem por mim. Nem ele era homem para aceitar um pedido desses,  mais do que humilhante, inconcebível, para ambos. Nem sequer ao "padrinho" de Lisboa eu meti qualquer cunha ( a não ser a entrada no SNI, mas isso foi até iniciativa dele).

Tal como o "Francês" (nunca o tratei pela alcunha!, era "sua benção, padrinho" e pouco mais, sentia-me inibido na sua presença), eu tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada, enfim, da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.


8. Quando voltei da Guiné, em 1970, ele já tinha morrido, de um AVC isquémico. Ele e o Salazar ( que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente, mas de quem era um admirador acérrimo e acrítico).

O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai, advogado no Porto (e meu presumível irmão, mais velho). Numas férias de verão, em meados dos anos 60, ficou em Londres a lavar pratos. Em setembro desse ano já estava na Suécia, em Lund, aclamado como "herói", por ter fugido à guerra colonial... Fazia 18 anos,  era dois anos mais novo do que eu. Foi dado como refratário.  Como estava a estudar na Faculdade de Direito de Coimbra, já no 2º ano,  beneficiava do adiamento da data de incorporação, tal como eu, de resto. Aproveitou para dar o "salto", numa viagem de intercâmbio universitário, segundo me constou. 


Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, até filho de general era mobilizado. Nunca conheci nenhum general,  mas imagino que, na pior das hipóteses, os filhos dos generais ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

Nunca conheci nenhum, minto: conheci o Schulz e o Spínola, mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa. O avô, o "Francês", pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família (e para a terra, que considerava, abusivamente, uma extensão da família). 
– Coimbra, a república dos estudantes jacobinos, dera-lhe a volta à cabeça  lamentava-se ele.

 Para mais era o seu neto querido, o mais ladino, o mais  vivaço, o mais parecido com ele.
– Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça –  concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
 Sua bênção, padrinho   foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos…
– Já o pai não prestava, era um fraco – arrematava  ele, entre dois ataques de tosse. 
– As melhoras, padrinho !– foram as últimas palavras que eu lhe dirigi… 

Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. (Mas como eu tanto gostaria de lhe poder chamar pai, se ele tivesse tido a coragem, nessa ocasião única, de me chamar filho!...)

Puxou então de uma nota de 100 paus, e disse-me que era "para a viagem de regresso à Guiné, meu rapaz". Fiquei banzado, nunca me tinha dado nada, nem um rebuçado ou um pirolito... Quis recusar, mas ele sentiu-se ofendido...

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A saúde a falhar, a família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer-se, o Império a ruir, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo e do Império. 

Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois, respeitado, por certo,  mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho, cacique e patrão, um verdadeiro "capo", um "padre padrone", um cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal… que pouco mudara com as mudanças de regime.


9. Gustavo, o neto do meu padrinho da aldeia, ainda me escrevera um dia para o meu SPM, já no final da minha comissão. Éramos amigos (e, provavelmente parentes: eu podia ser tio dele, mas tinha desistido há muito da ação de impugnação da paternidade!). 

Ou melhor, éramos mais conterrâneos do que amigos , tínhamos brincado juntos até aos 10 anos, quando garotos, nas férias de verão. Ele estudara em colégio particular, e vivia em zona fina no Porto. Só quando entrou para a Universidade, é que se mudou para Coimbra. Não gostava da aldeia do avô e do pai, que achava terra de gente "parola". Mas ia lá algumas vezes, com os pais, nas férias grandes, no Natal e na Páscoa. Nessa altura, brincávamos por entre as fragas que cercavam a aldeia. Havia aquela cumplicidade de putos, pesem embora as diferenças sociais. Ele era o "menino", que comia ovos estrelados, e eu o "catraio", alimentado a caldo e a broa... Nós, os putos da aldeia éramos a "canalha".

Agora, em Estocolmo, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC e para apoio aos "exilados políticos". Dinheiro que, no caso do PAIGC, tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, clichés, prosápia, slogans, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao. (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo.)


10. As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC, algo quixotescas, guevaristas, românticas, desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e com a prova de fogo na frente de batalha, quando cheguei à Guiné. Não se podia objectivamente estar "do lado de cá", fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, dos gajos do "outro lado de lá", daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… E que feriam e matavam os nossos camaradas e a população que estava do "nosso lado".

Além disso, devo dizer-te, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas, quer na zona leste quer no sul (que também conheci)… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas, guias, picadores e milícias, desde Pirada até Piche, e depois em Cacine…

Nunca lhe respondi, ao Gustavo. Achava-o um puto mimado, egoísta e provocador. Em suma, um cabrãozeco. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram, assessor de um qualquer merda de político da nossa praça, com assento no Parlamento Europeu ou na Comissão Europeia. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 

Confesso-te que, secretamente, ainda lhe cheguei a invejar a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas louras, de olhos azuis, que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos…... E eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné!

