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quarta-feira, 21 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9632: Blogpoesia (184): O tuteio ou o tratamento por tu, entre os camaradas da Guiné... (No Dia Mundial da Poesia... e da Água) (Luís Graça)



Para os/as amigos/as, camaradas e camarigos/as da Guiné…

Com humor,
amor,
amizade,
camaradagem,
cumplicidade...
em mais um 
Dia Mundial da Poesia,
criado pela XXX Conferência Geral da UNESCO
em 16 de Novembro de 1999,
com o propósito de promover
a leitura, escrita, a publicação e ensino da poesia através do mundo.
Também Dia Mundial da Água.

Escrevam poesia,
leiam poesia,
soltem o vosso poeta envergonhado,ou até encarcerado!
Ah!, não é preciso dizer-vos para poupar a água! (... Nós, camaradas da Guiné, sabemos dar valor a ela!)

LG



Tuteio ou tratamento por tu


por Luís Graça


Fiquei com pena da fräulein Tina Kramer
antropóloga, 
hoje nossa tabanqueira,
a quem, chegada da austera e luterana Germânia,
lhe impuseram o tratamento por tu,
como se fora uma praxe de gangue:
depois desta receção da Tabanca Grande,
ela deve ter ficado confusa,
quiçá perturbada
e até intimidada,
ao pensar que os camaradas da Guiné
são todos uma cambada de velhos malucos
a quem saltou a caixa dos pirolitos...
"Portugueses, pocos, pero locos"
(diria ela se fosse uma altiva castelhana,
daquelas que vinham casar com príncípes portugueses,
na mira de acertar em cheio no jocker)...

Eu próprio detestava a palavra fräulein,
nunca tratei nenhuma colega ou amiga alemã por fräulein...
Posso a estar a ser injusto,
mas tem, para mim, uma conotação pejorativa,
prussiana,
militarista...
Como teria se eu tratasse por menina Tina Kramer,
como nos bons velhos tempos do Portugal dos nossos pais e avós
Ao menos, tratemo-la, não por miss,
(cheira-me a babydoll)
mas por bajuda,
que é mais doce, mais crioulo, mais tropical…


Zé Belo, lusolapão,
tuga da diáspora
na terra onde o cidadão trata o cidadão por tu,
não foi preciso fazermos uma revolução
à moda dos sovietes de Petrogrado,
nem do Grande Irmão Urso sueco,
nem dos Camaradas (salvo seja!) do PAIGC,
do MPLA
ou da FRELIMO...
(Lembram-se das milhares de anedotas
que se contavam do camarada, salvo seja!, Machel
e da sua mania de reeducar e recuperar o diabo branco colonialista
com o trabalho manual na machamba?!)...

Com o 25 de Abril,
a distância social e afetiva,
a começar na família, entre pais e filhos,
foi encurtada,
e o tratamento por tu impôs-se sem ser por decreto...
Com tanta naturalidade (ou só aparente ?)
que a gente nem sequer se questiona hoje
sobre o como e o porquê...
(Alguns questionam-se, e têm toda a liberdade para o fazer).
Em contrapartida, foi retomado
(ou nem sequer foi interrompido)
o tratamento, tradicional,
aparentemente mais distante e formal,
de você,
de pais para filhos,
de esposa para esposo,
em certas famílias,
em certos meios sociais
(que eu não vou adjectivar,
porque não gosto de adjetivar os outros,
e faço um esforço por respeitar todas as diferenças).
O tecido social é isso mesmo,
é um pano, de linho, de algodão, de serapilheira ou de seda,
que se puxa conforme o frio, as pernas e as mãos,
as chagas, as misérias e as grandezas…


Os nossos filhos, pelo menos os meus, tratam-nos por tu,
mas eu trato os meus pais à moda antiga...
Há algum mal nisso ?
São apenas mudanças de paradigma
na convivialidade sociofamiliar,
diria o sociólogo de serviço, que já não há,
descartado pela mãe de todas as crises... 
Eu, o Hélder, o Nelson,
fomos capazes de tratar os nossos velhos,
o Luís Henriques,
o Ângelo Ferreira de Sousa,
o Armando Lopes,
veteranos da II Guerra Mundial,
expedicionários em Cabo Verde,
com a ternura da expressão
“Meu pai, meu velho, meu camarada”

Liberdades ou libertinagens bloguísticas,
dirão os críticos…
Daqui a uns anos
(espero bem que não, cruzes canhoto!...)
voltaremos a tratar-nos
com distância e reverência,
quiçá por Vossa Senhoria.
meu fidalgo, meu amo,
como no tempo da(s) outra(s) senhora(s)…
Eu sei que o tratamento por tu,
republicano,
económico,
frugal, com duas letrinhas apenas,
o tratamento à romana na Tabanca Grande,
nem sempre é fácil nem natural,
para mais num país,
ainda muito estratificado,
em que se continua a usar e a abusar dos títulos,
nomeadamente no Estado, nas empresas e demais organizações
onde o trabalho é pouco e a distância grande,
tão grande como a rede clientelar:
senhor presidente, senhor doutor, senhor engenheiro...

Nunca foi nem o é ainda hoje:
tive a prova disso, há uns anos,
numa das memoráveis quartas feiras
do almoço semanal da Tabanca Pequena,
quando cumprimentei um a um a meia centena de convivas
da Tabanca de Matosinhos...
Boa parte, já meus velhos amigos...
mas ainda havia gente que se retraía,
invocando a educação que tiveram,
o desconhecimento do outro,
«a falta de intimidade e de convívio,
a distância física
(sempre são 300 km entre Lisboa,
a capital do reino,
onde o Paço tem Terreiro,
e o Porto, a capital do trabalho,
onde o povo tem o São João e o alho porro)...


Quando impus (passe o termo...)
o tratamento por tu no blogue,
entre camaradas da Guiné,
quis deliberadamente fazer o curto circuito
entre as distâncias militares, hierárquicas, do passado
e as eventuais distâncias sociais e profissionais, do presente...
Hoje considero uma honra poder ser tratado por tu
por um camarada da Guiné,
independentemente do antigo posto,
da idade,
da naturalidade,
da nacionalidade
e da atual posição na sociedade portuguesa...
E vice versa:
considero um privilégio poder tratar por tu
um homem ou uma mulher
que aceitam os valores e as regras do jogo do nosso blogue...

Há sobretudo uma cumplicidade (saudável) entre nós,
que não seria possível se
aqui, no blogue
e nos convívios da Tabanca Grande,
e das demais tabancas que entretanto foram crescendo
como cogumelos em floresta de carvalhos e de castanheiros,
se a gente continuasse a tratar-se como na tropa,
na escola,
no parlamento:
Dá-me licença, vossa senhoria, meu capitão ?
Como vai, senhor Doutor ?
Vossa Excelência, senhor engenheiro,
permite-me que eu discorde da sua douta opinião ?
O meu furriel é que sabe,
mas o vague-mestre é que dormia com a mulher… do Baldé
quando o Baldé ia para a Ponte do Rio Udunduma...
E, você, nosso instruendo, sua besta quadrada,
não sabe que a Pátria é hermafrodita,
é pai e mãe ?
Mais do que isso, é Pátria, é Mátria, é Frátia|

Para que o tu continue a escrever-se com duas letrinhas apenas,
o tu de tuga,
portuga,
camarada,
amigo,
irmão,
cidadão…
O tu do abraço, do alfa bravo, do quebra-costelas,
o tu de Tango Uniform,
e não se torne o tu
de intumescência,
da tumefacção,
da turbulência…
nestes dias de Charlie Romeo India Sierra Echo,
da CRISE que continua dentro de momentos...

Luís Graça

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9627: Blogpoesia (183): Homenagem ao Homem, no Dia do Pai (Felismina Costa)

terça-feira, 16 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25394: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (26): um país de gente porreira - II (e última) parte

 Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Contos com mural ao fundo >  II (e última) Parte

por Luís Graça (*)


6B. Não te assustaste com o 25 de Abril.
Bem, não foi bem assim.
Não estavas a contar, deves dizê-lo.
O Ravasco também não,
e era bem mais imformado do que tu.
Tu tinhas algo a perder e, se calhar, algo mais a ganhar.
Claro, foi um desgosto para a tua mãezinha.
Para mais, o seu filho mais velho (esse é que era o "morgado",
e que também era professor  como ela),
apareceu-lhe um dia, em casa.
De barbas, cabelo comprido e cravo ao peito.
E com uma "flausina", uma namorada, de calças, e sem sutiã...
A pobre da tua mãezinha ia morrendo, de apoplexia.


A verdade se diga: ninguém a chateou por ser do Movimento Nacional Feminino, que acabou logo, dali a uns dias, por decreto da Junta de Salvação Nacional, onde estava o Spínola com quem tu, aliás,  até simpatizavas um bocado. Os outros não te diziam nada, com exceção talvez do Costa Gomes, que fora teu comandante-chefe em Angola (nunca o voste), e que também era nortenho como tu. Flaviense.

E, de resto, a tua mãezinha  já não dava aulas, tinha funções meramente burocráticas, na área da administração escolar. Logo que teve condições, isto é,  reuniu os requisitos legais, pediu a aposentação. Ainda bastante nova.  Percebeu que o seu tempo (e quiçá o seu mundo) havia acabado. 

Infelizmente ainda não tinha netos para cuidar. Mas dedicou-se ao seu jardim. Tinha uma cultura de camélias. E abriu a capela  da família, do séc. XVIII,  ao povo da freguesia. Sempre ornada de flores, camélias... Achaste um gesto bonito. E, afinal, inteligente. Democrático.  A capela até então estava vedada ao povo da aldeia, ali nos arredores de Ponte de Lima. O que era mal visto. Até para fazer um velório ou outro, as pessoas às vezes pediam-lhe e ela recusava.

Tinha muito orgulho, a tua mãezinha,  na capela onde repousavam os restos mortais de alguns dos seus queridos antepassados. Contrariando as leis de saúde dos Cabrais, ainda lá foram inumados, até tarde, até quase aos fins do séc. XIX, alguns dos teus avoengos.  

Claro que já nenhum padre lá ia  dizer missa. Os padres também aprenderam com a história passada, e, para o clero, sobretudo o mais jovem, era bom ser democrata (ou pelo menos aparentá-lo). Como o teu amigo de Mafra, mas esse já era democrata antes do 25 de Abril. Quer dizer, era do "contra".

A chatice maior que a família teve, no pós-25 de Abril,  foi com os rendeiros. "Poucos mas ingratos e velhacos", como já dizia o teu pai.  Recusaram-se a pagar a renda em géneros. Ainda se usava, e vinha desde há séculos,  o sistema da parceria agrícola (pagamento a meias ou ao terço, conforme os produtos eram da terra ou do ar). 

O teu irmão deu um jeito, resolveu o conflito. Chagou a cabeça a toda a gente da família.  Disse que "não, senhora,  minha mãe, que aquilo era senhorial, semi-feudal, pré-capitalista, que daqui a uns tempos  já se estava no ano 2000, e ainda  se lavrava a terra com os bois em Ponte de Lima!"... 

O teu mano era o "comuna" da família. Naquele tempo até dava jeito ter um "comuna" na família. Depois veio a lei do arrendamento rural e tudo se normalizou. Mas não foi preciso esperar muito para as terras ficaram sem rendeiros, nem bois, nem podadores, cobertas de mato. E a tua mãezinha voltou a ter que comprar batatas e cebolas no mercado. Mal dela se tivesse que viver das rendas dos rendeiros. E em anos ruins perdoava-lhes as rendas, depois da morte do marido. Nisso, era afinal um coração bondoso, e guerreiro, da estirpe da Maria da Fonte (que ela admirava).

O teu pai, um amanuense,  também dera a volta ao texto. Extintos os organismos corporativos, foi "reconvertido",  a nível profissional.  Os grémios da lavoura deram origem a cooperativas agrícolas. E tudo ficou como dantes. Ou quase. Não perdeu os seus hábitos, muito menos a sua tertúlia dos copos e dos petiscos. " E nunca quis mais saber da política!", confidenciou-te ele um dia. Mas morrerá cedo, coitado,  passados uns anos. 

Tu próprio também acabaste por "apanhar o barco" (ou, como se dizia na Ericeira, "surfar a onda"). Deixaste crescer o cabelo e passaste a usar uma boina basca.  Preta. Descobriste o teu lado (adormecido) de anarquista. E, confessavas, soube-te bem respirar o ar da liberdade que tu, em boa verdade, não tinhas tido quando nasceste no seio de uma família limiana tradicional.  Apesar de toda a gente ter um rótulo, tu recusaste-te  a revelar as tuas opções político-ideológicas, quer dizer, o partido em que votavas nas primeiras eleições. 

O Ravasco, muito mais à esquerda do que tu (acha que eras do PPM, o partido popular nonárquico), quis meter-te no sindicalismo, mas tu disseste-lhe  logo que "não senhor, muito obrigado, há coisas para as quais um limiano  de sangue azul como eu não tem jeito nem feitio nem vocação". Fizeras a tropa, já chegara esse tempo em que andaras "arregimentado".

A princípio, depois do 25 de Abril,  o Ravasco era o terror do "adjunto" e do "grupo das meninas", lá  na repartição  de finanças de Mafra.  Tens que o reconhecer, foi um gajo decente,  não houve saneamentos nem correu sangue, que era uma situação que tu detestarias, no caso de as coisas terem descambado para aí... Talvez por ter feito uma guerra, o Ravasco mostrou-se aos teus olhos surpreendentemente maduro e responsável.  

 A tua consideração por ele subiu mais uns pontos. Mas secretamente deu-te gozo ver aquele grupinho de sacanas baixar a bolinha. De um dia para o outro, a sorte mudara. Não vale a pena um gajo cantar de galo e montar as galinhas,  esquecendo-se que quem faz pintos também faz galuchos e garnizés. Mas não tiveste tratamento recíproco. A ti, continuaram a desprezar-te como "filho de Ansião"...

Ainda foste, com ele, no teu carro, a Peniche, ver a saída dos presos políticos, em 27 de abril. Não tinhas lá ninguém teu conhecido. Mas também não concordavas com as prisões políticas nem com a  censura à imprensa nem com os pides ... Nunca se discutia política lá em casa, mesmo que os teus pais fossem simpatisantes do Estado Novo (pelo menos votavam na União Naconal e depois na ANP, a tal Acção Nacional Popular, sem convicção, por dever de  ofício. ) 

Levaste também no teu Mini o Ravasco ao 1º de Maio, em Lisboa... Viste ao longe o Mário Soares e o Álvaro Cunhal.  Não sendo republicano, ficaste com um certo respeito por eles. Pelo menos, foram homens que lutaram pela liberdade dos outros, dando o corpo ao manifesto.  Mas nunca tinhas visto tanta gente junta, gritando palavras de ordem, de punho erguido.  Sempre tiveste a fobia das multidões. E daí nunca teres ido a desafios de futebol (nem a touradas e, muito menos, a comícios!).

Percebeste cedo que "aquela não era a tua praia", preferias a Ericeira e a Foz do Lisandro... Foi mais para fazer companhia ao Ravasco, um gajo de quem a pouco a pouco começaste, sem saber bem porquê,  a gostar como amigo, ou até talvez como o irmão que te fazia falta, a algumas centenas de quilómetros de casa... 

Foi ele que começou a tratar-te por tu, a seguir ao 25 de Abril. A princípio, custou-te, repugnava-te até, mas lá te foste habituando,  a pouco e pouco. Na família sempre houvera a norma do tratamento por você.  O respeitinho sempre fora muito bonito entre os teus. Chamava-te agora "pequeno-burguês", com hífen, qualificativo que tu nunca sabias muito bem o que queria dizer. Interpelavas o safado do Ravasco: "É por gostar das coisas boas da vida ? De gajas ? Ou ter um velho Mini com jantes especiais?"... 

Nunca to esclareceu... Sempre o achaste, nesse aspeto,  um bocado moralista. Rígido, em certas coisas. 

Em Braga irás conhecer o verão quente de 1975. Mas desse tempo não gostarias de   falar. Ficaste desgostoso com as posições radicais que alguns amigos e conhecidos teus, de um lado e do outro, tomaram, na altura do PREC.  A começar por católicos que se sentavam na missa, ao teu lado. Aí, sim, temeste que a coisa pudesse degenerar em guerra civil. 

A tua mãe, que sabia muito da História de Portugal,  falava-te dos horrores que haviam sido as guerras liberais, fratricidas. Na tua família parece que houve tanto "malhados" ou "jacobinos", partidários do Dom Pedro, como "corcundas", seguidores do Dom Miguel, estes talvez em maior número. E só se juntaram na "Patuleia", em 1847,  os "realistas" e os "setembristas" ou "progressistas", da Junta do Porto. Daí tu não te admirares de o teu mano ser "comuna do 26 de Abril". Houve muitos vira-casacas. Acontece em todas as mudanças de regime. E em todas as famílias. A tua, afinal, era como as outras.