Achei que o mundo não era justo. Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Nova Lamego e Bafatá, até nem foram maus. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros,em acrílico, que até tiveram um ou outro comprador, a preço simbólico. Outros ofereci a gente conhecida e amiga, incluindo uma família de comerciantes libaneses cuja casa costumava frequentar, e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar.

Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, da aldeia de Montemuro. da Casa Pia e depois do bairro de Benfica… Uma deceção!... Nunca me perdoei, de resto, ter estupidamente chumbado nas Belas Artes e de ter sido chamado, prematuramente, para tropa...


11. Nunca falei disto a ninguém, passei por uma grave crise existencial nos últimos meses da comissão, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Senti a atração da morte, a vertigem do nada, a comiseração da autodestruição,
a autopiedade, a autocompaixão...Mas, mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições pequeno-burguesas, agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu ainda conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, em 1965, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata, antes de regressar à Madeira. 


Não esqueço a última carta que ela me mandou, de despedida, em 1970, a dizer que ia para a Venezuela, para casar. Era um encanto de miúda, delicadíssima como uma orquídea, linda de morrer, com pele de veludo e blusinhas de renda, que mal tapavam os seus deliciosos marmelos, mas com pouca ou nenhuma margem de decisão em relação à sua vida pessoal e sentimental.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto percebi, era um homem do regime, da média ou média-alta burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área do import-export, bananas, frutas tropicais, flores, eletrodomésticos e coisas assim do género. Família numerosa, muitos manos. 

Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Namorávamos apenas... Ou trocávamos cartas e aerogramas. E ela fora inclusive ao meu embarque, no Cais da Rocha Conde de Óbidos.

Fiquei surpreendido quando um furriel de uma companhia madeirense, por sinal do Funchal e conhecido da família da Flora, e que sabia da nossa história, veio-me lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento, de acordo com os usos e costumes da terra... 
Porque  havia mais pretendentes na fila, à porta de casa!...  

Estávamos a comer umas ostras e a beber umas cerveja, numa esplanada em Bissau, talvez no "Pelicano", já não me lembro. Foi um choque. Fiquei engasgado. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão, e muito menos naquela parte do mundo, no cu de Judas. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida, sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21/22 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado pelo único crime de ser português, natural de Cinfães, filho de mãe solteira, e de pai incógnito, o filho da puta que a violara… e que, cinicamente, se oferecera para ser o meu padrinho de batismo. 

No mínimo, a minha pequena grande ambição, e a única,  era chegar inteiro à meta, de novo ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, donde havia partido... Inteiro, de cabeça, tronco e membros, e com os tomates no sítio. Ainda tentei telefonar-lhe, à Flora, de  Bissau (e depois de Nova Lamego). Em vão. As ligações com a Madeira não eram fáceis. Desisti. Sempre fui, afinal, um merdas, um fraco, um falhado. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha encantadora namorada madeirense que, cansada de esperar, acabou por me trocar... por um padeiro venezuelano rico!


12. Já agora, e se ainda tiveres pachorra para me ouvir, conto-me o resto da história, já que me apanhas em maré-alta de confidências...

Acabei, já em Lisboa, bancário, por casar com uma galega de Orense, que nunca chegarás a conhecer, por que já fomos cada um à sua vida… É apenas a mãe dos meus dois filhos, um deles a viver em Vigo, e cada vez mais galego como a mãe.

Depois, meu amigo, veio o rol de desgraças que me aconteceram. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, para Cacine, em rendição individual. O tiro de Kalash que me mandou quase um ano para o Hospital Militar da Estrela. Enfim, poupo-te os pormenores, um dia contar-tos-ei, se ambos tivermos tempo e pachorra, eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos guardados no armário da minha memória…

Esqueci a Guiné durante décadas. Ou tentei esquecer a Guiné (o que é difícil quando te vês ao espelho e tens uma bruta cicatriz no peito). Até ao dia em que, não sei como nem porquê, vi na Net o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a Bambadinca, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias, da minha breve passagem por lá, em trânsito para Bissau… Toda a malta do leste tinha que passar por Bambadinca... Eu sei que fiquei lá umas noites, à espera do "barco turra", para Bissau.


13. É verdade, desencontrámo-nos na Guiné. Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado, podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro, entre 1969 e 1970, nomeadamemnte em Bafatá, onde devemos ter estado alguma vez, no mesmo dia e na mesma hora, embora eventualmente em sítios diferentes, mas muito perto um do outro. 