Mais tarde voltaste a Ponte de Lima onde o teu mui amado tio-avô, materno, solteiro,  e que não tinha herdeiros diretos, te deixou em doação uma quinta. Uma pequena quinta, maneirinha, boa de se fazer. Tu eras o seu sobrinho-neto querido. Por causa da política, cortara relações com o teu mano, professor primário, esse, sim, o "senhor morgado", que ficou com as fracas terras da família, estoirando-as em pouco tempo...

Reformaste-te da função pública, no bom tempo. Fizeste uma formação em vitivinicultura. Descobriste os encantos da vida no campo.  E, para surpresa do Ravasco, não te casaste nem fizeste filhos (que tu soubesses), nem sequer escreveste um livro, mas plantaste árvores  e vinhas. E disso podes orgulhar-te.


7A. Uns tempos antes do 25 de Abril, ainda em Mafra,
o Bacelar havia-te apresentado ao padre, seu amigo,
de que espantosamente já não recordas o nome.
Simpatizaste, de imediato, com ele.
E depressa encontraste nele um homem
capaz de ouvir (e sobretudo de saber ouvir)
o relato dos teus “fantasmas” da guerra de África.



No fundo, ele acabou por ser o “confessor”, mais do que o simples confidente ou ouvinte passivo, de que tu estavas a precisar, ali, desterrado e amargurado. Na realidade, e até então, nunca falaras da guerra a ninguém, não tinhas sequer amigos íntimos com quem pudesse partilhar as tuas confusas e doridas memórias, da infância, do seminário, da guerra... A não ser, afinal, com o Bacelar.

Ao fim da tarde, antes do jantar, a meio da semana, tinhas por hábito juntarem-se, tu, o Bacelar e às vezes o padre, na tal "tasca dos jaquinzinhos" (na realidade era já um misto de tasca e  bar a virar para  modernaço)...  Tomavam a bica ou uma cerveja, davam dois dedos de conversa, comentavam as notícias dos jornais. Era uma espécie de tertúlia. Às vezes juntava-se à mesa um ou outro jovem estudante,  conhecido do grupo, ou das relações do padre. E noutras meses aparte, um ou outro cadete.

Talvez já em março de 1974, não sabes se antes ou depois do 16 de março, a revolta das Caldas, que  alvoraçou a malta do "reviralho" (incluindo o Bacelar que lá estivera uns anos antes como 1º cabo miliciano), a conversa foi parar, sem tu  dares conta, à Guiné e à guerra. Sabes que te perdeste e me abstraiste do que se passava à tua volta. Não te apercebeste sequer de quem estava na mesa do lado. 

O padre, mais velho do que tu uns anos, gostava de te ouvir e raramente te interrompia com um pedido para esclarecer este ou aquele ponto, e muito menos para manifestar a sua concordância ou discordância. Revelava, isso, sim, uma grande empatia, o que veio reforçar a confiança que ele te inspirava, logo desde o início. Em suma, sabia ouvir, o que era, quanto a ti, uma qualidade essencial num confessor. Os que tu tiveras, até perder a fé, eram mais inquisidores do que confessores….

Ficaste também com a ideia de que ele estava minimamente familiarizado com o meio castrense. Não te admiravas, estava  habituado  a lidar com a tropa numa terra como aquela. Talvez até ele tivesse sido capelão militar, antes de vir para aqui, conjeturavas tu.  Ou talvez ainda quisesse vir a sê-lo, a guerra do ultramar estava para dar e durar, pensava muito boa gente.  Estava, de resto, em idade para isso, para ser capelão. Teria cinco anos a mais do que tu, já a roçar os 30. Nunca lhe perguntaste a idade, por delicadeza. Vieste depois a saber que alguns dos seus paroquianos eram militares da EPI ou seus familiares.

Se bem recordas hoje, a quase meio século de distância, o teor da conversa (na realidade, um longo monólogo) girava à volta dos "prisioneiros" que a tropa fazia na Guiné. Ali não havia prisioneiros de guerra, garantias tu, ou se os havia não eram tratados como tal. Portugal não estava, técnica e legalmente, em guerra com nenhum país soberano, pelo que não podia haver prisioneiros de guerra. Mas tu nunca tinhas lido a Convenção de Genebra. Os guerrilheiros ou simpatisantes  do PAIGC quando aprisionados, no decurso da actividade operacional das nossas tropas, eram tratados como simples presos de delito comum. Ou seja, eram "turras". 

Sob tortura, davam informações relevantes sobre o dispositivo militar do PAIGC no setor ou região, bases ou “barracas” (acampamentos temporários), população, nome dos comandantes e dos comissários políticos, bigrupos, armamento, trilhos, depósitos de armamento, lojas do povo, locais de cambança, etc. Eram um "livro aberto"... E, claro, eram forçados a servir de guias para levarem a tropa até ao “objetivo”. 

Sempre fora assim, ainda antes do teu tempo,  e tu, como todos os outros graduados, quer do quadro, quer milicianos,  fechavam os olhos ou assobiavam para o lado. “Siga a marinha!", dizia o capitão. Nunca torturaste ninguém. Mas alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Afinal, à guerra não era para meninos de coro.

Estavas a contar-lhes, ao padre e ao Bacelar (a tua atenta audiência),  as peripécias de uma operação em que tu comandavas a tua companhia, já com o teu capitão de baixa no hospital militar de Bissau. Havia outras forças envolvidas, e nomeadamente um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de milícias que faziam parte do teu destacamento. 

A milícia seguia à frente a abrir caminho e  com o prisioneiro a servir de guia. Éram dois destacamentos, A e B, a avançar, numa manobra de envolvimento, “em tenaz”, para o “objetivo”, uma “barraca”, um acampamento onde estaria um bigrupo, ou menos (talvez cerca de 40 homens), situado a montante de um rio e na orla de uma mata espessa, de tipo floresta-galeria, ao longo da margem de um rio. Estavam bem armados, incluindo morteiro 81.

O prisioneiro era balanta, não falando uma única palavra de português. Era muito  jovem e bem constituído. O alferes de 2ª linha, que comandava o pelotão de milícias, mantinha com ele um difícil diálogo em crioulo. Tu seguias no seu encalce, dez metros atrás, com o teu guarda-costas, e o homem da bazuca. Percebest que o prisioneiro há mais de uma hora fazia tudo para despistar a tropa ou denunciar a sua presença, à medida que se aproximavam do objetivo.

Às tantas, foram detetados (o que era normal) por uma sentinela avançada, no alto de um bissilão,  que deu o sinal de alarme… O teu guarda-costas abateu-o, com um tiro certeiro, mas acabaram  por ser flagelados por fogo de armas pesadas.  De imediato, foram  vítimas de um brutal ataque de abelhas. 

Na confusão que logo ali se instalou, o prisioneiro ensaiou uma tentativa de fuga, mesmo algemado e preso a uma corda. O  milícia, que o conduzia foi suficientemente lesto para o impedir de se internar na mata, acabando por o alvejar no último segundo, já no fim de um dos  trilhos que levavam à “barraca”, e que ele devia conhecer, de olhos fechados.

Pelo PCV (Posto de Comando Volante), a avioneta onde estava o major de operações, receberam  ordens para abortar o assalto, uma vez gorado o efeito surpresa e o aparente desnorte das nossas tropas, dispersas pelo ataque de abelhas e a “morteirada” do inimigo. 

Reagruparam-se  na orla de uma bolanha, com o ferido a sangrar, enquanto os T-6 entraram em ação despejando bombas sobre o “objetivo”. E regressaram sob proteção do helicanhão.  

Foi nessa altura que o comandante da milícia, espumando de raiva, saltou sobre as costas do prisioneiro, como um verdadeiro felino, e rasgou-lhe a coluna vertebral de alto a baixo, com a sua faca de mato bem afiada. O prisioneiro caiu redondo no chão mas não teve morte fulminante. Ainda viste alguém, da milícia,  dar-lhe um tiro de misericórdia na nuca e cortar-lhe as orelhas, prática que, de resto, não era invulgar em circunstâncias com estas… Dizia-se que era um ritual guerreiro dos fulas, mas o Spínola deixou de achar graça, quando lhe meteram na cabeça que a guerra também se ganhava pelo charme, a "psico", o respeito pelo inimigo, blá-blá, blá-blá...


Ficaste sem pinga de sangue, nunca tinhas presenciado uma cena de guerra daquelas, nem nos filmes do faroeste onde era pressuposto os índios e os os cobóis tirarem o escalpe aos mortos. E não tiveste sequer tempo nem reflexos para impedir uma barbaridade daquelas. 

O mais grave é que, por cobardia ou para não arranjar chatices, omitiste esta cena no relatório que ajudaste a fazer com o comandante do outro destacamento, que era capitão.  Oficialmente, o prisioneiro-guia fora morto quando intentava fugir… E o alferes de 2ª linha  era um grande operacional, muito bem visto (e protegido) pelo comando do batalhão do setor. Falava-se já na sua próxima gradução em tenente, indo ao encontro da política de Spínola de "africanizar" cada vez mais a guerra. 

Estavas tu a acabar o relato deste triste episódio da tua guerra, quando da mesa ao lado salta um jovem que se dirige ao padre e diz com veemência:

 É tudo mentira, senhor padre!... Uma infâmia, uma calúnia!... Isso nunca poderia ter acontecido na nossa querida Guiné e muito menos por homens que envergam e honram a nossa farda. O senhor meu pai, oficial superior em Bissau [disse o nome, o posto , a unidade, etc.] , está lá, neste momento, rezo por ele todas s noites e  sei que ele nunca pactuaria com práticas indignas de um exército que defende a nossa pátria e os valores da nossa civilização cristã e ocidental!...

O padre, reconhecendo de imediato o jovem (ou talvez ainda adolescente)  e temendo pela tua integridade física, arrastou-o com força para um canto da sala e fez tudo para o acalmar… Não contaste os minutos, tu próprio estavas perplexo e chocado com toda aquela violência verbal, intempestiva e  gratuita… 

Passaram-se talvez uns bons vinte minutos,  foi longa (e áspera) a conversa do padre com o jovem… De copo de água na mão, o jovem parecia, no entanto,  estar a acatar a autoridade do padre, que o tentava acalmar… Por fim, lá saiu da sala, em passo estugado, mas não sem antes te voltar a fulminar com o olhar. Por certo que ficaste marcado, pensaste tu com os teus botões. Ficaste com a ideia de que, a partir daquele momento, tinhas ganho mais um inimigo naquela maldita terra.

O padre regressou à mesa, limpando o suor da testa, aliviando a pressão do cabeção no pescoço, ao mesmo tempo que pedia desculpa e tentava ensaiar uma explicação para aquele assomo de violência juvenil:


 É um paroquiano meu, excelente rapaz mas muito impulsivo. Conheço-o há uns boms anos. É filho de uma ilustre família de militares... Mas podemos considerá-lo “órfão de pai”, cresceu com o pai em África. Tem uma enorme admiração pela figura paterna e prepara-se para ingressar na Academia Militar, daqui a dois anos...

O Bacelar saiu contigo, mudo e calado. Mas incomado, tanto ou mais do que tu e o padre. Nunca mais os três falaram do  assunto.


8A. Epílogo


Infelizmente, o  Bacelar já não está cá, entre os vivos, para se poder continuar a manter esta espécie de monólogo a dois... 

 Como o tempo passou, meu Deus!

O Bacelar morreu num estúpido acidente de trator agrícola, há uns anos atrás, trinta e muitos anos depois de 1974. Numa vinha, nova, em socalco, que ele plantara e amanhara com uma paixão e um carinho que te comoveram, até às lágrimas, quando lá foste participar numa vindima, talvez por volta de 1997, se não erras, altura em que ele fez 50 anos. Tinha uma bela vinha com castas loureiro e alvarinho. "Era a menina bonita dos seus olhos"... Não tinha filhos, ficara solteiro...

“Contra todas as probabilidades”, como dizia ele, os dois ficaram  amigos para o resto da vida. E, no entanto, só conviveram em Mafra, menos de dois anos, separando-se já no final do verão de 1974, talvez em outubro.  Conseguiram a tão almejada transferência, tu para a Repartição Central do Imposto Complementar, em Lisboa, na Rua Braamcamp, e ele, para mais perto de casa, na cidade dos arcebispos e, mais tarde, para a sua terra.

Acabaste por tirar o curso de direito, em Lisboa, graças ao teu estatuto de trabalhador-estudante e beneficiando igualmente das regalias de antigo combatente. Cinco ou seis anos depois, no início dos anos 80, concorreste a um lugar de técnico superior de 2ª classe no Ministério do Trabalho e Segurança Social. Foste para uma área de que gostavas, e tinha a ver com as condições de trabalho, incluindo a higiene e segurança e matérias afins. Ajudaste  a elaborar diversos materiais de divulgação e sensibilização, fichas técnicas, brochuras, cartazes, etc. Interessaste-te, em especial, por sectores de elevada sinistralidade como as minas e pedreiras, a construção e obras pública, a agricultura e pescas, a metalomecânica.

Era um trabalho de algum modo pioneiro em Portugal, acabaste mais tarde por ir parar, com as sucessivas reestruturações do Ministério, sito na Praça de Londres, a um instituto que antecedeu a atual ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.

Do sindicalismo das contribuições e impostos, já não tinhas saudades nenhumas. Ainda ajudaras a criar e a alimentar um boletim, "A Forja", que era tirado a "stencil". Aquilo acabou por descambar num sindicalismo corporativo, populista,  que é o que há hoje em Portugal, ainda com alguma força reivindicativa, dos professores aos magistrados, dos estivadores aos condutores de longo curso, maquinistas de comboios, pilotos da TAP, polícias e quejandos... São essas corporações, algo mafiosas (como os gajos da estiva),  que podem parar um país... Podem usar a bomba atómica, é certo, que é a greve e  a paralização de sectores-chave da economia, mas também têm que saber muito bem calcular e prevenir os seus efeitos de "boomerang"...

Com o tempo de tropa, e os 36 anos de função pública,  reformaste-te. E passste a  dedicar-te aos cães e aos netos. Tinhas um pequeno monte, não longe da terra onde foste parido, na freguesia de São João dos Caldeireiros, lá no cu de Judas, no "país profundo", com diziam os gajos politicamente corretos, e que tu não sabias o que queria dizer... Devia ser a forma eufemística ou cínica de chamar-lhe a periferia das periferias, onde só havia coutadas,  de meia dúzia de granjolas, e onde já chegara o pré-Saara, o deserto...que nos há de cobrir a todos.

Tens pena, hoje,  de nunca ter feito o estágio de advocacia, de modo a teres podido exercer a profissão a tempo inteiro. Entraste para a função pública, tramaste-te, não quiseste trocar o certo pelo incerto, tu que chamavas "pequeno-burguês" ao pobre diabo do Bacelar.  Mas, pelo que vês hoje, a profissão de advogado já não é o que era. São os grandes escritórios que fazem a lei... E o idealismo de outrora desvaneceu-se. Como tudo, de quando eu eras jovem e ainda sonhavas com um mundo totalmente diferente daquele em que nasceras, tu que eras filho de mineiro e neto de ganhão. 

Só esperas que não te dê tão cedo o badagaio. Querias morrer lúcido, em paz contigo e, se possível, com os outros, o que se calhar é pedir demais. Vais ter que negociar com o teu gestor de conta do além.

Não, não casaste com a rapariga de Beja, que estava à tua espera. Fartou-se de esperar e fez ela muito bem. Um dia encontrou na rua, ao virar da esquina, o primeiro namorado, do tempo de escola, e lá juntaram os trapinhos. Nada como a primeira grande paixão,  sempre ouviste dizer.  Só esperas que ela tenha sido mais feliz do que tu foste.

Já do Bacelar não sabias tantos pormenores do resto da  sua história de vida. Andou atrelado a uma francesa, no verão de 1974. Chegou a levá-la à sua terra, para escândalo da mãezinha. 

Aliás, andaram atrelados, os dois. Ela tinha uma amiga ou irmã,já não não te lembras bem. Despacharam os “copains”, que vinham com elas, e que foram atrás das portuguesinhas de Lisboa. Vieram, num “dois cavalos”, ver a “révolution des oeillets”, a revolução dos cravos, ao vivo e a cores. Portugal, país liliputiano,  que não cabia na geografia do mundo, passou a ser, nesse tempo,  uma espécie de jardim zoológico da Europa. Chegaram cá fotógrafos famosos, tiraram umas chapas e depois esqueceram Portugal e os portugueses por mais umas boas dezenas de anos.

O Bacelar, esse,  acabou por dar um salto até aos Alpes Franceses, já em setembro de 1974, na “rentrée”. As raparigas eram da região de Grenoble. Foi uma espécie de “summer school”, completa, mas sem direito a certificado em papel timbrado, com o “Capital” do Karl Marx, o “Kama Sutra”, os maços de cigarros “Gitanes”, e a garrafa de vinho do Porto Ferreirinha, enrolados nos lençóis encardidos. 