Achei piada ao teu jogo de palavras, quando, ao telefone, me respondeste ao meu olá: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te para marcarmos um encontro e matar saudades. Com mais tempo e vagar. Se ainda formos a tempo... É coisa que, de resto, me vai faltando, o tempo. Cada vez mais. Ando agora com o frenesim das viagens, por terra, mar e ar: só para saberes, já visitei mais de cem países dos cinco continentes... E ainda me faltam outros tantos...Tenho pressa de viver, à medida que eu vejo os meus parentes, amigos e conhecidos lerparem, naquela idade em que ainda há a ilusão de que temos o resto da vida toda à nossa frente. Eu já não tenho essa ilusão:  vivo o dia a dia!"Carpe diem", é o meu lema.

Preciso de ganhar coragem. Confesso que tenho medo de revisitar o passado. Tenho medo das armadilhas do passado. E, por agora, ando a recuperar o tempo perdido, depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco, a lidar com o dinheiro dos outros. Aceitei vir-me embora, com uma indemnização. Ou mandaram-me embora, para ser mais correto.

Até lá, ao nosso próximo encontro, se formos vivos, um abraço, como vocês dizem, do tamanho do nosso Rio Geba.

Assina este relambório o teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustrado companheiro da viagem "a salto", até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1965, na casa dos meus "padrinhos" em Benfica e no SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, a preparar a exposição que foi a minha "vernissage", entre copos de ginjinha nos Restauradores. Recordo esse tempo com muita saudade, muito mais do que a Guiné.


Até sempre, amigo e camarada!


Teu F...

o Renoir de Montemuro.


PS1 - Parabéns pelo teu blogue de que fui apenas um fortuito visitante. Mas não me peças para lá voltar.

E já que falei o meu "padrinho" de Lisboa, que tu conheceste (e bem, por ser um homem irascível e autoritário), tenho a dizer-te que ele foi, pobre diabo, uma das vítimas do 25 de Abril: trabalhava na Praça de Londres, no Ministério das Corporações e Previdência Social, foi saneado, pela Comissão de Trabalhadores, por ser assessor de um "fascista", entrou em depressão, cometeu suicídio... 

 Confesso que fiquei desolado: nunca foi o substituto do pai que eu nunca tive,  mas foi, para mim, um bom homem... À maneira dele, quis sempre o melhor para mim. Estou-lhe grato por me ter ido "buscar" à Casa Pia, e me ter dado uma "família normal", entre os 10 e os 20 anos... Foi graças a ele que continuei a estudar e entrei em Belas Artes. A minha "madrinha", essa, ainda aguentou uns anos, morreu de abandono e demência...Era professora de liceu...


PS2 – Nunca mais voltei aos Restauradores para beber uma ginjinha… E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para o seu lado... Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto, quando voltar a Lisboa. Afinal fiquei com uma pensãozeca de DFA, a par da reforma do banco. Vivo sozinho, e com poucos luxos, tirando as viagens.


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Duas notas do autor:


(i) Ainda estou para beber a tal ginjinha, prometida pelo meu amigo F..., "aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre"... Nunca mais deu sinal de vida, depois que falámos longamente ao telefone, há uns anos atrás. Deve ter mudado de mail e de telemóvel. Sei que adora(va) viajar. E que tem(tinha) um filho, casado, arquiteto, a viver nos arredores de Paris. Enfim, deve andar por aí a dar o resto da volta ao mundo...Ou a descobrir novos mundos...

Mas perguntar-me-á o leitor mais atento ou curioso: "como é que, afinal, o conheceu e onde, a esse tal rapaz de Montemuro"? A resposta é simples: no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, no verão de 1964.. Tinha eu 17 anos. Os "padrinhos de Lisboa" costumavam lá alugar uma casa de verão e adoravam a lagosta suada do Zé Felipe... Foi lá que eu descobri o seu talento artístico.  Passámos a corresponder-nos. Até que veio o inesperado convite para lhe escrever o catálogo, um ano e tal depois.


(ii) Um bilhetinho para o F...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a saber,  na nossa última (e única) conversa ao telefone, em 2008.

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou a "selfie", como se diz agora) para este blogue que tu não segues, porque és daqueles que pôs (ou gostava de pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho que foi a tua resposta ao meu convite para integrar a nossa Tabanca Grande.

Respeito a tua decisão, esperando que não seja definitiva... Por isso também não te identifiquei... Mas, como eu costumo dizer,  a nossa Tabanca Grande não tem portas, nem cavalos de frisa, nem arame farpado... Podes entrar em qualquer hora do dia ou da noite...

Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-nos uma visita... Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude.

Como a vida é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, em agosto, nas Portas de Montemuro... E a propósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. Da minha tabanca de Candoz até à tua tabanca de Montemuro, do outro lado do rio Douro, vai apenas um tiro de obus 14...

Um abraço fraterno... Luís Graça