As tipas, finalistas de liceu, eram muito mais politizadas e "sabidas"  do que ambos. O Bacelar era obrigado a recitar o “livrinho vermelho”, a bíblia do maoísmo, antes de ir para a cama com a sua “copine”. A que te calhou na rifa era mais dada à poesia e à música de contestação, o Brel, Moustaki, o Leo Ferré… Nada de Dassin ou Bécaud, que eram pirosos, mas os únicos que o Bacelar e tu conheciam … 

Enfim, melhoraste substancialmente o teu francês de praia nesse tardio verão de 1974. Mas não acompanhaste o Bacelar nas aventuras em França, país de resto que tu já conhecias, do trabalho duro, de sol a sol nas vinhas de Bordéus… Trabalho de escravo branco, diga-se de passagem.

O argumento era o do costume, e fez-te recuar até à Guiné: 

− Bacelar, alguém tem de ter a cabeça fresca e  ir trabalhar… 

Na realidade, tu sentias-te mal por andarem os dois  com miúdas muito mais novas. Caiste na realidade. Aquilo não tinha nada a ver contigo. E lá foram os três no Mini! O "dom Juan" do Bacelar e as catraias... Não sabes como o Bacelar conseguiu a proeza, de ir e vir… num Mini já com muitos milhares de quilómetros no contador…

O “açoriano”, o chefe, levantou-lhe um processo disciplinar por faltas injustificadas. Nesse tempo ainda havia livro de ponto. Intercedeste pelo teu “amigo improvável”, usando (e talvez abusando de) as tuas funções, 
na altura, de delegado sindical, "eleito democraticamente", em lista única, de braço no ar (e com três ou quatro votos contra, como seria de esperar). E sobretudo fartaste-me de esgalhar para compensar o trabalho em falta do Bacelar. 

O tio-avô dele, já reformadíssimo, arranjou-lhe um atestado médico. E, com a “boa vontade de todos”, o caso foi abafado e a “ficha” do Bacelar voltou a ficar limpinha… 

O Portugal do pós-25 de Abril era  um país de gente porreira… Perguntas-te hoje por que razão é que o fizeste, por um tipo que afinal tinha poucas afinidades contigo… 

És capaz de responder que foi simplesmente por amizade (e quiçá por camaradagem), que veio na sequência da situação de “companheiros de infortúnio”,  quando colocados como "mangas da alpaca" na repartição de finanças de Mafra… Afinal, a política, a religião, a ideologia... não eram tudo na vida, foi a conclusão a que tu chegaste, da tua vivência desses tempos.

Nesse final de verão de 1974, ou já princícpio de outono,  descobriste de repente que, ao despedirem-se,  tinhas ganho um amigo, na realidade o primeiro amigo do peito que ganhavas em vida… Despediram-se com um valente  "quebra-costelas"  e uma indisfarçável lágrima ao canto do olho... Prometeram visitar-se um ao outro,  em próxima oportunidade. O que só viria a acontecer em 1977, três anos depois, por ocasião do seu (e dele) 30º aniversário natalício. Ele veio até Lisboa, dessa vez.

Entretanto, em 1974, depois do 25 de Abril, o  "grupinho do adjunto e das meninas" andava de crista murcha, mas não escondia a sua hostilidade crescente para com o “sindicalista”, que eras tu. O Bacelar apanhava por tabela, apenas por ser teu amigo...  

Disseram-te depois que, a partir do verão de 1975, voltaram a sentir-se de novo em casa, com a baiuca por sua conta. A paz voltou a reinar no convento, se bem que as alegres noitadas de da última sexta feira de cada mês já não se voltaram a repetir, tal como as "ceias de Natal do fisco"… A "madama" sumiu-se, os empresários tinham mais com que se preocupar...

Com o início da informatização das contribuições e impostos e da modernização administrativa, incluindo uma nova gestão de recursos  humanos, começou a imperar uma certa moralidade, rigor e transparência... 

Entretanto o “açoriano” fora promovido e regressara à sua ilha natal.   O jovem candidato  à Academia Militar  não sabes se chegou a concorrer e  a entrar, já com a "guerra de África" arrumada.  E do padre, teu amigo e do Bacelar,  também não nunca mais soubeste nada. E a história deste país, já quase com 900 anos,  lá seguiu o seu curso a caminho do novo milénio.

Em Mafra, não deixaste amigos, infelizmente, mas queres aqui reconhecer que era terra de boa gente, e sobretudo trabalhadora. Embora tu nunca te tenhas reconciliado com a "Máfrica", mas isso é outra história.

O mais triste de tudo  foi  a perda, afinal, de um grande amigo, morto estupidamente debaixo de um tractor que ele comprara, em segunda mão  e, por ironia, não obedecia às normas nacionais e europeias de segurança, faltando-lhe por exemplo as estruturas de segurança (nomeadamemte, o arco de segurança, rebatível)...

E tu que, da única vez que lá foste, à sua casa nos arredores de Ponte de Lima, a chamar-lhe a atenção: "Oh!, Bacelar, olha que um dia destes ainda cais de um socalco e ficas debaixo do trator!"... 

Meu dito, meu feito!... Tal como ao do teu pai, não foste ao seu funeral... Só soubeste da triste notícia uns largos tempos depois. Por um mero acaso. Quando passaste por Ponte de Lima e lembraste-te de perguntar a alguém por ele.


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024.


Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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Nota do editor:

(*) Poste anterior da série > 15 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1494: Tabanca Grande (5): Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912

Guiné > Zona Leste > Subsector de Galomaro > Dulombi > 1970 > O Alf Mil Barata


Coimbra > 2007 > O Fernando Barata, novo membro da nossa tertúlia.


Fotos: Fernando Barata (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem de 25 de Janeiro último, enviada por Fernando Barata, que reside em Coimbra:

Caro Doutor Luís Graça:

Teria imenso gosto em pertencer ao grupo tertuliano. Deste, já fazem parte dois colegas de Batalhão (BCAÇ 2912), o Martins Julião [, CCAÇ 2701] e o Paulo Santiago [,Pel Caç Nat 53, ] e também três camaradas da Companhia que eu fui render (Raposo, Felício e Vitor David - CCAÇ 2405).

Através do Blogue foi-me também possível localizar um amigo de juventude do qual já não tinha contacto há mais de 40 anos. Mais que não fosse, só por isto, já valeu a pena.

Passo a transmitir os meus dados pessoais:
Fernando Barata >

(a) ex-Alferes Miliciano, pertencente à CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912,

(b) estive na Guiné entre Maio de 1970 e Abril 1972, no Dulombi.

Permita-me que lhe dê os parabéns não só pela ideia da constituição do blogue, mas também pela sua estrutura.

Cordiais cumprimentos
Fernando Barata

2. Resposta do editor do blogue:

Fernando:

(i) Estás em casa. Somos quase da mesma época. Eu pertenci à independente CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12, africana) (Maio de 1969/Março de 1971). Estivemos como unidade de intervenção em Bambadinca, às ordens dos BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72). A CCAÇ 2405 que tu foste render (Alf Rijo, Felício, David e Raposo - os quatro fazem parte ds nossa tertúlia) pertencia à BCAÇ 2852;

(ii) Já conheces as nossas regras. Podes consultar a página respectiva;

(iii) A ideia é cada um de nós ir alimentado o blogue com imagens e pequenas estórias… Há quem se abalance a fazer coisas de maior fôlego. Por exemplo, já publicámos as memórias do Paulo Raposo e de outros camaradas. Escreve, quando te apetecer. De qualquer modo, gostaríamos de saber um pouco mais sobre ti (onde vives, o que fazes…), a tua CCAÇ 2700 e o teu BCAÇ 2912, e os sítios por onde vocês andaram. Se tiveres fotos com interesse documental, manda… digitalizadas.

(iv) Como já percebeste, o tratamento por tu é uma regra com que nos temos dado bem, na nossa tertúlia… Esbate diferenças e quebra barreiras na nossa comunicação;

Já nos encontrámos na Ameira, em Montemor-O-Novo, em Outubro passado (Estiveram lá o Julião e o Santiago). Não nos conhecíamos a não ser de fotografia. Pessoalmente, só alguns. Não imaginas quanto foi mágico (podes ver o respectivo post) (1): ao fim de cinco minutos, estávamos todos a falar como velhos camaradas de há 40 anos…

Eu sei que para alguns de nós, por defeito de educação, o tratamento por tu é artificial, é desconfortável… Nascemos todos no Portugal de Vossa Excelência, tão bem caricaturado por poetas e romancistas do nosso tempo como o Alexandre O’Neil ou o José Cardoso Pires… A Guiné aproximou-nos a todos… e a Internet veio reforçá-los… A prova disso é este blogue…

(v) Vou apresentar-te à malta da nossa tertúlia… Ficas com os nossos endereços. E nós com o teu. Temos duas vias de comunicação: internamente, por email; ou através dos posts, publicados no blogue.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça).

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13165: O nosso livro de visitas (177): Francisco Monteiro Galveia, que vive em Fronteira, Alto Alentejo... Foi 1º cabo cripto na CCAÇ 616 (Empada, 1964/66) e pede para integrar a Tabanca Grande


Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 616 (1964/66)> O então 1º cabo cripto Francisco Monteiro Galveia.

Foto: © Francisco Monteiro Galveia (2014). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem,  de ontem, do nosso leitor e camarada Francisco Monteiro Galveia:


Sou Francisco Monteiro Galveia, vivo em Fronteira. 

Fui Operador Cripto da CCAÇ 616 (Amadora, Bissau e Empada,1964/1966)

 Peço para integrar a sua Tabanca, 

Só nesta altura tive conhecimento da sua existência, por indicação dum amigo que esteve também na Guinè. Se estiver no sitio certo, posteriormente vou dar mais indicações.

2. Comentário do editor L.G.:

Camarada Galveia, vamos começar por nos tratar por tu. Como camaradas que somos, tratamo-nos por tu, aqui no nosso blogue e nos nossos convivios. Como costumamos dizerm "camarada não tem que ser amigo; é aquele que dorme no mesmo buraco, na mesma cama, no mesmo abrigo"... O tratamento por tu facilita a comunicação entre os camaradas da Guiné. 

Vamos agora ao teu pedido. Mandaste-nos duas ou três fotos, mas só conseguimos abrir a primeira, que puiblicamos acima. Vem sem legenda, presume-se que tenha sido tirada em  Empada, Na volta do correio, manda-nos uma foto atual, tipo passe. Ficam assim cumpridas as regras que estabelecemos para te apresentar. Ah, já me esquecia, foste lacónico a teu respeito, tens que nos dizer mais qualquer coisa do teu tempo na Guiné, enquanto militar da CCAÇ 616. Se tiveres uma ou mais pequenas histórias, manda através do nosso endereço de email que já usaste.

Tínhamos até agora apenas 3 referências à  CCAÇ 616/ BCAÇ 619 (Empada, 1964/66). 

Há duas referências a militares da CCAÇ 616:

(i) O 1º Cabo nº 2514, Fernando das Neves Ferreira, mais conhecido por Cabo 14, e já  falecido, que  está representado na nossa Tabanca Grande pela sua filha Ana Paula Ferreira, desde 2006; 

(ii) O ex-alf mil Joaquim da Silva Jorge, ou  só Joaquim Jorge, natural de Ferrel, Peniche, de que te deves lembrar, e que chegou a comandar a companhia; foi o organizador do encontro do pessoal, em 2013, em Fátima; estou à espera que ele, depois de aceite meu convite, formalize a sua entrada na Tabanca Grande; costuma visitar o nosso blogue e interessa-se pelas histórias da guerra da região de Quínara, contadas por camaradas de outras companhias que vieram depois de vocês para Empada.

Dito isto, tu, camarada Galveia, estás em boa posição de ser o primeiro representante da CCAÇ 616 a sentar-se à sombra do "poilão" da nossa Tabanca Grande que é um espaço virtual onde todos cabemos, os canaradas da Guiné, dos mais "velhinhos", do princípio da guerra (os de 1961/63, aos "piras", os  de 1973/74, que fecharam a guerra...  Em suma, um sítio na Internet onde cabemos todos com  tudo o que nos une e até com aquilo que nos separa.

Temos muito gosto em aceitar o teu pedido para ingressar na Tabanca Grande. Para mais vens de uma  região rica em história e património, que merece ser melhor conhecida e visitada. Se nos responderes de imediato, serás o grã.-tabanqueiro (membro da Tabanca Grande) nº 656, passando o teu nome a constar da lista alfabética de A a Z publicadada na coluna do lado esquerdo. 

 Isto quer  dizer, que o nosso blogue representa já mais do que um batalhão (=4 companhias x 150 homens). . Precisamos, de resto, que entrem 5 a 6 novos membros por mês, para alimentar o blogue com histórias e fotos.  Publicamos também uma média de 4 a 5 postes (textos) por dia.

Aqui fica uma alfabravo (ABraço) da nossa equipa de editores, em serviço, Luís Graça, Carlos  Vinhal e Eduardo Magalhães Ribeiro.

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Nota do editor. 

Último poste da série >

19 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13008: O nosso livro de visitas (176): Sou descendente orgulhoso de um camarada que passou por Bambadinca e procuro os organizadores do convívio anual do pessoal de 1968/71 (A. Martins, filho do fur mil Fernando Martins, já falecido)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21608: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2020:
Queridos amigos,
Annette está de regresso a Bruxelas, atira-se ao trabalho, esse trabalho não é só profissional, trouxe de Lisboa documentos, cartas, aerogramas, folhas soltas e imagens correspondentes ao primeiro trimestre de 1969, tudo referente a Paulo Guilherme e a um tal regulado do Cuor, por quem ele sente uma paixão inextinguível.
Escrevendo a Paulo, Annette pergunta se a realidade não supera quase sempre a ficção, basta ler estes patrulhamentos, estas operações, a flagelação sobre Missirá e a dura resistência a que ela obrigou aqueles homens que juraram entre si que jamais se renderiam. Como o leitor verificará, esta regra do jogo de escrever para uma ficcionada mulher amada leva a que todo este estado amoroso acaba por absorver aquela estranhíssima proposta do tal português que fizera a Annette, inesperado encontro, ele disse-lhe que tinha imaginado um romance em que um português contaria a uma estrangeira toda a sua experiência numa guerra de que ela nunca tinha ouvido falar, de um país que é um pequeno ponto no mapa, a Guiné-Bissau, e que aquele encontro a pretexto do romance desaguara numa coisa séria, romance mais dentro do romance é pouco imaginável que possa vir a acontecer.
Deixemo-los nesta felicidade pois quem anda a mexer nos cordelinhos da prosódia também ganha em satisfação, à distância de mais de meio século ele sabe que o renascimento de Missirá foi um dos episódios determinantes da existência, aprendeu que há lutas que não se enjeitam, há causas que dão mais vida aos anos, e quanto mais as sentimos mais tempo vivemos, com dignidade e respeito por nós próprios.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon adorable Paulo, chegou o momento de te agradecer a minha primeira estadia em Lisboa, apreciei muito comovida o modo como me acolheste, bem como os teus entes queridos e amigos, é uma cidade magnífica, já a visitara duas vezes para conferências, primeiro quando Portugal aderiu à CEE e depois na presidência de 1992, fiquei impressionada nesta última com as mudanças, agora ainda fiquei mais, tu fizeste-me a grande surpresa de me levar ao Parque das Nações, é fascinante, acredito que toda aquela parte velha que vai até ao Terreiro do Paço sofrerá ao longo dos anos grandes benefícios, foi o que eu senti naquele longo passeio que demos no último dia do ano, regressei a casa cansadíssima, tu adoras andar a pé e eu acompanho-te entusiasmada com as tuas descrições, gostei mesmo muito de conhecer o Palácio do Duque de Lafões, imagine-se numa zona ainda relativamente degradada.

Tu tens muito bons amigos, e isso é consolador para nós os dois, sinto que tu és estimado e correspondido nos teus afetos. Aquela passagem de ano em casa da tua amiga Belmira Coutinho, a vermos os fogos de artifício, a comer as vossas iguarias e vir depois para a varanda com as doze passas e o copo de espumante foi mais um momento de felicidade, meti todas aquelas passas à boca a pensar no futuro promissor dos meus filhos e viver permanentemente ao pé de ti. Imagina que enquanto todo aquele fogo ribombava me veio ao espírito uma conversa havida com a minha mãe a propósito do meu pai que faleceu tão novo, seguramente que os sofrimentos a que foi sujeito durante a II Guerra pesaram muito. Depois dizia a minha mãe que recebera na véspera do casamento uma carta do seu noivo a confessar-lhe a adoração que sentia por ela, a exaltar os primores de caráter da noiva e que a frase final a marcara para sempre: “Se te couber um dia fechares os meus olhos no leito de morte, lembra-te que foram olhos que agradeceram os dons da vida em que estiveste como minha aliada permanente, olhos brilhantes de paixão, olhos que te seguiram para todo o lado com enlevo e admiração. E ao fechares os meus olhos tu terás para o resto da tua vida a grata lembrança que soubemos permanecer unidos pelo respeito e na plena fusão dos nossos projetos. E amanhã serás a mulher desse homem que em circunstância alguma abdicará da luminosidade da tua companhia”.

Pois regressei, procurei pôr em ordem o que trouxe de Lisboa, conversei com os filhos e organizei a semana de trabalho. Como é meu hábito, à noite organizo em parte todo o material que me envias, e desta vez trouxe debaixo do braço tudo quanto faltava para saber ao pormenor o primeiro trimestre da tua guerra em 1969. Aqui vai um resumo de tudo quanto pude captar.

A 1 de janeiro, a caminho de Finete e da missa na Capela de Bambadinca, encontras vestígios da passagem de elementos ligados à guerrilha. No dia seguinte regressas a Bambadinca para fazer um reconhecimento aéreo com o major de operações, descobres que a escassos quilómetros de Missirá há bolanhas cultivadas. Não perdes tempo, saem na madrugada seguinte e foram até à ponte do rio Gambiel que já escreveste dizendo é um sítios mais formosos do mundo. Caminham pela orla que separa os regulados do Cuor dos de Mansomine e Jaladu. Vocês foram avistados e logo fogueados com morteiros. Respondem ao fogo e um dos apontadores de bazuca fica ferido, não se sabe a dimensão da gravidade.

Enquanto se fazem obras no arame farpado e anda por ali atarefado o alferes sapador (tu dizes chamar-se Mena Reis) com quem terás contencioso, ele pretende armadilhar locais acessíveis a crianças, descobre-se uma conjura de gente de Finete que se queixou de ti ao comandante, haveria milícias que se queixariam de maus-tratos e que não darias apoio à tabanca, privilegiando Missirá. Não foi precisa uma longa investigação para descobrires que por detrás da cabala estava o comandante da milícia, o vaidoso e pouco amigo do trabalho Bazilo Soncó. Escreves ao comandante do batalhão alertando-o para várias urgências, achavas que a vida militar do Cuor podia estar intimamente associada ao Enxalé, recordavas o estado degradado em que se encontravam os dois destacamentos de Missirá e Finete, mandaram-te teres paciência. Anotei o acervo de leituras que fizeste, as cartas enviadas e recebidas.

Pelas consequências havidas, reproduzi ao pormenor o que tu me mandaste sobre a primeira visita do General Spínola a Missirá, a sua rispidez contigo e também a do comandante de Bafatá. Ri perdidamente com aquele episódio em que o dito general falando aos soldados os chamava por “luz do mato” e um deles interpelou-o da seguinte maneira: “Comandante fala na luz do mato. Mas nunca falou no gerador. Gerador é que dá luz. Quanto traz gerador para Missirá?”. Serás punido com dois dias de prisão simples e assim impedido de teres férias, e ao mesmo tempo recebes o primeiro louvor dado por general considerando que a tua mentalidade ofensiva deve ser apontada como exemplo. Vão seguir-se vários patrulhamentos, cada vez mais próximos dos locais onde se fixa a guerrilha. Há aquela operação Andorra e também escrevi com pormenor o ataque de abelhas em que vocês corriam espavoridos por um lado e os guerrilheiros por outro. Registei aquela ameaça que tu recebeste de Mamadu Jaquité, irás ao seu encontro em 1991, ele era então comandante do Cumeré, transcrevi o teor da ameaça: “Tu não passas de um alferes de merda. Andas a chatear um povo que quer ser livre. Tu vais morrer ou eu ter vergonha de viver na minha pátria. Se quiseres desertar, tu vens cultivar a bolanha de Madina. O meu nome é Mamadu Jaquité”.

Vai seguir-se a terrível e desastrosa operação Anda Cá, antes durante um patrulhamento a Quebá Jilã vocês capturaram um jovem que seguirá na operação como guia. A narrativa que tu deixas do estado calamitoso de 300 homens depois da frustração da operação que é interrompida quando tu já avançavas para o objetivo de Madina é quase um quadro de horror, gente no maior sofrimento, a gritar por água e por tratamento dos pés feridos. Segue-se uma operação onde foste a um local chamado Mansambo, pela primeira vez tu entrarás no acampamento abandonado e segues para Bissau para extraíres uma cartilagem formada atrás do joelho direito que praticamente te impedia de andar, é comovente o teu encontro na enfermaria com Fodé Dahaba, não sei se alguém poderá escrever um quadro de dor parecido com o que tu nos dás. E comovente também o facto de o Fodé ter pedido a um enfermeiro para tu ficares numa cama ao lado da dele.

Encadeiam-se mais tragédias. Mal te consegues pôr em pé, vais ao Batalhão de Engenharia, numa localidade chamada Brá e consegues obter muitos materiais para as obras dos teus quartéis. Quando tens alta, a 20 de março e entregas a guia de marcha no Quartel-General, um sargento atira-te a seco uma mensagem há pouco recebida, Missirá fora na véspera atacada, pouco passava das nove da noite, e uma parte muito importante do quartel ou da povoação fica em cinzas. Em estado de estupor, regressas ao hospital militar, à procura de feridos, pois o relato incluía dois mortos, dois soldados feridos e seis civis hospitalizados. Encontras o régulo Malan Soncó numa enfermaria, foram-lhe extraídos estilhaços do peito. Como se fosse o acontecimento mais importante de toda aquela flagelação, o régulo insiste na notícia: “A tua morança desapareceu completamente, só ficaram os ferros da cama. Na tua ausência puseram lá uns cunhetes de granada que aumentaram a explosão. Prepara-te porque não vais encontrar nada”. Consegues, depois de muito insistires, um transporte que rapidamente te leva a Bambadinca e daqui a Missirá. Tu escreves que vai começar um dos momentos mais empolgantes da tua existência, decidiste que em tempo recorde Missirá será construída, disseste isto aos teus soldados e à população, não se pode ler o relato que te fizeram da resistência àquele formidável ataque sem sentir um tremor no corpo, aquela resistência durante horas, as munições já praticamente esgotadas, o pacto de sangue estabelecido entre os soldados, lutariam até ao fim, cada um ficaria com duas balas, se entretanto os guerrilheiros ousassem avançar, receberiam a penúltima bala, a última culminaria na morte do combatente, nunca se renderiam. E quando termina este primeiro trimestre tu dizes que Missirá está a renascer entre a lama e o cimento. É tudo isto que eu estou a coligir para tu depois forjares as tais cartas a que eu vou responder no que tu chamas o romance da Rua do Eclipse. Há momentos, meu adorado Paulo, em que eu me interrogo se de facto a realidade não é mais pujante que a ficção. Como é que foi possível tudo isto ter acontecido? Obviamente tenho lido como toda a gente livros sobre a II Guerra Mundial, aqui bem a sofremos com perseguições, penúria, prisões arbitrárias e até execuções. Há romances notáveis sobre a luta nos guetos, as batalhas na frente russa, as fugas audaciosas de prisioneiros, mas arrepia décadas depois, por causa de uma obstinação em querer ter um império contra os ventos da História, a tua geração ter sido forçada a participar nesta calamidade.

Interrompo por aqui esta narrativa para te contar que eu e vários colegas fomos convidados pela colega Nelly Alter a uma festa em sua casa, numa localidade chamada Saint-Marc, a poucos quilómetros de Namur, um acolhimento formidável e depois do repasto, que se realizou cedo, a Nelly sugeriu que fôssemos passear, não dentro de Namur mas para visitar duas localidades e monumentos que ela muito aprecia. São essas as imagens que te envio, para prazer dos teus olhos.

Renovo a minha gratidão de tudo quanto me ofereces. Hoje sinto-me muito otimista e nada melancólica. Percebi que balbuciavas quando me disseste na terceira semana do mês a reunião da tua Associação se realiza em Florença, acontece que tenho praticamente trabalho todos os dias este mês de janeiro, as instituições comunitárias já estão em pleno funcionamento e tu disseste-me que ainda tinhas quatro dias úteis de férias do ano anterior para gozar e que seriam integralmente passados comigo, em fevereiro. Vou amanhã mesmo falar com o responsável pelo meu calendário de trabalho e ver se é possível em ter uma semana em branco. Telefono-te imediatamente.

Ando com o teu anel, os colegas perguntam-me de onde vem, elogiam-no. “É presente do meu noivo, é anel para toda a vida”. Despeço-me com o maior carinho, com a muita saudade (que é portuguesa e belga), e com os votos de que janeiro passe depressa para eu te ter ao pé de mim, tua, Annette.

(continua)
Fogo de artifício na passagem de ano
Château de Spontin, Bélgica
Basilica Saint-Materne (Walcourt), Bélgica
Fodé Dahaba, a nossa grande perda na Operação Anda Cá
Operação na área do Xime, o Pel Caç Nat 52 participa, à direita António da Silva Queirós, também conhecido pelo 81, segue-se Ieró Baldé, 1.º guarda-costas de alfero, segue-se Serifo Candé, amigo de peito de alfero e o barbeiro Manuel Costa, hoje detentor do blogue A Nova Barbearia Costa, de onde se retirou esta imagem, com a devida vénia.
Festa do Natal de 1970 do Pel Caç Nat 52, imagem herética, como é possível aquele garrafão de vinho junto de bravos Fulas e Mandingas? Mistério insondável
Festa de Natal de 1969 na ponte do rio Undunduma, perto de Bambadinca
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21586: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1240: Questões politicamente (in)correctas (5): terrorismo, terrorista (Carlos Vinhal)

Mensagem do Carlos Vinhal, com data de 24 de Outubro de 2006:

Caríssimo camarada bloguista Dr. Beja Santos (1):

Voltando ao termo terrorista que eu pessoalmente não gosto de utilizar, venho rebater/clarificar o meu ponto de vista.

Para mim, acto terrorista é uma reacção violenta contra pessoas e/ou bens, sem ter em conta se essas pessoas foram agentes activos nas acções que motivaram o terrorismo. Lembremo-nos do 11 de Setembro e do 11 de Março, por exemplo. Tratou-se de actos violentos de um inimigo sem rosto e nome duvidoso que originou a morte a milhares de pessoas inocentes e a destruição de bens, com o fim de atingir a economia dos países respectivos, confundindo regimes políticos com cidadãos indefesos. Foram ataques indiscriminados, visando o caos.

No nosso caso, estivemos numa guerra subversiva em território mais ou menos conhecido e delimitado, onde os contendores tinham nome e rosto. O objectivo era conhecido e a missão era o controle da população e o reconhecimento político, deixando para segundo plano a conquista de terreno.

Diga-se em abono da verdade que as populações controladas, por nós e por eles, foram muitas vezes apanhadas pelo fogo cruzado, mas as batalhas mais importantes foram travadas entre forças militares ou militarizadas. Cometeram-se exageros quando se mataram civis desarmados e crianças. Estes, os tais casos de consciência a que me referi anteriormente. As minas e as armadilhas que fizeram e ainda fazem vítimas inocentes, infelizmente fazem parte de uma sub-guerra onde todos temos culpas. Como a utilização do napalm.

Os termos Ultramar ou Colónia para mim são pacíficos. O primeiro designa que a posição geográfica dessa parcela territorial está além-mar. O segundo designa um conceito de soberania sobre um terrritório afastado duma Metrópole politicamente dominante. O doutor(2) sabe isto bem melhor do que eu, mas refiro-o para alicerçar o meu ponto de vista.

Quanto aos republicanos terem entrado na 1.ª Guerra Grande para defender o Ultramar, aqui tratava-se de defender o território da cobiça internacional, nomeadamente por parte da Alemanha e Inglaterra, como sabe. A nossa guerra, contra o PAIGC, foi contra o direito à soberania.

Os melhores cumprimentos e um abraço do camarada e admirador

Carlos Vinhal

Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá (1970/72)
Leça da Palmeira
Telem 916032220

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1228: Questões politicamente (in)correctas (4): Terror e contra-terror na guerra colonial ou do Ultramar (Beja Santos)

(2) O tratamento por tu é a regra básica da nossa tertúlia. O uso de títulos (académicos, militares ou outros) também não é incentivado. Razão: não melhora a nossa comunicação, é ruído. Respeita-se, em todo o caso, as outras formas de tratamento que, excepcionalmente, um ou outro dos nossos tertulianos queiram usar em público. O Carlos Vinhal não gosta de tratar ninguém por tu, fora das suas relações íntimas. O Beja Santos respondeu na mesma moeda: tratou o Carlos por você. Aliás, recordo-me de ele tratar por você os seus soldados do Pel Caç Nat 52. Eu e os meus soldados da CCAÇ 12 tratávamo-nos por tu. Sem complexos de inferioridade ou de superioridade. A nossa caserna é plural, pelo que deve respeitar as diferentes idiossincrasias, sensibilidades, particularidades...O mais importante é que todos e cada um se sintam confortáveis na tertúlia dos amigos e camaradas da Guiné.

domingo, 12 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19776: Tabanca Grande (478): José Ramos, ex-fur mil, Destacamento do STM do CTIG (1968/70), chefe do Posto do STM de Bafatá, sob o comando do então cap eng trms, João Afonso Bento Soares... Passa a ser o grã-tabanqueiro nº 789 e já marcou presença em Monte Real, no próximo dia 25...







Guiné > Região de Bafatá > Destacamento do STM (Serviço de Telecomunicações Militares) > Posto do STM de Bafatá > José Ramos, ex-fur mil trms

Fotos: © José Ramos (STM) (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem do José Ramos, com data de 10 de corrente, 17h23

Caro Amigo Luís Graça: 

É com enorme prazer e satisfação, que venho responder ao seu amável e oficial convite para integrar a vetusta Tabanca Grande. 

Para tanto, envio os elementos pedidos: 

(i) o meu Nome é José Ramos, ex Furriel Miliciano do Destacamento do STM / Guiné 68-70, chefe do Posto do STM de Bafatá, sob o Comando do então Capitão Engº de Trms, João Afonso Bento Soares [, nosso grã-tabanqueiro nº 785]; 

(ii) o STM (Serviço de Telecomunicações Militares) destinava-se a apoiar as Forças do CTIG na área das Transmissões Permanentes, facultando ligações rádio e tegráficas de Bissau para a Metrópole e de Bissau para todos os comandos de Agrupamento, de Batalhão e COP;

(iii) a minha missão específica situava-se ao nível de Recepção e Envio de mensagens em morse, a partir do Posto de Bafatá que eu chefiava e que servia no local um Comando de Agrupamento, um Esquadrão de Cavalaria e um Batalhão de Caçadores.

Devido à importância funcional e estratégica destas três Unidades, o nosso posto era, logo a seguir ao de Bissau, o de maior tráfego de mensagens na Guiné, o que exigia grande esforço e dedicação de toda a equipa. 

Junto em anexo três fotos do meu tempo de Guiné e uma foto actual. 

Um grande abraço e até ao dia 25 de Maio,  em Monte Real.

José Ramos

2. Comentário do editor Luís Graça:

Zé, como camaradas que fomos, no TO da Guiné, tratamo-nos por tu. São, de resto, estas normas (facultativas) do nosso blogue. O tratamento por tu facilita a comunicação entre nós, nomeadamente pessoal miliciano e praças.

Por outro lado, verifico que estivemos no TO da Guiné, mais ou menos na mesma altura e na mesma região, a de Bafatá, tu entre 1968/70 e eu entre junho de 1969 e março de 1971.  A minha companhia, CCAÇ 12, africana, esteve ao serviço, como subunidade de intervenção, de dois batalhões sediados em Bambadinca: BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72)... Seguramente que nos cruzámos em Bafatá, aonde íamos com regularidade (em lazer, em serviço, etc.).

Já temos, na Tabanca Grande, uma "morança" com a tabuleta "José Ramos", ex-1º cabo cav, EREC 3432 (Bula, 1972/74), Para não ocnfusão com a tua "morança", vou.te chamar José Ramos (STM) ou, em alternativa, José Ramos (Lisboa) ou ainda José Ramos (Bafatá)...  Mas, na volta do correio, podes sugerir outro nome: por exemplo, pôr uma apelido intermédio... Em qualquer altura podemos emendar, corrigir, neste caso, "desambiguar"...

Tu é que me dizes como queres ser conhecido na Tabanca Grande, sabendo à partida que já há um José Ramos, da arma de cavalaria... Uma vez que a antiguidade é um posto, também na Tabanca Grande, e sendo tu mais "periquito" (nestas andanças bloguísticas), temos de arranjar um solução de compromisso... O teu nome bai ficar, na lista alfabética dos membros da Tabanca Grande, a  seguir ao José Ramos, como José Ramos (STM) (Vd. coluna estática, do blogue, do lado esquerdo.)

Quanto ao resto, és recebido de braços abertos por mim, demais editores, colaboradores permanentes e demais pessoal da Tabanca Grande: contigo passamos a ser 789 os grã-tabanqueiros, dos quais, infelizmente 72 já deixaram a terra da alegria... A sua presença, o seu nome, as suas fotos e hstórias continuam a ser um forte estímulo para prosseguirmos, ao fim destes 15 anos, a honrosa  missão de  partilhar memórias (e afetos) à volta da Guiné e das nossas comissões de serviço militar, entre 1961 e 1974.

Até Monte Real, sábado, dia 25 de maio!... Luís Graça